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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020
EM PAUTA | O VALOR DA VIDA
The nebulous domain: dos fantasmas à psicanálise, eis a questão!1
The nebulous domain: from ghosts to psychoanalysis, that is the question!
Anne Lise di Moisè Sandoval Silveira Scappaticci
Membro efetivo e didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPSP). Doutora em saúde mental UNIFESP-EPM, psicóloga clínica pela Università degli Studi La Sapienza di Roma, psicanalista infantil Tavistock e psicoterapeuta familiar - Scuola Romana di Psicoterapia Familiare. E-mail: annelisescappaticci@yahoo.it
RESUMO
O autor busca estabelecer correlações entre a psicanálise e diferentes domínios, entre os quais filosofia, poesia, física antiga, física quântica, como modelo para pensar a psicanálise e o objeto psicanalítico. A física quântica, assim como a experiência emocional, por sua natureza de incerteza é algo móvel, desconhecido e, portanto, não é passível de conhecimento total e completo.
Palavras-chave: Psicanálise. Física. Poesia. Experiência emocional.
SUMMARY
The author seeks to establish correlations between psychoanalysis and different domains, such as philosophy, poetry, ancient physics, quantum physics, as a model for thinking psychoanalysis and the psychoanalytic object. Quantum physics, like emotional experience, by its nature of uncertainty, is mobile, unknown, and therefore not subject to full and complete knowledge.
keywords: Psychoanalysis. Physics. Poetry. Emotional experience.
A philosopher of Science might respond with
a question: "Is it really possible to investigate
the existence of an object of investigation?
Or does the very process of investigation created it?
Could a psyche be a model, a tool to elucidate
our theories of human feeling?".
(Harris & Redway-Harris, 2013, p. 149)
Depois de ter escrito "Das nuvens e dos relógios" (2017), continuo a dedicar minha escrita sobre perene investigação: afinal, do que nos ocupamos? Qual é o nosso objeto?
Neste trabalho, como enunciado no subtítulo, "Eis a questão", refaço-me a Shakespeare, Hamlet, e ao livro Transformações, de Wilfred Bion, algo que nos remete ao princípio da complexidade e à situação do analista: conseguir tolerar contradições sem precisar se adiantar. Assim Bion, várias vezes em sua escrita, reitera o dilema humano, a decisão que nos aguarda a cada momento: fugir ou modificar a realidade? Evadir a própria mente ou sentir para poder pensar? Cito, a propósito, o famoso monólogo de Hamlet, Shakespeare, ato III, cena 1, expressão desse dilema:
Ser ou não ser, essa é que é a questão:
Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer, dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes à carne - é a conclusão
Que devemos buscar. Morrer - dormir;
Dormir, talvez sonhar - eis o problema...
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invólucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
Quem suportara os golpes do destino,
Os erros do opressor, o escárnio alheio,
A ingratidão no amor, a lei tardia,
O orgulho dos que mandam, o desprezo
Que a paciência atura dos indignos,
Quando podia procurar repouso
Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte -
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou - não nos turbasse a mente
E nos fizesse arcar co'o mal que temos
Em vez de voar para esse, que ignoramos?
Assim nossa consciência se acovarda,
E o instinto que inspira as decisões
Desmaia no indeciso pensamento,
E as empresas supremas e oportunas
Desviam-se do fio da corrente
E não são mais ação. Silêncio agora!
A bela Ofélia! Ninfa, em tuas preces
Recorda os meus pecados.2
No parágrafo final do texto "Cesura" (1975/1981), Bion reinventa a citação de Freud em Inibições sintomas e angústia:3 "Há mais continuidade entre os quanta autonomamente apropriada e as ondas de pensamento consciente e sentimento do que a impressionante cesura da transferência e contratransferência nos faria acreditar".
Parece-me que esse autor teve uma antevisão correlacionando intuitivamente o que estudamos sobre a física quântica com o psiquismo humano, aquilo que, pela ordem de sua natureza incerta, móvel e desconhecida, jamais poderá ser conhecido. Salienta assim a disponibilidade mental do analista a se expor aos pensamentos selvagens através de conjecturas imaginativas e conjecturas racionais. As metáforas vão surgindo, autopoiese, reinvenção, já que nunca é possível ter conhecimento completo e direto do psíquico, de nós mesmos. As transformações em o são o fulcro da existência. "No ventre da mãe o homem conhece o universo e o esquece ao nascer" (Buber, citado por Bion em "Cesura", 1975/1981).
