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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.48 no.1 Rio de Janeiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Amor e mito como verdade cultural e subjetiva

 

Love and myth as cultural and subjective truth

 

 

Alessandro Melo BacchiniI, II*; Junia de VilhenaI, III, IV**; Ana Maria de Toledo Piza RudgeV, VI***; Diogo de Siqueira Bendelak dos Santos****

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
IILaboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental – LPPF - Brasil
IIIUniversité Denis-Diderot Paris VII - França
IVUniversidade de Coimbra - Portugal
VUniversidade Veiga de Almeida - Brasil
VIAssociação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental - Brasil

 

 


RESUMO

Em "Psicologia das massas e análise do eu", Freud questiona a dicotomia entre o individual e o coletivo, entre a cultura e a subjetividade, argumentando que o outro está sempre envolvido na vida psíquica do indivíduo. Tomamos como fio condutor a discussão empreendida por Lévi-Strauss e Lacan acerca do mito em seu papel cultural e individual. Elegemos o amor como objeto de estudo devido a seu papel fundante no que diz respeito à constituição da subjetividade e no tratamento psicanalítico e ao fato de que, na psicanálise, o amor é abordado a partir dos mitos de Narciso e de Édipo.

Palavras-chave: amor, mito, verdade, subjetividade.


ABSTRACT

In Group psychology and the analysis of the ego, Freud challenges the dichotomy between the individual and the mass, culture and subjectivity, arguing that the other is always involved in the psychic life of the individual. In order to account for this path, we take as a guiding principle the discussion between Lévi-Strauss and Lacan regarding myth in its cultural and individual role. We chose love as an object of study due to its central function in the construction of subjectivity and in psychoanalytic treatment, and the fact that psychoanalysis approaches love through the myths of Narcissus and Oedipus.

Keywords: love, myth, truth, subjectivity.


 

 

Muito já foi escrito sobre como, em seu famoso trabalho intitulado "Psicologia das massas e análise do eu", Freud questiona a dicotomia entre o individual e o coletivo, entre a cultura e a subjetividade, argumentando que na vida psíquica do sujeito o outro está sempre envolvido, seja "como modelo, como objeto, como auxiliar, como oponente" (Freud, 1921/1972, p. 115). No entanto, nem por isso o interesse do tema se esgota.

Na relação entre o sujeito e o outro, os mitos desempenham papel fundamental ao fornecer uma ordem de valores gerais que legitimam os laços sociais. Nesse sentido, os mitos carregam um componente de verdade que se faz presente tanto nas trocas simbólicas de um povo quanto em fantasias do sujeito. Nesse ínterim, o que dizer do amor, esse elemento para além de qualquer delimitação científica, que atravessa narrativas em todos os tempos de que se tem notícia como um verdadeiro amálgama entre os cenários, as cenas e seus atores?

Com o intuito de dar conta de um trajeto que tangencie a problemática do mito como verdade cultural e subjetiva - bem como sua interface com o tema do amor -, toma-se como fio condutor a discussão empreendida por Lévi-Strauss e Lacan acerca do mito em seu papel cultural e individual, elegendo-se o amor como objeto de estudo devido a seu papel fundante no que diz respeito à constituição da subjetividade e no tratamento psicanalítico e ao fato de que, na psicanálise, o amor é abordado a partir dos mitos de Narciso e de Édipo.

 

Verdades sobre o mito e mitos sobre a verdade

A discussão empreendida entre as várias esferas de nossa cultura acerca do que seria verdade ou mito em relação a temas como, por exemplo, crenças, superstições e descobertas medicinais alternativas chama atenção para representações sociais acerca de temas tão profundamente debatidos na história do pensamento humano. Nesse espaço, é comum encontrarmos uma polarização terminológica entre mito e verdade, como sendo entre o que careceria ou não de comprovação ou eficácia na realidade, o que Lévi-Strauss e Lacan questionam.

Para abordar o tema, a dicotomia básica entre língua (langue) e fala (parole) - proposta pelo ensino de Ferdinand de Saussure (2006) presente no Curso de linguística geral - é uma boa aproximação para que se possa discutir aquilo que é histórico e social, mas que insiste em ser atualizado nos primórdios da constituição da própria subjetividade.

