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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E CULTURA

 

Arkangel: sobre a devastação na relação mãe e filha em tempos cibernéticos

 

Arkangel: on devastation in the mother and daughter relationship in cybernetic times

 

 

Bárbara Araújo SordiI, II; Elizabeth Samuel LevyI, II; Hevellyn Ciely da Silva CorrêaIII

I Círculo Psicanalítico do Pará
II Universidade da Amazônia
III Universidade Federal do Pará

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Black Mirror é uma série britânica de ficção sobre a sociedade contemporânea que, de forma irônica e catastrófica, debate sobre bioética em face os possíveis avanços tecnológicos e seus efeitos psíquicos. No episódio Arkangel, apresentado na quarta temporada da série, Marie, preocupada com a segurança da filha recorre a um dispositivo de última geração para monitorar sua localização, uma espécie de chip, fato que, posteriormente, se agrava diante da emergência da puberdade da filha, isto é, o despertar de sua posição de mulher. Partindo de fragmentos do episódio, este artigo aborda a questão da devastação na relação mãe e filha. Direcionando-se ao conceito psicanalítico de feminilidade baseado nos textos freudianos, e de feminino no ensino de Lacan, pensa-se as consequências de um gozo que não está inscrito de todo na linguagem e que, diante da impossibilidade própria ao amor, encontra na devastação um modo de realizar-se.

Palavras-chave: Black Mirror, Psicanálise, Feminilidade, Devastação, Maternidade.


ABSTRACT

Black Mirror is a British fiction series about contemporary society that, in an ironic and catastrophic way, debates about bioethics, in the face of possible technological advances and their psychic effects. In the episode "Arkangel", presenting in the fourth season of the series, Marie, concerned about her daughter's safety, uses a state-of-the-art device to monitor her location, a kind of chip, a fact that subsequently worsens in the face of the emergence of puberty. this, that is, in view of her position as a woman who awakens. Based on fragments of the episode, this article addresses the issue of devastation in the mother-daughter relationship. Turning to the psychoanalytic concept of femininity, from the Freudian texts, and of the feminine in Lacan's teaching, the consequences of a jouissance that is not inscribed in language at all and that, faced with the impossibility of love, finds itself in devastation, a way to be realized.

Keywords: Black Mirror, Psychoanalysis, Femininity, Devastation, Maternity.


 

Black Mirror é uma série britânica, lançada em 2011, que recebeu destaque mundialmente a partir de 2015, após ser exibida em sistema in stream por uma prestadora de serviço de assinatura de TV fechada.

Os episódios apresentam histórias independentes, mas têm um fio condutor, pois se trata de ficções sobre a sociedade contemporânea que, de forma irônica, inquietante e catastrófica, debatem sobre bioética, em face dos possíveis avanços tecnológicos e seus efeitos psicológicos.

A produção audiovisual se destaca, assim, por dois pontos principais: o impacto das tecnologias no futuro, que pode estar bem próximo, bem como seus efeitos sobre as relações humanas e sobre o psiquismo. Este último ponto, muito nos interessa, por colocar em questão o lugar do sujeito naquilo que se produz como tecnologia, destaca questões do coletivo e dos sujeitos em sua singularidade, apresentando o que em psicanálise tomamos como conflitivo inconsciente, através de sintomas, inibições e passagens ao ato.

Em vários episódios vimos o uso das tecnologias revelar algo do trabalho da pulsão, a qual não se esgota na funcionalidade que as ferramentas tecnológicas oferecem, dando a ver, através dos modos como cada um usufrui de tais ferramentas, seu caráter erótico e mortífero pela via do que no artigo O problema econômico do masoquismo Freud ([1924] 1996) chama de desfusão da pulsão de morte, com toda sua potência de destrutividade.

O título da série – em português, Espelho da escuridão, representa a tela do aparelho celular de nova geração como um novo espelho em busca do reconhecimento de reasseguramento de imagem – parece evocar algo da própria constituição do sujeito.

