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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte jul. 2012

 

 

Considerações sobre o massacre de Realengo

 

Thoughts about the Realengo school massacre

 

 

Anchyses Jobim Lopes

Círculo Brasileiro de Psicanálise
Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Questionamento dos diagnósticos de esquizofrenia paranoide ou de crise catatímica elaborados por psiquiatras forenses para caracterizar o assassino. Defesa do diagnóstico de personalidade esquizoide. Tentativa de explicação do papel da internet como uma das causas deste tipo de assassinato em massa. Imaginário e narcisismo. Os traumas sexuais identificáveis a partir das ideias fundamentalistas religiosas misóginas adotadas pelo assassino. Questões relevantes na história do assassino – pré-natais, ao início da vida e primeira infância – que fornecem dados para uma explicação psicanalítica do autor do massacre. Características da personalidade esquizoide descritas por Fairbairn.

Palavras-chave: Personalidade esquizoide, Internet, Narcisismo, Imaginário, Fundamentalismo religioso, Misoginia, Trauma.


ABSTRACT

This paper calls into question the diagnosis of paranoid schizophrenia or catathymic crisis used by forensic psychiatrists to describe the murderer. Then it applies to the justification of the diagnosis of schizoid personality disorder and a tentative explanation of the special role of the internet in mass murder cases. The author discusses the concepts of imaginary and narcissism. The sexual traumas deduced from the murder’s religious fundamentalist and misogynistic creeds. Relevant problems about the murder’s personal history – prenatal history, beginning of life and early childhood – that show data to a psychoanalytical interpretation. Schizoid personality characteristics as described by Fairbairn used for the understanding of the murderer’s psyche.

Keywords: Schizoid personality, Internet, Narcissism, Imaginary, Religious fundamentalism, Misogyny, Trauma.


 

 

Em homenagem a: Ana Carolina, Bianca, Géssica, Igor, Karine, Larissa, Laryssa, Luiza Paula, Mariana, Milena, Rafael e Samira.
Homo sum: humani nil a me alienum puto (Sou um ser humano, portanto, nada que é humano me estranha).
Publius Terentius Afer,
em Heauton Timorumenos (O atormentador de si mesmo)

 

Introdução

“Massacre de Realengo” é como ficou conhecido o assassinato em massa ocorrido em 7 de abril de 2011, por volta das 8h30 da manhã, na Escola Municipal Tasso da Silveira, localizada no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, entrou na escola, onde havia estudado dez anos antes, dizendo que iria apresentar uma palestra. Já numa sala de aula, armado com dois revólveres, começou a disparar contra os alunos presentes, matando doze deles. Não há relatos precisos sobre a duração do evento, mas algum tempo ocorreu até que um sargento da polícia, avisado por um estudante que conseguiu fugir da escola, foi capaz balear Wellington na perna. O atirador se suicidou com um tiro na cabeça após ser atingido. Wellington portava duas armas, uma delas calibre 38 e um cinturão especialmente preparado, com muita munição.

O massacre, que chocou todo o país, foi amplamente divulgado pela mídia. Uma quantidade bem grande de depoimentos, com os meios-irmãos do assassino, bem como vizinhos e antigos colegas, foi mostrada pela televisão e amplamente transcrita em jornais e revistas. Outro número razoável de entrevistas foi de jornalistas, psiquiatras e religiosos opinando sobre o massacre. Wellington deixou uma carta e um vídeo para serem propagados após sua morte. Outros vídeos e textos foram depois encontrados e parcialmente divulgados. Este material está, até o momento da redação deste texto, à disposição do público pela Internet: em textos, fotos e vídeos. Três temas foram muito debatidos na mídia: a influência da Internet, que teria importado uma atrocidade até então desconhecida no país; a possível ligação do assassino com grupos fundamentalistas muçulmanos assim como a influência da religiosidade de sua mãe, evangélica muito devota; e o papel do bullying que Wellington sofrera na mesma escola quando nela estudou dez anos antes.

No presente artigo separamos uma tentativa de compreensão do massacre em quatro partes. Primeiro uma discussão mais psiquiátrica que psicanalítica sobre qual seria o diagnóstico de Wellington. Em segundo lugar a possibilidade de a Internet ter colaborado, não apenas com os possíveis contatos com extremistas, mas também como meio de comunicação que em si mesmo pode facilitar esta forma de conduta. Terceiro, passamos então a uma discussão sobre as normas sexuais e sociais defendidas pelos vários tipos de fundamentalismo religioso, das quais o comportamento de Wellington aparece como um paroxismo. Finalmente, em quarto lugar, numa discussão mais propriamente psicanalítica, uma tentativa de interpretar as motivações conscientes e inconscientes do assassino, a partir de sua história pessoal, principalmente na primeira infância e na adolescência: sua adoção, possíveis características da relação mãe/filho, sua sexualidade e seu passado de vítima de bullying.

 

Questionamento do diagnóstico de esquizofrenia paranoide

Na noite do massacre e na manhã seguinte, em dois dos programas de televisão aberta mais assistidos do Brasil – o Jornal Nacional e o Bom Dia Brasil –, Wellington foi diagnosticado por um famoso psiquiatra forense ou como esquizofrênico ou, mais especificamente, como esquizofrênico paranoide (MORAES, 2011). No Jornal O Globo, uma famosa autora de livros que popularizam diagnósticos psiquiátricos, obras que com muita frequência contam entre as listas dos livros mais lidos, afirmou que: “O Wellington era esquizofrênico, e esquizofrenia é uma doença rara, afeta 1% da população mundial” (SILVA, 2011). A partir ou não destas declarações, o diagnóstico foi amplamente divulgado por outros veículos da imprensa escrita, noticiários da Internet e por blogs. Ocorreram algumas exceções, como a veiculada por um psiquiatra forense no jornal O Estado de S.Paulo:

Apesar de ver nele algum desequilíbrio e embora o conteúdo do discurso dele parecesse distorcido, não creio que estivesse claramente psicótico, ou seja, que tivesse uma perda plena de juízo, sendo totalmente incapaz de diferenciar realidade de fantasia. E dar um diagnóstico qualquer sem tê-lo examinado a fundo (ou sem ter elementos suficientes) seria chute (BARROS, 2011).

Maior destaque foi dado a esta última opinião porque dela partilhamos inteiramente. Uma vez que os sintomas dos tipos catatônico e desorganizado de esquizofrenia estão ausentes, resta o de esquizofrenia paranoide. Porém, deste tipo clínico estão completamente ausentes vários dos sintomas mais característicos. Embora um dos profissionais acima (MORAES, 2011), justificando ter se fundamentado pelo vídeo deixado pelo assassino, vídeo que foi postumamente passado e reprisado pela mídia, tenha afirmado que Wellington sofria de alucinações, discordamos completamente. Dentre as mais de vinte reportagens e entrevistas a que tivemos acesso, bem como dos vídeos gravados e dos textos do próprio Wellington, em momento algum pode ser caracterizada a suspeita de alucinações, em especial das auditivo-verbais típicas (vozes que comentem o comportamento do paciente, vozes que xingam e/ou acusam, vozes dialogadas). Também não foram observadas manifestações clássicas de comprometimento da consciência do eu. Sejam alterações da consciência da atividade do eu – pensamentos impostos, roubo ou bloqueio de pensamento, sonorização de pensamento, etc. –, sejam alterações da consciência da unidade do eu – dois ou mais eus simultâneos. Quanto a este último item, pelo contrário, a impressão passada pelos vídeos e textos de Wellington sugere um eu consciente muito rígido, agindo como um bloco monolítico, eficazmente manipulando a realidade para obter seu objetivo.

Para que se sustente o diagnóstico de esquizofrenia paranoide sobra, portanto, apenas a questão de possíveis ideias delirantes. Deve-se levar em conta que a mudança de eixo da psiquiatria nesses últimos trinta anos, que ocorreu devido à facilidade e ao abuso de diagnósticos de esquizofrenia, assim como ao excesso de tratamentos violentos e de institucionalização dos pacientes, esta mudança procurou restringir a aplicação do rótulo de esquizofrênico. Contou aqui a crítica desde a década de 1960 da antipisquiatria com modificações políticas e sociais, que no Brasil se refletiram com a criação da Lei Paulo Delgado e dos CAPS. Na área da psicopatologia, em especial na questão dos delírios, grande ênfase foi dada à característica dos delírios da esquizofrenia paranoide que não podem ser qualquer um, mas devem ser especialmente de caráter bizarro (DSM IV-TR, 2002 p.305). Tratou-se de restringir o diagnóstico para pacientes portadores de delírios muito distantes da realidade, grotescos mesmo. Abriu-se espaço para que delírios mais próximos da realidade socialmente aceita fossem diagnosticados no domínio dos transtornos delirantes, antiga paranoia (ciúmes, perseguição, erotomania, hipocondria, etc.), principalmente quando não associados a outros sintomas inquestionavelmente esquizofrênicos, como pensamento desorganizado, abulia ou catatonia, por exemplo.

Em direção paralela também houve a preocupação de que crenças religiosas, principalmente aquelas minoritárias, pudessem ser automaticamente classificadas como delírio. Os delírios em esquizofrenia devem ser “culturalmente inapropriados e completamente impossíveis” (CID-10, 2002, p.86). Mesmo em pacientes não esquizofrênicos, mas portadores de transtorno próximo, como o esquizotípico, crenças estranhas e pensamento mágico apenas podem ser incluídos no diagnóstico quando “inconsistentes com normas subculturais” (CID-10, 2002, p.94). Ora, a religião muçulmana no Brasil cai nesta classificação, e as crenças muçulmanas fundamentalistas veiculadas por Wellington, por escrito e em vídeos, por sua vez, são ainda muito mais minoritárias. É inquestionável que, como todo fundamentalismo, estas crenças revelam: profunda intolerância, misoginia, preconceito e servem de racionalização para comportamentos agressivos. Mas a não ser que, à semelhança de Freud, se considere toda crença religiosa uma forma de delírio, a distinção do grau em que uma fé seria normal ou seria patológica consiste numa arbitrariedade legalizada em nome da psiquiatria.

As crenças de Wellington não se encaixam naquelas bizarras, como ter sido abduzido por disco voador e ser implantado por alienígenas um chip no cérebro que lhe impõe e controla os pensamentos. Os vídeos e a carta de suicídio deixada por Wellington, pelo menos ao que tivemos acesso pela imprensa e pela Internet, mostram-se como uma série de ideias religiosas de diferentes origens, superficiais e mal costuradas, mas que também estão longe do diagnóstico de caracterizar um pensamento desagregado ou delirante. Como discutiremos mais abaixo, a superficialidade e a mistura de ideias que mais são apelos chamativos, podem ser mais bem compreendidas a partir da análise dos meios de comunicação como a Internet e da propaganda de massa, do que a partir de diagnósticos psiquiátricos.

A mistura de crenças religiosas levou o jornal Clarín, por exemplo, a afirmar que o autor concluía sua carta de suicídio “com pedidos de um típico fiel católico" (CLARÍN, 2011). O teólogo Leonardo Boff, por exemplo, lembrando o ponto em que o autor da carta cita a segunda vinda de Jesus, afirmou que Wellington "não se liga à religião judaica, muçulmana, nada disso. Ele é da tradição judaico-cristã” (GLOBO.COM, 2011). De fato, apesar da importância dada pela mídia às conexões com muçulmanos fundamentalistas, assim como seu apreço pelo grupo terrorista Al-Qaeda e também por causa de imagens em que aparece com uma longa barba, sua página pessoal no site de relacionamento Orkut continha temas religiosos e passagens de livros da Bíblia, como Ezequiel e Eclesiastes (WIKIPEDIA, 2011). Wellington também termina sua carta de suicídio num referencial tipicamente cristão:

Preciso de visita de um fiel seguidor de Deus em minha sepultura pelo menos uma vez, preciso que ele ore diante de minha sepultura pedindo o perdão de Deus pelo que eu fiz rogando para que na sua vinda Jesus me desperte do sono da morte para a vida eterna (OLIVEIRA, 2011).

Aceita a importância dada pela imprensa de que sua mãe adotiva seria uma fanática evangélica, a partir de cuja influência ele teria passado ao fanatismo originário de outra religião, a mistura de crenças pouco sólidas de Wellington também nos parece muito mais fruto de uma racionalização extrema, que justificasse para si e para outros seu comportamento assassino, do que a adesão a alguma prática religiosa específica. Isto pode nos conduzir a interpretações psicanalíticas, mas não “que estivesse claramente psicótico, que tivesse uma perda plena de juízo, sendo totalmente incapaz de diferenciar realidade de fantasia” (BARROS, 2011).

A conduta metódica de pesquisa de armamento que lhe permitisse recarregar as armas e matar o maior número de pessoas, uma visita prévia à escola, tendo antes raspado a longa barba para que sua aparência durante esta visita e para que no dia do massacre sua vinda não despertasse suspeita, todos estes fatos conduzem à lógica de que Wellington não sofria de alterações da vontade ou do pragmatismo, tão comuns em esquizofrênicos. Mas acima de tudo significam, como foi dito pouca antes, que era capaz de perceber e eficazmente manipular a realidade. Há evidência de que planejava a ação desde o ano anterior, logo o massacre também não se configurou como um ato impulsivo, sob a orientação de um complexo delirante alucinatório, mas resultado de um prolongado, longo e metódico planejamento. Um indivíduo esquizofrênico não teria a capacidade de organização e pragmatismo para arquitetar todo este plano homicida. A esquizofrenia acomete diversos aspectos diferentes do psiquismo da pessoa e costuma provocar uma desagregação do comportamento, do pensamento e das emoções. Caso ele fosse esquizofrênico, certamente daria sinais claros da doença muito antes de ser capaz de um ato deste.

Também não subscrevemos o termo ‘crise catatímica’ usado por Barros (2011) para diagnosticar Wellington. De acordo com um dicionário médico: “a expressão designa um ato isolado e não repetitivo de violência que se desenvolve como fruto de uma tensão intolerável” (MEDICAL DICTIONARY, 2011, tradução do autor). Portanto, o que entendemos pelo termo seria um paroxismo de furor súbito. A palavra crise distingue-se como algo circunstancial, não um estado ou personalidade. A evidência de que o assassino planejava o massacre há pelo menos cinco meses não coaduna com alguma ideia de impulsividade associada ao termo crise.

Parece-nos que o diagnóstico psiquiátrico mais adequado para Wellington seria o de transtorno de personalidade esquizoide, talvez o de transtorno de personalidade esquizotípica. Primeiro por ser uma estrutura caracteriológica que vinha desde o início da infância, e não um processo que surgiu em um início de uma cronologia posterior e que possa ser delimitado. Segundo, pela constância dos relatos, desde a idade escolar até a adulta, feitos por colegas, irmãos adotivos, vizinhos ou empregadores. Seus colegas de colégio sempre o definem na adolescência como muito calado, tímido e sem amigos. Já na vida adulta, nas várias entrevistas com seus irmãos e vizinhos, esta descrição se mantinha constante: sempre isolado, sem amigos ou namoradas e quase sempre trancado em casa, fixado na Internet.

Em nenhum destes depoimentos há traços que levem ao diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial. A carta de suicídio revela que tinha a firme intenção de também se matar no massacre, o que é muito raro em tais personalidades. No massacre ocorrido na Noruega três meses depois, o assassino matou 85 jovens, não se suicidou, nunca demonstrou qualquer remorso e até hoje aparece sorridente para as câmeras. Aqui sim, podemos estar diante de um clássico diagnóstico do tipo personalidade que já teve o rótulo de sociopata.

Socialmente, na escola ou no trabalho, Wellington não era: impulsivo, agressivo, irresponsável, não contraía débitos ou mentia compulsivamente. Teve uma vida laborativa de início precoce e se manteve em um mesmo emprego por tempo considerável, tendo sido admitido após uma avaliação psicotécnica. Entre fevereiro de 2008 e agosto de 2010, Wellington deu expediente em uma fábrica de alimentos em Jacarepaguá: “(...) o garoto cuja inteligência dava orgulho à mãe adotiva logo foi progredindo. Começou como auxiliar de serviços gerais e foi promovido a auxiliar de almoxarifado (...)” (EXTRA, 2011). O rendimento no trabalho havia caído um mês antes do falecimento da mãe adotiva. “A indústria, que abate 170.000 aves por dia e aloja cerca de 46 milhões de pintos, considerou ‘baixa’ a produtividade dele (GOOGLE EARTH COMMUNITY, 2011)”. Mas antes que fosse despedido, Wellington pediu demissão. No caso de Wellington também não há qualquer relato do uso de drogas.

