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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.60 no.132 São Paulo jun. 2010

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Atendendo famílias incapazes de pensar: a perspectiva do psicólogo judiciário

 

The role of a forensic pshycologist in the court: caring familie's difficulties to reasons

 

 

Sidney Kiyoshi ShineI; Audrey Setton Lopes de Souza*II

I Tribunal de Justiça de São Paulo
II Universidade de São Paulo - Instituto de Psicologia - LITEP

 

 


RESUMO

Aborda-se a utilização do referencial psicanalítico no atendimento a um tipo de família com dificuldade parapensar em avaliação pericial na Vara de Família pelo psicólogo judiciário. Os desentendimentos e a incapacidadede enfrentar conflitos nestas famílias acabam levando à busca de uma sentença judicial como forma de resolvero litígio. Procura-se demonstrar que tais dificuldades têm por base uma impossibilidade de suportar as tensõesinerentes aos conflitos e como conseqüência, um modo de agir pautado em estruturas esquizo-paranóides nasquais o pensamento não é o modo predominante de aproximação. Justifica-se o alto grau de impulsividadeencontrado nos membros de tais famílias, o que demanda da Justiça a colocação de limites legais. A possibilidadede contribuição do psicólogo no contexto institucional do Tribunal de Justiça é exemplificada a partir daanálise de um caso.

Palavras-Chave: Perícia psicológica; psicanálise; família.


ABSTRACT

The use of psychoanalytical approach in a forensic evaluation of a family with difficult to think is reported.This kind of family presents difficulty or incapacity to face and solve conflicts due to an impossibility to dealwith stress related to it. This incapacity does not leave space for thought, so the tension created has to be actedout in a schizoparanoid form of conduct. The lack of impulse control is characteristic of these families whichleads the justice system to impose legal limits to them. The intervention of a psychologist as an expert witnessis illustrated by a case which highlights this contribution to the justice system.

Keywords: Forensic psychological evaluation; psychoanalysis; family.


 

 

INTRODUÇÃO

Procuramos, neste artigo, articular uma forma de compreensão psicanalítica de uma famíliacom dificuldade para pensar que não costuma ser atendida em serviços de atendimento psicológico,seja ele público ou privado. Uma das características principais de tais famílias é um alto grau deimpulsividade e falta de limites.

O conflito interpessoal que eclode em tais famílias acaba sendo destinado a instituições jurídicaspor meio de intervenções legais de caráter coercitivo e/ou punitivo. Queremos destacar uma formade trabalho do psicólogo possível em uma instituição jurídica particular: o Tribunal de Justiça,particularmente nas Varas de Famílias e Sucessões. Este trabalho parte deste recorte particularconsiderando três vertentes específicas:

1.O trabalho do psicólogo dentro de uma instituição judiciária a partir daquilo que se entendepor perícia psicológica (Shine, 2005).

2.O objeto de intervenção e análise é a família, especificamente a família em uma situaçãoparticular de crise – a dissolução da sociedade conjugal e a necessidade de se discutir aforma como se continuará o vínculo parental (Shine, 2002).

3.Esta compreensão do fenômeno intrapsíquico e interpsíquico privilegiará uma certa formade praticar a psicanálise (Bion, 1991; Box, Copley, Magagna, e Moustaki, 1994; Pincus eDare, 1981; Souza, 1995).

 

1. A VERTENTE INSTITUCIONAL

O trabalho do psicólogo judiciário em Vara de Família se configura institucionalmente a partirda determinação judicial para a realização de uma perícia psicológica. Necessitamos esclarecer do que setrata quando se fala em perícia, uma vez que não é uma prática regular ou bem conhecida do psicólogo.

Em processos judiciais de Vara de Família, a seqüência dos atos processuais é codificadapelo Código de Processo Civil. O rito formal tem que ser obedecido sob o risco de se considerarinválido o seu resultado final. A entrada do psicólogo em tais casos é formalizada pelo instituto daperícia, entendida como forma de trazer subsídios específicos ao caso em julgamento. Esta situaçãoleva a uma dinâmica específica entre o psicólogo, nesta função, e as pessoas com quem interagir afim de produzir um laudo psicológico que fará parte dos autos do processo judicial. Como nos dizShine (2005, p. 16).

Obviamente que a intervenção do psicólogo é condicionada por regras jurídicas e dentro de umcontexto institucional legal cujo objetivo é fornecer subsídios à autoridade judicial. Logo, seucomprometimento com a tarefa da autoridade judicial está posta desde o início, condicionandoa forma que as pessoas atendidas (avaliadas, na linguagem do contexto de avaliação de guarda)se comportarão com o profissional.

Ressaltemos as diferenças que caracterizam o trabalho do psicólogo que é feito na Vara daFamília. Em primeiro lugar, o psicólogo não é procurado pela família em busca de uma soluçãopsicológica (autocompreensão, compreensão do outro, entendimento de uma dinâmica conflituosa,etc.). O que é buscado é uma solução jurídica, ou seja, uma sentença que dê uma solução legal para umconflito interpessoal, por exemplo, quem fica com a guarda do filho disputada entre o pai e a mãe.O psicólogo é demandado a realizar uma intervenção nesta família pela autoridade judiciária(juiz) que procura por meio das conclusões desta intervenção adequar a sua sentença àquela famíliaem particular.

