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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

EM PAUTA - MASSA E PODER

 

Entre a guerra social e a crise da política1

 

Between social war and crisis of politics

 

 

Joana Salém Vasconcelos*

Escola ALEF, em São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo é uma reflexão sobre o atual paradoxo da situação histórica brasileira, agudizado a partir de junho de 2013: por um lado, o estado de guerra social torna urgente um conjunto de transformações estruturais em direção à garantia dos direitos humanos; por outro, os instrumentos políticos disponibilizados pela democracia brasileira atravessam profunda crise de credibilidade. Este paradoxo contextualiza o surgimento de atores como os Black Blocs, que propõem uma tática agressiva de revolta, sem qualquer intencionalidade de disputa do poder. Com tal quebra de confiança em relação ao sistema, a estabilidade mínima necessária ao funcionamento de uma organização programática passa a ser vista com receio, dificultando o surgimento de novas representações políticas que vocalizem os sentimentos de indignação das ruas.

Palavras-chave: Junho de 2013, Guerra social, Crise da política, Black Blocs.


ABSTRACT

This article is a reflection on the paradox of the Brazilian historical situation, heightened in June 2013: on the one hand, the state of social war makes urgent a set of structural transformations towards ensuring human rights; and on the other, the instruments of policy provided by Brazilian democracy traverse deep credibility crisis. This paradox contextualizes the emergence of actors such as the Black blocs, which proposes an aggressive tactic of rebellion, without any intention of power disputes. With such a breach of trust in the system, the minimum stability needed to run a programmatic organization is seen with fear, hindering the emergence of new political representations that could vocalize the indignation feelings from the streets.

Keywords: June 2013, Social war, Crisis of politics, Black Blocs.


 

 

I. Introdução

Desde junho, incontáveis grupos sociais emergiram como novos atores na vida política do Brasil. A luta pela redução da tarifa do transporte transbordou, superando qualquer expectativa. Com isso, o Movimento Passe Livre adquiriu enorme legitimidade, mas sem intenção ou estrutura para absorver o turbilhão. Já os pequenos partidos da esquerda crítica ao PT, coautores dos primeiros protestos, aguardavam ansiosos pelo engrossamento de suas fileiras. Acabaram surpreendidos pela imprevisibilidade das massas. E, há que se dizer, relativamente chamuscados pelo reduzido prestígio das representações partidárias do nosso país.

Nesse processo contraditório e aberto, dois aspectos saltam à vista e constituem um paradoxo da conjuntura brasileira. Em primeiro lugar, o fato de nos encontrarmos em plena guerra social: cotidiana, subterrânea e largamente naturalizada. Em segundo lugar, a existência de uma profunda crise de credibilidade da política, das representações e dos conflitos institucionais no país. No fundo, os dois problemas se originam de uma mesma raiz: os limites da transição democrática no Brasil. Quando sobrepostos, emperram ou dificultam o surgimento de representações formalmente organizadas que vocalizem os sentimentos de indignação das ruas.

Assim, por um lado, a pluralidade dos novos atores sociais parece abrir um cenário histórico promissor para grandes transformações. Mas por outro, a quebra de confiança da sociedade em relação ao sistema político é tão intensa, que a estabilidade mínima necessária ao funcionamento de qualquer organização programática é encarada com suspeição. Não à toa a esquerda partidária, tão independente quanto diminuta, parece, desde sua imagem puramente formal, inspirar certos receios, ao mesmo tempo em que seu programa ressoa nas faixas dos protestos.

Nisso consiste o paradoxo: uma explosão social despertada por múltiplas frações de classe, nenhuma delas identificada com um projeto visível de disputa alternativa do poder. Este breve artigo busca refletir sobre esta questão e algumas das suas consequências imediatas.

 

II. A guerra social

Apesar da disseminação de discursos otimistas em relação ao país na última década, um breve retrato da violência brasileira nos mostra que estamos cada vez mais profundamente mergulhados em uma situação de guerra social.

