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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo jun. 2014

 

RESENHAS

 

Quando amamos

 

 

Katia Judith Goldberg Lohn*

Endereço para correspondência

 

 

Benito Jr., E. A Oferta de Afrodite. Campinas, SP: Komedi, 2004. 400 p.

 

O título A Oferta de Afrodite faz referência ao julgamento de Páris na mitologia grega. No casamento de Peleu e Tétis, a deusa Éris não fora convidada. Irritada, ela envia ao evento uma maçã de ouro, na qual se podia ler a inscrição "Para a mais bela". Três deusas, Hera, Atena e Afrodite, se apresentam, cada qual como sendo a destinatária da maçã. Zeus indica Páris, um mortal, para escolher qual das três seria efetivamente eleita. Cada uma das deusas oferece uma retribuição ao herói para o caso de ser a selecionada. Hera lhe daria os tronos da Ásia e da Europa, simbolizando bens materiais. Atena o tornaria sábio, dando-lhe o poder da razão. Afrodite lhe oferece o amor da mais bela mulher do mundo, Helena.

O autor, a partir dos elementos psíquicos deste mito, nos convida a acompanhar e a nos envolver na história particular de cada um dos seus personagens e nas oportunidades de amor e paixão que a vida lhes traz. Apresenta a complexidade e a ambiguidade dos sentimentos que os levam a fazer escolhas. A essência do livro é o porquê destas escolhas. As trajetórias destes personagens se entrecruzam num embate das diferentes formas de lidar com os afetos, com as possibilidades de amor e de uma vida plena, escolhendo se vincular ou roubar o sentido da própria existência. São diferentes percursos na busca da essência do que os faz se sentirem vivos ou, num conceito de Winnicott, a construção de um Self verdadeiro.

Muita arte permeia o texto. O cenário é a Toscana, centro do Renascimento, movimento artístico que adota uma nova atitude perante a vida. O artista recupera o passado clássico, valoriza o homem, a investigação e a mobilidade. O que era estático na superfície plana da tela passa a ter tridimensionalidade com a nova técnica de perspectiva. O contato com a arte atinge os personagens lançando-os numa nova perspectiva interna. Isto lhes permite um resgate do passado e um novo olhar para o momento atual, fundamental para que ampliem a capacidade de fazerem vínculos.

O interior de São Paulo também é visitado, associado à origem de alguns dos personagens, fazendo uma ponte da vida destes com o que os leva a trilhar um caminho à margem de Afrodite, escolhendo o que atende ao desejo do outro e se afastando de seus próprios desejos. Segundo Winnicott (1960/1983), a espontaneidade é decorrência do Self verdadeiro e está intimamente ligada ao sentimento de ter existência própria. Acompanhamos o desenvolvimento e as tentativas de resgate da espontaneidade dos personagens.

O personagem central é Zé Pedro, apaixonado pela arte, em especial pelo Renascimento. Professor de História da Arte, ele carrega uma história pessoal de rejeição e a sensação de que não é possível ter prazer com tantas obrigações que assume. Resolve estudar muito deixando outros projetos para outro momento de sua vida. Um copo vazio de vinho lhe dá a chance para conhecer Mariana. Em Florença sua identificação com Botticelli e Leonardo da Vinci pautam seu caminho, seu olhar e algumas decisões que toma.

Bollas (1992) denominou de "momento estético" um momento de comunicação subjetiva profunda com o objeto. Essa experiência seria registrada mais no ser do que na mente porque expressa uma experiência de comunicação primordial com o outro num nível pré-verbal. E é essa qualidade de experiência que acompanhamos na vida do personagem.

Zé Pedro vive em função das demandas externas, difíceis de serem continuamente sustentadas, e com grande prejuízo de sua capacidade de espontaneidade e de um contato mais profundo com sua instintividade e impulsividade. Um convite para um trabalho de consultoria de arte o faz sentir-se realmente importante, trazendo mudanças na sua vida. A atividade para a qual é contratado é ilícita. O desejo de correr riscos de falsificar a realidade o faz entrar em contato com o verdadeiro desejo de ser outro e é com a escória que consegue ser sincero. Num segundo momento, Zé Pedro precisa trilhar o caminho de reparar o mal causado a outros e, principalmente, a si próprio, através da construção de um verdadeiro Self capaz de dar sustentação à sua existência psíquica.

Sua futura namorada Mariana é apresentada com uma sensualidade profunda e sutil. É uma moça que se esforçou muito para sair da cidade pequena, estudar e ser reconhecida profissionalmente. Ela inicia o relacionamento com Zé Pedro a partir de uma lógica racionalizante e distante de seus impulsos para o desenvolvimento de um amor visceral.

Mamma Lucia é proprietária do apartamento onde Zé Pedro mora. É viúva e não tem filhos. Sente muita falta do companheiro falecido, mas isso não a impede de amar os amigos, os familiares, o vinho e celebrar a vida. Sabe que o amor está nas pequenas coisas do cotidiano, e que respeito e molho de tomate benfeito abrem o coração e nos sensibilizam como a arte. Ela representa a mãe suficientemente boa, dotada de capacidade de devoção, pré-condição para que um desenvolvimento saudável possa acontecer. Favorece que Mariana se vincule a Zé Pedro de maneira autêntica. A cozinha e seus sabores são um espaço potencial que esta mãe zelosa oferece ao casal.