O "estádio de espelho" seria um momento primordial para o desenvolvimento do "eu", em que ocorre a unificação da imagem corporal, e a criança se reconhece como um ser externo à mãe, mas não sem a alienação dessa imagem, que se constitui a partir do olhar do Outro (LACAN, [1953-1954] 1998). Logo, a unificação imaginária que aí se constrói é uma captura do olhar do Outro e, ao mesmo tempo, algo separado desse olhar.

Considerando essa perspectiva, a noção de um espelho da escuridão carregaria essa dupla função exercida pelo espelho? A escuridão não daria nenhuma unificação, porque nela não se veria uma imagem integrada? Sem nos atermos a essas interrogações, que nos desviariam de nosso objetivo, elas nos interessam por aquilo que podem dizer do sujeito que passa a se formar a partir de uma imagem, mas que já circulava nos desejos dos pais em relação ao bebê, ainda na gestação.

Um sujeito antecipado por desejos e integrado por uma imagem. Eis os primeiros passos do que só se tornará um sujeito após uma operação de corte, feita pela metáfora paterna, que produz recalcamento e instaura um desconhecimento à consciência daquilo que fora amor e ódio. Dessa feita, os sujeitos caminham, como Édipo, por muito tempo cegos de si, na escuridão, mas com esse "escuro" afetando sua imagem e suas relações.

Assim, a série parece evocar algo desse inconsciente recalcado que, de alguma forma, é familiar aos telespectadores, que podem se reconhecer ou até mesmo considerar que as narrativas são possibilidades de acontecimentos no futuro, embora seja por outras pessoas como afirmasse: ISSO é humano (o sexual), portanto é passível de se fazer ato, de vir à luz.

Talvez por ISSO, esta série tão premiada tem conquistado significativa notoriedade. Embora seus episódios contenham violência e dramas psíquicos, aquilo que choca, surpreende e intriga, parece também um atrativo sedutor, trazendo à tona as identificações e a estranheza do familiar, mesmo que recalcado, negado, racionalizado ou projetado em outrem.

Parafraseando Freud ([1905] 2015) no artigo Personagens psicopáticos no palco, pela arte podemos vivenciar nossos desejos mais profundos, sem a culpa de ter concretizado aquilo que nos é proibido, por isso nos fascinamos. E alguns temas, como a peça do Édipo-Rei, têm tanto sucesso de público; afinal, tais obras também revelam de nós.

Primeiro episódio dirigido por uma mulher, Jodie Foster, Arkangel é o episódio 2 da quarta temporada da série, que dá ênfase à família, pois é o primeiro a abordar aspectos sobre a relação mãe e filha.

Sua recepção foi ambígua. Críticos elogiaram a profundidade pautada nas relações humanas. Outros argumentavam que a questão tecnológica poderia ser mais explorada. Contudo, independentemente das repercussões, pode-se considerar uma profícua ferramenta para a análise acadêmica, que poderá examinar aspectos da sociedade contemporânea e da subjetividade humana.

O nome Arkangel se refere a um dispositivo (um chip) ainda em teste, que é depositado no cérebro de crianças e permite que os pais possam rastrear a sua localização, monitorar sua saúde (quase como um exame de sangue) e enxergar o que elas estão vendo e, assim, detectar seu nível de estresse, com a opção de 'pixelar' alguma imagem ou som, tudo por meio de um táblete, chamado de "unidade parental". O significante "unidade" nos remete ao estádio do espelho, anteriormente citado, como uma possibilidade de unificação corporal vista pelo Outro parental.

A narrativa se inicia com Marie, aparentando certa angústia durante sua cirurgia cesariana. Logo ela verbaliza sua frustração por não ter conseguido o parto natural vaginal, sendo acalentada pela enfermeira que a acompanha. Em seguida, sua bebê nasce sem chorar, levando à intervenção da equipe e deixando Marie bastante aflita até a situação se normalizar e receber a filha no colo.