Segundo o Mapa da Violência de 2013, pesquisa anual coordenada por Julio J. Waiselfisz, o número de assassinatos com arma de fogo no Brasil se multiplicou em 502% entre 1980 e 2010, salto muito superior ao crescimento demográfico de 60% do período (Waiselfisz, 2013a, p. 11). Recentemente, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou que em 2012 ocorreram mais de 50 mil assassinatos no país, o que nos colocaria na posição de 7ª nação mais violenta do mundo (FBSP, 2013, p. 16). Nossa guerra cotidiana tem sido mais mortal e mais silenciosa, por exemplo, que a guerra civil na Síria2.

No 4º país com maior desigualdade social do mundo, a violência não poderia se distribuir de maneira homogênea. É amplamente sabido que alguns grupos estão muito mais vulneráveis que outros à escalada de assassinatos, entre eles jovens pobres e negros. Em 2010, os jovens entre 15 e 29 anos representaram 58% das mortes por armas de fogo. Ao mesmo tempo, entre 2002 e 2010, houve aumento de 29% dos homicídios da população negra, enquanto os assassinatos da população branca caíram 25%. Com isso, em 2010, as vítimas negras alcançaram 71% do total de homicídios do país3. Entre os jovens negros, então, a taxa de homicídios alcançou a marca de 89,3 vítimas a cada 100 mil habitantes, mais que o dobro da registrada entre os jovens brancos (37,3) (Waiselfisz, 2012, p. 10).

Outro dado alarmante que caracteriza a guerra social brasileira é que um dos grandes homicidas é o próprio Estado. O Anuário da Segurança Pública de 2013 divulgou que, no Brasil, ao menos cinco pessoas morrem vítimas da violência policial por dia. O que faz da polícia brasileira uma corporação 4,6 vezes mais assassina que a polícia dos Estados Unidos e 14% mais assassina que a polícia do México. Não à toa, o Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil da FGV) registrou, no primeiro semestre de 2013, que somente 31% dos entrevistados confiavam em tal instituição (Cunha, Bueno, Oliveira, Sampaio, Ramos & Macedo, 2013, p. 18).

As polícias militares no país são, em larga medida, influenciadas por uma versão adaptada da doutrina de segurança nacional, o núcleo ideológico da ditadura militar. Como sabemos, as forças de segurança pública constituem um edifício institucional predominantemente herdado do período autoritário, não penetrado pelas concepções democráticas da Constituinte de 1988. Nesta incompleta transição, o inimigo-alvo das polícias foi deslocado do "subversivo" para o "marginal", em uma espécie de doutrina da guerra social. As polícias são igualmente preparadas para combater um "inimigo interno" perturbador da ordem, em um cenário de impunidade quase garantida.

Não é por acaso que a turma de cadetes da Academia Militar de Agulhas Negras, em 2011, elegeu o general Médici como patrono. As polícias, ainda consideradas como forças auxiliares do exército, recebem formação teórica e técnica para uma guerra interna, justificada pela ideia de que a proteção à população seria uma consequência automática do combate eficiente ao crime4. Eficiência, no caso da polícia militar, seria um sinônimo de encarceramento, prática cuja expansão atingiu um recorde na última década, culminando com uma população carcerária de 550 mil pessoas, sendo 40% delas presas sem julgamento5 (Soares, 2013, p. 4). Pela doutrina da guerra social, os potenciais suspeitos se convertem em tipos generalizáveis. E assim, a juventude negra e pobre passa a ser previamente criminalizada, sofrendo arbitrariedades incompatíveis com o estado de direito.

A pesquisa de Waiselfisz revelou também que o índice de efetiva investigação e elucidação de assassinatos no Brasil varia entre 5% e 8% dos inquéritos, número que alcança 65% nos Estados Unidos, 80% na França e 90% no Reino Unido (Waiselfisz, 2013b, p. 95). Assim, uma mistura explosiva é cozinhada a fogo baixo: eficiência para encarcerar, precariedade para investigar.

No caso dos crimes de Estado, a situação se agrava com a criação de procedimentos variados para ocultar homicídios. Um exemplo foi divulgado na pesquisa do IPEA "Mortes violentas não esclarecidas e impunidade no Rio de Janeiro", cujo autor descobriu uma disparidade importante dentro dos números oficiais. Entre 2006 e 2009, o estado fluminense divulgou a queda de 28,7% dos homicídios. Porém, ao mesmo tempo, as mortes violentas com "causas indeterminadas" teriam aumentado 120% (Cerqueira, 2011, p. 8).

Assim, o Rio de Janeiro passaria a representar 8% da população nacional e 27% das mortes violentas "indeterminadas" do país. A isso se soma a multiplicação dos registros de "autos de resistência" ou "resistência seguida de morte", casos em que a polícia justifica legalmente o assassinato de civis em decorrência da suposta resistência das vítimas. Como apontou Marcelo Freixo, entre 1997 e 2012, o estado do Rio de Janeiro registrou 12.560 "autos de resistência". Em estudo do sociólogo Ignácio Cano, verificou-se que 65% dos cadáveres assassinados pela polícia nos anos 1990 foram executados com tiros nas costas ou na cabeça (Freixo, 2013, p. 12). Não é preciso dizer que os homicídios cometidos pela polícia se concentram nas favelas e periferias.

Atados a uma instituição autoritária e arcaica, muitos policiais também são vítimas da guerra social, pois atuam em situações de alto risco e pressão, sem formação adequada, submetidos a salários insuficientes e a hierarquias rígidas. Como sintetizou Freixo:

A polícia, que tem a função constitucional de garantir a democracia, não convive com a democracia interna na corporação. Essa lógica produziu um modelo de Estado que funciona em intensa contradição. De um lado, impera a vontade expressa de ampliar a potência de seus braços militares e, de outro, predomina um desprezo crônico pelos direitos dos servidores da Segurança Pública. (Freixo, 2013, p. 12)

No mesmo sentido aponta Luiz Eduardo Soares, acrescentando que o encarceramento no país resulta de uma espécie de "produtivismo corporativo", que pressiona o soldado de rua a mostrar serviço dentro de uma estrutura institucional que o subordina:

A operacionalização depende da subserviência do funcionário que atua na ponta, ao qual se exige renúncia à dimensão profissional de seu ofício, à liberdade de pensar, diagnosticar, avaliar, interagir para conhecer, planejar, decidir, mobilizar recursos multissetoriais, antecipando-se aos problemas identificados como prioritários. [...] O que restará ao policial militar na ponta, na rua? O que caberá ao soldado? Varrer a rua com os olhos e a audição, classificando personagens e biotipos, gestos e linguagens corporais, figurinos e vocabulários, orientado pelo imperativo de funcionar, produzir, o que significa, para a PM, prender. (Soares, 2013, p. 5)

Com policiais pressionados, a guerra social se transforma em uma guerra de nervos, um círculo vicioso de vingança homicida. Segundo Bruno Manso, é como consequência deste processo, e não como causa, que o PCC se organizou em São Paulo6. Facções criminosas também se fortaleceram por dentro da polícia, como as milícias do Rio de Janeiro. Então, sobre este curto-circuito de alta voltagem eclodem as revoltas de junho de 2013.

 

III. A explosão de junho e os Black Blocs

Depois das ondas de protestos de junho de 2013, a guerra social brasileira pode ter atingido um ponto de virada. Desde então, alguns crimes cometidos pela polícia em seu "trabalho de rotina" provocaram reações de fúria popular e alcançaram ampla visibilidade pública: Amarildo na Rocinha (RJ), Severino em Campo Limpo, Douglas na Vila Medeiros, Jean no Parque Novo Mundo (SP). Quantos casos tão abomináveis como estes foram, são e serão ocultados?