De fato, esse par auxilia sobremaneira a presente exposição argumentativa, uma vez que se compreenda a distinção entre a langue, como o que é da ordem do social, e parole como presente no campo individual. Como afirma Carvalho (2013), a langue se apresenta em três concepções: como acervo linguístico, diz respeito a hábitos da fala que permitem que os seres possam se comunicar; como instituição social, é um conjunto de convenções necessárias às trocas linguísticas presentes na massa, sociais e também no indivíduo, e; como realidade sistemática e funcional, se apresenta em forma de signos reunidos em um sistema homogêneo necessário para a expressão de ideias. Já o termo parole em Saussure (2006, p. 22) diz respeito a "[...] um ato individual de vontade e inteligência" em que estão implicados: "1º, as combinações pelas quais o falante realiza o código da língua no propósito de exprimir seu pensamento pessoal; 2º, o mecanismo psicofísico que lhe permite exteriorizar estas combinações".

Trata-se, pela via da linguística, de uma superação da dicotomia entre o que seria universal e o que seria particular, uma vez que, para que possa haver uma homogeneidade de regras que o linguista identifica na langue, é necessária a prática da langue entre os falantes. Por sua vez, estes somente podem se comunicar por haver algo que se coloca como invariável, ou seja, de caráter estrutural.

É a Saussure que Lévi-Strauss (1949/2008, p. 201) dedica seu texto intitulado "A eficácia simbólica" para discutir justamente a presença daquilo que se expressa acerca do universal e do singular concomitantemente em sociedades "primitivas" e nas culturas modernas ocidentais. Nele o antropólogo faz referência ao trabalho de Wassen e Holmer na descoberta do que ele considera o primeiro grande texto mágico-religioso de culturas sul-americanas. O já tão difundido estudo trata de um longo encanto conferido pelo xamã (segundo o velho informante cuna, Panamá, chamado Guillermo Haya) cujo objetivo é auxiliar um parto complicado. Pode-se vislumbrar, grosso modo, como se dá tal rito:

O canto começa por uma descrição da aflição desta última, sua visita ao xamã, a saída deste em direção à casa da parturiente, sua chegada e seus preparativos, que consistem em fumigações de feijões e cacau queimados, invocações e confecção das imagens sagradas, os nuchu. Essas imagens, esculpidas em determinadas madeiras, que lhes dão sua eficácia, representam os espíritos protetores que o xamã emprega como assistentes, e que pega pela cabeça para levá-los até a morada de Muu, força responsável pela formação do feto (Lévi-Strauss, 1949/2008, p. 201-202).

A explicação dessa cerimônia é que a força Muu foi além de suas responsabilidades e acabou por se apossar da alma - Purba - da mãe. Seu objetivo é resgatar o Purba da parturiente, de maneira a libertá-lo.

Lévi-Strauss (1949/2008) considera que há uma forma que se repete nos rituais de cura de maneira geral, a saber, considera-se o adoecimento como causado pela perda de um duplo espiritual do doente, e o resgate deste é buscado por meio de tratamentos referenciados a entidades sobrenaturais. No entanto, o autor afirma que o que mais chama atenção não é a repetição, mas sim o que há de novo neste ritual, pois o caminho e a morada de Muu fazem referência literalmente ao útero e à vagina da mulher grávida. Dito de outra forma, não se trata de um itinerário unicamente mítico, mas de algo também material.

A cura xamânica leva em conta o transcorrer minucioso de uma história que precede o encontro entre a parturiente e seu cuidador, pois o fundamental aí é realizar uma aproximação do que há de realidade do corpo e do processo intrauterino para o mundo exterior. Nas palavras de Lévi-Strauss (1949/2008, p. 210), "A técnica da narrativa visa, portanto, à restituição de uma experiência real, da qual o mito apenas substitui os protagonistas, que penetram no orifício natural". Desse modo, para ajudar a mãe em seu parto, seriam necessárias uma "mitologia psicofisiológica" e uma "mitologia psicossocial".

Notadamente o ritual é bem mais rico em detalhes, conforme pode ser lido na Antropologia estrutural, mas o interessante dessas notas é realizar uma retomada do que Lévi-Strauss (1949/2008) afirma: importa menos considerar o que é ou não realidade nesse ritual do que observar que sua função se faz valer na medida em que tanto a paciente quanto a sociedade da qual faz parte creem no mito.

Diferentemente do que ocorre na cura médica, na qual a doença é atribuída, por vezes, a organismos diminutos, a cura xamânica envolve uma relação "entre símbolo e coisa simbolizada, ou, como dizem os linguistas, entre significante e significado" (Lévi-Strauss, 1949/2008, p. 213).