João Filho, psiquiatra, é amigo de Zé Pedro. Ele não pôde usar o sobrenome do pai e cresceu esperando um abraço dele... Tem a marca do abandono e do desamparo gravada no seu psiquismo. Estuda muito, é controlador, e carrega dentro de si um velho sisudo que não o deixa ter prazer, mas que é necessário para fugir do aniquilamento psíquico. Conhece Silvia que é linda e aparentemente livre. Faz uma aposta potencial no amor ao encontrá-la e se surpreende, pois ela enxerga mais dele do que ele mesmo. Apaixona-se por ela, mas não consegue entendê-la. Sente-se refém da ausência do outro. "Uma coisa é suscetível de vínculo, sobretudo quando tem qualquer coisa de si mesmo naquilo que o prende, mesmo porque aquilo que prende impõe seu império por meio de alguma coisa de si." (Bruno, 2012, p. 35)

Silvia, bióloga molecular, não conhece o mundo da delicadeza e do bem-querer. Possui uma liberdade erótica desconhecida por João Filho. Quer um afeto confortável e sem angústias, e o amor não é confortável. É impulsiva e decide rapidamente por caminhos onde muitas vezes se machuca. Não quer a vida econômica restrita pelo salário da faculdade, quer ter acesso a melhores centros de conhecimento fora do país e precisa de retaguarda financeira para este fim. Aceita a oferta de Hera: um pouco de poder material e muita tristeza. Ela anseia ser e espera que no encontro com o outro consiga conquistar a experiência da sua singularidade.

Clotilde é repleta de carências. Tem muita inveja de Mariana. Vive em função do desejo do pai. Casa-se com Walter e forma um casal pautado num acordo de interesses mútuos. Ocupa o lugar da mediocridade, da não-vida, e tenta vampirizar a quem admira. Segundo Mosé, "Jamais possuímos completamente o objeto de nosso desejo, isto produz insatisfação e sofrimento. Somente o sentir pode ser pleno e este se dá no estado estético" (2011, p. 152). Desenvolve a arte de não viver os próprios sentimentos. Tem por companhia a televisão. Congela a situação ambiental de fracasso que viveu e espera que algo mude. O pai/sogro que domina a todos paga um alto preço por sua onipotência.

No fial do livro, há um grande momento, e nele estão presentes os três casais, em um jantar inesquecível com um amplo debate sobre o que é o amor e o que nos ata e o que quebra o vínculo do amor que foi por nós dado. Conforme Giordano Bruno, "Aquele que forma um vínculo não prende o objeto do vínculo facilmente, assim como o general não conquista facilmente uma fortaleza muito bem armada, a menos que a passagem lhe seja aberta de dentro por algum traidor..." (2012, p. 41).

Assim como no Banquete de Platão (380 a.C.), também conhecido como Simpósio, cada um dos participantes discute sua visão sobre a natureza e as qualidades do amor. Sócrates, antes de falar do bom e do bem do amor, trata de defini-lo. O amor é amor de algo, e este algo só pode ser desejado pela falta. Desejamos o que não temos, sem esta carência não se deseja. O amor não é absoluto, pois é amor de alguma coisa.

Vemos no texto a relação que se estabelece entre quem ama e aquele que é amado. O amor é vínculo e é possível com o desenvolvimento de um verdadeiro Self.

Com impressionante honestidade e rigor com os afetos, o autor faz um caminho que causa impacto, prazer e dor. O autor possui habilidade ímpar em comunicar poeticamente a ambivalência e a potência dos vínculos. Escreve pintando sentidos, com cores, sombras, camadas e novas perspectivas assim como os olhares (aflitos) dos pintores do Renascimento italiano que nos acompanham nesse percurso de reclusão e liberdade.

Há uma delicadeza na observação e descrição de nuances de afetos que nos leva de situações hilariantes ao sofrimento e a um erotismo inimaginável. Por que nos colocamos em situações onde o conhecer só serve para nos trair?... E a quem traímos? O autor trata dos vínculos que nos constroem, da natureza humana, e da busca de completude. Podemos pensar no capítulo final do livro como um tributo psicanalítico à discussão filosófica do Banquete de Platão.

Quando o leitor distraído perceber, já estará tomando um dos vinhos da Toscana e nem mesmo saberá o porquê. Este livro é para ser desfrutado com a delicadeza da mousse de chocolate belga e a potência silvestre do cupuaçu degustada como sobremesa no último jantar do romance.

O autor é filho de Afrodite.

 

Referências

Bollas, C. (1992). A Sombra do objeto; psicanálise do conhecido não pensado. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Bruno, G. (2012). Os vínculos – Coleção Bienal. São Paulo: Hedra.

Mosé, V. (2011). O homem que sabe: do homo sapiens à crise da razão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1983). Teoria do relacionamento paterno – infantil. In D. W. Winnicott. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1960).

 

 

Endereço para correspondência
KATIA JUDITH GOLDBERG LOHN
Rua Ferreira de Araujo, 221, conj. 27
05428-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3026-9188
E-mail: Kátia@lohn.com.br

Recebido em: 09/08/2013
Aceito em: 06/12/2013

 

 

* Psicóloga pela USP e psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae.