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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo jan./jun. 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

Odisseia, mar, mulher, transporte e transferências

 

Odyssey, sea, woman, transportation and transferences

 

 

Daniel Delouya

Analista com funções didáticas na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) / danieldelouya@gmail.com

 

 


RESUMO

A Odisseia de Homero oferece um rico enredo para refletir sobre a travessia de nossa vida e nossas análises. Ela permite mapear a topografia, a geografia e a demografia de nossa alma e suas origens, e a história que nela se desenrola, isto é, o seu tempo peculiar. O artigo põe em relevo alguns desses elementos para dar destaque, no trabalho analítico, à atenção ao sexual, àquilo que promove as transferências. Navegação que deve recusar à visada de destinos e pontos de chegada definitivos - inimigos mortais da análise e da vida.

Palavras-chave: centrífugo, centrípeto, mar, saudades, transferência


ABSTRACT

Homer's Odyssey offers a rich plot enabling us to reflect the crossing of our life and our analysis. It allows us to map the topography, geography and demography of our soul and its origins, and the history that unfolds in it, that is, its peculiar time. The article highlights some of these elements to accentuate, in the analytical work, the attention to the sexual, to what promotes transferences. Navigation that must refuse to aim at definitive destinations and arrival points - these turn out to be dreadful enemies of analysis and life.

Keywords: centrifugal, centripetal, sea, longings, transference


 

 

em teu corpo
marinheiro o
mar inteiro.

(Vanessa Corrêa, 2020)

Muitos descrevem algumas de suas jornadas ou percursos vários de suas vidas como odisseias, tendo travado, ou não, contato com a obra de Homero. E talvez com muita razão!

Vendo-se ora como protagonistas, ora como sujeitos às circunstâncias, mas nem sempre tendo clareza em qual desses lados se situam na trajetória que os envolve, o mar sempre surge, para os seres humanos, como anseio de navegar, de aventurar-se e alcançar ilhas desconhecidas. Prazeres, conhecimento e conquistas são promessas que o mar abriga, ao lado de sua imprevisibilidade, de suas traiçoeiras ondas e correntezas, dos perigos e das ameaças fatais à vida causados pelas forças incontroláveis e desmedidas oscilações ambientais, assim como pelos seres que o habitam e dos quais podemos nos tornar presas fáceis em suas cadeias alimentares. Não obstante, o mar encerra em seu bojo um ímã, uma força de atração central e capital, de retorno à casa, à paz, ao repouso, ao gozo de quietude, a um tempo do nirvana, de uma economia homeostática: Thalassa (Ferenczi, 1924/1990), sentimentos oceânicos (Freud, 1930/ 2010c), sem bordas e de expansão ilimitada.1

A heterogeneidade e a combinatória de moções revoltas, centrífugas, do mar e outras, centrípetas, de uma volta e de um retorno a uma unicidade de quietude homeostática, tornam o mar não apenas fonte de geração da vida, com sua multiplicidade e variedade de espécies vivas, mas também anseio cósmico de retorno e recomeço: saudades! Saudades não são apenas a nostalgia, mas sobretudo o anseio do reencontro e do recomeço, a renovação da aventura em inéditas experiências. Não surpreende que, ao migrarem para a terra e dependerem da atmosfera que a circunda, os seres vivos que ora a habitam precisassem interiorizar o mar e seu meio aquoso como cerne daquilo que possibilita a vida. E, com ele, as contraditórias moções que o constituem.

É isso que se pode inferir, nessa tentativa nossa de reconstrução fantasiada, a partir do que move o mundo humano e sua relação com o mar. A passagem à terra teria sido um corte abrupto, melhor dizendo, nas palavras de Freud, uma cesura, um corte e uma continuidade, contendo, sob novas condições, a fonte marinha e aquosa que garante a vida.2 O corte, porém, foi decisivo, incontorná-vel, cujo desdobramento desembocou na criação da vida humana. Um verdadeiro nascimento. A lógica impede a compreensão de um limite ao mar, de uma cunha separadora no que é contínuo e ilimitado. Mas é justamente a lei, no sentido de uma interdição que evoca a ideia de um corte ante algo que pretende a expansão irrestrita.