A crença de que a realidade é algo que é conhecido, ou poderia ser conhecida, é equivocada porque a realidade não é algo que se presta, por si, a ser conhecida... Realidade tem que ser "sendo"... (Bion, 1965/1973, p. 162)
Estamos às voltas com a verdade, questões relativas ao cerne, questionamentos profundos lançados pelos cientistas, pelos filósofos, cantados pelos poetas: a psicanálise em nós mesmos, uma pré-concepção.
Nas palavras de Demócrito de Abdera, reconhecemos a profundidade inerente a todo mergulho de verdade. Diante da necessidade humana de atribuir sentido às coisas, a cada passo que o investigador é poeta, no aprofundar de seu próprio envolvimento humano, o individual e o universal coincidem. Assim "toda a terra está aberta ao sábio, porque a pátria de uma alma virtuosa é o Universo inteiro" (Demócrito, 450 a. C.).
O embrião da física foi lançado há 450 anos antes de Cristo por Leucipo e Demócrito, apoiando-se numa ideia sistêmica que nos lança diante de um espaço vazio, infinito e ilimitado, no qual correm incontáveis átomos, a substância mais simples, são como grãos.
O esplendido poema de Lucrecio "A natureza das coisas" -De rerum natura - foi o único texto sobre o atomismo antigo que se salvou do desastre humano e chegou até nós inteiro. Nele percebemos a ligação entre a ciência (física), a natureza e a filosofia feita em poema. Introduzo os comentários de Carlo Rovelli ao poema e um pequeno trecho do mesmo:
A beleza do poema está no sentimento de admiração que permeia a grande visão atomista. O sentido de profunda unidade das coisas que nasce do conhecimento de que somos feitos da mesma substância que as estrelas e o mar. (Rovelli, 2015 p. 37 - grifos da autora)
Nascemos todos da semente celeste, todos têm aquele mesmo pai, do qual a nossa mãe terra recebe gotas límpidas de chuva, e depois fervilhante produz o luminoso grão, e as árvores frondosas, e a raça humana, e todas as gerações de animais selvagens, oferecendo o alimento com que todos nutrem seus corpos para ter uma vida boa e gerar prole.
(Lucrecio, I a. C./1994, p. 990)
Essa é uma ideia central que pretendo desenvolver neste artigo. Procuro articular a experiência emocional na clínica psicanalítica com o sentido de que somos feitos com a mesma matéria daquilo que observamos. Ou seja, de que é impossível separar onde inicia e onde termina o mundo físico material e o imaterial. Assim o observador e o observado, o conhecedor e o objeto do conhecimento estão autoengendrados. Afinal, a divisão entre o mundo material e o imaterial seria, para os físicos, uma má interpretação da física quântica.
A mecânica quântica introduz um indeterminismo elementar no centro do mundo. O futuro é genuinamente imprevisível. Quanto mais se olha o mundo em detalhe, menos ele é constante. Galileu, por outro lado, sob o vértice da mecânica clássica, observou que a Terra se move em relação ao Sol sem que percebamos diretamente no nosso dia a dia. A velocidade, afirmou, não é uma propriedade de um objeto isolado, é uma propriedade de um objeto em relação a outro objeto. Assim, essa observação parece ampliar a relatividade de maneira radical: todas as características de um objeto só existem em relação a outro objeto. Faço novamente um paralelo entre a física, a física clássica e o funcionamento mental; a experiência emocional pode ser observada e ganha seu sentido na relação.