O psicólogo faz as vezes de um "detetor de mentiras" que fornecerá "provas", "verdades"sobre as quais se fundamentará a sentença judicial. É neste sentido que podemos dizer que as pessoassob o olhar do psicólogo perito sentem-se "vistas" pelo juiz.A dinâmica que se estabelece entre os membros da família e o psicólogo possui característicaspróprias da instituição em que se pratica tal intervenção. A relação não é de ajuda com fins terapêuticos;estabelece-se uma relação persecutória em que a preocupação do interlocutor é controlar asinformações que passa para não se prejudicar. Como os adultos sabem que o mesmo profissionalatenderá a todos os envolvidos, busca cooptá-lo para aquilo que deseja e, muitas vezes, defende-sede ataques imaginários ou reais que a outra parte possa estar fazendo contra si. A criança pega nomeio deste fogo cruzado pode fazer o profissional sentir-se identificado com ela; disputado de cadalado por um dos adultos e criando alianças, seja com um, seja com o outro.

 

2. SE O PROBLEMA É DA FAMÍLIA...

O exercício da prática clínica diagnóstica dentro do contexto pericial, primeiramente,aguçou nosso interesse pela discriminação nosológica. Era importante para o trabalho conseguirdistinguir entre uma estrutura neurótica ou psicótica, quais as defesas mais utilizadas, como asangústias se mobilizavam, quais os arranjos edípicos que teriam levado a uma dada escolha doobjeto de amor.

Em "Sobre o Narcisismo: uma introdução", Freud (1914/1976) opõe o "tipo de escolha anaclíticade objeto" (ou por apoio, segundo a proposta de Laplanche e Pontalis, 1983) ao "tipo de escolhanarcísica de objeto", que se relacionam à forma de escolha do objeto de amor. As vicissitudes daescolha do objeto amoroso revelam, neste sentido, a forma como a pulsão sexual se manifesta, emúltima instância, dá elementos para pensar sobre quem é este sujeito que faz tal escolha.

Há que se considerar que o enfoque nosológico parte de uma perspectiva individualizante, ouseja, considera o diagnóstico de uma pessoa. O valor do diagnóstico individual é limitado no sentido dese entender o porquê do conflito interpessoal entre membros de uma família, que desemboca em umasituação de conflito judicial deflagrado. Outra desvantagem na ênfase diagnóstica era acabar rotulandoas pessoas e daí passar a uma classificação hierárquica que pouco correspondia a uma sutilezadiagnóstica clínica, mas que cabia melhor para um julgamento moral: Uma histérica é melhor mãe queum pai obsessivo? Um paranóico é mais perigoso que um psicopata?

Como realizar um diagnóstico e não cair em uma valoração moral (quem é melhor ou piorpara cuidar de uma criança?). A questão é bem mais complexa, mas a pergunta acima já foi o suficientepara buscar uma outra perspectiva do problema. Percebemos que o problema não era do pai ou da mãe ou do filho, que poderiam precisar do Judiciário para impor limites, restringir contatos, vigiar os atos... O problema era da família!

O enfoque diagnóstico atomizava o problema com o agravante ético de se cair na armadilhade se julgar a neurose de um "pior ou melhor" do que a do outro. O enfoque familiar parecia maisadequado ao nosso objeto de estudo. Ao considerar a situação atual como aquela em que a família chegou junta, havia indicações de que ela (a família) não chegou a esta solução "por acaso". Deveriahaver uma razão intrínseca para que a família utilizasse o aparelho judiciário e que isto fizessesentido para todos. Considerar a fabricação do sintoma como algo criativo, altamente investido esatisfatório, apesar dos protestos em contrário, era muito familiar às lições freudianas quanto aobenefício secundário da doença, dos ganhos do princípio do prazer, apesar da roupagem de doença combatida e prejudicial.

Considerem o exemplo mais comum desse tipo. É muito comum uma mulher, tratada com rudezae explorada de forma desumana por seu marido, encontrar uma saída na neurose, se sua constituiçãoo possibilita, se é excessivamente covarde ou excessivamente honrada para procurar um consolosecreto com outro homem, se em virtude de todos os empecilhos externos não é suficientementeforte para separar-se de seu marido, se não tem perspectivas de se sustentar a si própria ou deconseguir um marido melhor, e se, além do mais, ainda está, através de seus sentimentos sexuais,vinculada a seu cruel marido. Então a sua doença se converte em arma na batalha contra omarido dominador — arma que ela pode usar para sua defesa e da qual pode abusar para suavingança. É permissível ela queixar-se de sua doença, embora provavelmente não fosse permissívellamentar o casamento. Ela encontra no médico um aliado, força o marido, habitualmenteindiferente, a cuidar dela, a gastar dinheiro com ela, a permitir-lhe que de tempos em tempos seafaste de casa e com isso se liberte da opressão de estar casada. Quando semelhante ganhoexterno ou secundário proveniente da doença atinge essas proporções e não há nenhum substitutoreal disponível, os senhores não devem contar com possibilidades muito grandes de influenciar aneurose por meio do tratamento que empreenderem (Freud, 1917/1976, p. 446).