No mito freudiano, tal como foi designado, foi o assassinato do pai da horda, perverso e com poderes ilimitados sobre a vida de suas mulheres e de seus filhos, que permitiu a instauração da lei, do advento da palavra e do reconhecimento do outro, e o estabelecimento, em função desse reconhecimento, do laço social. É esse corte, da castração, que reordenou a posteriori, também, os cortes anteriores na evolução, como a emergência do mar, o nascimento e os sucessivos cortes aos quais somos submetidos em nosso crescimento, dotando-os de um sentido humano.

Nas terras às margens do mar, o homem emerge, abrigando o mar e suas veleidades sob a marca de um corte, refletindo o mar em sua memória. A "memória é o poder de efetividade contínua de experiências" primordiais, de outrora - assim a define Freud (1895/1995, p. 14), fundando com ela a psicanálise como prática e teoria. E que o diga Homero, mapeando os reinos humanos nas ilhas gregas, suas personagens, seus diálogos afetivos, em ambiente festivo, de calorosa hospitalidade, com fartos e caprichados banquetes, em meio a apresentações musicais e esportivas. E tudo isso sob o fundo de seus conflitos e disputas; os últimos centrados na posse da mulher: Helena, Penélope e tantas outras nas obras de Homero.

Com o corte instaurado no mundo humano, como se houvesse um desdobramento e uma repartição na ordenação entre as moções contraditórias do mar, centrífugas e centrípetas, em que as primeiras predominam no homem e as últimas, na mulher/mãe, o anseio do mar com sua promessa de gozo de quietude tornou-se o recinto da mãe. Mar, mãe. Mãe, mar. Maternidade e feminilidade sempre anelados (Freud, 1933/2010a).

O homem primitivo, segundo Freud, se valeu de sua força física para garantir o objeto de sua satisfação libidinal. Aprisionou as fêmeas, subjugando e suprimindo as vias centrífugas de satisfação de sua libido, e, assim, elas tiveram que encontrar substituições libidinais seja entre elas, seja junto às suas crias. Subjugar e suprimir não significa abolir, mas ao contrário! Também, no homem, as moções centrípetas, passivas, não deixaram de existir e tiveram um papel fundamental na constituição da vida humana. As satisfações junto às suas mães e seus prolongamentos homossexuais diante do rechaço que sofreram do pai primevo possibilitaram sua união em torno de plano de revolta e assassinato do pai, aquele que tinha o pleno poder sobre a vida de todos, mulheres e filhos.

Na consumação desse ato houve um pacto de partilhar os bens que eram outrora prerrogativas do pai, inclusive o próprio corpo desse pai e aquilo que representava, e o estabelecimento, em benefício de todos, de suas leis que ele impunha a todos, exceto a si mesmo: a proibição do incesto e do assassinato. Porém, com essa divisão entre os homens cria-se um desafio tremendo que continua assombrando esse ato de surgimento da humanidade: o luto! Abdicar da proteção de um pai e de seu poder absoluto, todo-poderoso, se deve a um hiato, um corte inapagável entre as moções originárias do mar que habitam os corpos. Nem a moção centrífuga, que pretende ser contínua e total em se apoderar e devorar, tampouco a moção contrária, centrípeta, de gozo de quietude e da paz absoluta, seriam alcançáveis em suas máximas. Diante desse lançamento ao desconhecido, a alma surgiria, então, valendo-se das orientações das poderosas moções do mar, apenas como aspiração, como desejo, como anseio, embarcando e encadeando-se desde o corpo e suas palavras, estas que, mesmo quando seduzem e se vertem em poesia, se dirigem para A coisa, sem jamais poder alcançá-la. A coisa, como pleno gozo (no mar de origem), teria de ser, então, perdida para sempre. Em vez d'A coisa, os corpos teriam oportunidades felizes de aproximá-la por meio de encontros furtivos, festivos, contingentes, de se tocar e se roçar nela, espécies de pequenos a (Lacan, seminário 11, 1987/1973), tal como Freud descreve uma de suas versões - a festividade dos primitivos, quando libertos das prendas dos tabus e das leis, e provando os corpos: a sexualidade!