Além disso, o autor chama atenção para o caráter de repetição presente nos mitos das mais diversas culturas, o que constitui mais uma de suas características fundamentais:

O mito, quer seja recriado pelo sujeito ou tomado da tradição, só tira de suas fontes, individual ou coletiva (entre as quais interpenetrações e trocas se produzem constantemente), o material de imagens com que opera. A estrutura permanece a mesma, e é por ela que a função simbólica se realiza (Lévi-Strauss, 1949/2008, p. 219).

Assim, afirma Lévi-Strauss (1949/2008), a cura se dá pelo fato de que o xamã fornece à mãe uma linguagem inteligível para uma experiência anárquica, desbloqueando assim os processos fisiológicos impeditivos ao parto. Por conta disso, haveria um paralelo entre tal cura e aquela empreendida pelo psicanalista, pois em ambos os casos haveria uma tentativa de trazer à consciência fenômenos inconscientes e promover a dissolução de conflitos a partir de um progressivo conhecimento adquirido por uma experiência específica que organiza aquilo que estava fora de controle.

Em resposta a Lévi-Strauss (2008) sabe-se que Lacan (1987/2008) escreve O mito individual do neurótico no qual, no princípio, discute a problemática da cientificidade da psicanálise. Ele afirma que, embora seja pouco criteriosa a crítica que a compara a uma arte, ela não seria incorreta se tomássemos a palavra arte no sentido das artes liberais da Idade Média - que englobam a dialética, a geometria, a astronomia, a aritmética, a música e a gramática. A estas a psicanálise é comparável "[...] por aquilo que ela preserva dessa relação de medida do homem consigo mesmo - relação interna, fechada em si mesma, inesgotável, cíclica, que o uso da palavra, por excelência, comporta" (Lacan, 1987/2008, p. 9). Devido a isso, afirma Lacan (1987/2008), a experiência analítica implica uma verdade que somente pode ser contornada pela fala e, portanto, nunca é atingida. No entanto, por mais que não possa ser objetivada, tal experiência pode ser expressa a partir da fórmula discursiva do mito - este que se constitui somente a partir do caminhar da fala. A fala só pode expressar a verdade de modo mítico. Assim o complexo de Édipo no qual a psicanálise teoriza a relação intersubjetiva é mítico. Nas palavras do autor:

Se nos fiarmos na definição do mito como uma certa representação objetiva de um epos ou de uma gesta que exprime de maneira imaginária as relações fundamentais características de certo modo de ser humano em uma época determinada; se o compreendermos como a manifestação social latente ou patente, virtual ou realizada, plena ou esvaziada de seu sentido, desse modo de ser, podemos então certamente reencontrar sua função na própria vivência do neurótico (Lacan, 1987/2008, p. 10).

No caso da cura xamânica, o recurso ao mito se apoia no imaginário da comunidade, com suas crenças e costumes próprios. É por essa razão que Lévi-Strauss fala de "mitologia psicossocial". O xamã, no canto que utiliza para a cura da parturiente, recorre a significantes da mitologia psicossocial própria à comunidade em que vive - mitologia essa carregada pela crença, tanto dele quanto da própria parturiente. A fala do xamã (parole), nesse caso, acede ao imaginário psicossocial, o que acaba por ter efeito no real. Ora, o que ocorre no caso da psicanálise?

A mitologia psicossocial própria ao tempo em que a psicanálise emergiu na história guarda diferenças marcantes se comparada à comunidade xamânica analisada por Lévi-Strauss. O próprio Lévi-Strauss, aliás, como já dito, diferencia a cura xamânica da psicanalítica ao afirmar que, no segundo caso, o paciente se dirige a um psicanalista a partir de seu mito individual. Como entender tal afirmação? O mito, pois, não tem sua dimensão na ordem social, exprimindo relações de um certo modo de ser-humano de uma determinada época? A ordem própria em que o mito se situa não seria a ordem social, simbólica? Nesse caso, como entender que um mito seja individual?