O exemplo em questão diz respeito a uma dinâmica do casal que se sustenta a partir de umainteração entre as necessidades e as condições individuais e sociais em que as pessoas se encontram.Entre os operadores do Direito também é muito facilmente encontrável a explicação de que a mulherpode tentar se "vingar" do marido que quer se separar, dificultando-lhe o acesso ao filho. Ou então,a idéia de que a pensão alimentícia é negociada como "resgate" do vínculo paterno-filial. A Justiçapode tentar corrigir tais "distorções", porém as sentenças e medidas judiciais têm o mesmo poderque o tratamento psicanalítico na comparação acima: correm o risco de virar letra morta. Aquilo queno Brasil se brinca, falando que há leis que "pegam" e outras que "não pegam" (Rosenn,1998, p. 60).

Estamos considerando a formação familiar como tendo uma coerência e um sentido que se expressa por meio de um litígio processual (Shine, 2002, p. 65-66).

Em outras palavras, quando um casal está comprometido com o relacionamento, existetambém um "reconhecimento inconsciente" de cada um de que há partes cindidas, negadasou partes do self projetadas no outro. A escolha inconsciente do cônjuge foi feitaparcialmente porque se "reconhece" que este outro é um bom receptáculo para projeção deaspectos próprios. É o que se pode chamar de uma escolha inconsciente compartilhada afim de que cada cônjuge se encarregue de conter partes excindidas do outro. Ao fazerem tal escolha estão criando aquilo ao qual me referi acima como um contrato inconsciente,que serve tanto como base para o desenvolvimento como para a defesa. Do ponto de vistado desenvolvimento, a atração mútua se justifica pelo fato de se estar em contato e conhecermais a respeito dos aspectos negados do self enquanto localizados no outro e, assim,tornar-se mais integrado. Do ponto de vista da defesa, a atração mútua pode ser uma escolha inconsciente compartilhada para dar conta de certas cisões e projeções em umsistema de defesa compartilhada contra ansiedades comuns.

Falar que a família se organiza a partir de um contrato inconsciente implica reconhecer quecada membro desta família pode ter aspectos negados e cindidos da personalidade. Aspectos não integrados e que tendem a ser predominantemente sentidos como persecutórios e, como tais, difíceisde serem digeridos e pensados tendendo a um modelo de evacuação como forma de livrar-se datensão. Estas situações funcionam como fonte de novos contratos inconscientes, que emergem quandoa família é acrescida de novos membros, fazendo com que novas projeções e novos arranjos seconfigurem com a chegada dos filhos, que muitas vezes traduzem em seus sintomas os conflitos nãoelaborados do casal parental.

Souza (1995), partindo do sintoma de inibição intelectual na criança verificou como este poderiaser considerado um emergente da família:

A loucura é a expressão de nossa incapacidade de suportar e elaborar uma determinadaquantidade de sofrimento; assim, a emergência da doença em um grupo familiar significa queum membro desse grupo assume um novo papel, transformando-se no porta voz ou depositárioda ansiedade do grupo (p. 40).

Na situação pericial, parte-se da dinâmica conflitiva do casal que chega à instituição judiciária,para se pensar nas conseqüências psíquicas e sociais para a criança envolvida. Enquanto que noenquadre clínico parte-se do sintoma apresentado como queixa dos pais para se chegar a um desajusteque existe alhures. Apesar das diferenças de contexto (clínico e pericial) e de enfoque (psicodiagnósticoinfantil e perícia em Vara de Família), parece-nos que existe uma convergência em relação à importânciaque se deve dar à dinâmica familiar.

Passaremos a seguir ao terceiro vértice deste trabalho, explicitando como o enfoque teóricopode subsidiar a atuação neste papel institucional (perito), levando em conta a especificidade da família.

 

3. A UTILIZAÇÃO DO REFERENCIAL ANALÍTICO

Muitas pessoas vêm para a Filosofia desejosas de que lhes conte como viver – ou desejandoreceber uma explicação sobre o mundo, e com ela uma explicação sobre a vida – mas me pareceque ter ao menos esse último desejo é querer abdicar da responsabilidade pessoal. Ninguémdeveria querer que lhe contassem como viver... E portanto ninguém deveria vir para a Filosofiabuscando respostas definitivas. É algo bastante diferente uma pessoa querer buscar clarificaçãode sua vida ou clarificação das questões envolvidas em problemas específicos, com os quais seconfronta, de modo que esta pessoa possa, mais efetivamente, assumir responsabilidade por simesma e tomar decisões com uma compreensão maior e mais clara do que está em jogo (Magee,Bryan, 1978, apud Box et. al., 1994, p. 91).