Retornemos a uma antiga questão da psiquiatria e da psicanálise: se os transtornos de personalidade são egossintônicos, sem ansiedade ou sentimento de culpa, sem desejo de tratamento pelo suposto paciente e, ao mesmo tempo, se desconhece qualquer tratamento que seja eficaz, trata-se de casos médico, psicológico ou psicanalítico? O relato de um dos irmãos de Wellington é característico das tentativas de tratamento nestas circunstâncias:

Minha mãe o levou ao psicólogo. Na própria escola foi pedido que o levassem ao psicólogo. Ele começou a ir, mas quando fez 18 anos, parou, disse o irmão ao jornal O Globo (O GLOBO, 2011).

Não havendo sofrimento subjetivo, portanto não existindo desejo de tratamento, sem a oferta possível de tratamento medicamentoso ou psicológico conhecido, a psiquiatria e a psicanálise podem ajudar a compreensão dos motivos, mas tais pessoas não se configuram como casos clínicos. Quando cometem crimes, são casos de polícia mesmo.

Que uma estrutura de personalidade esquizoide seja um modo de estar no mundo, uma estrutura egossintônica, segundo Freud, na qual a grande maioria dos portadores constitui-se, em graus variados, de cidadãos produtivos, distantes de qualquer comportamento criminoso, torna Wellington plenamente imputável pelo massacre perpetrado. Fazemos novamente nossas as palavras do psiquiatra forense Barros:

Um criminoso, mesmo muito cruel, não pode ser chamado de doente só por conta de seu comportamento, pois até que se prove contrário isso é sua escolha, não foge ao seu controle (BARROS, 2011).

Torna-se necessária uma reflexão sobre os motivos que levaram a mídia, evidentemente em consonância com a expectativa da maioria de sua audiência, à imediata psiquiatrização do assassino de Realengo. A opinião sobre a raridade da doença, também veiculada no jornal O Globo – “esquizofrenia é uma doença rara, afeta 1% da população mundial” (SILVA, 2011) –, talvez explique um pouco o comportamento de alguns profissionais e da mídia. Em primeiro lugar, uma doença com uma prevalência de 1% constitui uma doença de grande porte em saúde pública – no Brasil pressupõem 1.900.000 (um milhão e novecentas mil) pessoas, número suficiente para ser a sétima maior cidade do país, abaixo apenas de Belo Horizonte (2. 375. 444 habitantes, pelo censo de 2010). Mas desconhecidas as questões de sanitarismo e de saúde pública pela população-alvo da mídia em geral, a afirmação de raridade distancia a doença do público, dando-lhe sensação de segurança pela pouquíssima possibilidade de ser atingida por tal infeliz acaso. Também coloca Wellington no rótulo de ‘monstro’. Contudo, o ‘monstro’ difere em tal grau da suposta normalidade que suas motivações internas e influências socioambientais – incluindo desde as crenças religiosas até a negligência das escolas em lidarem com o bullying – não necessitam ser pensadas. Já descreveu Hannah Arendt com sua famosa expressão a banalidade do mal, o quanto pessoas aparentemente comuns podem cometer atos monstruosos. Dizer que Wellington não é um monstro, e nem um gênio do crime, é bem diferente de considerar que seu ato não tenha sido monstruoso e, portanto, plenamente imputável.

A personalidade esquizoide sem dúvida pode ser incluída como uma dentre várias causas, mas não a única. A ausência de um diagnóstico psiquiátrico grave não evita, pelo contrário, obriga-nos a buscar outros fatores coadjuvantes que tornaram a barbárie uma realidade. E, também, a investigar um pouco mais o porquê de uma necessidade de patologização, presente tanto nos profissionais quanto na mídia, de algo tão humano como a crueldade e a vingança.

 

A influência da Internet e a função do imaginário

Além das características esquizoides, todas as entrevistas, artigos e vídeos sobre Wellington também foram unânimes em descrever que desde ainda adolescente ele passava muitas horas na Internet. Após o falecimento de sua mãe adotiva e a saída do emprego, Wellington isolou-se completamente na casa herdada dos pais, e todas as indicações são de que permanecia quase todo seu tempo diante da Internet. Além desta informação, veiculou-se na edição do “Fantástico”, da Rede Globo, três dias após o massacre, e também foi repetido e confirmado em outras entrevistas e vídeos, que “Wellington possuía no computador diversos jogos violentos e filmes de terror”, e segundo uma vizinha entrevistada pelo jornal, o atirador "vibrava com as cenas de morte” (UOL NOTÍCIAS, 2011).

Como os assassinatos do estilo perpetrado por Wellington eram desconhecidos, ou muito raros, até pouco mais de uma década, e hoje ocorrem em locais e países muito distantes, sempre caracterizados pela presença de adolescentes ou adultos jovens viciados na Internet, foi muito discutido pela mídia tratar-se de uma aberração ‘importada’. De fato, em outros massacres ocorridos no Brasil recente, como a tristemente famosa chacina da Candelária (em 1993, quando dois maiores e seis menores de idade, todos moradores de rua, foram mortos por policiais militares), as características e os motivos dos autores foram bem diferentes. A comparação do massacre de Realengo foi feita, por muitos, com a matança de Columbine, escola dos EUA onde 15 pessoas foram mortas em 1999 (incluindo os dois responsáveis, de dezessete anos, pelo massacre). O paralelo parece funcionar não só pelo evento de similar mortandade, mas também pela cobertura midiática inconsequente, em que logo foram encontrados os responsáveis: Internet e jogos violentos de videogame.

Quando tida como única, afigura-se como mais uma explicação simplista. Mas não pode ser recusada como uma das muitas causas que, em conjunto, levaram ao massacre de Realengo. Não se está falando apenas da Internet como veículo para difusão de ideias fundamentalistas, de propaganda da violência, ou de como obter informações sobre métodos de matar em massa. Sem dúvida esta doutrinação e conhecimento tiveram papel de destaque nas racionalizações de Wellington. Mas a questão principal, que explicaria ainda mais assassinatos tão semelhantes em lugares tão díspares do mundo, é se a Internet poderia atuar não apenas no conteúdo das informações, mas também na forma como estas são processadas pela mente.

Em outros textos estudamos a relação entre imagem, linguagem verbal e escrita (LOPES, 1996, 1998, 2001, 2004). O denominador comum destes artigos, ponte entre psicanálise e pedagogia, foi a transformação da palavra escrita em imagem visual, sua importância para a leitura literária e como entender as dificuldades no campo da leitura. É fato constatado que, além das deficiências do ensino no Brasil, as gerações criadas com uma oferta muito grande de imagens visuais possuem uma crescente dificuldade em ler além de textos muito objetivos e diretos. O fenômeno já merecia estudo desde o advento da televisão, mas com a Internet e os videogames tornou-se muito mais intenso. O problema também se manifesta na dificuldade de alunos – desde o primeiro e segundo graus, até graduação e pós-graduação – em redigir textos mais longos que uma página e também de concatenar ideias em um discurso coerente. A questão os videogames violentos são apenas reflexos da violência crescente da sociedade contemporânea, ou eles aumentam essa violência foi nosso tema em outro estudo (LOPES, 2007). Repetiremos algumas das conclusões a que chegamos nestes textos.