Ao comentar o caso do Homem dos ratos, Lacan (1987/2008, p. 25) afirma que é a manifestação do roteiro fantasístico que se pode extrair do caso, o pequeno drama que nele se articula, o que se pode chamar de mito individual do neurótico. Não convém aqui refazer o percurso de Lacan na exposição desse caso, mas sim compreender, contrapondo a experiência psicanalítica à xamânica tal como indicado por Lévi-Strauss, a dimensão individual do mito. Enquanto ao xamã é permitido o recurso a uma mitologia psicossocial, na psicanálise essa mitologia só pode ser encontrada na fala do próprio paciente. Em outras palavras, enquanto o xamã recorre ao imaginário psicossocial da comunidade através de sua fala, o psicanalista escuta a fala do paciente, e é através dessa fala, própria à situação analítica - a saber, a fala perpassada pela regra da associação livre e sob transferência -, que se constrói o mito. É através do relato mítico, que é uma ficção com acento épico, que se pode ter acesso à estrutura. O mito individual do neurótico é o que está em jogo no contexto do processo analítico.

Verdade ou mentira, o que mais sobressai aos ouvidos de um psicanalista é a possibilidade de articulação ao mito como metáfora. Precisamente nesse ponto, Azevedo (2004, p. 15) argumenta que a análise de Lacan, a partir de Freud, toma o inconsciente estruturado como uma linguagem paradoxal, pois nele convivem os opostos e a repetição, bem como a tendência a retornar sempre ao mesmo ponto. Dito de outra maneira, a linguagem inconsciente revela uma busca incessante do neurótico de tentar reencontrar "[...] uma satisfação originária e absoluta e, portanto, mortífera". Nesse sentido, torna-se fundamental analisar a mitológica psicanalítica, que aqui será brevemente dirigida a tangenciar o tema do amor na constituição da subjetividade, tomando como centrais os mitos de Narciso e Édipo.

 

A demanda de amor e o mito

Conforme leituras empreendidas por Carlos Alberto Nunes (2001), em sua tradução de Ilíada, e Denis de Rougemont (1988), histórias contadas e revividas, imunidade crítica e ausência de autores conhecidos parecem ser características essenciais do mito. Além dessas, a que mais importa, a saber: o grande poder simbólico que o mito exerce sobre nós e sua imunidade a qualquer tentativa de silenciá-lo. Dito de outra maneira, importa menos o seu caráter consciente, historicamente transcrito e datado, do que seu poder de servir como aporte cultural e mesmo como metáfora para o que há de mais individual - latente e/ou manifesto - na vida de cada sujeito. É precisamente o que analisa Vilhena (1991) em seu artigo intitulado "Mito e fantasia: conjunções e disjunções no grupo familiar":

Um mito, como conjunto organizado de representações explícitas ou implícitas, pode estar próximo do mundo real ou não. O que nos importa é que estes são independentes de verificação histórica. O que é funcional e pregnante no mito é a parte ligada às fantasias, sobretudo às fantasias primitivas. É lá que se depositam a integridade narcísica e a representação que a família faz de suas origens (Vilhena, 1991, p. 94-95).

De fato, o desenvolvimento de conceitos fundamentais da psicanálise, como o complexo de Édipo e o narcisismo, revela a importância da mitologia na própria trama da teoria psicanalítica. Mais ainda, incluindo a transferência nessa série de conceitos fundamentais, pode-se apontar para uma característica que se revela fundamental e que, nesse sentido, merece investimento: o papel crucial do amor tanto no que se refere à psicanálise - em seus fundamentos metapsicológicos como tratamento pela via do amor - como aos fenômenos culturais contemporâneos.

Sigamos a recomendação de Didier Anzieu (1996) ao considerar que a leitura de um mito por um psicanalista deva obedecer aos mesmos princípios de uma escuta atenta. Somente assim será possível seguir um caminho minucioso do texto à letra, um percurso revelador tanto do que há de primordial no ser humano em termos de fantasia quanto das tradições e cultura de um povo.

Levando essas considerações como pontos centrais, retoma-se brevemente o mito de Narciso - para que se possa pensar a respeito do desenvolvimento da sexualidade pré-edípica - presente em Metamorfoses de Ovídio (43 a.C. - 18 d.C.) segundo tradução de Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho (2010). Nele consta a narrativa de que a ninfa Liríope, enlaçada por Cefiso, dera à luz Narciso, o filho digno de ser amado. Entretanto, ao consultar o adivinho Tirésias sobre por quanto tempo que seu filho viveria, Tirésias lhe responde que somente enquanto ele não viesse a se conhecer.