Box et al. (1994) abrem seu capítulo sobre como trabalhar a dinâmica da sessão com opensamento acima que sintetiza a postura de trabalho clínico que propõe. A proposta de trabalhocom família defendida por esta representante da Tavistock Clinic (Reino Unido), cuja abordagem sebaseia em dois desenvolvimentos específicos (Box et al, 1994, p. 18):

a) o das relações objetais e a prática psicanalítica derivada especialmente a partir do trabalho de Freud, M. Klein e outros que colaboraram com as idéias dela, principalmente W. Bion; b) a aplicação disso para a compreensão das relações grupais, seguindo o trabalho de Bion e outros como A. K. Rice, P. M. Turquet e Elliot Jaques. A característica comum deles é o significado atribuído ao papel representado pela fantasia inconsciente na elaboração e desenvolvimento de relacionamentos humanos; todos eles enfatizam o uso de sentimentos imediatos espontâneos para elucidar esses 'mundos internos de relacionamentos' ou 'fantasias compartilhadas' na medida em que aparecem dentro dos limites da sessão.

Parece-nos que a proposta de Box et al. permite conter mentalmente (keep in mind) todos osmembros da família, mesmo que eles possam ser atendidos, inicialmente, de forma individual. Aênfase do diagnóstico muda, o esforço se concentra na possibilidade de se abrir um espaço físico emental, onde conflitos significativos e atuais possam ser reatualizados em nossa relação. Assim, naspalavras de Box et al. (1994, p. 93).

Da forma como vejo, é possível pensar na sessão como um espaço assim, no qual uma espécie domicrocosmo do mundo familiar de um paciente pode estar presente e no qual seus integrantespodem experienciar, em relação uns aos outros e a nós alguns dos conflitos cruciais que lhespreocupam; isto é, a família pode utilizar as fronteiras que propiciamos aos seus membros para seus padrões específicos e preocupações através da forma como se relacionam conosco;e nós, como terapeutas, podemos nos basear em nossas experiências com eles nas sessões para nosajudar a compreender esses padrões e interpretar os conflitos velados aos quais eles se relacionam.

Como se trata de perícia judicial em Vara de Família, as questões legais (demandas judiciais)estarão sempre no horizonte último daquilo que é trazido e relatado. Portanto, é comum que a faladas partes (designação técnica dos adultos que protagonizam o litígio) reproduza as queixas e asdemandas das petições iniciais, mas à medida que a interação prossegue é possível verificar como taldemanda se estrutura para aquela pessoa em questão. Percebemos que "a queixa" e "a demanda"depreendidas por meio da leitura da petição inicial pode ou não coincidir com a queixa e a demandapor justiça da forma que é verbalizada pela parte em pessoa. Isto porque existe a subjetividade doadvogado que se manifesta na forma de enfatizar um ponto específico por escrito que não énecessariamente da forma como o sujeito de quem se fala realmente sente ou se manifesta. Reinstala-se, então, o âmbito de uma subjetividade que pode ser abordada psicologicamente.

Box et al. (1994) propõem ao profissional, no contato com a família, o papel de agente decontenção daquilo que a família não está sendo capaz de suportar pela dor psíquica que estão sentindo.O psicanalista utilizaria o processo de reverie (Bion, 1991). O psicanalista atuaria como receptor desentimentos intoleráveis vindos da família e procurando suportá-los, "digerir" tais projeções para podercomunicá-las, a fim de que seja dado um passo em direção à reintegração e à experiência de aprendizado.

A primeira dificuldade para este tipo de postura vem do próprio estado ao qual a períciapsicológica costuma predispor nas pessoas. O processo litigioso se instaura dentro de uma lógicaadversarial no qual os direitos e necessidades de alguém são colocados como infringidos e negligenciadospelo outro. Pensamos que tal atitude beligerante estimula a permanência em um estado mental esquizo-paranóide (Klein, 1991), em que toda a energia está a serviço do ataque e a ansiedade se baseia nomedo da retaliação. Percepção esta que, dentro de um processo judicial, é bastante realista. Portanto,frente a um perito psicólogo a posição defensiva é a postura natural imediata, sendo que há um esforçopara "convencer" o perito de uma verdade que se opõe à verdade do outro (da outra parte), muitasvezes tão distinta, o que implica em uma tensão maior para o profissional de "mantê-los em sua cabeça",sem que se imponha a necessidade de fazer julgamentos e alianças.

Outra dificuldade que se apresenta é a orientação judicial para estes casos de que se leve em consideração o melhor interesse do menor. Parece-nos que isto se coaduna com a perspectiva psicológica presente no psicodiagnóstico infantil de se considerar a criança como foco privilegiado (cliente) (Tsu,1984), o que pode levar a uma desconsideração de aspectos importantes presentes no conflito familiar.Por exemplo, por mais que fosse benéfico o processo de psicoterapia para uma mãe, que detém aguarda de dois filhos, condicionar a continuidade da guarda a tal psicoterapia, enquanto conclusãopericial traz maiores problemas tanto para a mãe quanto para o psicoterapeuta em questão(abordaremos este exemplo com maiores detalhes na ilustração clínica). Novamente, oencaminhamento não tem maior sucesso de tornar eficaz se ela tiver força de sentença judicial. Istonão é garantia de adesão da paciente em questão a uma indicação, que mais parece uma "condenação".