Mas voltemos ao luto. Ante o desconhecido, o luto encontra-se no limite do tolerável; o homem reivindica, então, o retorno do pai primevo e sua proteção, convocando e criando seres divinos (depois de passar pelos estágios totêmicos). Para tanto, impõem-se renúncias mediante essa nova versão do pai, simbolizadas pelas oferendas e os sacrifícios [ver os desfiladeiros desde os totens até as oferendas aos deuses em Freud (1913/2012)]. Os deuses são munidos do controle das forças da natureza e da imortalidade, demarcando, com isso, a volta da proteção do pai de outrora. Imortais - portanto não castrados -, são capazes de colmatar o fosso do desconhecido e garantir um destino, melhor dizendo, ditam os destinos dos seres humanos em vida e depois dela. O destino seria então o golpe mais ardiloso aplicado sobre a grande aquisição do humano que ocorreu com o corte efetuado em meio às moções marítimas da alma. Em vez de se deixar navegar rumo ao desconhecido pelos impulsos centrífugos - escandidos (efeito das moções centrípetas) em espera, contenção, inflexão e reflexão -, empreendendo transportes, transferências e objetalizações (Green, 1993) contínuas, almeja-se uma estação final, com roteiro previamente desenhado e arquitetado pelos deuses/pais. Em vez da palavra que cria vida, poesia, em seu impulsionar mágico sobre o fundo de seu luto, já que arrancada d'A coisa ao nascer, mantendo a tensão entre o dizer e o dito e se deslizando na cadeia significante... ela acaba se submetendo à sentença, à citação, à morte em vida! Mas os deuses gregos, tais como retratados por Homero, parecem se situar em reinos e filiações muito semelhantes àquelas conhecidas por todos nós, com os conflitos e batalhas dignos de ocupar as páginas dos melhores romances de nossa literatura contemporânea, com a diferença ou o acréscimo de serem imortais, e de se valerem de poderes de controle e manipulação das forças da natureza e dos corpos humanos, modificando-os, entre outras morfoses. E mais, eles dialogam, auxiliam, atropelam e determinam a vida dos seres humanos, mas também se apaixonam e copulam com eles, travando histórias com estes.

Nesse sentido, e com a função principal de atender a indagação central dos seres humanos acerca de seus destinos, tendo direitos de apelações para revertê-los ou atenuá-los, os deuses gregos, espécies híbridas de humano e sobre-humano, acabam sendo feitos mais à imagem do homem do que este à imagem deles (contrastando a Bíblia). A marca da castração desponta no reino dos deuses, mas rápida ou facilmente se reverte, e acaba sendo recusada e/ou rejeitada.3

Todo esse cenário, com sua organização e sua história, se deve aos impasses, escolhos e emboscadas do trabalho do luto, postos desde o assassinato do pai primevo até a cultura que conhecemos, como Freud delineou em seus livros desde Totem e tabu até Moisés e o monoteísmo, de 1913 até 1938. O reino governado por Zeus, seus filhos e a cadeia das gerações a que deu início, e suas relações com os gregos e sua cultura, são todos contemplados e se tornam inteligíveis, em suas razões de origens, na investigação psicanalítica feita por Freud nas duas obras supracitadas, entre outras (destacamos aqui Psicologia das massas e análise do eu, O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização).

