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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.2 Rio de Janeiro dez. 2017

 

ARTIGOS

 

O funcionamento mental e as bases ancestrais do psiquismo segundo Sabina Spielrein

 

The mental functioning and the ancestral bases of the psyche according to Sabina Spielrein

 

 

Fátima Siqueira Caropreso*

Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Embora o interesse pela psicanalista russa Sabina Spielrein tenha crescido nas últimas décadas, os estudos sobre ela ainda enfocam, predominantemente, aspectos de sua biografia. No entanto, a originalidade de seu pensamento teórico e clínico justifica uma análise mais cuidadosa do seu desenvolvimento interno para que o papel de Spielrein na história da psicanálise possa ser cabalmente reconhecido. O objetivo deste artigo é apresentar as teses sobre o funcionamento mental elaboradas pela autora em dois de seus primeiros trabalhos: "Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (Dementia praecox)", de 1911, e " A destruição como origem do devir", de 1912. Argumenta-se que, neles, Spielrein apresenta uma concepção original sobre a dinâmica mental, que antecipa, em muitos aspectos, certas hipóteses que viriam a ser desenvolvidas pela psicanálise subsequente.

Palavras-chave: Sabina Spielrein, psicanálise, esquizofrenia, filogênese, instinto de morte.


ABSTRACT

Although interest in the Russian psychoanalyst Sabina Spielrein has grown in the last decades, studies about her are still mainly focused on aspects of her biography. However, the originality of her theoretical and clinical thought justify a more careful analysis of its internal development, so that Spielrein's role in the history of psychoanalysis can be fully ascertained. The objective of this paper is to present the ideas about mental functioning proposed in two of her first works: "On the psychological content of a case of schizophrenia (Dementia praecox)" (1911) and "Destruction as the cause of coming-into-being" (1912). It is argued that, in these works, Spielrein presents an original conception of mental dynamics that, in many aspects, anticipates some hypotheses that would be later developed in psychoanalysis.

Keywords: Sabina Spielrein, psychoanalysis, schizophrenia, phylogeny, death instinct.


 

 

A russa Sabina Nikolaevna Spielrein foi internada no Hospital Psiquiátrico Burghölzi da Universidade de Zurich em agosto de 1904, onde recebeu o diagnóstico de psicose histérica. Ela foi a primeira paciente tratada por Carl Gustav Jung a partir do método psicanalítico. O tratamento de Spielrein durou nove meses e meio e foi bem-sucedido. No primeiro semestre de 1905, ela ingressou no curso de medicina da Universidade de Zurich e, em 1911, obteve o grau de doutora, tendo-se especializado em psiquiatria e se interessado, sobretudo, pela psicanálise (Richebächer, 2005/2012). Sua tese médica "Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (Dementia praecox)" foi publicada, em 1911, no Jahrbuch für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen. Richebächer (2005/2012) comenta que esse trabalho foi uma contribuição pioneira no terreno da investigação sobre a psicose e que Spielrein foi a primeira mulher a se formar como doutora em medicina abordando um tema psicanalítico. Em 1912, ela publicou, no mesmo periódico, o artigo "Destruição como origem do devir", o qual ficou conhecido, sobretudo, pela apresentação da hipótese do instinto de morte. Nos anos que se seguem, Spielrein publicou outros artigos psicanalíticos e passou a interessar-se, especialmente, por linguística e pelo desenvolvimento da fala. Em 1923, ela deixou a Suíça e, depois de passar um ano em Moscou, retornou para a Rússia, onde viveu até sua morte, em 1942.

Skea (2006) comenta que, diante da ruptura entre Freud e Jung, Spielrein se recusou a tomar partido de qualquer um dos lados. Ela continuou insistindo em sua admiração por ambos e manifestando sua esperança em uma reconciliação. Entretanto, foi vista pelos freudianos como junguiana e pelos junguianos como freudiana, despertando resistências em ambos os grupos, o que provavelmente contribuiu para que seu trabalho não recebesse a devida importância e reconhecimento.