Se em Psicanálise acreditamos que o lado infantil esteja sempre presente em todos nós, talvezpudéssemos reinterpretar esta diretriz judicial em nosso trabalho, procurando cuidar dos aspectosinfantis de todos os membros desta família. Parece-nos enganoso pensar que a criança está indefesafrente à maior possibilidade de ação dos adultos, afinal ela traz toda uma carga de fantasias onipotentesa seu serviço, que foram descritas pela psicanálise como fantasias que geram efeitos afetivos nospais, que teriam, como parte de suas funções parentais, que acolher estes sentimentos e devolvê-lostransformados ao invés de reagir impulsivamente. Em relação a este intercâmbio afetivo complexoWaddel (1994, p. 30) explica:

Nessa situação tão emotiva, uma ação ou um intercâmbio específico podem ter uma variedadede significados. Casos de espancamento de bebês, por exemplo, freqüentemente provém, pelomenos em parte, do desespero da mãe com sua própria inabilidade para atender o que parecemexigências tirânicas de seu filho. Na maioria dos casos, que envolvem espancamento em potencialou verdadeiro, qualquer um dos pais pode estar temporariamente derrotado por raiva infantilpela experiência de incapacidade. Os sentimentos dos pais podem ficar misturados com os dobebê, de tal forma que os controles adultos se perdem e se recorre à violência física como umamanifestação de impotência, medo, raiva e ansiedade primitiva.

Não estamos justificando os pais por eventuais violências em relação aos filhos. Estamos,entretanto, chamando a atenção do leitor para o fato de que existem ansiedades que os bebês mobilizam nos pais e que estes devem estar aptos a utilizar a capacidade de reverie, pois é parte do papel parental esta tarefa de "metabolizar" a comunicação da criança e, nesta perspectiva, permitir que estes pais lidem com a situação familiar. Assim, funcionando de modo menos esquizo-paranóide é também pensar no interesse da criança, pois restitui aos pais a capacidade de continência imprescindível para cuidar do infantil.

Portanto, não estamos desconsiderando a possibilidade real de dano que um adulto pode infligir a uma criança. Talvez seja este um dos nossos pontos cegos por estarmos mais perto de autoridades que podem e devem, efetivamente, tomar alguma atitude legal frente a uma possívelameaça ou risco avaliado como factível. E mesmo porque, seria a nossa função alertar a autoridadejudiciária na iminência de um perigo ao menor em questão.

 

O TEMA DA INCAPACIDADE DE PENSAR

A capacidade de usar o pensamento como forma de aproximação das situações conflitivas emoposição à fuga, onipotência ou persecutoriedade tem sido objeto de estudo da psicanálise.Encontramos, com freqüência, situações nas quais os desentendimentos ou incapacidades de enfrentaros conflitos têm por base uma impossibilidade de suportar as tensões inerentes aos mesmos e, comoconseqüência, um modo de agir pautado em estruturas esquizo-paranóides nas quais o pensamentonão é o modo predominante de aproximação. Em crianças, esta situação pode aparecer como uma dificuldade de aprendizagem. Tal dificuldade de aprendizagem pode vir sob o rótulo genérico dequeixas quanto ao rendimento intelectual. Contudo há crianças com tais queixas, mas que por meiode uma avaliação psicodiagnóstica apresentam um nível intelectual na média, senão superior (Souza,1995). Portanto, não se constitui em um déficit em sua capacidade intelectual, mas em uma dificuldadeem utilizar tal capacidade oriunda de problemáticas emocionais relacionadas a conflitos familiaresnão explicitados. A "fuga" do conhecimento seria, então, o sintoma escolhido pela criança como aemergente do grupo familiar (Souza, 1995).

Em nossa experiência como psicólogo judiciário atuando como perito, raramente o nível deinteligência da criança está em questão. O mau rendimento escolar, quando é trazido à baila, vem nosentido de corroborar argumentos de um dos pais contra a falta de supervisão e/ou negligência do outrosobre tal aspecto do filho. Neste sentido, clinicamente falando, o trabalho seria de discriminar o quê dadificuldade real poderia ser atribuída à causa alegada ou se existiriam fatores pessoais, individuais dacriança que estariam atuando neste resultado. Pode-se colocar que para o psicanalista no lugar de perito,no momento em que encontra os membros familiares, está em uma situação antípoda à de Souza (1995).Ao contrário da situação no enquadre clínico, a expectativa do resultado do psicodiagnóstico pericial é aconfirmação de um padrão de influência negativa familiar, seja de um ou de outro, na criança – como se elamesma não tivesse algo que fosse de sua própria responsabilidade. Isto pode ser ampliado a ponto de senegar que as manifestações da criança sejam genuinamente dela; a dúvida que está por trás é: "Não éminha (meu) ex que está fazendo a cabeça dela (da criança)?" ou "Como a criança não quer ficar comigo,se, quando está na hora de ir embora, ela chora? Isto é intriga dela(e) (da ou do ex)?"