Neste contexto, surgem os Black Blocs brasileiros. Identificados com a tática de origem europeia, de corte anarquista, marcam uma presença intempestiva nas ruas7. Anunciam-se como protetores dos manifestantes, destroem símbolos do capitalismo e do Estado, negam representações ou lideranças, enfrentam a polícia com paus, pedras e barricadas incendiadas – agora diante das câmeras da TV. A agressividade escandalizou o senso comum. A imprensa prontamente os demonizou. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, convocou, em novembro de 2013, os secretários estaduais da segurança pública de todo o país para delinear uma estratégia de contenção. As máscaras foram proibidas no Rio de Janeiro e desatou-se um processo de criminalização, com direito a propostas de leis antiterrorismo.

A esquerda ficou perplexa. Dividiu-se, no início, entre ataques raivosos e glorificações românticas. Os críticos os acusaram de afastarem as massas dos protestos, facilitarem a infiltração policial, legitimarem a criminalização dos movimentos sociais por meio de uma ação despolitizada e inconsequente. Já os defensores apontaram para a legitimidade social, a ousadia e a "eloquência" de sua ação.

No calor da hora, alguns os chamaram de "fascistas", outros os aplaudiram como "heróis". Ambos os adjetivos, contudo, ajudaram pouco a compreender a novidade. Contribuo aqui com uma hipótese explicativa do fenômeno Black Blocs. Tratar-se-ia de uma manifestação com traços neoludditas, resultante imediato do paradoxo brasileiro: uma expressão de ódio derivada da guerra social, porém sem mensagem propositiva, sem combate para além da própria ação imediata, completamente à deriva da crise da política8.

Diante da polêmica, tem sido de extrema importância a iniciativa dos pesquisadores Esther Solano (UNIFESP) e Rafael Alcadipani (FGV) de conversar diretamente com os indivíduos que aderiram à tática, com vistas a compreender melhor as funções da violência nas manifestações. Solano vem traçando um perfil dos jovens ativistas Black Blocs: possuem entre 17 e 25 anos, predominantemente estudantes trabalhadores, moradores das regiões periféricas, sendo alguns poucos da universidade pública. Acreditam que as formas pacíficas de manifestação são ineficazes e que sua revolta permanecerá invisível se for expressa por meios convencionais. Repudiam as instituições em geral, com ênfase no ódio à polícia. Encontram na violência um caminho da visibilidade e consideram a ação direta uma performance dramática (Solano, 2013 e Solano & Araújo, 2013).

Recentemente, Luiz Eduardo Soares apresentou sua visão sobre o tema em uma mensagem gravada para o governador Sérgio Cabral. Destaca-se um ponto de partida contundente: é preciso reconhecer a "legitimidade do ódio" destes jovens. Comentou:

Dormíamos, acordávamos, como se isso tudo fosse parte da paisagem. Naturalizávamos o horror, a barbárie, a selvageria, as iniquidades todas... E de repente as pessoas se manifestam reagindo a tudo isso e utilizando aqueles instrumentos, equipamentos, vocabulários que estão no seu repertório. Elas foram brutalizadas todo esse tempo. [...] Quebram os vidros, batem na mesa e gritam! [...] É a melhor forma de traduzir politicamente a indignação? Não. Eu sou contrário à violência, acho que essa não é a metodologia adequada para gerar condições de transformação. Ao contrário, isso leva ao isolamento, não contribui... Mas como é que eu posso deixar de reconhecer a legitimidade (não a legalidade), a legitimidade humana e social desta demanda por transformação? (Disponível em: http://www.luizeduardosoares.com)

O ódio dos grupos violentados pela guerra social em seu cotidiano esteve acumulado como numa panela de pressão. É da natureza das explosões, a desorganização. Contudo, a atual crise da democracia capitalista brasileira dificulta a superação deste "padrão explosivo" da luta popular. As formas mais estáveis e duradouras da política estão em descrédito, identificadas com cinismo e autoritarismo.