No capítulo de 10 de janeiro de 1959 de Cogitations sobre o método científico, Bion interroga-se a respeito de como podemos mensurar o que as pessoas sentem, algo não abordável pelos sentidos. Cita Braithwaite e outros filósofos da ciência para expandir a ideia de que uma teoria científica precisa estar apoiada numa hipótese inicial seguida por explorações empíricas que são testadas e assim passíveis de generalização. Como faziam os antigos físicos e o fazem até os dias de hoje, toda a boa intuição é necessariamente seguida pela demonstração do problema, o que torna o método do autor de domínio público (públicaação). Essa publicação confere autoridade ao autor, é busca de autoria, "autoridade", ou seja, publicar-se é algo necessário para o crescimento: uma pré-concepção edípica (Chuster)4 na procura vetorial por sentido de "quem somos nós". Essa busca aparece nas autobiografias cuja escrita é vivida dentro da experiência emocional, como acontece nas que Bion escreveu: a cada concepção de uma ideia nova, reedita-se o próprio nascimento mental. Evocação da própria origem, do Original... A originalidade reconduz aos dotes naturais de uma pessoa desde sempre ou ao conjunto pelo qual a pessoa é reconhecida como ela mesma e não como outra, sua singularidade, Ser.
Das leituras de Bion, notamos a ênfase no vértice empírico de observação da experiência originária do pensamento clínico, no sentido de não adotar a priori teorias psicanalíticas como um "viés". O mesmo indaga-se:
O que fazer "quando a incapacidade ou o colapso para formação de símbolos é a incapacidade de transformar uma união real de elementos reais em uma abstração, ou seja, de um sistema dedutivo científico ou cálculo?". (Bion, 1992, p. 18)
A sua observação dirige-se à investigação de como se dá a transição de um conhecimento privado que se torna público, ou seja, aos objetos materiais do senso comum. Em outro capítulo de Cogitations, intitulado "Nota sobre ritual e magia", Bion afirma que:
De fato, geralmente postulamos, sem reconhecer que isso é um postulado, que existe algo como uma psique, passível de estudo científico - estudo que só tem compromisso com a verdade. Como psicanalistas, temos consciência de que reivindicar isso de nossa investigação seria de fato precipitado, exceto como hipótese a ser investigada. (Bion, 1992/2000, p. 306)
Bion reifica a investigação no hiato entre o domínio da psique ou daquilo que desconhecemos, entre ritual e psicanálise. Esse território permanece nebuloso e assim deve permanecer.
A personalidade, sua realidade psíquica, é regida por algo não abordável pelos sentidos, conjecturas não sensoriais do que somos em nossa essência. Como captamos esse outro universo? A observação da experiência emocional pode levar o analista a intuir a realidade psíquica subjacente a padrões sensorialmente apreensíveis... Da mesma maneira, a Matéria Escura não pôde ser detectada por qualquer meio de mensuração sensorial disponível, mas através da dedução de que sua existência é decisiva para o funcionamento do universo; foi necessário primeiro imaginá-la. Suportar as perguntas sem respostas para que algo evolua do infinito e informe - uma memória involuntária - pressupõe que o analista tolere as turbulências do contato com a experiência emocional, as dores do crescimento. O cientista Marcelo Gleiser (2016) afirma que a cosmologia está passando por uma fase estranha ao deparar-se com o fato de que apenas cinco por cento do que captamos com nossos instrumentos do universo é conhecido. Estamos cercados pela escuridão. Portanto a ciência como a psicanálise envolve a paixão pelo desconhecido, é estimulada pelo não saber, pelo estado de procura.
Em seu livro Transformações (1965/1973), Bion propõe o funcionamento mental entre as áreas do que pode ser conhecido, representado e aprendido com a experiência e o âmbito fora do conhecimento, daquilo que só pode ser sendo vivido, o plano infinito. O trânsito entre conhecer e ser, de tal modo que em determinados momentos se coloca em relevo uma dimensão, em outros momentos, percorrendo esse hiato entre o conhecimento e a existência, entre conjunções sensoriais e não sensoriais, é o que nos cabe. Escrevi a esse respeito, de como operamos como analistas na oscilação entre esses dois domínios, em outro trabalho, intitulado "Das nuvens e dos relógios".