Sua beleza era evidente aos olhos de moças e rapazes, os quais, por sua vez, não recebiam retorno algum de seus olhares. Contudo, tal encontro com o outro ocorre quando Narciso se deixa capturar pelas reverberações da voz de Eco, personagem que se encontrava sob o sortilégio de apenas repetir as últimas palavras que ouvia das falas - efeito dos desígnios de Juno, revoltada com os contos que ouvira de Eco por creditar-lhes efeitos de acobertamento para as infidelidades de Júpiter (Carvalho, 2010).

Ainda assim, com os impeditivos presentes na fala de Eco e na possibilidade de encontros por Narciso, tais dificuldades foram sobrepujadas a partir do atribulado diálogo:

[...] "Alguém me escuta?", "escuta!"' rediz Eco. Queda-se atônito, dirige o olhar a toda parte, alça a voz e diz: "vem!"; ela chama quem chama. Volve o olhar e não vendo ninguém diz: "Por que foges de mim" e ouve de volta a mesma frase. Detém-se e, iludido por voz replicante, fala: "aqui nos juntemos!", e Eco, com volúpia nunca experimentada, devolveu: "juntemos!" (Metamorfoses III, 380-387).

Ainda assim, no momento mesmo do encontro, Narciso a evita suplicando que não o abrace, o que faz surgir nela um profundo sentimento de vergonha, além de uma dor que cresce com o amor não consumado. Ante tal infortúnio, restou a ela esconder-se em monte onde nunca mais seria vista, mas somente escutada por seus ecos. Narciso também não escapa à má sorte, pois as súplicas de um de seus desprezados são atendidas e ele passa a poder amar, sem, no entanto, jamais possuir o outro amado (Carvalho, 2010).

Nesse momento se dá o tão consagrado ponto de encontro de Narciso com sua própria imagem refletida em fonte límpida. Ali se afoga com o deslumbre de sua própria imagem: "Oh! se eu pudesse separar-me de meu corpo! Desejo insólito: querer longe o que amamos!" (Metamorfoses III, 467-468).

É justamente ao mito grego que o criador da psicanálise faz alusão, segundo ele mesmo afirma na conferência XXXII das "Novas conferências introdutórias" (1933 [1932]). O estudo do narcisismo - termo utilizado por Freud (1910) pela primeira vez em "Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância" - tem como uma das principais vias de acesso o estudo da vida amorosa. Nesta, duas são as possibilidades que se mostram, que têm como pressuposto que os primeiros amores, a si mesmo e a quem cuida, sempre deixam marcas: ama-se a si mesmo escolhendo um objeto que se assemelhe a si mesmo, em uma escolha narcísica de objeto, ou ama-se buscando um objeto segundo o modelo do pai que protege e da mãe que cuida quando a forma de amar é anaclítica, ou de apoio. O amor do tipo narcísico revela a predominância do narcisismo, enquanto que a escolha anaclítica faz referência à forma objetal de amor.

A partir da introdução do conceito de narcisismo em 1914, passa-se a levar em consideração a relação originária entre o sujeito e o investimento narcísico do qual é objeto por parte dos pais, que lhe possibilitará a ilusão de onipotência e completude que constitui seu eu ideal. O amor narcísico pode ou tomar o próprio eu como modelo para a escolha de objeto - que será idealizado e insubstituível - ou coloca o sujeito na posição daquele que é passivamente amado, e não no lugar de desejante - eludindo a castração. O tema da ilusão de completude também é analisado em "Psicologia das massas e análise do eu":

É no caso desse enamoramento [das pulsões ternas da primeira infância inibidos em sua meta] que desde o início nos saltou à vista o fenômeno da superestimação sexual. [...] O que aí falseia o juízo é o pendor à idealização. Com isso nós vemos facilitada a orientação; percebemos que o objeto é tratado como o próprio Eu, que então, no enamoramento, uma medida maior de libido narcísica transborda para o objeto. Em não poucas formas de escolha amorosa torna-se mesmo evidente que o objeto serve para substituir um ideal não alcançado do próprio Eu (Freud, 1921/1972, p. 71).

Pode-se citar aqui o trecho do poema intitulado Amar se aprende amando de Carlos Drummond de Andrade (1985): "O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo / acha a razão de ser, já dividido. / São dois em um: amor, sublime selo / que à vida imprime cor, graça e sentido".

Do ser dividido busca-se o selo da união que, pela via do amor, conferiria a completude ao sujeito. Impossível não fazer referência, como Lacan no seminário VII, ao discurso de Aristófanes n'O banquete de Platão, sobre a primitiva natureza humana não cindida, circular (o que concede a prerrogativa de uma unidade), para a qual se almeja que o amor reconduziria: "[...] inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo, quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo que as mãos; dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhante em tudo, mas a cabeça sobre os dois rostos era uma só" (Pessanha, 1987, p. 96).