Marie é mãe solo, e o pai biológico sequer é mencionado no episódio, onde aparece apenas o próprio pai de Marie, que mora com elas e convive na criação da neta. Nesse período, em um pequeno descuido materno, Sara, sua filha, se perde, causando profunda angústia e desespero da mãe diante da possibilidade de perdê-la. É esse fato que faz com que Marie procure a empresa e o programa Arkangel.

De posse da "unidade parental", é possível observar Marie brincando de esconder com Sara, processo importante na constituição da sua imagem, quando a mãe parece permitir à filha o binarismo presença/ausência, tão importante no reconhecimento da criança em um corpo dela mesma, separado da mãe. Contudo, verifica-se que a dualidade presença/ausência é vivida pela mãe com certa dificuldade de vivenciar a ausência, por isso ela recorre à unidade parental, ou seja, diante de uma ausência que pode levar à perda, a mãe lança mão de um aparelho que promete uma onipresença.

Destacamos este trecho do episódio, pois, guiando-nos por Lacan ([1956-1957] 1995), na dinâmica presença/ausência, própria à frustração, a mãe surge como faltosa, não detentora do falo, oferecendo objetos dons que marcam desejo da criança e a "substituem" na sua ausência. Assim, a unidade parental surge como um possível objeto dom oferecido pela mãe que, no entanto, não faz dele uma possibilidade de sua ausência, mas uma ilusão de presença constante. A criança seria objeto de gozo dessa almejada presença sem limites, mostrando uma relação mãe e filha sem cortes, mediada por uma tecnologia dirigida pela mãe.

Quando Marie fala com seu pai sobre Arkangel , ele pergunta pelo custo do procedimento, uma pergunta que pode ser pensada para além do gasto financeiro. E Marie responde que, por estar em período de teste, havia sido de graça, ou seja, fora um objeto cuja presença se fez sem a perda de algo para ter acesso a ele. Em outras palavras, a "unidade parental" parece estar fora da castração, que inaugura o desejo.

O pai de Marie, então, tenta intervir chamando atenção da filha sobre como ela fora criada, aparentemente com a autonomia comum e possível da infância. Todavia, ela rebate, destituindo-o do lugar de pai e rapidamente afirma que tivera um braço quebrado. Ele replica com o argumento de que seu braço hoje está intacto. Ela olha para o braço e responde com um cotoco (símbolo gestual que representa um pênis).

Ao que parece, diante de uma demarcação da castração e das possíveis saídas simbólicas frente a ela, Marie responde com o falo imaginário, literalmente fazendo a imagem de um com o dedo e, como é próprio às saídas imaginárias, ele sempre revela sua pequenez diante do que quer representar.

Aos sete anos de idade, Sara começa a sofrer retaliações de seus colegas por sua posição ocasionada pelo chip. Sem conseguir ver nada que aumente seu cortisol, ou seja, sem ver cenas de violência, de sofrimento ou qualquer situação que cause medo, tristeza e afins, Sara solicita a Trick – um amigo rebelde, que tem relações conflituosas com o pai e tende a manifestar agressividade na escola – que descreva o sangue e as cenas de violência.

Nesse movimento, Sara estaria às voltas com a dissolução do complexo de Édipo, pois notamos seu lugar ativo de sujeito frente ao Outro materno, buscando separar-se, ao se endereçar justamente ao colega que vivenciava violência doméstica e apresentava agressividade na escola, de uma alienação que se pretendia plena, o que demarca que esse sujeito foi ao campo do Outro e nele encontrou um furo (LACAN, [1964] 1996).

Porém, apesar da tentativa, seu chip continua a filtrar as informações, fato que a leva, numa busca de inscrição, a desenhar tais cenas, vendo também seus desenhos pixializados, fazendo-a, então, se automutilar, na ânsia de ver sangue, sentir dor e, ao ser impedida pela mãe, a dispensar um tapa na face dela, utilizando-se do próprio corpo como última barreira para resistir ao desejo do Outro.