Não é aqui o lugar de estender o arrazoado que justificaria as posições proeminentes que passariam a ocupar as deusas mães e as mulheres, e também entre os gregos, nos cantos de Homero. Freud resgata o seu surgimento desde o assassinato do pai primitivo tanto no reino dos deuses como na história humana. Em Homero, apesar do contexto patriarcal, as mulheres e mães não ficam nem muito à margem e tampouco nos bastidores do meio familiar, social e político, como se esperaria da visão clássica das esposas - impostas à reserva, submissão e opressão - nas recentes sociedades tradicionais do Ocidente e das Américas, e como foram retratadas nas novelas de poucas décadas atrás. Sim, elas se encarregam dos filhos, da cozinha, da tecelagem, do tear e das vestimentas da família, em acréscimo ao cuidado dos afazeres relativos ao culto dos mortos e ancestrais da família. Entretanto, sua influência nas ocupações sociais e políticas dos homens é muitas vezes decisiva. Basta lembrar de Helena, Arete e Penélope, respectivas esposas dos reis Menelaus, Alcino e Odisseu: a inteligência, a perspicácia e a rapidez em perceber e decidir são notáveis nelas, superando seus esposos. E outra, Clytaemnestra, esposa de Agamenon, que o traiu e o assassinou. No encontro entre Agamenon e Odisseu na casa dos mortos, o primeiro, apesar de honrar, confiar e respeitar a incólume Penélope, aconselha ao segundo ser atento e cauteloso no reencontro com a esposa; de reaproximá-la secreta e vagarosamente. Não se pode nunca confiar nas mulheres, afirma o primeiro, depois de Odisseu lamentar-se das intrigas que elas geram. E mesmo Odisseu seguindo essas orientações, Penélope não se entrega facilmente; ela não se lança aos braços do marido, e só se convence depois de ele fornecer muitas provas que confirmam sua identidade.

Parece-me importante ressaltar a relação desses traços com a feminilidade desenhada por Homero, desconsiderando nossa sensibilidade a tais atribuições, assim como a parte que cabe nelas à vulnerabilidade dos homens às mães e às mulheres, erguendo, em sua defesa, um singular laço homossexual de confiabilidade entre eles. O vivaz empenho e a coragem dessas mulheres não teriam relação com sua libido feminina? A espera de Penélope pelo marido convoca, acertadamente, o trabalho de luto. O tecer e o destecer, ao qual se dedica como pretexto de preparar uma mortalha ao seu pai antes de se decidir por um dos vários e muitos insolentes pretendentes que a pressionam, se associa, na sutil descrição de Homero, a seu desejo de resgate de sua libido junto à eventual atração por um outro. Ela duvida, e muito, do retorno de Odisseu, seja porque suspeita que ele se entregou a uma outra mulher, seja porque acredita que já estaria morto. Enquanto espera, sua cumplicidade com as jovens escravas é inteira, e só aparentemente fecha seus olhos à entrega delas aos leitos dos pretendentes, com a implícita ideia de que elas a acobertam, entregando-se primeiro para suspender a sua vez. A decisão de condená-las à morte, com o reconhecimento de Odisseu, só denuncia a identificação com elas, pondo fim, em Penélope, às suas acordadas tentações, durante o seu luto, de sua libido.

A libido é masculina, afirma Freud, e sua força nas mulheres de Homero é notável enquanto feminina. Entre tantas figuras femininas no enredo homérico, ele dedica um capítulo inteiro à filha de Alcino, Nausicaa, que salva Odisseu, e logo expressa, explicitamente - essa "danadinha" -, a todos o seu desejo pelo belo homem. A intriga, o melindre, o ciúme, a astúcia e a cumplicidade, com seus nuances femininos, ao lado de outras características conhecidas, elogiáveis, são ressaltados por Homero. Em acréscimo, ele evoca os poderes das mães de convocar as Erínias, deusas a serviço de suas fúrias (tradução da palavra "Erínia"), muitas vezes contra os próprios filhos homens (algo que Odisseu teme).

A especificidade da elaboração da castração e do luto na mulher, e o lugar, diferenciado, que ocupam nela suas crias (menino ou menina) são responsáveis pelas nuances desses atributos na mulher, onde desembocam os trajetos de sua libido. Percursos articulados à predominância da moção centrípeta do mar de origem, cuja contraface, na terra, comparece em Freud sob a expressão do território obscuro da mulher.4

Na belíssima peça de Ibsen, A dama do mar, escrita em 1888, Ellida, a personagem principal, moderna, tem a consciência vaga de que os seus dilemas com o casamento se devem à sua convicção de que pertence ao mar. As focas, segundo ela, são pessoas que decidiram voltar ao mar, e num evento festivo retornam, tiram suas peles, por algumas horas, para dançar e se divertir junto aos habitantes da costa. Uma paixão por uma mulher/foca obrigou o homem a esconder a pele dela, para que ela permanecesse com ele, e, de fato, se amavam e tiveram uma vida feliz, com filhos. Um dia ela consegue achar a chave do esconderijo de sua pele de foca, abandona a casa e retorna ao mar. Essa peculiar força de atração, centrípeta, ao mar, que inquieta Ellida, poderia ser essa dimensão oculta, obscura, que torna a mulher misteriosa nos embates de sua libido, na castração e no luto. É Homero, porém, que personifica as forças móveis humanas oriundas do mar - com ênfase nas versões femininas que delas resultam - em seus recônditos mais retesados e obscuros: me refiro a regiões e territórios, oriundos do mar, em grande parte isentos ou quase obtusa e totalmente insubmissos ao regime das leis humanas reeditadas no reino de Zeus - leis, como assinalamos, tingidas pelas marcas da castração com seus eixos de diferenciação sexual (sedução), entre gerações (cena primária) e entre os sexos (castração). Há todo um gradiente desses "reinos e governos", onde dominam regimes em parte derivados, mas na maior parte apartados e independentes do Olympus e o universo de Zeus, reconhecendo-o em parte, porém muitas vezes o ignorando ou mesmo zombando de seus ditames.

Recorro a alguns exemplos, começando pelas duas belas deusas, Circe e Calypso. Muito femininas, ambas têm o poder de feitiço e de sedução implacável sobre os marinheiros, poder ao qual Odisseu se entregou. A primeira é uma bruxa, capaz de metamorfosear homens em animais, e é filha do pai Sol e da mãe Oceano. A segunda, ninfa e semideusa, habitante da gruta, é a mulher que esconde e se esconde, e que tem sido deixada à margem, punida pelo reino de Olympus, por ter auxiliado o seu pai, o titã Atlas, em sua rebeldia contra Zeus. Sua mãe é desconhecida, provavelmente um ser humano. Circe é mais afinada com o regime do Olympus e orienta Odisseu a visitar a terra de Hades, a ilha dos mortos, e consultar Tirésias para seguir viagem. Calypso é ressentida com o mesmo regime, mas acaba cedendo aos mandos de Hermes, mensageiro de Zeus, liberando Odisseu por quem se apaixonou e a quem ofereceu a imortalidade - que ele recusou. Apesar dessa obediência, maior em Circe e menor em Calypso, elas se mantêm apartadas das leis do Olympus e se destacam pela sua erotização sedutora e ardente dos homens; anseios femininos ativos que se vinculam de forma múltipla, em sua origem, com o mar, com suas moções ativas e passivas entrelaçadas. Os cachos ondulados de seus cabelos e o tear, ocupação constante de Calypso, estão em continuidade com a figuração sexual das ondas e correntezas marítimas (cf. Freud, A feminilidade, 1933/2010a). Sendo ninfa e cercada por ninfas ajudantes, Calypso nos remete a esse universo de seres femininas que eram alvo de luxúria dos sátiros, seres de corpos híbridos, entre deuses e humanos. Nesse cenário, tudo exala sexo e sexualidade, e mar, sob o eclipse da lei. Se prosseguirmos ainda mais na seara dos confrontos de Odisseu com a força do mar feminino, o que diríamos do canto das sereias? Erotização e sedução devoradora, lascívia vindo ao encontro do anseio de retorno incontornável à mãe/mulher/mar, veiculado pelos cantos.5Aqui, aparentemente, sem nenhuma consideração da lei. Nenhum reconhecimento singular dos homens, ao contrário do que ocorre com as duas deusas citadas. E mais ainda, se avançarmos para as monstras do mar, Scylla e Charybdis - a primeira, com seis cabeças tentaculares, que se lançam à captura de marinheiros, devorando-os; a segunda, que insufla ondas gigantes e, em seguida, aspira correntezas volumosas, numa sequência de movimentos, centrífugos e centrípetos, atávicos do mar. Não são seres falantes e, como indica seu caráter de monstruosidade, não são capazes de reconhecer o outro como tal, expressando somente uma voracidade pura e irada, desinvestida de toda sedução ou erotismo, ao contrário das sereias. Figuração fiel do id, do isso, freudiano.