 

IV. A crise da política

Elenco aqui dois elementos que considero centrais na caracterização da crise da política brasileira. Em primeiro lugar, a vitória retumbante do fenômeno político que o filósofo Marcos Nobre (UNICAMP) recentemente cunhou como pemedebismo. Em segundo lugar, as forças econômicas que sustentam este fenômeno, isto é, os negócios capitalistas que controlam as práticas eleitorais e institucionais do país. Em outras palavras, tal crise tem sua expressão em uma "partidocracia", sustentada e protegida por uma radical mercantilização da política.

O conceito de pemedebismo, formulado por Nobre (2010, 2013a, 2013b), é capaz de expressar a construção histórica da essência conservadora da democracia brasileira. O pemedebismo seria a lógica que rege as disputas partidárias no Brasil, responsável pela "blindagem do sistema político contra a sociedade" (Nobre, 2013b, p. 5). Não corresponde exclusivamente ao PMDB, ainda que a legenda tenha criado e consolidado seu modus operandi. O pemedebismo desponta em 1979, quando a abertura ao pluripartidarismo impôs adaptações ao então MDB para evitar a perda do monopólio da oposição. Com tal finalidade, a legenda passou a orientar-se por um princípio norteador e uma forma organizativa.

O princípio seria tão simples quanto inegociável: que a transição democrática ocorresse sob comando estreito de cúpulas, bloqueando a interferência da participação popular direta nos novos moldes institucionais. Em outras palavras, a transição democrática deveria ser conservadora, forjando um novo autoritarismo. Todos os grupos que concordassem com tal princípio, poderiam então se somar ao PMDB. Disso decorreu a necessidade de uma forma organizativa flexível: um sistema de vetos recíprocos dentro da legenda, segundo o qual cada fração que obtivesse força suficiente para bloquear iniciativas indesejáveis de seus rivais o faria, negociando o apoio dos grupos minoritários. O sistema de vetos do PMDB foi a institucionalização da chantagem de bastidor como método prioritário.

Com a atuação do Centrão na Constituinte de 1988, a lógica pemedebista teria se externalizado do PMDB. A partir de então, os três poderes da república se converteram em território potencial da expansão do "condomínio pemedebista": um sistema de loteamentos via chantagem, que originou uma profusão de partidos fisiológicos, cujo único propósito seria preservar e ampliar seu próprio poder. A partir do impeachment de Fernando Collor, segundo Nobre (2013a), o pemedebismo foi reforçado pelo "imperativo da governabilidade". O partido que quisesse dirigir o Brasil teria, necessariamente, que dirigir o pemedebismo, o que implicava fazer concessões permanentes aos chefes do condomínio.

Os procedimentos típicos do pemedebismo se sofisticaram com o tempo e, em certo sentido, caracterizam o sistema brasileiro dentre outras "democracias blindadas". O primeiro e mais nítido deles é o governismo, que representa uma vantagem na operação do sistema de vetos. O segundo procedimento é a busca de supermaiorias parlamentares, a principal arma da chantagem. O terceiro seria evitar sempre que possível o debate público, buscando resolver todas as desavenças nos bastidores. Em quarto lugar, o rechaço de qualquer forma de participação direta da sociedade nas decisões políticas para além da sazonalidade eleitoral. Plebiscitos e referendos ameaçam romper com o esquema de poder pemedebista. Em quinto lugar, o bloqueio da entrada de novos membros no condomínio, postura que encontrou expressão nas recentes propostas de cláusula de barreira. Por meio de tais procedimentos, que se enraizaram nas instituições brasileiras com profundidade, a blindagem do sistema político se acirrou. Mas foi a eleição do PT com suas alianças fisiológicas que consolidou a vitória do pemedebismo contra a democracia.

Nos anos 1980 e 1990, o PT representou a encarnação do antipemedebismo: um partido programático, oxigenado pela participação popular, com propostas de radicalização social da democracia. A lógica pemedebista, porém, subordinou todos aqueles que pretenderam governar o país. Em 2002, o PT também se submeteu, ainda que o tenha feito com personalidade própria, registrando a combinação de ortodoxia econômica com relativa inclusão social pelo consumo. Em um sistema regido pelo pemedebismo, toda aliança cobra seu preço. Para o conjunto da sociedade, o preço da subordinação do PT ao pemedebismo foi o "fim da polarização" (Nobre, 2010).