Karl Popper, em About Clouds and Cloks, uma conferência no ano de 1965 em homenagem a Arthur Holly Compton, pretendeu oferecer uma metáfora na tentativa de solucionar o eterno dilema a respeito da apreensão do conhecimento pelo par aleatório ou/e determinismo, ou ainda, na terminologia kantiana, da razão pura/ razão prática... Penso que a analogia de Popper corresponda ao problema enfrentado pelo psicanalista e sirva para nós como ilustração/modelo de como trabalhamos: ora com o que conseguimos representar, simbolizar e conhecer; ora com uma expressão possível daquilo que é inacessível, irrepresentável... (Scappaticci, 2017, p. 164)
E acrescento retornando às questões da física e encontrando semelhanças:
os quantuns de luz não podem ser considerados como partículas, com uma trajetória definida pela mecânica clássica, sendo impossível determinar a trajetória dos quanta individuais de luz sem perturbar essencialmente o fenômeno em processo de investigação. Em decorrência deste fato, teve-se que abandonar a explicação causal completa dos fenômenos luminosos e se aceitar um comportamento estatístico, explicitado por leis probabilísticas (Ara, 2006, p. 3).
Os elétrons livres que constituem uma "nuvem atômica" num movimento desordenado nos remetem a nossa vida mental sempre presente, em seus primórdios... Turbulência! (Scappaticci, 2017, p. 173)
Essas dimensões, o e k, perenemente entrelaçadas não esgotam a infinitude - jamais alcançaremos o horizonte. Afinal, não é possível, mesmo com muitos anos de análise, sabedoria e experiência de vida, adquirir um conhecimento total e completo de nossa própria personalidade. O analista, assim como o cientista e o poeta, deve conviver com o que permanece incognoscível e fazer disso seu "mote" de espírito: a vivência fugaz de que existimos em dimensões que estamos fadados a não saber, seja do ponto de vista material, quem diria do imaterial...
De modo intuitivo, o poeta resgata a natureza afastando-se de explicações finalistas, deterministas, de revelação e de tradição. Talvez aqui possamos estabelecer uma diferença entre fé no método psicanalítico, o que mantém o analista com suas referências não obstante tantas incertezas, e crença. A referência ao atomismo antigo é transparente em Newton, que tenta combiná-la com a matemática de Pitágoras e Platão. Se é o número, quantum, que governa as formas e as ideias, a matemática é a linguagem mais adequada para descrever o mundo...
Olhando por outro vértice, essas ideias estão descritas no "Infinito", de Giacomo Leopardi, que por sua vez falava "sobre o seu sistema" na sua obra Zimbaldone, como se seus pensamentos formassem uma espécie de jogo de figuras, no qual a natureza, a razão e a felicidade se entrelaçavam. O "belo aéreo" (Homero) sobrevoo da natureza humana através da poesia - nas palavras de Pietro Citati - carrega uma visão filosófica, matemática e, ao mesmo tempo, indefinida, nascida da imaginação.
Citando Citati:
Leopardi com sobre-humana tensão abole da sua mente o pensamento das estrelas, o fluxo do movimento, cada ideia de eternidade e de tempo. Para colher uma gota pura de infinitude - a coisa mais remota, extrema, rarefeita e essencial, que o homem pode forjar - deve imaginá-lo vazio, imóvel, silencioso. Tem algo tremendamente impactante nesta tentativa, como se alguém tentasse imaginar Deus fora da palavra, do tempo, da eternidade, do número: um ponto fixo e invisível no céu. (2013, p. 177- tradução e grifos da autora)
Remete-me ao famoso pensamento de Pascal (1670):
Não sei quem me pôs no mundo, nem mesmo o que sou. Estou numa ignorância terrível de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, os meus sentidos, nem o que é a minha alma, e até esta parte de mim que pensa o que agora digo, refletindo sobre tudo e sobre si mesma, não se conhece melhor do que o resto. Vejo-me encerrado nestes imensos e intimidantes espaços do universo e sinto-me ligado a um recanto da vasta extensão, sem saber por que fui colocado aqui e não em outra parte qualquer, nem porque o pouco tempo que me é dado para viver me foi conferido neste período de preferência a outro período de toda a eternidade que me precedeu e de toda a que me segue... Só vejo o infinito em toda a parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura apenas um instante e não volta
("Pensamentos", I)
Questões espaciais em psicanálise parecem reunir a mecânica de Newton, ressurgir o mundo de Demócrito matematizado, a herança de Pitágoras, a tradição alexandrina, numa visão de mundo cantado pelo poeta Leopardi:
Sempre cara me foi esta colina
Erma, e esta sebe, que de tanta parte
Do último horizonte, o olhar exclui.