No eixo masculino, há quem encontre paralelos das monstras com a raça dos gigantes Cyclopes, portadores de um só olho, mas essa aparência engana. Polyphemus, o mais poderoso deles, pertence aos divinos, filho de uma ninfa (cujo pai era rei das ondas salinas do mar) e de Posseidon. Polyphemus, portanto, sabe identificar o reino de Zeus e seu regime, mas ele o rejeita, no sentido freudiano do termo, ele zomba das leis às quais seu pai, que o ama, se submete. Para ele, Odisseu é ninguém - como esse último sabiamente se "identifica" perante os Cyclopes -, é apagado, ele e seus homens, de sua singularidade, servindo apenas como presa para o canibalismo dos Cyclopes. Embora sem cultura alguma de qualquer espécie, essa raça monocular (Bion, 1991) é entregue aos gozos orais, da comida, bebida e fumo. Todos remetendo aos gozos entorpecentes e fusionais à mãe/mar.

Homero desenha a alma humana com sua rica e variada plasticidade, com perspicácia que a psicanálise só pode invejar. Freud e Ferenczi o contemplam, sobretudo com seu projeto conjunto de 1911, que resultou na obra Totem e tabu (1913/2012) do primeiro, e mais tarde na obra Thalassa (1924/1990), do segundo. É verdade que Freud mira mais o "topo", do legado paterno, e Ferenczi mergulha nas origens maternas e femininas do mar, porém ambos trafegam de uma ponta a outra, seguindo Homero. Seja como for, as profundezas só adquirem existência, sentido e inteligibilidade a posteriori, a partir do topo. Cronologia, evolução e desenvolvimento lineares são observações de superfície e não correspondem ao tempo e à geografia da alma. Homero expõe esse tempo e a topografia da alma de seu herói pela travessia dele num certo contexto histórico dos gregos. Há quem destaque a contenção, a espera, a paciência, de Odisseu. O que lhe confere a grandeza de tolerar as frustrações e resistir, passando pelas provas da sedução, manejando-as, ficando antenado às suas emboscadas de aprisionamento, que poderiam, por vezes, vir a lhe custar a vida. A paciência, o tempo para pensar, permite-lhe, em outros momentos, não ceder às provocações que levam outros a reagir e revidar, adiando essas ações para um tempo propício; respeitando entretempos, os alertas sobre a astúcia de seus rivais e também quanto aos mandos rígidos ditados pelos deuses. Porém, seria apressado destacar a proeza das qualidades de contenção, espera e adiamento por elas promoverem a manutenção e a preservação da vida em prol da volta para casa. Sim, a casa é o lugar de onde começamos (Winnicott), é figuração do corpo da mulher, de seu útero, da mãe, do mar - tudo que pauta o anseio de voltar, da moção centrípeta sobre a qual nos detivemos acima, e que rege as funções de contenção e de espera. Mas na casa, como no corpo e na mãe e seu mar, há uma inquietação, Unheimliche (Freud, 1919/2010b), uma incitação estrangeira, de busca alhures, de navegação rumo ao desconhecido: uma moção centrífuga. Odisseu é chamado, impelido a aventurar-se na guerra de Troia. A odisseia é sua consequência - como a nossa, de qualquer criança, adolescente e adulto e de qualquer busca de análise - de partir, transportar-se, transferir-se continuamente. Sim, o anseio de voltar à casa acena, acende e permite se conter, esperar e se cuidar. Por vezes, muitas vezes, recorre-se, diante do desconhecido e sua angústia, às guias das palavras dos pais, dos deuses, para que ditem nosso destino, determinem os pontos de chegada. Estes estão prestes, então, a se tornarem os presságios da morte, das buscas das estações finais. O destino é o golpe de misericórdia aplicado ao sexual ferido, mal acolhido ou ignorado em seus inícios pelo entorno humano adulto, comprometendo sua escansão e, portanto, a capacidade de espera. Sim, foi a casa que, nesses casos, não "educou" de forma apropriada, pelo amor, as pulsões, deixando a pulsão de morte solta, livre para ascender ao poder. A busca de destino é o mal maior da odisseia de nosso tempo contemporâneo e de nossas análises.