Falham todas as tentativas simplistas de ligar diretamente a violência dos dias atuais com a violência dos meios de comunicação. Por exemplo, pesquisas que indagam se a agressividade de desenhos animados conduz a uma conduta agressiva em crianças, não estabelecem uma relação direta entre os objetos de estudo, ou produzem dados conflitantes que podem ser subscritos tanto pelos defensores quanto pelos críticos da tese inicial. Contudo, concordamos com Maria Rita Kehl (2004) quando afirma haver um consenso sobre as sociedades industriais contemporâneas serem sociedades muito violentas, violência que não pode ser explicada apenas pela exclusão social. Também concordo quando Kehl escreve que sustentaria a tese de que nas sociedades regidas pela cultura de massa a tirania da imagem é avassaladora, e que há, sim, um tipo de violência própria do funcionamento do Imaginário em si (KEHL, 2004), e que a violência do Imaginário independe dos conteúdos das imagens.

O cinema, a televisão e a Internet, sem falar dos jogos eletrônicos, são veículos que se utilizam da imagem já pronta, necessitando muito menos esforço mental para serem decodificados em linguagem verbal. Também impõem imagens em tal velocidade e em tal intensidade de conteúdos, que muitas vezes não deixam ao espectador tempo para digeri-las. Ao contrário da imagem criada pela leitura literária, cujo desenvolvimento temporal pertence à sua própria essência, a imagem dos meios de comunicação contemporâneos é instantânea. Se freudianamente conceituarmos trauma como uma quantidade de energia muito grande em um espaço de tempo muito curto, o que causa uma marca – fixação – incapaz de ser elaborada, e cuja defesa psíquica é mantê-la inconsciente, é compreensível como este tipo de imagem é potencialmente traumática e patológica. Soma-se a isso o fato de que as imagens veiculadas são por demais agressivas e/ou erotizadas. De acordo com o aforismo da psicanálise de que o que se sofre passivamente, inconscientemente se é obrigado a repetir ativamente, podemos refletir sobre como a compulsividade e a dependência – características de todo vício – criadas deste modo constituem um estímulo ao agir sem pensar.

Assim compreendemos como a imagem traumática sedimentada no registro do imaginário, segundo a concepção lacaniana da psicanálise, opera em sentido inverso ao da imagem da leitura literária. A imagem traumática busca uma satisfação total, conceito lacaniano de um gozo não fálico, que se insere no de Freud de pulsão de morte, porque a satisfação absoluta, completa e eterna seria a morte. Por permanecer inconsciente, a imagem traumática não acrescenta qualitativamente nada a si, a não ser sua intensificação quantitativa. Como em toda dependência ocorre uma busca compulsiva pela repetição do mesmo objeto de satisfação.

Nicholas Carr (2011), um autor contemporâneo que polemiza sobre os efeitos do uso da internet seguindo a linha de MacLuhan em que o modo da informação modifica seu conteúdo, afirma que a rede mundial nos coloca em um estado de perpétua distração, de contínuo bombardeio de novas informações. Deste modo, a leitura se torna um simples ato de decodificação, permanecendo sempre num patamar superficial, um acúmulo de informações empilhadas, ao invés de um sofisticado ato de interpretação e imaginação. Podemos caracterizar a linguagem criticada por Carr com a ressalva de que nem toda a Internet restringe-se a ela, nem ela lhe é exclusiva, denotativa, caracterizada pela rígida união existente entre o significante e o significado. Meramente informativa, ao contrário da conotativa, não permite qualquer brecha em que se insira um segundo ou terceiro sentidos. Tanto um pensamento flexível e imaginativo quanto um linear e mais profundo são desestimulados.

Colocando em termos dos registros do simbólico e do imaginário, ao invés de o trauma ser, aos poucos, discorrido e dispersado pela linguagem, intensifica-se cada vez mais pelo reforço imaginário. No caso de Wellington, a mistela de ideias religiosas díspares e superficiais revelava apenas um amontoado de informações, até mesmo teologicamente incompatíveis, que como traço comum só apresentava a inflexibilidade do fundamentalismo. Sua fala gravada e a carta testamento, postumamente tão divulgadas pela mídia, não caracterizariam, portanto, o pensamento desorganizado de um esquizofrênico grave, mas um frouxo emaranhado de racionalizações a serviço de uma terrível angústia, cujas origens traumáticas, tanto por características pessoais quanto pelo reforço midiático, foram cada vez conduzidas mais e mais longe de alguma possibilidade de elaboração.

A frouxa linha condutora era o traço do fundamentalismo, em parte devido à intensa problemática sexual que ele encobre, em parte porque o imaginário é embebido de narcisismo. Deste modo, quando dominados pelo narcisismo, achamo-nos completos, donos de um saber sem furos e de uma verdade absoluta. A imagem traumática em nada revela ignorância, há a ilusão de um saber absoluto, totalmente confiável e de uma completa inutilidade de toda busca dos limites do conhecimento já adquirido. Uma suposta verdade absoluta não tolera a diferença, muito menos a oposição. A junção entre os registros do imaginário e do real é de exclusão: ou um ou outro. Logo toda crítica a este saber absoluto, ou a busca pelo gozo além do fálico, será respondida com violência. Além do reforço pelo conteúdo o imaginário é violento per si. Também se postula a ideia de que, aqui, ou não há possibilidade de que uma linguagem verbal se insira de um pensamento discursivo, ou quando o faz é uma linguagem puramente denotativa. Denotação pura serve apenas de relato a passagens ao ato que já ocorreram e que só podem ser repetidas por uma nova passagem ao ato. Já que a linguagem denotativa, meramente informativa, ao contrário da conotativa, não permite qualquer brecha em que se insira um segundo ou terceiro sentidos, pode-se ter encontrado uma das fontes do discurso perverso da contemporaneidade (QUEIROZ, 2004), e isto se esta fala sequer merece o rótulo de discurso, e não um mero simulacro. Podemos, então, tentar compreender como todos os fundamentalismos religiosos são seduzidos: pelo narcisismo, pelo dogma, pela impossibilidade em conviver com a alteridade. E também compreender como há na Internet, dentre seus efeitos, o de criar casulos onde se pode escolher a comunicação apenas com os que comungam exatamente das mesmas crenças, tornando-se um caldo para o fanatismo religioso, unindo forma e conteúdo, meio e mensagem.

Além da ausência de pensamento crítico e de limite, há outro movimento coadjuvante que torna a imagem predominantemente no registro do imaginário, por si mesma, causa de violência. Apesar da busca compulsiva da repetição pelo prazer trazido, ao mesmo tempo e de modo, aparentemente, paradoxal, na medida em que a imagem traumática é sempre vivida como uma invasão do outro, aumenta seu grau de patologização. Esse outro encarnado é sempre persecutório para o sujeito, pois é uma figura que tudo sabe deste sujeito, do seu desejo, que antecipa para o sujeito muito mais do que ele sabe de si, o que sempre provoca uma reação paranoica. Kehl (2004) chama atenção para a ubiquidade da televisão, que hoje, além da sala ou do quarto, se encontra em qualquer lugar público: restaurantes, salas de espera, rodoviárias. Ou seu aparente oposto, em espetáculos que se ocorrem em ambientes fechados repletos de câmaras ocultas, seja o Big Brother televisivo, seja o shopping-center. Além de ser o Imaginário onde o corpo se ancora numa fortaleza narcísica, donde toda alteridade é vivida como ameaça e a única resposta à agressividade, o caráter persecutório das imagens-chave da contemporaneidade acaba produzindo comportamentos violentos, agressividade contra algo que por ser onipresente é impossível de ser combatido, e o vizinho mais próximo será a próxima vítima. Mais um item corroborando que sem pensamento discursivo passa-se diretamente ao ato.

Assim podemos entender por meio do conceito de narcisismo que, apesar de viver absolutamente isolado na vida real, o que se acentuou após a morte da mãe adotiva, Wellington via Internet podia sentir-se todo-poderoso, do tamanho do universo virtual, maior que o mundo real. Ao mesmo tempo, como vimos acima, a Internet também pode simultaneamente produzir o sentimento de crescente perseguição, de permanente invasão. Some-se a isto a exposição aos credos de absolutismo religioso. Copiando de um texto publicado anteriormente:

Se a psicanálise busca o registro do simbólico e de sua própria impossibilidade de absolutização, pergunta-se qual o objetivo da religião. Segundo Freud, a religião sempre busca o pai idealizado da infância: todo-poderoso, onipresente e onipotente, infalível, garantia de completa segurança. Pai de um registro herdeiro de uma época do predomínio do narcisismo infantil e suas imagens, época de intensa ambivalência. A religião, ao menos suas vertentes monoteístas e ocidentais, está no registro do imaginário e na possibilidade do absoluto (COUTINHO JORGE, apud LOPES, 2008, p.22).