Por um longo período, Spielrein foi conhecida apenas por ter sido mencionada em uma nota de rodapé do texto freudiano "Além do princípio do prazer"1, publicado em 1920, como relata Ovcharenko (1999). Segundo este autor, ela voltou a existir após a publicação por McGuire, em 1974, da correspondência entre Freud e Jung, onde é mencionada. No entanto, o interesse por sua vida e obra se intensificou após a publicação do livro "Diário de uma secreta simetria: Sabina Spielrein entre Jung e Freud" (Carotenuto, 1980/1984). Essa obra contém um comentário sobre a vida e o pensamento de Spielrein, assim como partes de um diário e algumas cartas que ela enviou a Jung e a Freud2. Noth (2015) afirma que a visão que, a partir de então, passou a predominar sobre a autora foi fortemente influenciada pela obra de Carotenuto, a qual se baseia no pressuposto de que sua produção teórica dependeu exclusivamente de Freud e Jung. A originalidade teórica e clínica de Spielrein permanece ainda pouco investigada e reconhecida, embora esse cenário esteja sendo pouco a pouco alterado. Recentemente, no Brasil, foi publicado um livro (Cromberg, 2014) com traduções de alguns dos primeiros escritos de Spielrein e textos comentando aspectos de sua vida e de seu pensamento, contribuição fundamental para aqueles que se interessam pela psicanálise.

Neste artigo, pretendemos analisar as teses sobre o funcionamento mental elaboradas por Spielrein em seus dois primeiros trabalhos: " Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (Dementia praecox)" (Spielrein, 1911) e " A destruição como origem do devir" (Spielrein, 1912). No primeiro, Spielrein introduz a hipótese de que o inconsciente contém sedimentos de vivências do passado da espécie e de que a esquizofrenia resgata tais sedimentos a partir de um processo de dissolução dos conteúdos pessoais. As ideias aí elaboradas são desenvolvidas no texto de 1912, dando origem à distinção entre psique do eu e psique da espécie, sob o pano de fundo da qual a ideia de um instinto de morte é formulada. Com as hipóteses apresentadas nesses dois textos, Spielrein propõe uma concepção original sobre a dinâmica mental, a qual antecipa, em muitos aspectos, hipóteses que viriam a ser desenvolvidas na psicanálise subsequente.

 

A esquizofrenia e as bases ancestrais do psiquismo

Em "Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (Dementia praecox)" (Spielrein, 1911), Spielrein interpreta e relata o caso de uma paciente, diagnosticada com demência paranoide, tratada por ela no Hospital Burghölzi. Embora a paciente não fosse capaz de responder diretamente às perguntas que lhe eram direcionadas, a psicanalista foi capaz de interpretar o significado latente de suas falas e extrair algumas hipóteses gerais sobre a esquizofrenia e o funcionamento mental. O trabalho foi orientado por Eugen Bleuler, o qual desempenhou uma influência significativa sobre a autora, principalmente com o seu conceito de ambivalência. Spielrein remete-se também a Freud, Franz Riklin e outros autores. No entanto, Jung é a principal influência sobre ela nesse texto. Ela se apoia, sobretudo, nas concepções de Jung sobre os complexos e em suas hipóteses sobre a demência precoce apresentadas em "Psicologia da dementia praecox: um ensaio" (Jung, 1907/2011).

Apesar dessa influência de Jung e de outros autores, como os acima mencionados, Spielrein (1911/2014) defende que seu trabalho traz dados novos à compreensão da esquizofrenia. No final do texto, ela argumenta que Freud e Jung já haviam demonstrado a existência de um paralelismo especial entre os fenômenos neuróticos e oníricos e as manifestações da esquizofrenia, e que ela acredita poder acrescentar dados relevantes ao conceito desses autores introduzindo uma visão filogenética.

Em seus escritos iniciais, Jung (1906/2011) formula a hipótese de que a mente é composta por uma série de complexos, concebidos como unidades funcionais mais elevadas formadas por várias moléculas, as quais consistiriam também em unidades funcionais compostas por agregados de percepções sensoriais, componentes intelectuais e tonalidades afetivas3. A integração dessas moléculas nos complexos ocorreria de acordo com determinada tonalidade afetiva, de forma que os mesmos seriam agrupamentos de ideias inconscientes associadas a eventos ou temas carregados afetivamente. Eles formariam verdadeiras unidades vivas, capazes de existência autônoma.