Marie, então, leva Sara a um psicólogo, que alerta sobre projeto Arkangel, já proibido em vários lugares do mundo e que, em poucos meses, seria interditado na sua localidade, orientando-a ao desligamento do aparelho, pois estava afetando sua filha.

Nesse momento Marie se questiona pela primeira vez: Sou eu que estou fazendo isso a ela? Embora Sara sinta certa insegurança ao saber que estará "desprotegida", afinal nunca havia experienciado não estar sob os olhos e "proteção" da mãe, a decisão é tomada, não sendo fácil, principalmente, para Marie que ainda recorre ao aparelho para ver se a filha havia chegado bem na escola.

Este ponto é importante, pois demonstra que a ida ao psicólogo revela algo da estrutura de Marie. Embora a "unidade parental" fosse uma ferramenta que se oferta de forma perversa para não lidar com a falta, há uma marca de dúvida e de busca de respostas em outros, indicando a presença de uma estrutura neurótica. A posição de Marie em relação à falta, nas suas hesitações e reconhecimentos, é importante para nossa discussão, menos por uma demarcação da estrutura clínica e mais por aquilo que sinaliza da relação mãe e filha, na qual o instrumento tecnológico se enlaça à fantasia de onipotência materna.

Tal fantasia, construída singularmente por cada mulher, é de grande importância, pois, como nos aponta Freud em À guisa de introdução ao narcisismo ([1914] 2004), testemunha o investimento narcísico na criança, a qual não é tomada apenas como um organismo, mas enlaçada aos desejos que lhe antecederam. Dessa maneira, o investimento narcísico tem seu vetor apontado para a mãe, revelando os desejos por se realizar no bebê, assim como tem um vetor apontado para a criança, que encontrará nesse investimento um amparo e um elemento de constituição enquanto sujeito, mas que, para tal constituição, também não caberá de todo nas fantasias maternas.

Assim, a onipotência materna se mostra necessária tanto na ilusão que oferece quanto em seu fracasso e, no enredo aqui trabalhado, Arkangel parece se encaixar nesse duplo movimento, o que trará consequências muito particulares.

Sem o uso dos recursos de Arkangel, Sara parece enfrentar bem a situação, apesar de, no início, ser açoitada por sons e imagens que, até então, eram totalmente desconhecidos. Fica evidente, inclusive, como estava frágil diante das exigências corriqueiras e normais do mundo, como quando, pela primeira vez, escuta os latidos agressivos de um cão preso, em um caminho que fazia diariamente, desde bebê e que sua mãe havia silenciado.

Aos quinze anos, Sara é uma adolescente bem adaptada. O cachorro da vizinha, que a assustava quando começara a ouvir os sons do mundo, já não estava mais na casa, que teria sido alugada. Metaforicamente isso indica que aquilo que outrora era assustador, agora pode ser ocupado por qualquer inquilino, mostrando algo próprio da vida em suas possibilidades, como a adolescência de Sara vem mostrar também.

Sara, então, resolve sair com umas amigas e mente para Marie sobre o local onde estava. Marie, que tem encontros secretos com um rapaz, escondendo da filha seu lado mulher, ainda numa tentativa de não referir que um Outro pode ocupar o desejo da mãe além da filha, ao retornar para casa, constata que Sara estava mentindo e, após ligar para todas as amigas da filha, resolve novamente buscar o programa "unidade familiar". Ao ligá-lo se depara com a filha em sua primeira relação sexual e fica muito impactada.

Apesar de não comentar nada com a filha, Marie se depara com a falta de controle que ilusoriamente achava que tinha e, visivelmente abalada, continua a assistir as vivências de Sara, que agora está apaixonada por Trick. O rapaz, além de ter iniciado sua vida sexual, parece convocá-la para o lado mulher de sua mãe, brincando que talvez Marie pudesse estar transando com alguém, quase que convidando Sara a uma identificação imaginária que pudesse, quem sabe, encontrar algum traço de identificação simbólica através do desejo.