Em represália à onipotência, os deuses que optaram por separar em dois aqueles (in)divíduos - "sexualizaram", no sentido em que o termo "sexo" provém do Latim secare, que significa "dividir". Assim, sua antiga força fora também cortada ao meio, restando aos homens passarem o resto dos tempos a buscar sua metade perdida, com a esperança de reaver tal completude arcaica:

Essa multiplicidade de membros dava ao homem uma maior mobilidade e poder, a ponto de ousar planejar um ataque aos deuses. O castigo não tarda e Zeus corta esse homem primitivo ao meio, separando-o em inverso e reverso. Cabe a Apolo a função de retocar esses seres e, através de uma plástica, dar-lhes a ilusão de inteireza e unidade. Permaneceu, entretanto, daí por diante, a sensação de incompletude e a ânsia de cada metade se unir à outra. O que primitivamente fora um duplo masculino são agora duas metades masculinas que se procuram; o que fora antes um duplo feminino são agora duas partes femininas que querem se completar; o que fora um duplo andrógino, resulta em uma parte feminina e outra masculina que tentam refazer, no amor, a unidade perdida. "O amor, assim, fundamentalmente, não é busca do semelhante, mas busca da totalidade partida, da unidade quebrada" (Pessanha, 1987, p. 94).

A infelicidade dessas duas metades, procurando-se em vão e não se encontrando senão através da mediação de uma ferida comum e terminando por morrer dessa união impossível, nos fala de alguma maneira do fenômeno passional. Um segundo momento, que o mito nos fala, ocorre a partir da segunda modificação de Zeus. Com o deslocamento dos órgãos genitais, de maneira a situá-los à vista de cada metade, a realização da necessidade de fusão pode agora se efetuar através da mediação do desejo sexual, pois não concerne mais à unidade narcísica, mas à sua forma metonímica (Vilhena, 2006).

Da completude à cisão, e do dois fazer-se um, ocupam-se variados contos, romances escritos, músicas, entre outras expressões artísticas que apontam para esse algo que insiste em se fazer presente na cultura e na vida individual. Sobre isso, é amplamente reconhecido o interesse do criador da psicanálise pelo mito de Édipo, a partir de Sófocles (496-405 a.C), desde suas cartas a Fliess até o posterior desenvolvimento da metapsicologia, uma vez que cada neurótico reatualiza em seus próprios romances familiares aquilo que corresponde tanto a um amor primordial por quem ocupa a função de mãe, quanto ódio e desejo inconscientes de morte a quem ocupa o lugar do pai. Nesse ínterim, Édipo faz alusão a outro mito - "Totem e tabu" (1913), dessa vez psicanalítico por excelência - dos crimes primordiais presentes na constituição da própria civilização, pois do amor e do ódio são revividos o incesto e o parricídio, na medida em que a ontogênese reatualiza (ou ritualiza) a filogênese.

No entanto, na vida do neurótico, o amor primordial da relação com a mãe se encontra ameaçado pela descoberta da diferença sexual, pela interdição do incesto advinda de quem ocupa a figura do pai e, indissociavelmente, pelo complexo de castração. Notadamente a riqueza de detalhes acerca do complexo de Édipo excede ao tema, mas importa destacar que desse cenário trágico resta ao indivíduo a inserção na cultura, pois, mesmo que se deva renunciar ao primeiro objeto de amor, pode-se transferir a demanda emergente a qualquer outro objeto substituto. Neste sentido, a clínica psicanalítica é um lugar por excelência da expressão do mito individual de cada neurótico através da transferência, que, por sua vez, tem o amor como tema primordial.

Freud dedicou um dos artigos sobre a técnica psicanalítica especificamente a esse tema. No artigo em questão intitulado "Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III)", Freud (1915 [1914]/1972, p. 177) descreve o amor de transferência como: "[...] o caso em que uma paciente demonstra, mediante indicações inequívocas, ou declara abertamente, que se enamorou, como qualquer outra mulher mortal poderia fazê-lo, do médico que a está analisando". Trata-se, pois, de um enamoramento pela figura do médico. A primeira questão a ser feita em relação a esse amor é se ele é genuíno, isto é, se é um amor verdadeiro.