Em "A psicologia da dementia praecox: um ensaio", Jung (1907/2011) argumenta que, de acordo com sua tonalidade afetiva, o complexo funcionaria como um ímã para qualquer fenômeno psíquico que ocorresse ao alcance de seu campo de atração. Portanto, a autonomia do complexo dependeria das conexões maiores ou menores que o mesmo mantivesse com a totalidade da organização psíquica. Na normalidade, o complexo do eu4 seria o mais forte e predominaria sobre os demais, no entanto tal preponderância poderia, em qualquer momento, ser abalada, de acordo com a variação na intensidade, ou na tonalidade afetiva, de outros complexos. É a partir da intrusão de um complexo de forte tonalidade afetiva na consciência que ele explica a histeria e a demência precoce, postulando, no entanto, que, nesta última, o processo seria desencadeado por uma alteração metabólica no organismo, por uma "toxina".

Na demência precoce, o complexo do eu deixaria de preponderar e o sujeito ficaria sob controle de outros complexos, de modo que tudo o que não dissesse respeito a eles seria ignorado ou negligenciado. Tal fato explicaria a alienação da realidade e o desinteresse por acontecimentos objetivos. Em "O conteúdo da psicose" (1908/2011), Jung diz que todas as pessoas buscam encobrir e esconder tudo que possa ser difícil e problemático na vida, no entanto a doença mental faz com que tal atitude predomine, de maneira que a realidade vai, pouco a pouco, sendo encoberta e o sonho é que se torna realidade, acorrentando o doente, muitas vezes, por toda a vida.

Em sua monografia de 1911, Spielrein adota a hipótese junguiana da mente composta por complexos, assim como a hipótese de que, na esquizofrenia, haveria uma recusa da realidade com o objetivo de evitar um sofrimento pessoal. No primeiro texto, seguindo as ideias de Jung, ela define um complexo como "grupos de representações carregadas de sentimentos" (Spielrein, 1911/2014, p. 145). Em "A destruição como origem do devir", Spielrein (1912/2014) argumenta que a característica principal de um indivíduo é ser um divíduo, isto é, um ser dividido. Ela cita a hipótese de Ernst Mach, segundo a qual o ego seria algo em contínua mudança (e não essencial) e afirma que, para ela, o nome de Mach está intimamente associado ao de Jung, para quem a psique seria composta por muitos entes singulares, por complexos que lutariam entre si pela prioridade. A mais esplêndida confirmação dessa visão, segundo ela, seria fornecida pelos doentes com demência precoce, cujos egos vivenciariam tão fortemente os poderes dos complexos ativados que seus próprios desejos inconscientes seriam encarados como seres vivos hostis.

A característica da demência precoce mencionada acima é ilustrada, no texto de 1911 de Spielrein, a partir do caso da sua paciente, que, em certo momento, se irritava com más "suposições" que as pessoas faziam a seu respeito e achava que uma suposição poderia se tornar realidade a fim de substanciar seu direito à existência. Essas suposições, esclarece a autora, expressavam os próprios complexos da paciente. Esta sentia tão intensamente o poder de seus complexos sobre si que os enxergava como seres que poderiam se tornar vivos devido à sua vontade. A suposição, no sentido adotado pela paciente, seria uma imposição de certas intenções, ou seja, de determinados complexos, que, como grupos de representações carregadas de afeto, demandariam grande influência sobre as ações. Dessa forma, seria possível que, em determinadas circunstâncias, as suposições se tornassem realidade, uma vez que não seriam meras possibilidades aleatórias, pois tornariam os complexos objetivamente conscientes. Assim, de acordo com Spielrein: "um complexo sempre representa uma possibilidade que adquire direito à existência por meio de ativação especial, ou seja, se torna realidade" (Spielrein, 1911/2014, p. 146).