Trick continua com comportamentos ilícitos. Apesar de ter emprego fixo, encontra na venda de drogas a possibilidade de sair da casa dos pais e de se afastar deles. Ao mesmo tempo, demonstra estar apaixonado por Sara e mantém uma relação de cuidado e zelo. Porém, após muita insistência de Sara, que parece querer desbravar o mundo, numa tentativa de se identificar como sujeito fora da mãe, os dois usam cocaína, o que acaba sendo assistido por Marie.

Preocupada e revoltada, Marie procura Trick e ameaça denunciá-lo, caso ainda falasse com Sara. A moça, por sua vez, em estado de tristeza, sente-se abandonada, pois não tem respostas do rapaz e, ao procurá-lo, é dispensada por ele, que só o faz por estar sendo coagido.

Em seguida, Sara começa a passar mal, o que faz com que Marie intua que a filha estivesse grávida. Assim, Marie compra um abortivo e coloca na bebida da filha que, na escola, durante uma aula sobre o complexo de Édipo, começa a sentir os efeitos da medicação e passa mal fisicamente. Então, é levada ao setor responsável, onde fora informada de que estava grávida, fato do qual sequer desconfiava, mas o abortivo já fizera efeito e havia interrompido a gestação.

Enfurecida, Sara chega em casa, procura no lixo, acha o remédio e, ao revirar o lar, encontra a "unidade parental". Sua mãe chega e ambas iniciam uma discussão. Sara chora e a questiona, encetando um embate físico. É na luta pelo domínio do aparelho de "unidade parental" que a garota, ao pegá-lo, passa a bater com ele brutalmente na mãe. Porém, pixealizada, a mãe não é vista, o que contribui para a vazão pulsional, pelo afastamento da situação em si.

Durante o embate, o aparelho é desligado e Sara enxerga a mãe ensanguentada no chão. Atordoada, ela, que já havia colocado suas roupas em uma mala, vai embora. A cena faz parecer que a mãe está morta, assassinada, porém está viva, levanta, tenta olhar o táblete e verifica que está quebrado. Em desespero, Marie sai gritando pela filha que fora embora pegando carona para outra cidade ou estado, fugindo da relação com a mãe, a qual permanece desolada.

Em 1931 e em 1933, Sigmund Freud, influenciado por psicanalistas mulheres, dedicou-se a escrever sobre a sexualidade feminina, reconhecendo a existência de certo mistério quanto à feminilidade e questionando-se sobre o que quer uma mulher.

No artigo Sexualidade feminina (1931) e na conferência Feminilidade (1933), reconheceu que a fase pré-edípica da menina com sua mãe tem em si suas maiores fixações. Nesses textos, Freud aborda a relação mãe e filha e afirma que o ressentimento e o sentimento de injustiça vividos pela menina em relação a sua mãe, muitas vezes são vivenciados em forma de ódio e ciúme, por considerar a mãe responsável pela falta constitucional – por não ter doado o falo. A menina vive, então, a experiência de sentir que a mesma mãe que lhe dedicou o amor inicial de sua vida, não lhe retribuiu, como esperado narcisicamente. Dessa forma, a intensidade do ódio é proporcional à intensidade do amor precedido pelo sentimento de decepção.

A menina, que amara intensamente a mãe, ao se sentir injustiçada e relegada à constatação da angústia de castração, acusa a mãe por vários motivos, desde a não amamentação suficiente e não oferta do pênis até o rancor por essa mãe dividir seu amor com terceiros e ter sido sedutora no despertar da sexualidade infantil, para depois se tornar aquela que fará proibições (FREUD, [1933] 1996).