Consideremos, também, o papel ambivalente da mídia em relação a estas crenças absolutas, na medida em que foram exaustivamente mencionadas após o atentado de 11 de setembro de 2011. Ato terrorista cujas imagens de grande plasticidade foram repetidas para consumo até seu esgotamento. Mais do que isto, o maior ato terrorista do Ocidente, perpetrado contra a mais poderosa nação do mundo, e o líder dos que o cometeram passou a sofrer a maior perseguição individual já registrada na história. Tudo parece encaixar-se com uma luva no desejo de vingança de Wellington em relação a quem lhe teria causado violência no passado. Mas não através de uma fantasia inofensiva ou até útil com o tempo. Como no imaginário não há pensamento, não há linguagem discursiva, também não há possibilidade de elaborar construtivamente um trauma. Em um círculo vicioso, as crenças religiosas, os videogames e os filmes de terror nada fizeram que não alimentasse cada vez mais e mais o trauma. A vingança não pode seguir os caminhos mais pacíficos e saudáveis de ser realizada por: um sonho, uma fantasia, um devaneio diurno ou mesmo um sintoma mais brando que a descarga absoluta da violência acumulada: passagem extrema ao ato.

 

Algumas questões sexuais e seu encobrimento pela mídia

Na noite logo após e no dia seguinte ao massacre, houve enorme divulgação da chacina pela televisão e jornais impressos. Embora o número de mortos variasse, toda mídia se referia às vítimas como ‘crianças’. Fato que merece uma reflexão mais ampla. A mais jovem vítima foi um menino de doze anos, as demais tinham entre treze e quatorze anos. Dentre as doze vítimas, dez eram do sexo feminino. A estes dados acrescentam-se dois depoimentos, o da parenta de uma das moças assassinadas e o de um sobrevivente ao massacre. Segundo relato da tia e madrinha de uma das vítimas:

Tenho um filho na mesma turma, que me contou que antes de matar as crianças, o atirador disse que só morreriam as meninas bonitas. Ele se aproximava das meninas bonitas e atirava sem pena. As feias, segundo meu filho, ele deixava passar (JORNAL DO BRASIL, 2011).

Já o aluno de treze anos contou por que foi poupado pelo assassino:

Pedi para ele não me matar e ele disse: ‘Relaxa, gordinho, eu não vou te matar’. (NOTÍCIAS TERRA, 2011). Ele colocava a arma na testa das garotas e puxava o gatilho, sem pena, disse. Os poucos rapazes atingidos foram baleados no braço ou nas pernas, propositalmente (UOL NOTÍCIAS, 2011).

Seja pelo desenvolvimento físico, mas, principalmente, pela prioridade dada às condutas eróticas em nossa sociedade, a idade das vítimas as caracteriza como adolescentes e não crianças. Especialmente em se tratando do sexo feminino. Os relatos acima provam que Wellington procurava matar apenas meninas bonitas. Os tiros em garotos, nos braços e pernas, foram dados principalmente para que impedissem de detê-lo em seu massacre. A despretensão com a qual poupou a vida do menino acima mostra como Wellington havia previamente selecionado bem suas vítimas. Escolha muito diferente da dos matadores no massacre de Columbine, tão comparado pela mídia ao de Realengo, onde das treze vítimas apenas quatro eram do sexo feminino e quando também um professor foi morto.

A escolha prévia e os tiros a queima roupa na testa evidenciam que desejava assassinar o maior número possível de jovens bonitas. Contudo, não foi apenas a imprensa que desqualificou a natureza erótica subjacente ao massacre. As declarações, dadas por dois dos psiquiatras acima referidos (MORAES, 2011; SILVA, 2011), também não mencionam o fato de a maioria esmagadora das vítimas ser adolescentes do sexo feminino. Só alguns dias após o massacre, a partir dos relatos de antigos colegas de Wellington no segundo grau, em que foram descritas cenas de bullying, houve alguma suspeita da questão sexual, embora a imprensa continuasse sempre denominando as vítimas de ‘crianças’ e relatasse o abuso sofrido pelo assassino quando adolescente como indiferente segundo o sexo dos abusadores. Segundo as palavras de um ex-colega de Wellington:

(...) certa vez no colégio pegaram Wellington de cabeça para baixo, botaram dentro da privada e deram descarga. Algumas pessoas instigavam as meninas: "vai lá, mexe com ele." Ou até incentivo delas mesmo: "Vamos brincar com ele, vamos sacanear”. As meninas passavam a mão nele, (...) (FANTÁSTICO, 10/4/2011).

Estes maus-tratos aconteceram em 2001. Naquele ano, em 11 de setembro, ocorreu o maior ataque terrorista de todos os tempos, e que virou obsessão para Wellington. Segundo informou outro colega e amigo do atirador, que estudou com Wellington quando ambos tinham 16 anos, o apelido de Wellington na adolescência era ‘Al Qaeda’, em referência à organização fundamentalista islâmica, apontada como autora de diversos atentados, e que o assunto de muitas de suas conversas era sobre os atentados terroristas. Segundo este ex-colega, o preferido dele era o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York (SZD, 2011). Deste modo, vemos que o desejo de vingança de Wellington, identificando-se com os terroristas que se jactavam de terem se vingado da nação mais poderosa do mundo, possuía grandiosa associação, embebida por narcisismo de morte em seu imaginário e incapaz de elaboração simbólica.

Contudo, esta associação provavelmente só foi possível por sua conexão sexual. Embora tenha sofrido bullying também por colegas do sexo masculino, sua obsessão eram as meninas. Nisto a natureza misógina comum a todos os fundamentalismos foi o fator determinante para o processo identificatório com o grupo terrorista Al Qaeda. Também se deve ressaltar que este grupo é composto exclusivamente por homens, e que em outros grupos semelhantes de fanáticos, mulheres são utilizadas, no máximo, como veículo para a execução de atentados. Segundo informações de alunos que conseguiram deixar a escola, antes de matá-las Wellington se referia às garotas como ‘seres impuros’ (UOL NOTÍCIAS, 2011), o que está relacionado ao conteúdo religioso da carta de suicídio escrita pelo criminoso. Esta carta, apresentando com rigor os detalhes para seu sepultamento, inicia-se pelas exigências feitas aos que iam lidar com seu corpo morto:

Primeiramente deverão saber que os impuros não poderão me tocar sem luvas, somente os castos ou os que perderam suas castidades após o casamento e não se envolveram em adultério poderão me tocar sem usar luvas, ou seja, nenhum fornicador ou adúltero poderá ter um contato direto comigo, nem nada que seja impuro poderá tocar em meu sangue, nenhum impuro pode ter contato direto com um virgem sem sua permissão (...) (OLIVEIRA, 2011).

Chamam a atenção, no entanto, as semelhanças entre a carta deixada por ele e a escrita por Mohammed Atta, que sequestrou e atirou um avião contra o World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001. A carta de Atta era datada de mais de cinco anos antes do atentado, o que também invoca uma premeditação do crime semelhante à de Wellington. O terrorista enumera dezoito exigências para seu sepultamento, dentre as quais:

(...) 5. Nem mulheres grávidas nem pessoas impuras devem se despedir de mim – eu não quero isso; 6. Mulheres não devem rezar pelo meu perdão (...); 9. Aquele que lavar meus genitais deverá usar luvas, para que eu não seja tocado naquela região (...); 11. Mulheres não deverão presenciar meu enterro ou visitar meu túmulo em qualquer outra data mais tarde (ATTA, 1996).