Spielrein (1911/2014) argumenta que o ser humano possui duas vivências, uma consciente e outra inconsciente, e que esta última é a responsável pela criação de uma tonalidade afetiva. Esse processo é exemplificado da seguinte forma: gostamos de um conto de fadas ou de um poema qualquer porque representações carregadas de prazer são incitadas por ele, de forma que o prazer é vivenciado quando o novo conteúdo da representação entra em contato com o antigo. Nesse caso, temos a impressão de que o sentimento de prazer faz parte do conteúdo atual da representação, pois nos alegramos com ele no presente. No entanto, na verdade, nossa alegria pertence a vivências passadas, as quais não dizem respeito apenas às nossas experiências pessoais, mas também às vivências ancestrais. Spielrein introduz, então, a hipótese de que "herdamos também a sedimentação das vivências de nossos ancestrais dentro de nós" (Spielrein, 1911/2014, p. 213). Modos de pensamento muito antigos influenciariam nossa consciência do presente, de forma que seria possível dizer que o inconsciente dilui o presente em um passado que ultrapassa a experiência individual. Assim, poderíamos ver no inconsciente algo que estaria fora do tempo, ou que seria, ao mesmo tempo, presente, passado e futuro. Em suas palavras:

O inconsciente nos fornece indícios sobre os conflitos pessoais no presente, sobre os conflitos do passado filogenético a partir do qual se originam as vivências pessoais e, eventualmente, sobre o desenvolvimento futuro das coisas, já que o futuro emerge do passado (na verdade, ele é apenas uma forma do passado) (Spielrein, 1911/2014, p. 216).

Sobre o mecanismo da demência paranoide, Spielrein argumenta que o doente parte de seus conflitos presentes. Por exemplo, a sua paciente repugnavam as relações sexuais com o marido. A reflexão consciente sobre esse fato consideraria diversas possibilidades do mundo real que poderiam ajudá-la a se livrar da situação desagradável. No entanto, a doença faz justamente o contrário ao substituir o mundo externo real por um mundo interno com valor de realidade. Esse fato já havia sido demonstrado por Jung, reconhece Spielrein, no entanto, segundo ela, o material de sua paciente mostra que esse eu profundo, que se expressa na doença, pertence "a um passado que ultrapassa o âmbito do indivíduo" (Spielrein, 1911/2014, p. 215). A paciente insere sua vivência presente nesse passado e, em tal processo, as características pessoais são eliminadas: o eu é substituído pelo nós.

Um dos exemplos que ilustram esse fenômeno é o fato de a paciente dizer a terra foi perfurada, em vez de eu fui maculada durante o ato sexual. Spielrein (1911/2014) esclarece que a paciente compreendia a terra como uma mulher que é conspurcada pelo fato de absorver no coito, além do sêmen, também a urina. Ao se referir à terra, e não a si mesma, ela fala a língua do pensamento mitológico, aponta a autora, pois os antigos viam na terra uma mulher poderosa. A mulher, de maneira geral, foi maculada - e não ela como indivíduo. Assim, sua dor é diluída entre as várias representações análogas que abrigamos dentro de nós como herança de nossos ancestrais.

Em seu texto "A destruição como causa do devir", Spielrein (1912/2014), ao retomar o exemplo da fala a terra foi perfurada, argumenta que, em sua opinião, aí estaria o sentido da expressão simbólica. O símbolo significaria o mesmo que a representação penosa, mas seria menos diferenciado enquanto representação do eu. Nós podemos pensar em muito mais conteúdos quando falamos "mulher" - já que eles só precisam se assemelhar entre si na essência - do que quando falamos na representação do eu muito mais definida de uma Martha N., exemplifica a autora. Para qualquer ser humano, as outras pessoas só existiriam na medida em que fossem acessíveis à sua psique, ou seja, apenas as características dos outros que correspondessem a nós mesmos existiriam para nós. Por exemplo, quando o sonhador se substituísse por outra pessoa, ele não estaria procurando representar a pessoa em questão. O que lhe interessaria seria apenas apresentar, na pessoa substituta, a característica que correspondesse à realização de seu desejo. Se o sonhador quisesse ser invejado por ter belos olhos, então, ele agregaria diversas pessoas com belos olhos em uma pessoa mista, de forma que o resultado seria um tipo em vez de um indivíduo. Segundo Spielrein (1912/2014), os estudos de pacientes com esquizofrenia mostram que um tipo corresponde a formas arcaicas de pensamento.