De acordo com Marcos (2011), Freud utiliza a palavra "catástrofe" para designar o momento de ligação primitiva com a mãe, do qual restam tendências passivas que ligariam a menina ao pai. Por isso, o percurso feminino seria tão penoso: a troca da zona erógena do clitóris para a vagina, da atividade para a passividade, como do objeto de amor.

A relação da menina com a castração lhe confere uma posição de reivindicação, pois, por já se ver castrada e não por ter medo disso, ela busca outras formas de alcançá-lo, dando a ver aquilo que Freud (1914) diz ser o maior narcisismo nas escolhas amorosas, que faz com que ela se ofereça como objeto, pois seu interesse é não tanto amar, mas ser amada.

Tendo caminhos da saída edípica, a maternidade poderia ser um deles, o caminho considerado "normal" e chamado de feminilidade, no qual a menina poderia ser recompensada com um bebê, que seria equivalente ao pênis. Uma vez que a gestação e o nascimento levariam à revivescência de seu próprio narcisismo infantil sendo parcialmente compensatório.

Jacques Lacan em 1973, afirmara que a mãe pode ser uma devastação para a filha, que estaria estritamente vinculada ao amor e a sua (im)possibilidade. A relação de devastação pode existir a partir da expectativa da filha em receber uma identificação feminina. Porém, diante da impossibilidade de transmissão da feminilidade, uma vez que a mulher se configura como não-toda submetida à lógica fálica – da castração e da palavra – essa transmissão apareceria por meio de uma relação com o Real, sem contornos simbólicos.

No Seminário 20: Mais, ainda, Lacan ([1972-1973] 2008), munido do conceito de falo, escreve a fórmula da sexuação, na qual a mulher não está toda sob a regência do complexo de Édipo como o homem. Afirma, então, a existência de um gozo suplementar, chamado de feminino, o qual, embora tenha referência ao falo, não estaria submetido somente a ele. Assim, a menina esperaria algo da mãe, não submetido inteiramente ao signo da castração, do significante do falo.

Na medida em que algo escapa à mãe, na ordem simbólica, há uma impossibilidade de troca fálica, lançando mãe e filha em um desamparo estrutural e, igualmente, lançando enigmas que dão a ver os limites da própria significação fálica. Isso pode levar a mãe a permanecer como um Outro real, interpretada como Outro do gozo, convocando a menina para uma fusão impossível ou à persecução (MARCOS, 2011).

Para Brousse (2002), o desejo da mãe pode, então, comportar uma zona obscura, não saturada pelo Nome-do-Pai, sem limite definido, aproximando-se da fantasia infantil de onipotência e de mãe não castrada, como nas saídas de Marie em relação ao próprio pai e ao parceiro sexual, em que a castração materna tenta ser retirada do olhar da filha.

A devastação; que desnuda que o falo não regula todo o campo do gozo, embora seja uma reinvindicação ao desejo mãe, também diz respeito a dificuldade de simbolização do gozo feminino, aparecendo quando a menina entra em contato com a ausência de limite da mãe na relação consigo, apontando um gozo desconhecido e refratário ao simbólico.

Essa construção lacaniana acerca do gozo feminino, que é mais elaborada ao final de seu ensino – sobretudo no Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante(1971), no Seminário 19: ...Ou pior (1971-1972) e no Seminário 20: Mais, ainda (1972-1973) –, aparece já em seus primeiros trabalhos acerca da feminilidade e do estatuto significante do falo, como em A significação do falo(1958) Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina (1960), apontando que, ao se dedicar ao feminino, o que se encontra é o enigmático do campo do gozo.

Dessa forma, a devastação que acomete a menina estaria relacionada ao enigma formulado pelo gozo feminino da mãe, que se apresenta sem limites, fora do simbólico, uma vez que não existe o significante do que é uma mulher.

Nesse sentido, podemos pensar na narrativa de Marie e Sara. O nome de Sara já parece um indicativo de algo da ferida narcísica de sua mãe, do lugar simbólico ocupado por ela, antes mesmo de nascer. Sarar significa curar algo.