Portanto, a dificuldade não é tanto admitir que existam conflitos e que estes influenciam eprejudicam aos filhos, mas a certeza, que muitos pais trazem, de que isto se deve exclusivamente ao outro. Há uma dificuldade em ver uma situação ou evidência, sem que ela seja a confirmação de umacerteza que já se tem: a culpa é do outro. E neste ponto não adianta apelar para a racionalidade.Argumentos como: "O montante de dinheiro que você e seu ex estão gastando neste processo seria muito melhor utilizado se revertesse em coisas para o filho", embora ambos possam concordar, não surtem o efeito de interromper a litigância. Há pessoas que, por exemplo, não se sentem atacando a outra parte. Dizem:"Eu não falo mal do outro para o filho; no processo apenas me defendo". E ao mesmo tempo podem sercapazes de juntar fotos aos autos, sugerindo promiscuidade da outra parte. Às vezes, é difícil acreditarque não se dêem conta da incongruência do que falam com o que fazem. Neste caso, tentar mostrarqual é a sua contribuição na situação, na qual o outro é colocado como o único responsável (confrontação)é sentido como um ataque, uma evidência de que o perito "está do outro lado". Portanto, a ausência deracionalidade aponta para uma incapacidade de pensar. Sabemos que não se trata de uma incapacidadeintelectual, nem de uma disfunção cognitiva, mas de uma situação vivida de forma tal, que não há comorefletir sobre ela, a não ser um modo esquizo-paranóide de viver a experiência.Muitas vezes impera o desejo de que o outro aja de forma diferente, algo que se "sabe" serimpossível. Aquilo sobre o que sempre se reclamou, e que muitas vezes foi o estopim da separação,é exatamente o que é "esperado" que o outro faça. O discurso de algumas partes se assemelha ao doparanóico que acredita "saber" sem sombra de dúvida o que acontece e todas as evidências apenas confirmam isto. Resta apenas a tarefa de convencer ao interlocutor ignorante, cético e ingênuo deuma "verdade inquestionável". Descartada a hipótese de simulação em certos casos, o contato comtais pessoas revela uma certeza profundamente arraigada em uma vivência emocional e que não semodifica apenas com argumentos racionais e lógicos. Tal certeza está intrinsecamente ligada a aspectosde identidade, pois o outro é criado em confronto entre o eu e o outro, por pior que seja, é umaconfirmação do próprio eu (um espelho invertido). Neste sentido, admitir que o outro mude é,necessariamente, mudar a si próprio, perdendo parâmetros conhecidos de identificação.

Do ponto de vista teórico, embora em uma situação diferente da inibição intelectual investigadapor Souza (1995), é possível compreender a dificuldade de pensar o pensamento decorrente de umafalha no aparelho de pensar. Considerando o esquema de Bion (1991) de que é o pensamento queleva o psiquismo a desenvolver um "aparelho para pensar pensamentos". No início haveria umapredisposição inata (preconcepção). Se tal preconcepção se associa a uma realização, teremos umaconcepção, associada a uma vivência emocional de satisfação e com ganho de ambas as partes,denominadas por Bion (1991) de conteúdo e continente.

O pensamento, por sua vez, é a união da preconcepção com uma frustração. Segundo uma maiorou menor capacidade de tolerar a frustração será escolhida uma ação específica para fugir ou modificar a "realização de um não-seio disponível à satisfação ou seja, um seio 'ausente' interno" (Bion, 1991, p.186).

Souza (1995) mostra que as crianças com inibição intelectual optam por uma modalidade deevasão, algo não pode ser conhecido e aprendido. Tal movimento se reatualiza na Entrevista FamiliarDiagnóstica, quando a criança desiste de ser ouvida e considerada pelos pais e se refugia em umaatividade isolada no decurso da interação familiar.

Retornando à explicação de Bion (1991), o pensamento nasceria da capacidade de conter este"seio mau interno" e não expulsá-lo (identificação projetiva). "O predomínio de identificação projetiva confundea distinção entre o self e o objeto externo" (p. 187). Portanto, é o senso de realidade que fica prejudicado.

Entre o desenvolvimento de pensamentos que possibilitam a capacidade de aprender com aexperiência e a opção pela fuga há uma terceira possibilidade do aparelho psíquico. Nas palavras do autor:

Se a intolerância à frustração não é excessiva a ponto de ativar os mecanismos de fuga, mastiver uma intensidade que impeça suportar o predomínio do princípio da realidade, apersonalidade desenvolve a onipotência como um substituto da associação da preconcepção, ouconcepção, com a realização negativa. Isto implica a adoção da onisciência como um substitutodo aprender com a experiência, através da ajuda de pensamentos e do pensar. Portanto, não háatividade psíquica que discrimine entre o verdadeiro e o falso. A onisciência substitui adiscriminação entre o verdadeiro e o falso por uma afirmação ditatorial de que uma coisa émoralmente correta e a outra é errada. A adoção de uma onisciência que nega a realidadeseguramente faz com que a moralidade assim engendrada seja uma função da psicose. Adiscriminação entre o verdadeiro e o falso é uma função da parte não-psicótica da personalidadee de seus fatores. Há, assim, um conflito em potencial entre a asserção da verdade e a asserçãode superioridade moral. O extremismo de uma contamina a outra (Bion, 1991, p. 188).