Em ambos os textos salta aos olhos, além da impureza, a inferioridade absoluta com que é considerado o sexo feminino. São indignas até mesmo de: sepultar, rezar ou chorar por seus mortos. Mas, acima de tudo, o feminino constitui a fonte de todo o mal, tema básico e comum para as vertentes radicais das religiões monoteístas. Podemos citar as palavras de um dos fundadores da patrística, Tertuliano (160-220) também hostil ao pensamento racional e à filosofia, e que escreveu a célebre frase: ‘credibile est, quia ineptum est’ (a mais divulgada, “credo quia absurdum”, ele, na realidade, jamais expressou) (MORESCHINI, 2008, p.195). Misógino de carteirinha, Tertuliano vituperou contra as mulheres em seu escrito ‘De Cultu Feminarum’ (TERTULIAN, 2011): “Vocês não sabem que cada uma é uma Eva? Que vocês são o portão do demônio. (...) Vocês que tão facilmente destruíram a imagem de Deus: o homem”. Apesar da diferença de dezoito séculos, o feminino no imaginário de Tertuliano, Atta ou Wellington possui as mesmas características. O corpo masculino, mesmo depois de morto, deve ser excluído de todo contato com o outro sexo, seja por contato físico, seja apenas pela presença no ato fúnebre.

O que chamava a atenção de familiares e vizinhos de Wellington não foram suas crenças, bastante superficiais e confusas, mas sua longa e exuberante barba, com a qual fez questão de ser fotografado e filmado. Material que postumamente foi muito exibido pela mídia, exatamente como premeditara o matador. Sabendo de modo bastante pragmático, e que também revela sua boa percepção da realidade, que a longa barba chamaria atenção e alguma suspeita, Wellington apenas a raspou para executar o massacre. Podemos dizer que a mistela religiosa do assassino de Realengo tinha na barba seu traço comum. Ou melhor, seu fundamentalismo resumia-se na barba. Logo um item que merece mais atenção.

Comum a todos os fundamentalismos monoteístas é uma rígida dicotomia de vestuário e do tratamento dado aos pelos na cabeça. Seitas protestantes de séculos atrás, talvez algumas atuais, judeus ortodoxos e muçulmanos fundamentalistas, todos proíbem que a mulher mostre seus cabelos, a não ser ao próprio marido. Ao homem, todos valorizam barbas longas. O vestuário feminino é codificado em graus variáveis de restrições: desde a proibição em usar calças compridas, passando por saias que mostrem o menos possível das pernas, chegando ao véu e hoje a tão famosa burca. Já para os homens há quase sempre a predominância das vestes negras, no máximo com camisas brancas. A cor é proibida ao sexo masculino. Eliane Robert Moraes (MORAES, 2011), especialista em literatura e erotismo, escrevendo uma resenha sobre o livro A Barba e o Véu do sociólogo tunisiano Abdelwahab Bouhdiba, comenta:

Em suma, como conclui o autor, há um inegável fetichismo do pelo no Islã, cuja significação é simultaneamente sexual e religiosa. Num sentido mais amplo, a barba participa do imperioso fetichismo da vestimenta, instrumento do pudor que deve dissimular o corpo e, ao mesmo tempo, refletir a dicotomia sexual do universo. (...) Os muçulmanos não medem esforços para dar evidência à dicotomia entre o masculino e o feminino, o que resulta em rígida regulamentação da vestimenta e dos cuidados corporais. Daí a interessante oposição entre a barba e o véu – principais símbolos da virilidade e da feminilidade –, que transfere para os rostos as marcas sexuais distintivas de homens e mulheres.

O misoginismo de Wellington associa-se ao uso da longa barba. No extremismo religioso monoteísta é acentuada a crença bíblica de que o feminino é inferior e sede do pecado. Logo, o corpo feminino é proibido, principalmente quanto a tudo que esteja mais perto dos genitais ou a eles se associe, como os demais pelos corporais à mostra. Mas ao esconder tudo o que estiver próximo aos genitais femininos ou a eles possa ser associado, a dicotomia sexual torna-se exageradamente acentuada quanto às características sexuais secundárias. Em sua carta-testamento Wellington enfatiza sua virgindade. No material que deixou para exploração póstuma da mídia a barba longa enfatiza sua virilidade.

No caso do assassino de Realengo, quando há o relato de que dez anos antes do crime, uma das principais formas do bullying fora a tentativa das meninas de acariciarem Wellington, vê-se o medo que tinha de seu toque físico. Mas como assinala Freud, todo medo encobre um desejo. A preferência em assassinar garotas bonitas revela que Wellington não era indiferente ao sexo feminino. Também é notório que armas de fogo, por sua forma e poder, são símbolos altamente fálicos. Os tiros à queima-roupa na testa podem ser interpretados como violentíssima fantasia de penetração sexual. Fantasia semelhante àquelas inúmeras formas mortais de coito, encontráveis nas obras do Marquês de Sade. Ou visualmente concretizadas em muitos filmes de terror.

Coloca-se novamente a questão da personalidade esquizoide, em sua aversão ao contato íntimo, físico e/ou afetivo, e a possibilidade de uma reação violenta quando ocorre este contato sob a forma de invasão pelo outro. O massacre de Realengo – paroxismo sádico e uma caricatura cruel de uma ilimitada potência sexual – remete à incapacidade do esquizoide em conter seu desejo e sua agressividade. Incapacidade para a qual, dentre várias outras causas, a Internet com sua fixação em imagens e não no verbal, associada à sensação narcísica de se comunicar e ser do tamanho do mundo, pode contribuir. Sendo o inconsciente freudiano atemporal, assim como uma de suas versões lacanianas, que é a maior parte do registro do imaginário, a violência pode ocorrer na hora da invasão ou dez anos depois, tendo sido cada vez mais reforçada pelas mídias virtuais e filmes de terror.

 

O que uma leitura psicanalítica do massacre pode acrescentar

A herança genética pode ser um dos fatores concomitantes, mas jamais exclusivo, para explicar algo como o massacre de Realengo. Rotular como aberração de um esquizofrênico, ‘doença rara que só atinge 1% da população’, pode acalmar o público da grande mídia no sentido de que não correm o risco de algo semelhante. Wellington não era humano e ponto final. Já Freud reensinou que dirigíssemos a escuta e o olhar à semelhança da célebre frase de Terêncio: ‘Homo sum: humani nil a me alienum puto’ (Sou um ser humano, portanto, nada que é humano me estranha). E para compreender um ser humano temos de descobrir sua história. Um pouco da história real e muito de como a viveu e a interpretou. Como é de esperar, a mídia tratou o massacre como espetáculo, dando muita ênfase às supostas conexões políticas e religiosas de Wellington, e pouco destaque a sua história pessoal. Infelizmente as informações sobre a infância e adolescência do assassino de Realengo foram poucas, repetidas ao extremo, mas na realidade são dados escassos e muitas vezes contraditórios.

Dentre as informações mais objetivas, temos que Wellington foi adotado por uma senhora na época já com mais de cinquenta anos, e seu primeiro marido. O casal tinha cinco filhos adultos e casados quando da adoção. Segundo relatos de seus irmãos, Wellington foi tratado de modo distinto pela mãe, que imaginava ter que deixá-lo muito cedo devido à idade. A mãe biológica de Wellington era uma sobrinha do primeiro marido da mãe adotiva, e os relatos são de que tinha problemas mentais (GLOBO.COM, 2011). Foram os depoimentos de alguns de seus irmãos e de vizinhos que forneceram dados relevantes, embora conflitantes algumas vezes, coligidos em vários jornais e blogs. Dentre estas informações a de que:

Wellington nasce de uma mulher doente, Eliete Pereira, que sofria de esquizofrenia, (...) Após descobrir que o marido tinha outra família, Eliete tenta tirar a própria vida ao jogar-se na frente de um ônibus, ainda grávida de Wellington. O acidente não deixa sequelas no bebê, mas provocou um quadro de alteração psicológica na mãe, que entrou em depressão profunda e teve síndrome do pânico (PONTO DE VISTA, 2011).