Seria Sara algo que veio para curar sua mãe devastada talvez por uma relação amorosa não bem-sucedida?

Seria Sara a compensação de sua ferida narcísica pela frustração da castração, um equivalente ao pênis imaginário?

Seria sua filha um filho inconsciente destinado ao seu pai?

Essas perguntas, que não podemos responder, haja vista que não tratamos dos personagens como casos clínicos, são levantadas pelo enredo e têm sua importância também por não serem respondidas no decorrer da trama, mas oferecerem algumas significações na medida em que assistimos o desenrolar das cenas.

Não podemos afirmar que Sara funciona como "cura" da ferida materna, mas assistimos Marie impedir a filha de ver cenas violentas, na busca de mantê-la higienicamente fora daquilo que, para a mãe, seria insuportável porque lançaria a filha na possibilidade de falha e da perda.

O medo de perder a filha é uma marca que se faz desde o nascimento de Sarah, porém é acentuado diante de uma vivência concreta, Marie opta por Arkangel e logo se verifica uma identificação simbiótica com a filha.

A dedicação e o cuidado não apenas dizem respeito a Sara, mas também demarcam a onipotência materna na busca de controle da vida, sinalizando que não há gozo desinteressado e apenas por dedicação ao outro, o que pode ser visto nas cenas em que a Marie se diverte vendo o mundo pelos olhos da filha.

O parto de Marie parece convocar as análises freudianas sobre o reconhecimento da vagina na mulher. Embora não se possa ignorar o peso cultural e a importância do parto natural sobre as mulheres, ao que parece, Marie recorreu ao parto cesariano não pela indicação de risco à própria vida e à do bebê, mas a uma falta de força.

Essa falta de força teria uma analogia com o reconhecimento da diferença sexual, tão difícil para a menina?

Narcisicamente Marie visa proteger Sara de todos os males, como uma majestade, o bebê. Além disso, a assunção da onipotência de controle da vida da filha aparece quando Marie, mesmo no jogo de procurar e achar, de presença/ausência, se diverte vendo o mundo pelos olhos da filha, recusando-se a participar da brincadeira do lugar daquela que se permite ausentar: ela acompanha cada passo da filha à procura da mãe.

O pai de Marie, que tenta alertá-la do quanto poderia ser custoso impedir que a criança pudesse ter o mínimo de autonomia, logo é contestado por ela que, além de histericamente o destituir da função paterna apontando-lhe uma falta, lhe retribui com um cotoco, como símbolo fálico, o qual ela parece querer encarnar no sentido de completude.

Dessa forma, podemos também afirmar que Marie demonstra transitar nos modos de gozo, tal como descreve Lacan na tábua da sexuação o oscilar do gozo fálico e o gozo místico.

O excesso de proteção parece dificultar que a menina possa crescer separada dela. A filha é privada de dor, de tristeza, não consegue sequer ver a mãe chorar diante da perda do avô, processo que não a possibilita lidar com perdas cotidianas e necessárias.

É importante ressaltar que essa fora a única experiência que a aproximaria Sara da morte, que a convocaria a simbolizações da perda, mas que fora simplesmente retirada ao sequer visualizar. A resistência da filha, então, aparece na automutilação, como no ódio que advém e se materializa no tapa dado na mãe, ainda com sete anos de idade.

Marie esconde da filha sua faceta de mulher e pouco deixa aparecerem os indícios de sua vida sexual. Ao se deparar com os quinze anos de Sara, que começa a desabrochar enquanto mulher, se separando naturalmente do seio familiar para a identificação com o social e com os prazeres do corpo, brincando, inclusive, de transgredir regras sociais, Marie parece não se dar conta da sexualidade da filha que desperta e tenta controlar suas relações amorosas e seu corpo. Além de terminar o namoro, Marie provoca um aborto na filha, interrompendo suas próprias decisões, quase engolindo-a como uma boca de jacaré.