Parece-nos que esta opção pela onisciência do pensamento protege o sujeito de qualquerdúvida e ansiedade que, porventura pudesse sentir nesta situação de conflito com o outro. Afinal, osujeito já sabe qual é o problema e a solução, a busca se dá na forma de como controlar e manipular o outro que está mais longe de sua esfera de atuação. A utilização de argumentos morais substitui oexercício do pensamento, o que é respaldado pela própria lógica judicial que alimenta o processopor meio de explicações e doutrinas jurídicas, tornando as certezas ainda mais sólidas.

 

VINHETA CLÍNICA

Ilustraremos esta situação a partir de um caso atendido neste enquadre. Com o objetivo demanter o devido sigilo profissional, será apresentada uma breve vinheta clínica sem muitos dadosidentificatórios desta família; muito mais do que uma descrição do caso, pretendemos ilustrar adinâmica presente na configuração de suas queixas e como, na perspectiva em que se encontravam,havia uma impossibilidade de pensar sobre as situações criadas. Pretendemos também apontar aspossibilidades de compreensão oferecidas pelo referencial psicanalítico.

Trata-se de uma família separada: o pai e a mãe com dois meninos pequenos. A ação judicialque traz a família ao Setor de Psicologia, diz respeito a uma dúvida quanto à cláusula deRegulamentação de Visitas. O pai tem direito a finais de semana alternados, achando-se no direito derealizar emendas de feriados, quando coincidem com seu final de semana (busca as crianças no sábadoe ao invés de devolver no domingo, estende o prazo até segunda, quando é um feriado). Uma questão,aparentemente de menor importância, revela toda uma dinâmica altamente comprometida.

Este caso tem o agravante de ter sido previamente atendido por outra colega. Ao final doperíodo de trabalho, esta sugeriu em seu laudo que a guarda materna seja condicionada ao início deuma psicoterapia em função das dificuldades da mãe. Obviamente isto irritou profundamente a mãeque considerou tal condição uma comprovação de que a culpa pelo conflito familiar era sua.

O caso retorna e iniciamos os atendimentos após dois anos e um mês desde a primeiraintervenção da Psicologia. O período total de trabalho do atendimento até a produção do laudopsicológico foi de 5 meses. Este tempo é maior que o período usual dos casos.

O segundo laudo foi escrito no final do atendimento. Antes da avaliação psicológica tivemosacesso aos autos do processo, inclusive ao laudo psicológico existente. Elaboramos uma estratégiade atendimento, incluindo outras pessoas da família que não haviam sido chamadas anteriormente:as avós de ambos os lados (os avôs já eram falecidos).

O pai é um senhor de meia idade, dez anos mais velho que a sua ex-companheira. Em seudiscurso coloca-se no lugar de "vítima" da agressão da ex-mulher para o qual já havia juntado noprocesso uma prova na forma de uma mídia com gravação das agressões verbais por telefone da ex-mulher contra si. A sua demanda explícita é a tomada de uma posição punitiva por parte do Juiz deforma a penalizar tal comportamento agressivo.

Um fato importante é que o Juiz na sua sentença de Regulamentação de Visitas havia determinadoexplicitamente que o pai não poderia ultrapassar o limite físico da entrada do prédio da mãe, do mesmo jeito que a mãe deveria se restringir a tal limite físico, quando entregasse as crianças.

Foi exatamente este limite físico que havia sido recentemente transgredido frente à iniciativado pai de não devolver as crianças no feriado prolongado. Ao término do feriado prolongado, nomomento da devolução das crianças pelo pai, a mãe teria saído à rua, xingando e perseguindo o paiaté que este teve que se refugiar dentro de uma loja para se livrar do assédio da ex-mulher.

Esta mulher, por sua vez, comparece ao Setor de Psicologia altamente defendida por sentirque a atuação da profissional anterior lhe fora prejudicial (condicionando a guarda ao início de umapsicoterapia). Recomendação que, diga-se de passagem, não havia sido seguida.

O inusitado da sua defesa foi a forma como ela se manifesta na primeira entrevista: retirou desua bolsa um mini-gravador, declarando que iria gravar a entrevista para que tivesse uma prova físicapara atestar o que dissera e se defender de possíveis "más interpretações".

A primeira associação que fizemos foi com as próprias gravações que o ex-marido junta comoprova contra ela. Ou seja, ela estaria utilizando o mesmo recurso pelo qual foi atacada. Mas nestemomento, não era o caso de utilizarmos tal observação para o manejo da situação.

Um segundo elemento ao qual ficamos atentos é a própria tensão do atendimento que se eleva porconta desta atitude. Um pensamento persecutório que nos ocorreu é que a própria examinanda poderia"adulterar" o conteúdo da gravação para benefício próprio e prejuízo nosso. Tomando contato com a sensaçãode estar sendo encurralado por tal manobra e, percebendo o aumento da tensão numa posição de ataque e defesa,de súbito nos ocorreu que tal situação corresponderia à própria vivência da examinanda. Utilizamos esta compreensão para assumirmos uma posição frente a ela que nos permitisse continuar pensando naprópria interação que foi se desenrolando. Percebemos, gradualmente, que a examinanda se queixa de umlugar de "vítima", em que se sente tratada com distanciamento, cautela e restrição pelo outro. O que ela nãopercebe é que tem uma participação direta na provocação de tais atitudes em seu interlocutor.