A idade da adoção foi relatada ora como tendo sido logo após o nascimento, embora sem especificar se horas ou dias, ora com dois meses de vida (ESTADO DE MINAS, 2011), e até mesmo com dez meses de vida (BULLY: NO BULLYING, 2011). Os diferentes relatos conduzem à suposição de que além de ter ocorrido mais de 23 anos atrás, tanto os irmãos já casados quanto os vizinhos, provavelmente, não presenciaram de perto a adoção. Também existe a muito humana probabilidade de que estas mesmas pessoas, em seus depoimentos atuais, realizados após o impacto do massacre, tenham tentado eximir a mãe adotiva de Wellington de quaisquer falhas ou responsabilidade. Justificam-se desta forma outras informações contraditórias. Segundo o relato de um dos irmãos de Wellington:

(...) Quando ele fez 15 para 16 anos, minha mãe conversou com ele e contou toda a história para ele [sobre ele ser adotado] (...) Tanto que quando minha mãe contou a história, e que se referiu à mãe biológica, que ele precisava conversar com a mãe biológica, precisava ir lá, conversar e tudo mais. Minha mãe deu conselho: ‘você precisa ver porque ela não tem culpa’. (...) Ele foi, viu. Mas ele não quis ficar com contatos (TV CIDADE SUL, 2011).

Este relato conflita com a descrição de que Wellington:

(...) cresceu ouvindo detalhes sobre eventuais problemas psiquiátricos da mãe biológica. Segundo vizinhos, ela [a mãe adotiva] dizia que Wellington havia sido gerado dentro de um manicômio (EXTRA, 2011).

Discordamos da asserção acima de que a tentativa de suicídio de sua mãe biológica com o bebê no ventre não tenha deixado sequelas. Desde que Freud descobriu no adulto a criança, e Melanie Klein na criança o bebê, as fronteiras de quando se estabelece o psiquismo e de quando as primeiras experiências deixam traços tornam-se cada vez mais precoces. Além dos trabalhos pioneiros da psicanalista italiana Alessandra Piontelli (1995), no Brasil, dentre outros, há o nome da psicanalista Joanna Wilheim (2003) e todo um debate com as neurociências sobre o estudo do psiquismo pré e perinatal (ABREP, 2003).

A esta primeira experiência de morte, deduz-se logicamente pelas informações acima que a mãe biológica de Wellington não dispunha, ou não era capaz, de qualquer investimento afetivo no feto ou no bebê recém-nascido. Seria importante esclarecer qual o tempo de privação afetiva e da falta de cuidados básicos: horas, dias, dois meses ou dez meses? Mas, talvez, a questão resuma-se à extensão da marca, não que ela deixe de existir.

Além do abandono real, crianças adotadas, por maiores que sejam os esforços dos pais adotivos, em algum grau, sempre carregam consigo o traço da rejeição. Toda criança adotada inconscientemente sabe ser adotada. Este traço pode ser minimizado, diminuído até um limite muito pequeno, mas jamais desaparece. Pais adotivos devem sempre ter algum tipo de acompanhamento psicológico que os ajude a lidar com um bebê ou criança maior que possui alguma forma de déficit. Para isto uma conduta básica é jamais esconder da criança sua adoção. No caso em estudo, a diferença de idade entre os pais adotivos e seus outros filhos torna a fantasia de ser adotado tão comum senão obrigatória em todas as crianças, mais que uma fantasia, uma dedução lógica. Além disso, apesar de os relatos sobre a adoção de Wellington serem confusos, eles apontam que, apesar das boas intenções, ou ocorreu uma mentira bem-intencionada, e/ou nos conflitos mãe filho, que são inevitáveis, a adoção era utilizada como arma de acusação.

No caso de Wellington todos os relatos convergem na narrativa de que a única ligação afetiva que mantinha era com sua mãe adotiva. Irmãos, colegas de escola e de trabalho, vizinhos: há nos relatos um deserto de relacionamentos pessoais. E uma dependência excessiva em sua mãe adotiva. O que sugere, ao contrário do que o leigo possa pensar, ao invés de uma relação onde predomina o lado amoroso, uma simbiose onde a subordinação afetiva mal contrabalança uma grave ambivalência, uma sujeição que precariamente apazigua a lado agressivo. Há também unanimidade nos relatos de que após o falecimento de sua mãe adotiva ocorreu um agravamento da esquizoidia de Wellington. Segundo irmãos e vizinhos, seu isolamento social tornou-se completo.

Retornemos à tentativa de suicídio de sua mãe biológica durante a gravidez e sua rejeição ao bebê depois de nascido, bem ao tempo de privação afetiva e material que antecedeu a adoção. Repensemos as possíveis dificuldades de relacionamento com a sua mãe adotiva, talvez agravada pela idade desta, em que parece ter havido uma superproteção de Wellington, que na prática era um filho único. Pode-se então refletir sobre os trabalhos clínicos e teóricos do psicanalista escocês W. R. D. Fairbairn (1980) sobre esquizoidia e personalidades esquizoides. Para este autor influenciado, contudo também dissidente do pensamento de Klein e Winnicott, vários graus destes transtornos, indo desde traços de caráter até franca esquizofrenia, teriam sua origem precoce na fase oral do bebê.

Se indagarmos mais ainda a respeito das fontes de ser diferente dos outros que caracteriza os indivíduos com um elemento esquizoide na personalidade, encontramos provas do seguinte, entre outros traços: (1) que no início da vida esses indivíduos alcançaram a convicção, seja pela aparente indiferença ou da aparente possessividade por parte da mãe, de que não os queria e não os valorizava realmente como pessoas com direitos próprios; (2) que, influenciados pela sensação resultante de privação e inferioridade, ficaram profundamente fixados na mãe; (3) (...) essa fixação não só estava caracterizada por uma extrema dependência, mas também era convertida numa atitude altamente conservadora e narcisista pela angústia ante uma situação que apresentava como ameaça ao ego (...) (FAIRBAIRN, 1980, p.19).

Do primeiro item, Wellington teve da mãe biológica mais que indiferença, mas tentativa de morte, e da mãe adotiva uma relação tão próxima que beirava a sufocação. Uma vez que toda ligação entre duas pessoas é um vetor com duas direções, pode-se dizer que no segundo caso Wellingon reforçou traços que já pertenciam a sua mãe adotiva. A simbiose com esta lhe era necessária, pois servia tanto de proteção contra uma grande angústia quanto de ego auxiliar que amortecia o confronto com o mundo externo. O paradoxo aparente é o de que a pessoa que abrandava a ansiedade era também uma de suas fontes.

Nestes pacientes, Fairbairn também chama a atenção de que o sentimento de ser diferente e superior aos outros, o isolamento social e afetivo, curiosamente também se mescla com a tendência a representar papéis e ao exibicionismo. Ambos criam uma gratificação narcísica sem, contudo, existir verdadeiro envolvimento emocional. Característica que pode ser útil a artistas, mas também para fanáticos de todos os matizes. A religiosidade confusa e superficial de Wellington e sua autocaracterização como terrorista islâmico sugerem mais um ator fraco que verdadeira convicção. E fora de dúvida que o massacre de Realengo foi um grande show de mídia. Amplificado pelos vídeos, fotos e carta deixados pelo assassino.

Outro ponto fundamental para uma compreensão psicanalítica é a questão paterna. O pai biológico de Wellington é tido como um desconhecido. Todos os depoimentos falam muito da mãe adotiva, mas de seus maridos de forma absolutamente tangencial ou sequer os mencionam. A falta de maior menção destes relatos ao pai adotivo não pode ser tomada como mera coincidência. O primeiro marido, com o qual teve cinco filhos e era tio da mãe biológica de Wellington, é apresentado nos relatos como solidário na adoção. Mas não há informações sobre o que lhe sucedeu: se faleceu ou o casal se separou. Muito menos qual a idade de Wellington à época deste evento. Os entrevistados então apontam para um segundo marido de sua mãe adotiva, que teria tratado seu enteado bem, mas não fornecem quaisquer outras informações. Este segundo esposo teria falecido cerca de três anos antes de sua mulher.

Até o momento os comentários sobre a família e a infância de Wellington foram baseados em depoimentos de irmãos, colegas e vizinhos. Mas existe algo mais fidedigno para um psicanalista, o que o próprio Wellington nos deixou em sua carta e em gravação de vídeo. Na carta escreve: “Se possível, quero ser sepultado ao lado da sepultura onde minha mãe dorme (OLIVEIRA, 2011).” Quando redige sobre o que deve ser feito de sua casa em Sepetiba, Wellington pede que seja doada para alguma instituição que abrigue animais:

(...) cumprindo o meu pedido, automaticamente estarão cumprindo a vontade dos pais que desejavam passar esse imóvel para meu nome e todos sabem disso, se não cumprirem meu pedido, automaticamente estarão desrespeitando a vontade dos pais, o que prova que vocês não têm nenhuma consideração pelos nossos pais que já dormem, eu acredito que todos vocês tenham alguma consideração pelos nossos pais, provem isso fazendo o que eu pedi (OLIVEIRA, 2011).