Colocar a questão de um amor verdadeiro é problemático, pois como identificar tal amor? O próprio Freud (1915 [1914]/1972) observa no artigo tratado que, para o leigo instruído, as coisas relacionadas ao amor são incomensuráveis e se acham escritas em uma página especial. No caso do amor de transferência, a situação em que o sentimento ocorre é claramente artificial, daí Freud (1915 [1914]/1972, p. 178) afirmar que o médico "[...] deve reconhecer que o enamoramento da paciente é induzido pela situação analítica e não deve ser atribuído aos encantos de sua própria pessoa". Nesse caso, um julgamento apressado veria no amor transferencial apenas uma manifestação secundária, impura do amor, por assim dizer. Na verdade, o que diferencia o amor de transferência de qualquer outro amor é o modo como o analista maneja a transferência, e a própria estrutura da situação psicanalítica.

É conhecida a recomendação freudiana (1915 [1914]/1972) de interpretar o amor transferencial como manifestação da resistência à análise. Esse é, aliás, diz-nos ele, o argumento mais forte contra a genuinidade do amor que nela se manifesta. Entretanto, o argumento de que o amor transferencial não apresenta nenhuma característica que se origine da situação atual da qual emergiu, sendo, pois, repetição de reações infantis é considerado muito frágil por Freud:

É verdade que o amor consiste em novas edições de antigas características e que ele repete reações infantis. Mas este é o caráter essencial de todo estado amoroso. Não existe estado deste tipo que não reproduza protótipos infantis. É precisamente desta determinação infantil que ele recebe seu caráter compulsivo, beirando, como o faz, o patológico (Freud, 1915 [1914]/1972, p. 185).

O que o amor de transferência mostra é o que os mitos sobre o amor, como o de Aristófanes, também sugerem. A busca de eludir o sofrimento relativo à divisão do sujeito, encontrando no objeto amado a completude, é sempre fracassada. O tema do amor ligado ao mito psicossocial tem seu valor mais uma vez afirmado, pois o mito tem características de permanência e inquestionabilidade justamente porque carrega uma verdade, que é a impossibilidade de realização a que se destina a idealização envolvida no amor.

O trabalho empreendido pela fala, no sujeito, faz referência à sua história singular, que se articula ao campo da linguagem cultural em seus hábitos, convenções e mitos. Mas a força do mito não é tributária somente de tal condensação, mas do que carrega em seu seio, a saber: das verdades que o mito carrega.

Verdades essas há muito recalcadas, configurando estranhas cenas familiares na vida subjetiva do neurótico. Trata-se, portanto, de verdades construídas em torno de fantasias primordiais que possuem a estrutura de um mito. Nesse sentido, não se trata de uma tentativa de alcançar a verdade originária sobre a vida subjetiva, mas de apontar a permanente atualidade da estrutura mitológica que circunda a vida do sujeito articulado à sua cultura.

É nessa linha argumentativa que se pretendeu pensar aqui o amor na clínica psicanalítica, ou seja, pela janela do mito. Para tanto, Édipo e Narciso foram tomados não apenas como exemplo dessa formação retórica, mas especialmente como peças centrais em que o tema dos impasses no campo do amor e da sexualidade se fazem presentes: Narciso com seu amor pendular - ego e objeto - em meio ao problema da alteridade e agressividade, e Édipo com a estrutura de amor/ódio dos romances familiares.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 11/01/2016
Aprovado para publicação em: 20/02/2016

 

 

*Psicólogo pela Universidade da Amazônia - UNAMA (2009), Mestre em Psicologia Clínica e Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Especialista em Psicologia da Saúde/Hospitalar pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicologia - IEPS (2011). Atualmente é doutorando em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental (LPPF - Belém/PA) e pesquisador Associado do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS/PUC-Rio. Bolsista CAPES.
**Psicanalista. Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social - LIPIS da PUC-Rio. Membro do GT da ANPEPP "Psicanálise e clínica ampliada". Pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine, CRPM-Pandora. Université Denis-Diderot Paris VII. Investigadora-Colaboradora do Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra.
***Psicanalista. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora no Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida. Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. .Pesquisadora 1D do CNPq e membro do GT da ANPEPP "Psicanálise em Redes: teorias e práticas acadêmicas e profissionais".
****Possui graduação em Psicologia pela Universidade da Amazônia (2010). Tem experiência na área de Psicologia com ênfase em Saúde Mental. Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2014).

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