Mas sentado a mirar, intermináveis
Espaços além dela, e sobre-humanos
Silêncios, e uma calma profundíssima
Eu crio em pensamentos, onde por pouco
Não treme o coração. E como o vento
Ouço fremir entre essas folhas, eu
O infinito silêncio àquela voz
Vou comparando, e vêm-me a eternidade
E as mortas estações, e esta, presente
E viva, e o seu ruído. Em meio a essa
Imensidão meu pensamento imerge
E é doce o naufragar-me nesse mar.
("L'Infinito", Giacomo Leopardi, 1819)
Rudi Vermote, em seu artigo "Era Bion um kleiniano?", reflete acerca da natureza humana mais profunda e faz relações entre o pensamento de Freud, Melanie Klein, Bion e Matte Blanco. Seu pensamento me faz lembrar as ideias de Demócrito de Abdera quanto à descrição sobre a natureza das coisas. Vermote ilumina em seu texto o modelo de funcionamento mental multidimensional de Bion focalizando o conceito de infinito/finito expandido por Matte Blanco para discernir os três modos diferentes de funcionamento psíquico. Ele os coloca como níveis topográficos, do mais superficial ao mais profundo: Raciocínio, transformação em k e zona de o.
A terceira área de transformações em "o" (zona de o) nos faz pensar na física atômica antiga e na física quântica. É a zona infinita, vazio indiferenciado, fragmentação que está fora do pensamento verbal:
Nesta zona estão padrões a-sensoriais vazios, para usar uma expressão de Santo Agostinho: "formas in potentio". Eles são mudos, no escuro por assim dizer, e são ativados na zona indiferenciada infinita que compartilhamos com os outros. É um nível sem distinção entre interno/externo, self/outro. Esta ativação se expressa por emoções que têm infinitas qualidades: ausência de tempo, deslocamento, generalização (Matte Blanco, 1988). Essas emoções podem ser ainda elaboradas como fantasias, sentimentos-pensamentos por sua elaboração final na segunda zona T(K). As emoções agem de modo muito rápido e são intuitivamente comunicadas no campo indiferenciado. (Vermote, 2016, p. 3)
Essa descrição de um nível mais profundo de uma matriz indiferenciada pode ser descrita em termos físicos nas palavras de Carlo Rovelli
O que é uma onda, que caminha sobre a água sem transportar consigo nada além da própria história? Uma onda não é um objeto, no sentido de que não é formada por matéria que perdura. E também os átomos de nosso corpo fluem para fora de nós.
Nós, como ondas e como todos os objetos, somos um fluxo de eventos, somos processos que por breve tempo são monótonos... (Rovelli, 2017, p. 133)5
Antes de prosseguir, gostaria de salientar através da proposta de Vermote (em um artigo anterior do ano de 2011 a respeito das controvérsias do late Bion) "um modelo de via dupla da mudança psíquica", em que a natureza das transformações em conhecimento (K) e Ser (o) não se iguala, apesar de as transformações serem intimamente entrelaçadas e necessárias.
Assim faz-se necessário o esforço de uma descrição clínica que dê ênfase a "psicopatologia do ser" ou, ainda, aos ciclos de transformações para visualizar as nuances específicas de apreensão, níveis entre beta, alfa e suas evoluções, entre imagens e palavras.
Outro ponto que desejo ressaltar é que no pensamento de Bion, assim como para Matte Blanco, viver a emoção é uma experiência infinita e absolutamente necessária para o pensamento. Reporto-me à emoção e a poder vivenciá-la na sessão de análise, abrindo espaço mental para a frustração de deixar-se "ocupar" pela mesma; sem que logo de início sejamos impelidos a "resolvê-la". Viver a emoção como único indício que nos levaria a uma realização, ao pensamento ou, ainda, a algum contato com o objeto psicanalítico.
No fim de Transformações, Bion cita a crítica que o Bispo de Berkeley fez da matemática de Isaac Newton, tratando com ironia o termo empregado pelo cientista, os "espectros de quantidades desaparecidas", os quais aparecem como fragmentos de ideias. Posteriormente, em Atenção e interpretação, complementa: "Suas preocupações religiosas e místicas têm sido descartadas como aberrações, quando teriam que ser consideradas a matriz de onde evoluíram suas formulações matemáticas" (Bion, 1970, p. 75 - grifo da autora).