Com o fim da polarização, o debate programático público se esvaziou. Os verdadeiros embates se deslocaram para os bastidores do governo, pouco visíveis aos cidadãos, para quem restam discursos tecnocráticos e moralismos. O sistema político aparenta ludibriar permanentemente os eleitores com demagogias e peças de marketing. O debate público esvaziado foi substituído por uma mise en scène de falsas propostas. A sensação genérica de que estamos sendo enganados pelos partidos é um traço marcante dos nossos tempos. A disputa eleitoral adquiriu um aspecto cênico e superficial, pois a essência conservadora dos programas econômicos e da cultura política pemedebista torna todo o sistema uma grande massa fisiológica, blindada contra as forças sociais.

O fim da polarização seria o principal propulsor da crise da política, uma vez que a ideia de partido passou a ser identificada imediatamente com o modus operandi do pemedebismo. Nesta chave, as revoltas de junho expressaram um ódio contra partidos que, em considerável proporção, é um rechaço a tal lógica.

O segundo traço crucial da crise da representatividade partidária, que aprofunda a blindagem do sistema, é um processo intenso de mercantilização da política. Segundo as prestações de contas declaradas ao TSE, nas eleições municipais de 2012, a campanha eleitoral de Fernando Haddad custou 80 milhões de reais, a de José Serra 67,5 milhões e a de Eduardo Paes 42,1 milhões (http://www.tse.jus.br/). E os valores apresentam tendência crescente: um estudo sobre financiamento eleitoral verificou que os custos das campanhas para presidência da República e câmara federal cresceram de R$ 8,27 milhões em 2002 para R$ 4,86 bilhões em 2010, uma ampliação de 487% (muito acima da inflação do período que alcançou 76%). A cada eleição, o valor das doações empresariais dobra ou mais do que dobra. No caso das eleições para deputado, nota-se uma forte relação entre gastos de campanhas e sucesso eleitoral (Backes & Santos, 2012, pp. 52 e 57). Uma das consequências mais visíveis da mercantilização da política é a falta de coesão das bancadas partidárias em relação às bancadas pluripartidárias de corte econômico: os ruralistas, os evangélicos, os banqueiros, as bancadas da bala e da bola etc.

A política se torna, assim, refém de uma disputa de gigantes empresariais, cada vez mais distante dos cidadãos. Segundo o censo de 2010, 71% da população brasileira economicamente ativa possuía renda de até dois salários mínimos mensais. Ou seja, para a vasta maioria dos brasileiros, os valores que financiam as campanhas eleitorais são abstrações financeiras inimagináveis. É compreensível, portanto, a distância que se interpõe entre a classe política, que mais parece uma "nobreza de Estado", e a cidadania no rés do chão. A crise generalizada da política nada mais é do que a expressão desta distância, que promove uma desconfiança profunda em relação a todas as formas de organização disponíveis no sistema democrático.

Tal crise da política, como se nota nos últimos anos, não é uma particularidade do Brasil: as multidões que encheram as ruas em protestos ao redor do mundo, nas nações árabes, na Europa e nos Estados Unidos, têm apresentado extrema dificuldade para construir alternativas de poder, justamente porque os mecanismos políticos disponíveis estão comprometidos com lógicas financeiras e autoritárias, ao mesmo tempo em que "novas formas" de organização ainda não foram forjadas (Gerbaudo, 2013).

Deflagra-se, então, o grande impasse: uma crise de alternativas que tende a se arrastar por tempo indeterminado, até que novos sujeitos políticos sejam construídos e reconhecidos por amplos setores sociais para liderar as transformações estruturais necessárias. Para Nobre (2013b), este novo sujeito político só poderá encontrar uma autêntica capacidade transformadora se estiver programaticamente localizado em um polo antipemedebista, isto é, propondo as reformas do sistema político que rompam com a blindagem conservadora da nossa democracia. Entretanto, como revela a trajetória do PT, não é possível combater o pemedebismo pelo lado de dentro do condomínio.