Se privilegiamos destacar esse movimento incessante, de transporte e transferência, tendo como condição de possibilidade o corte e o trabalho de luto que lhe é inerente, conforme expusemos, é preciso ainda acentuar e explicitar melhor o que ele implica. Sem isso, Homero e tampouco Freud, com suas odisseias e o trabalho da análise, ficam compreensíveis. Refiro-me, novamente, ao tempo na topografia da alma. Este não é linear, mas cada progressão retoma, regride às formas e tempos de origem do mar, para avançar adiante, reiterando-o. Essa é a odisseia, nos sofrimentos e nos gozos que ela encerra. Ao aventurar-se nessa travessia, rumo à Troia e de volta para a casa, Ithaca, Odisseu se defronta com os habitantes da alma, do mar que a compõe, em seus vários estágios de evolução. Além das cabanas, reinos e palácios na terra e no céu - de um lado, os de Eumaeus, Menelaus e Alcino etc. e, de outro, os dos deuses, desde Calypso e Circe até os de Olympus, retrocede-se desde a casa dos mortos, para a terra do sol, com suas proibições implacáveis, mortais, seguido para a caverna de Polyphemus até as moradas e espécies do mar: as ninfas, as sereias e, as mais disformes e temerosas, Scylla e Charybdis. O tempo que avança retrocede às profundezas, atravessando, topográfica e demograficamente, espécies de tempos outros. Nesse movimento, engendra-se uma anfimixia de inusitadas espécies híbridas, oriundas das várias camadas do tempo; um modo utraquísta (Ferenczi, 1924/1990), de juntar um e outro, englobando-os na corrente de elaboração a posteriori, à medida que o tempo segue avante. Freud, ao definir os três estágios de evolução da psique do homem na cultura - animismo, religioso e científico, que correspondem às respectivas maneiras de viver e pensar segundo as modalidades do narcisismo da sexualidade infantil, do complexo de Édipo e da castração -, os situa na nossa experiência de vida e análise, articulados no referido rearranjo utraquísta e a posteriori do tempo da alma com sua topografia e demografia que vão se recriando, lançando mão de suas espécies de origem do mar.6 A predominância do estágio científico, da castração, coloca em relevo, pelo luto que o funda, as ondas de origem, do sexual, a serviço da navegação, da transferência rumo a territórios novos e desconhecidos.