Para Lacan ([1969] 1986), o supereu materno, que pode ser guloso e feroz, coloca seu imperativo "goze!", de um gozo excessivo e desregulado, que aponta para o lado mortífero do desejo, apresentando seu desejo como angústia, pois enquanto há o desejo de se aproximar, a possibilidade de devorar o bebê ocasionaria o fim do desejo. Marie parece ter deixado vir à tona sua própria devastação, com incursões narcísicas catastróficas para a filha.

Zalcberg (2003) afirma a existência de uma relação narcísica abusiva da mãe em relação à menina, muitas vezes, constituindo-se como um abuso identificatório, o qual destitui a filha de sua própria identidade, justamente naquilo que deveria ajudar a filha a construí-la.

Para a autora, o amor da mãe por uma filha se funde ao amor que ela tem a si mesma, de modo que a mãe pode se sentir profundamente ameaçada por qualquer tentativa de libertação da filha, pois a separação a ameaça de não ter mais projetos narcísicos realizados por si mesma. A chancela social se enlaça nisso, uma vez que exige das mães um grande poder de controle e cuidado, a ponto de produzir situações desestruturantes para a filha e para mãe.

A cena final do episódio, em que Sara espanca a mãe, metaforiza a tentativa de encontrar uma imagem nítida que possa carregar o ódio à mãe, tentativa fracassada pela pixealização da imagem materna para Sara, que assim leva ao ato o ódio sem qualquer borda imaginária.

Com isso, podemos dizer que, diante da devastação, a filha encontra saídas precárias de fazer barragem à intromissão da mãe em sua vida, encontrando uma forma um pouco mais elaborada na fuga da cidade, que assim pode abrir caminhos outros fora do alcance da devastação materna.

Marie, por sua vez, ainda em desespero e afundada na relação mãe-filha, grita desesperadamente por Sara. Aquilo que ela tanto temia – a possibilidade de perder a filha – se fez presente na falta incontornável da ausência da filha, talvez no encontro com a castração e com o desamparo tão (re)visitado e temido por todo ser vivente.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Bárbara Araújo Sordi
E-mail: barbarasordi@hotmail.com

Elizabeth Samuel Levy
E-mail: bethslevy@gmail.com

Hevellyn Ciely da Silva Corrêa
E-mail: hcs.correa@yahoo.com.br

Recebido em: 30/04/2020
Aprovado em: 20/05/2020

 

 

SOBRE AS AUTORAS

Bárbara Araújo Sordi
Psicanalista.
Membro do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Mestre e doutoranda em psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Pós-graduada em psicologia hospitalar e da saúde pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicologia e Saúde (IEPS).
Professora adjunta da Universidade da Amazônia (UNAMA).
Coordenadora do Grupo "Relações de gênero, Feminismos e violências" e do Projeto "Sobreviver a Violência.
Fundadora da página "Feminismos e Psicologia".

Elizabeth Samuel Levy
Psicanalista.
Sócia fundadora do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Mestre em Psicologia Clínica e Social (UFPA).
Docente do Curso de Psicologia e Coordenadora da Clínica de Psicologia da Universidade da Amazônia (UNAMA) de 1999 a 2019.
Psicóloga Hospitalar como especialista pelo Conselho Regional de Psicologia 10.ª região.
Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental (UFPA).
Presidente do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA) filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Sócia da International Federation of Psychoanalytic Societies - IFPS.

Hevellyn Ciely da Silva Corrêa
Psicanalista.
Psicóloga pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
Mestre e doutora em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com estágio e doutorado sanduiche na Université Paris VII - Paris Diderot.
Professora adjunta da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Projeto de pesquisa (UFPA) Feminino e Maternidade: Entre o Ideal Impossível e a Experiência Contingente.
Coordenadora do Grupo de Estudos Psicanálise, Clínica e Cultura.

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