Neste texto há a única menção do próprio Wellington a alguma figura paterna. Isto é, caso se considere que esta menção está incluída no genérico ‘pais’. De resto as informações do próprio autor do crime corroboram as entrevistas na suposição de uma relação materna simbiótica e uma exclusão da figura de pai. Tomemos o cuidado em considerar que a figura paterna não necessita ser o pai biológico ou mesmo que a mãe biológica ou adotiva concretamente divida o lar com um homem. Hoje sabemos quanto a questão crucial para a psicanálise, a figura paterna e o nome-do-pai, foi tomada de forma concreta. E quanto este pensamento concreto levou a ideologias reacionárias. Uma mulher sozinha também transmite a figura paterna que ela própria possui internalizada. Sem falar de casais do mesmo sexo que pleiteiam adoção, principalmente se tratando de duas mulheres. No caso da mãe adotiva de Wellington, dois homens estiveram concretamente presentes no lar do rapaz, mas parecem ter tido um mínimo de função paterna. Quem mais poderia garantir-lhe contra uma insuportável angústia, desde aquela de sua experiência de morte intrauterina, daquela trazida por uma mãe bem-intencionada, mas possessiva, isto é, de não sucumbir a uma fusão simbiótica e uma castração completa?

Freud em alguns de seus trabalhos mais célebres – “Totem e Tabu”, “O Futuro de uma Ilusão” e “Moisés e Monoteísmo” dentre outros – cansou de advogar como a figura do deus das religiões monoteístas nada mais era que a figura exaltada do pai, que garantisse segurança diante de todos os medos infantis. Dentre estes o medo à castração. Bastante natural que todos os fundamentalistas vivam em função da imagem de um deus tirânico, que com ainda mais tirania tentam impor perversamente ao mundo excluindo toda percepção de diferença, e tem de eliminar qualquer infiel. No patriarcado a completa submissão feminina é exigida, e as características sexuais secundárias, bem como a vestimenta e papéis sociais de gênero, caricaturalmente propagandeados. Todo este conjunto encobrindo uma grande angústia de castração, que em realidade origina-se na anterior angústia de separação. Pode-se tirar o plural destas frases e, no singular, aplicá-las a Wellington.

Retornando à questão diagnóstica do início, podemos argumentar que não sendo o assassino de Realengo psicótico, existia alguma função paterna, mesmo que muito precária. A hipótese é de que sua mãe adotiva era quem em grande parte exercia este lugar, em parte evitando que fosse sugado pela imagem da mãe biológica assassina, em parte defendendo-o de que a simbiose afundasse em uma fusão com ela mesma. Com a morte da mãe adotiva, Wellington sucumbiu ao desejo de uma completa regressão intrauterina – lacanianos podem dizer um gozo absoluto, não fálico. Infelizmente não por meio de uma psicose, em que teria implodido psiquicamente, mas poupado pelos outros, ao invés de explodir por meio de um comportamento assassino. A tentativa de suicídio de sua mãe biológica com ele no ventre, e a permanente ameaça de morte psíquica que traz a simbiose se conjugam numa imagem mortal de duas mães em uma. A única relação sexual com o sexo oposto na fantasia executada de assassinato das meninas bonitas com um tiro na testa. E, por fim, a realização do desejo de permanecer para sempre deitado na terra ao lado de sua mãe. Excluindo qualquer figura paterna, isto é, qualquer outro homem. Uma versão ainda mais macabra de um dos textos freudianos mais conhecidos:

Podemos argumentar que aqui estão representadas as três relações inevitáveis que, ao longo de sua vida, um homem tem com uma mulher – a mulher que lhe dá à luz, a mulher que é sua companheira e a mulher que o destrói; ou seja, as três formas tomadas pela figura da mãe ao longo de sua vida – a mãe ela mesma, a amada que é escolhida a partir de seu modelo e, finalmente, a Mãe Terra que o receberá uma vez mais (FREUD, 1978, p.301).

 

Conclusão

Nenhum parente apareceu para fazer o reconhecimento do corpo de Wellington no Instituto Médico Legal. Duas semanas depois do massacre em Realengo, foi enterrado em um dos dois maiores cemitérios do Rio de Janeiro, como corpo não reclamado. O enterro foi feito pela Santa Casa em cova rasa, sem lápide. Exceto os coveiros, ninguém compareceu. Mas muitos blogs e endereços de redes sociais começaram a fazer apologia do massacre e de seu autor.

Após cerca de uma quinzena o assunto deixou de ser relevante para a mídia. A descoberta da ocorrência do bullying fez com que a questão fosse explorada pelos meios de comunicação mais algum tempo. Enquanto que o massacre foi facilmente creditado na mídia ao monstruoso, o bullying pertence à história da maior parte das pessoas ditas normais. Qualquer criança ‘diferente’ torna-se um bode expiatório em escolas do primeiro e segundo graus. Fora a questão do trote, que alcança até o nível universitário, ocasionalmente provocando até mortes. Ensino público e particular tem a infeliz honra de serem iguais em frequência e gravidade quanto ao bullying. Acrescentou-se nos últimos anos um upgrade, redes sociais, como Orkut ou Facebook, passaram a competir com o bullying de corpo presente. Assim o linchamento moral também pode ser feito in absentia e in effigie. O problema do bullying passou menos de raspão na maioria do público que a figura mais patética do que trágica do assassino de Realengo. O assassinato em massa só faz com que se tema em ser vítima ou que alguém querido o seja.

Como sempre, a psicanálise deve estar na contramão. Ao invés de pautar-se no histericismo midiático, buscando uma causalidade linear e que não ultrapasse o tempo presente, a psicanálise deve inserir-se numa causalidade múltipla, sempre com referência ao passado remoto do sujeito. Ao invés do pretenso cientificismo de uma psiquiatria rotuladora e pobremente descritiva (que ao menos a antiga escola fenomenológica não era), Freud legou a importância de se tentar entender nos abismos da psyché todos os matizes da natureza humana. A partir de Freud, mas procurando abranger um número maior de autores, Eugen Bleuler, também criador da palavra esquizofrenia, cunhou o termo psicologia das profundezas – Tiefenpsychologie. Abismos e profundezas costumam ser muito escuros, completamente negros, mesmo.

Assim a psicanálise possui uma tarefa bem mais ingrata e menos lucrativa que o festival da exploração midiática e seus coadjuvantes. Nos abismos da alma, como já usou Roudinesco (2008) como título de um livro, está a parte obscura de nós mesmos. Em verdade, mera consequência do dito cunhado por Freud quando afirmou que a neurose é o negativo da perversão, destacando que as fantasias dos neuróticos e dos perversos são as mesmas, só que o perverso pode expressar-se diretamente. Sempre se pensa perversão como alguma conduta sexual desviante, não como recusa em aceitar o diferente, ou mesmo o ódio do imaginário quando confrontado com o real. O corolário, não tão explicitamente sexual, da frase freudiana é o que na conduta humana os homens maus fazem aquilo que os homens bons sonham, também título de livro (SIMON, 2009). E que não é bem o vizinho que mora ao lado que é um psicopata.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Marechal Mascarenhas de Morais, 132/308 – Copacacabana
22030-040 – Rio de Janeiro/RJ
Site: http://www.anchyses.pro.br
E-mail: anchyses@terra.com.br

RECEBIDO EM: 20/01/2012
APROVADO EM: 15/03/2012

 

 

Sobre o Autor

Anchyses Jobim Lopes
Médico. Bacharel em Filosofia pela UFRJ. Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UFRJ. Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ). Presidente do CBP-RJ 2000/04 e 2008/12. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2004/06. Professor Adjunto de cursos de Graduação em Psicologia e Especialização em Psicoterapia Psicanalítica.