Transitando do desconhecido ao incognoscível, "o", dos limites humanos da investigação científica à poesia, sempre permanecem fragmentos que correm como átomos na penumbra do infra ao ultra sensorial e vice-versa. A área perturbada implicada é sempre bem maior que qualquer teoria possível ou mais próxima que faça sentido à nossa vã captação.
Ao escrever essas coisas, detenho-me a outra frase, para mim sempre enigmática, de Transformações: "Uma coisa não pode existir desacompanhada na mente: nem uma coisa pode existir a menos que simultaneamente exista uma correspondente não coisa" (Bion, 1965/1973, p. 117).
Em seu discurso endereçado a um matemático infiel, o Bispo de Berkeley ataca com ironia as características "ilógicas" da apresentação de Newton a respeito do cálculo diferencial.
Fluxons, como andaimes de uma construção... E o que são estes fluxons? São as velocidades de diferenciais evanescentes. E o que são estes mesmos diferenciais evanescentes? Não são quantidades finitas, nem quantidades infinitamente pequenas, ainda não são nada. Será que não poderíamos denominá-los, os espectros de quantidades desaparecidas? (Bion, 1965/1973, p. 171)
O termo "os espectros de quantidades desaparecidas" evoca a ideia da matriz, algo que somente o gênio (místico) consegue permanecer em contato, uma mente sem representações, sem preconceitos, vazia. Mas esse contato gera no grupo turbulência, defesas primordiais de ataque e fuga. Esse é um tipo de medo atávico que não é controlado pela mente grupal e que, portanto, não adquire significado - são registros "desgovernados", não integrados pela mente simbólica.
A mente tomada pelo terror tende a não se arriscar às dores do crescimento, refugiando-se nos pressupostos básicos de dependência, dependência a um mestre ou a uma teoria/fato ou razão/cultura de grupo vigente. Newton é visto como louco pelo grupo, sua ideia parece explodir o continente, o gênio hesita... É necessário afastar-se por um período. Foi preciso suportar tanto sofrimento e tempo para que ele apresentasse a dedução de sua intuição. A eficácia de suas equações calou as críticas. No entanto sua descoberta não resolveu suas dúvidas. Sempre algo permanece em aberto, aguardando que mais alguém enfrente as dores das turbulências relativas ao crescimento. Newton tentou remediar a situação do espaço vazio propondo um obscuro "sensorium de Deus", uma ideia religiosa. Einstein partirá dessa descoberta de Newton e de outros cientistas para dar um passo adiante e poder expressar um pensamento em busca de um pensador - a teoria da relatividade. Uma sucessão de espectros ou de fantasmas extintos, de previsões que parecem delírios de um louco ou de uma realidade, que também parece feita da mesma matéria de nossos sonhos? Aqui me parece que o gênio/místico possui uma capacidade única para tecer conjecturas imaginativas. Especulações, a mente passeia; expansão!
"Uma coisa pode existir se houver a seu lado uma não coisa" (Astrofísica, Bion e Kant): esta ideia reúne algo que sempre esteve agrupado na Antiguidade - a matemática e a filosofia -, entretanto é de difícil apreensão. Do "ser e/ou não ser" à la Hamlet, do "infinito dito vazio e sem forma" de Milton, emerge uma descrição do espaço mental que nos aflige. Não temos ideia de um espaço vazio, não faz parte da nossa experiência. Alguém já viu um copo realmente vazio? Demócrito afirmou intuitivamente que esse espaço vazio era algo entre "o ser e o não ser", a ideia entre a coisa e a não coisa, que sempre incomodou os pensadores. Einstein não era um grande matemático, mas tinha uma capacidade única de imaginar, de "ver" como o mundo podia ser um espaço com quatro dimensões que se encurva; a "cósmica medusa" em que estamos imersos e que pode se comprimir e expandir. Aqui as asas da imaginação ganham força pela intuição. Mas, diante do nascimento de uma nova ideia, o gênio hesita: é sempre necessário indagar-se.