Ao mesmo tempo, está claro que a crise da política só poderia ser resolvida com armas políticas. Em outras palavras, a negação pura e simples da política é uma atitude que só faz reforçar o próprio pemedebismo, como se a única democracia possível fosse uma "ditadura de partidos da ordem", cada vez mais títeres de grandes empresas. É esta a limitação mais importante posta pelo paradoxo que vivemos.

 

V. Comentários finais

Como afirmou Luiz Eduardo Soares, o destino das atuais manifestações "provavelmente dependerá de sua capacidade de diferenciar a crítica política da crítica à política, e de não confundir a rejeição ao atual sistema político-eleitoral, e partidário, com uma recusa da própria democracia, em qualquer formato"9. Nesse sentido, as ações dos heterogêneos Black Blocs apresentam um nítido problema. Por mais legítimo que seja o ódio produzido pela guerra social, quando o ato da destruição se torna um fim em si mesmo, tão espontâneo quanto individual, abdica-se do tão necessário combate político. Na realidade, uma tática radical sem qualquer dimensão estratégica não faz mais que reforçar o pemedebismo como única ordem possível. Assim, os Black Blocs encarnam o círculo vicioso que aprofunda a crise da política, dando relativa legitimidade para a repressão do Estado e, em última instância, negando o próprio conflito democrático que se quer radicalizar.

Por fim, ainda que a disputa partidária brasileira esteja controlada pela lógica pemedebista, a forma partido possui uma importância histórica inegável na construção da democracia e nos processos de ruptura popular com estruturas autoritárias. Alguns setores da sociedade identificam a forma partido com uma figura inevitavelmente pemedebista, porém isso pressupõe que a própria forma partido nunca poderia ser reinventada, ou seja, admite-se uma percepção anti-histórica da política. Ao contrário, a reinvenção do sistema partidário é uma necessidade emergencial da democracia brasileira.

Além disso, o partido é a forma de organização coletiva cuja virtude é unificar todos os focos separados das lutas populares em um projeto de transformação estrutural e sistêmica. Enfim, como sintetizou Soares:

A juventude procura um caminho para chamar de seu. São dez anos de PT no poder: uma geração não o conheceu na oposição e não sabe o que é um grande partido de massas, não cooptado, comprometido com as causas populares e democráticas, entre elas e com destaque a reinvenção da representação política e a confiança na participação da sociedade como antídoto ao autoritarismo tecnocrático. Por mais que se façam críticas pertinentes à forma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de experiências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a energia, mas a organização a potencializa e canaliza. No momento em que emerge o novo protagonismo, com compreensível mas perigosa repulsa por tudo o que de longe soe a partido, deparamo-nos com o vácuo oceânico produzido pelo esvaziamento do PT como agente político independente. (Disponível em: http://www.luizeduardosoares.com/?p=1104)

Uma fresta para transformações foi aberta pelo impacto de junho, mas ainda se encontra emperrada pelo paradoxo da situação histórica brasileira. Neste contexto, ocupar tal vácuo político de maneira horizontal e programática é o gigantesco desafio das atuais gerações, que recai principalmente sobre os ombros da juventude. Só assim, a tão necessária polarização política poderá voltar, originando um novo ciclo na batalha incompleta da transição democrática.

 

Referências

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Endereço para correspondência
JOANA SALÉM VASCONCELOS
Rua Ministro Gastão Mesquita, 363, ap.3
05012-010 – São Paulo - SP
tel.: 11 98336-3232
E-mail: joana.salem@gmail.com

Recebido: 29/11/2013
Aceito: 06/12/2013

 

 