Pensamos que a sua forma de atuação impulsiva e, portanto, caracterizada por uma dificuldadede respeitar limites pode causar uma reação similar e de igual intensidade como reação, dificultandoo processo do pensamento que não tem como surgir e refrear a ação, contendo o nível de ansiedade.

A reação do ex-marido de buscar provas a fim de poder "enquadrá-la" por meio da força legaltambém não proporciona um tempo e uma condição propícia para o pensar. A própria forma deatuação do casal, somado a uma intensa hiperatividade das crianças como forma de vazão da tensãode se encontrarem no meio do fogo cruzado também não contribuem para a atividade do pensar. É dentro deste contexto que o psicólogo, treinado na técnica psicanalítica, poderia instituir um novoritmo e fazer surgir uma possibilidade de compreensão da situação que altere a dinâmica de ataquee defesa de um estado esquizo-paranóide de pensamento.

Em nosso entendimento, tanto o pai quanto a mãe estavam convencidos da razão de seusargumentos. A resistência das autoridades judiciárias em acreditar neles (nós inclusive), só causava maiorimpaciência e sensação de injustiça. Pensamos que a possibilidade de demonstrar estes movimentos deforma o mais fenomenológica possível pode trazer ao magistrado (leitor privilegiado de nosso trabalho)elementos que o ajudem a identificar também sentimentos contratransferenciais e poder aumentar suatolerância frente ao impacto emocional que o contato com as partes produziria nele próprio.

Quando descrevemos e exemplificamos o efeito que as partes podem exercer no psicólogoem sua relação de trabalho, pensamos que colocamos um "anteparo" com o mesmo tipo de efeitopara o leitor destinatário do laudo psicológico. Por meio de nosso trabalho de contenção ecomunicação de nossos pensamentos, podemos dizer aos membros da família o efeito que exercemuns sobre os outros, aumentando-lhes a capacidade de pensar sobre si mesmos. Por meio do nossotrabalho escrito em forma de laudo contribuímos para o próprio juiz, para que ele fique em umestado psíquico tal que lhe permita conter seus impulsos e agir racionalmente na aplicação da justiça.

 

CONCLUSÃO

Rosenn (1998) demonstra como a ciência jurídica pode se fechar para a real percepção dascoisas: "Encarar o direito como ciência e a educação jurídica como um meio de conferir dogmaticamente overdadeiro significado das normas legais, tem provocado um divórcio entre o sistema jurídico formal e aconduta real" (p. 63). Ora, o julgador ao buscar uma coerência entre a coisa a ser julgada e a norma jurídica pode não estar discriminando devidamente a realidade, obnubilado por uma autofascinaçãonarcísica pela coerência de seu raciocínio, mas de todo desvinculado das pessoas a quem se presta o julgamento em questão. Guardadas as devidas proporções, a resolução do enfrentamento da realidadepela modalidade criticada acima não deixa de ser a mesma saída pela onipotência como fuga dafrustração (Bion, 1991). Portanto, frente a pessoas que buscam na onipotência a fuga da frustração, aresposta do judiciário não deveria ser uma sentença que desconsidere as dificuldades específicas dos envolvidosque estamos caracterizando, aqui, como dificuldade de pensar em vez de agir impulsivamente.

Gostaríamos de ressaltar a oposição que existe entre a capacidade de discriminação (princípioda realidade) e o recurso ao julgamento moral mantido de forma autoritária. Pensamos que este é orisco eminente que ronda aquele que ocupa o cargo de magistrado. No meio jurídico esta"psicopatologia" tem até nome: juizite. Como resposta às "certezas" da parte defendidas de umaforma paranóica, o juiz corre o risco de responder da mesma maneira utilizando seu poder, conferidoinstitucionalmente, e dando uma sentença sem uma real eficácia para as pessoas, sendo apenas amanifestação de seu poder afrontado pela dinâmica psicológica das partes.

Portanto, o conflito da dinâmica familiar transposto ao Judiciário não pode ser enfrentadoapenas por pretensos recursos intelectuais e de conhecimento da doutrina jurídica. Apoiados emBion (1991), podemos afirmar que a capacidade de conter o impacto e a carga emocional do caso(aumentando o nível de tolerância e frustração) seria o determinante para a boa conduta profissional.Consideramos que a contribuição do psicólogo judiciário se dá exatamente na possibilidade deservir de elemento intermediário entre a família e o juiz, podendo exercer uma capacidade detraduzir em palavras aquilo que é evacuado de forma violenta pelas múltiplas projeçõesidentificativas em jogo. Em relação à família que atendemos, pensamos que a intervençãodiagnóstica pode contribuir, no limite, para restituir as projeções excindidas do self por meio denossa capacidade de contenção e reverie. E ao final, podermos dar um testemunho deste processopara que sirva de subsídio ao próprio magistrado.

 

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Recebido em 06/05/08
Revisto em 08/12/08
Aceito em 15/12/08

 

 

* Endereço para correspondência: Audrey – Av. Prof. Mello Moraes, 1721. São Paulo – SP. CEP: 05508-030. Fone: 3091-4355.
E-mail: asetton@uol.com.br. Sidney: E-mail: shine@usp.br

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