Cena de uma sessão
Abro a porta e me deparo com uma mulher "farejando" a porta ao lado do meu consultório. Uma mulher bonita com blusa de onça-pintada, botas altas de caçador necessárias para adentrar na mata e... rabo de cavalo.
Em passos firmes, ela adentra em meu consultório e senta-se escorregando na poltrona à minha frente. Coloca as mãos no queixo nitidamente emocionada e... desanda a falar sem parar! Os assuntos "correm" soltos a respeito de uma doença grave, da qual conseguiu sobreviver a três anos ficando com um "fio desencapado na cabeça", como ela mesma diz, o que a preocupa muito, sobre maternidade, casamento, profissão. Intensidade...
Desnorteio diante de tanta coisa impactante e penso: ai, ai, eta coisa difícil de não ficar presa - como uma presa numa caçada mesmo. Dou-me conta de que sou "despertada" pelo assunto da sua primeira sessão com a sua ex-analista. Ela tinha sido anunciada na portaria, mas quando chega ao conjunto se depara com tudo aberto e, ao adentrar na sala da analista, vê uma mulher de cócoras arrumando alguma coisa atrás do divã. Ela então pede desculpas dizendo que não sabia que estavam fazendo faxina no consultório. A pessoa se levanta irritada dizendo ser a analista, e a partir de então se inicia uma relação já de partida na contramão... Um encontro entre caça e caçador? Ataque/fuga...
Penso nas descrições clínicas cuja beleza reside no fato de o analista deixar que certos aspectos permaneçam em suspenso. Alguma coisa inquieta que não encontra acesso pelo conhecimento simbólico. Aferrada na experiência, a forma não cabe no conteúdo. Uma camada básica indiferenciada da transferência em seu sentido mais alargado? Pude "ver" ou intuir, sem me dar conta, uma sensualidade selvagem indiferenciada em minha paciente? Penso que tais relatos de experiências com nossos pacientes nos fazem pensar que estamos inevitavelmente expostos a padrões de conjunções não sensoriais entre os elementos de uma personalidade e que é amiúde difícil de descrevê-los sem nos sentirmos loucos.
Em minha viagem espacial nessa vacuidade, vislumbro a personalidade de uma pessoa cuja essência é não sensorial, inapre-ensível, algo sempre presente, mas que ainda não se realizou. Trata-se de um tributo essencial do ser, único, qualidade intrínseca, ontologia. Portanto o acesso seria pela disponibilidade do analista de prestar atenção às "conjecturas imaginativas", ou à imaginação especulativa, ou aos pensamentos dispersos despertados na clínica. Uma disposição interna para captar as conjunções constantes provenientes de uma área infinita: o mínimo irredutível que o analista precisa transmitir ao paciente (Bion, 1970). Como o poeta Shakespeare ao descrever Ofélia...
Seu discurso é nada/ No entanto o uso disforme dele move/ Os ouvintes a tentarem entendê-la; eles tentam adivinhar/ e ajuntam as palavras adequadas a seus próprios pensamentos/ o que, como suas piscadas e meneios, e gestos lhes expressam/ com efeito, fariam alguém pensar que pudesse haver pensamento. Embora nada certo, ainda que muito incomodo. (Hamlet, ato IV, cena V)
Referências
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Correspondência:
ANNE LISE DI MOISÈ SANDOVAL SILVEIRA SCAPPATICCI
Al. dos Maracatins, 426/102, Indianópolis
04089-000 - São Paulo/SP
Tel.: 11992974799
Recebido 18.10.2020
Aceito 27.10.2020
1 Trabalho premiado no IX Encontro das Seções Regionais, "Tempo, Espaço, Intimidade", São José dos Campos, 16 e 17 de agosto de 2019.
2 A última frase do monólogo é o título do segundo volume da autobiografia de Bion: All my sims remembered.
3 A famosa citação nos remete a Shakespeare: "Há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia".
4 A pré-concepção edípica da psicanálise é um pensamento de Arnaldo Chuster (comunicações pessoais).
5 Um objeto que se repete num padrão por certo tempo. O Objeto para o mundo físico não existe isoladamente, mas em relação a outro objeto. A física amplia esta relatividade de modo radical. É apenas nas relações que os fatos da natureza se configuram.