* Graduada em História na USP e Mestra em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP. Atualmente é professora de História no Ensino Médio da Escola ALEF, em São Paulo.
1 Artigo que dá continuidade à reflexão proposta no texto"Black Blocs: luddismo pós-industrial", publicado na página do Diário Liberdade: http://www.diarioliberdade.org/opiniom/opiniom-propia/42478-black-blocs,luddismo-p%C3%B3s-industrial.html.
2 A ONU anunciou, em setembro de 2013, que o conflito sírio alcançara 110 mil vítimas fatais em seus dois anos e meio de existência, desde março de 2011.
3 Quanto a isto, não se pode reunir uma série histórica tão longa, pois somente a partir de 1996 o Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM/MS) passou a fornecer dados sobre raça/cor da mortalidade. Vale notar: ainda que em números absolutos os assassinatos da população indígena sejam muito menores (75 em 2002 e 111 em 2010), o crescimento relativo alcançou 48% no mesmo período.
4 Sobre a formação das polícias no Brasil, escreveu Luiz Eduardo Soares: "A tortura e o assassinato de Amarildo, na UPP da Rocinha, não foram fruto da falta de preparo, mas do excesso de preparo para a brutalidade letal e o mais vil desrespeito aos direitos elementares e à dignidade humana. A tradição corporativa, autorizada por fatia da sociedade e pelas autoridades, impõe-se ante a ausência de uma educação minimamente comprometida com a legalidade e os valores republicanos" (2013, p. 4). Neste texto, o antropólogo descreve a PEC-51, sua proposta de "revolução democrática" da segurança pública. Sobre a relação entre exército e polícia militar, inclusive no que diz respeito às diretrizes de formação e ensino, ver artigo disponível em: http://www.coter.eb.mil.br/igpm/images/documentos/VINCULOS_EB-PM-CBM/VINCULOS_EB-PM-CBM-2.pdf
5 Entre 1990 e 2010, a taxa de presos a cada 100 mil habitantes cresceu 720% (Manso, 2012, p. 34).
6 Em sua tese, Manso explica como o PCC teria sido uma peça chave da redução dos homicídios na região metropolitana de São Paulo a partir de 2005 (Manso, 2012, pp. 37-39).
7 As origens da tática Black Bloc remontam ao fim dos anos 1970 na Alemanha, quando grupos anarquistas despontados dos protestos contra a energia nuclear empregaram métodos criativos de autodefesa contra a repressão policial. Preconizavam a tática da ação direta espontânea e da ocupação auto-organizada de espaços urbanos. Concebiam-se também como um movimento estético. Reinventados nos anos 1980, estabeleceram uma identificação visual com as roupas escuras e os rostos encapuzados, propagando a destruição física dos símbolos do capitalismo. Disseminaram-se com a onda antiglobalização nos anos 1990, denunciando o neoliberalismo nas cúpulas da OMC e do G-8 e, em alguns casos, alegando a função de proteger os manifestantes da polícia. No Brasil, até 2013, a tática Black Bloc não possuía expressão.
8 Neoludditas pois sua ação recorda os "destruidores de máquinas" dos séculos XVIII e XIX na Inglaterra. Neste período anterior à legislação trabalhista, centenas de operários ingleses inspirados em Ned Ludd atacaram fábricas para destruir os meios de produção em diversas cidades industriais. Segundo Hobsbawm, existiram dois tipos de movimentos ludditas. O primeiro não era hostil às máquinas enquanto tais, mas as destruíam para causar danos econômicos aos seus patrões e assim pressioná-los por melhorias nas condições de trabalho, o que era possível em um contexto de "pequeno" capitalismo concorrencial. O segundo tipo era sim hostil às máquinas, pois estas representavam o desemprego de muitos trabalhadores. Para Hobsbawm, "a negociação coletiva através do tumulto foi pelo menos tão eficiente como qualquer outro meio de exercer pressão sindical, e provavelmente mais eficiente do que qualquer outro meio disponível antes da era dos sindicatos nacionais" (2000, p. 30). Nesse sentido, apesar da semelhança no "método da destruição", os ludditas do passado apresentavam uma característica absolutamente ausente nos Black Blocs: propostas concretas de negociação.
9 Disponível em: http://www.luizeduardosoares.com