Todo trabalho da vida, e que a análise permite observar e estender, é odisseia, é travessia pelo mar da alma, na medida em que almeja liberar este que chamamos de o sexual, o infantil, e que é sedução, transporte e transferência incessantes sem a visada de um fim.

 

Referências

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Penguin Books. (Trabalho original publicado em 1973)

 

 

1 As duas obras, de Freud e Ferenczi (1924/1990), norteiam nosso trabalho sobre o mar e a odisseia da vida psíquica.
2 Sobre essa relação na cesura entre ambiente e corte, explicitada mais adiante, e amplamente presente nas obras de Winnicott e Bion (1991), remeto o leitor à elaboração de Freud, em Inibição, sintoma e angústia (1926/2014b). Nele, as transmutações da angústia desde o nascimento se pautam no a posteriori, pela castração, colocando em relevo a importância do objeto, do ambiente, e sua origem oceânica, com o crescimento psíquico.
3 O narcisismo primário, operando sob os auspícios do animismo - com seus métodos de controle do ambiente e universo por meio da magia e do feitiço das ações e das palavras, ignorando tempo e morte -, é obrigado, com a instauração progressiva da noção do corte, da castração, conceder esses poderes aos pais de nossa infância para que eles nos amparem ante o desconhecido. Concessão conferida, na vida adulta, aos pais do céu, os deuses, que reassumem os poderes do pai primevo, revertendo assim os efeitos da castração, para, alternadamente, recalcá-la, recusá-la até a sua completa rejeição (Freud, 1913/2012).
4 Não cabe adentrar em todo o caminho das descobertas de Freud sobre o feminino e a feminilidade que este trilhou durante 40 anos (1893-1933). Aqui nos servimos apenas de algumas constatações de sua investigação clínica e cultural, para lançar luz sobre essas manifestações no enredo de Homero.
5 Esses se vinculam aos ritmos dos fonemas e palavras da sedução originária desde os primeiros instantes do nascimento, afiando-se às vozes primeiras de nossas mães que nos chegam, antes e continuamente, pelo meio marítimo do útero. Entretanto, nesse escopo sonoro há uma reversão, parcial, é verdade, da absorção centrípeta pelos cantos/corpos das sereias para uma via contrária, centrífuga, marcada pela castração da mãe mensageira que nos transposta para o ambiente terrestre da cultura [Anticleia, mãe de Odisseu, apesar de morrer, de fato, de saudades pelo filho, em meio à longa ausência deste, teria tido, como outras mães e seus cantos de origem, uma força de atração sedutora considerável sobre Odisseu bebê, emanada dos cantos das sereias, porém desgastada, felizmente, pela castração que lança o filho para a vida junto aos outros homens, defendendo-os da implacável e irresistível sedução devoradora das sereias]. Nesse empenho, a melodia das ondas acústicas das palavras emitidas pela mãe, vai, em função da mensagem de castração que as permeia, permitir uma separação do gozo d'A coisa. Criam-se, então, dois polos de representações e suas ramificações: de um lado, d'A coisa (infinita) tornando-se corpo; e, de outro, das palavras (finitas), tendo uma ponte como eixo central de sustentação entre esses polos. Esse eixo entre o polo da imagem acústica e o outro, da imagem visual do corpo, das coisas (sua existência), inaugura a obra freudiana (Freud, Sobre a concepção das afasias [1891/2014c]), permeando o exercício da psicanálise em seus fundamentos práticos e teóricos (Delouya, 2020).
6 O trabalho do tempo, com suas estações, personagens e enredo, tal como tentamos descrevê-lo, encontra várias versões na psicanálise, além das de Freud e de Ferenczi. Destaco, sobretudo, a obra final de Bion (1991), com seu enquadre narrativo, de 1975 a 1979, A memoir of the future. Mas a mesma lógica está, com estilos bem diferentes, nas obras de Melanie Klein e Jaqcues Lacan, entre outros.

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