Em seu texto de 1911, a autora argumenta que a esquizofrenia gosta de se servir de conceitos abstratos vagos, devido ao fato de que estes são extratos de várias representações concretas unitárias adquiridas por meio de longa experiência, o que faz com que sejam muito mais significativos do que designações concretas e exatas. Durante a elaboração consciente de um objeto, os conceitos abstratos poderiam ser compreendidos por cada indivíduo à sua maneira, o que faria com que eles perdessem sua especificidade. Seria justamente essa falta de especificidade que tornaria os conceitos gerais tão adequados para a vida onírica da esquizofrenia. Quanto menos circunscrito fosse um conceito, menos ele indicaria algo determinado, concreto, mas mais conteúdo de representação poderia abarcar. Assim, na esquizofrenia, os conteúdos pessoais penosos seriam transformados em símbolos, os quais deveriam sua origem ao anseio de um complexo pela sua multiplicação, pela diluição na totalidade geral do pensamento, processo no qual as características pessoais desapareceriam.

Outra característica da esquizofrenia enfatizada é a presença de componentes positivos e negativos nas mesmas fantasias e expressões. Um exemplo é o uso que a paciente fazia do verbo catolizar como equivalente a entusiasmar-se pelo amor sexual. A religião, como elemento espiritual, faz oposição à sexualidade, ou seja, ao elemento físico, esclarece a autora. Assim, a nomeação dos componentes sexuais pelo negativo (pelo espiritual) significava ao mesmo tempo uma rejeição a esses componentes. Spielrein (1911/2014) ilustra com vários exemplos a expressão de uma ideia pelo seu negativo, ou pela inversão, na construção simbólica de sua paciente. Com relação a esse aspecto, ela ressalta a importância do conceito de ambivalência de Bleuler, assim como do mecanismo da representação pelo oposto descrito por Freud em "A significação antitética das palavras primitivas" (Freud, 1910/1998). Ambas as hipóteses auxiliariam a compreensão do surgimento das imagens na demência, segundo Spielrein (1911/2014).

Em "A teoria do negativismo esquizofrênico", Bleuler (1910/1912) argumenta que, ao menos a parte essencial do ego esquizofrênico, retira-se para uma vida de sonhos; para um mundo de ideias e desejos subjetivos. Os pacientes teriam uma ferida vital que seria separada do ego e encoberta por uma concepção oposta. Mesmo as pessoas normais apresentariam a tendência a fecharem-se em si mesmas, pois, a partir do contato com os outros, surgem muitas coisas que geram dor por associação com os complexos. Na esquizofrenia, contudo, esse processo seria intensificado, o que explicaria a forte recusa e oposição à realidade, explica o autor.

Bleuler (1910/1912) aponta que, na esquizofrenia, a ambivalência - sempre presente no psiquismo normal - também estaria intensificada. Três tipos de ambivalências são descritas: a ambivalência afetiva, a da vontade e a intelectual. Segundo sua descrição, na ambivalência afetiva, dois tons de sentimentos contrários seriam atribuídos à mesma ideia, de forma que o pensamento seria simultaneamente investido de características positivas e negativas. A ambivalência da vontade seria uma consequência natural da afetiva e se expressaria pelo querer e não querer a mesma ação. A ambivalência intelectual consistiria no fato de se pensar os mesmos pensamentos, ao mesmo tempo, positiva e negativamente.

Enquanto uma pessoa normal seria capaz de conviver com sentimentos e pensamentos ambivalentes sem cindi-los, na esquizofrenia ocorreria uma cisão psíquica das ideias, impulsos e sentimentos ambivalentes. Bleuler (1910/1912) cita como exemplo uma esposa mentalmente doente que, ao mesmo tempo, ama seu marido por suas boas qualidades e o odeia pelas más, de modo que sua atitude em relação a cada um dos sentimentos é como se o outro não existisse. A divisão esquizofrênica da psique dificulta o equilíbrio entre estados mentais opostos, explica Bleuler, de forma que os impulsos mais inapropriados podem ser colocados em ação tão facilmente quanto aqueles apropriados, assim como é possível que, em adição a um pensamento correto, ou sem seu lugar, seu negativo seja pensado.

Em "A significação antitética das palavras primitivas", Freud (1910/1998) busca compreender, a partir das hipóteses do filólogo Karl Abel, o fato de que o mecanismo dos sonhos desconhece a negação e emprega os mesmos meios de representação para retratar dois opostos. Abel (1884, citado por Freud, 1910/1998) aponta que, nas línguas mais antigas, de forma semelhante ao que acontece no mecanismo do sonho, há um grande número de palavras com dois significados opostos. Ele argumenta que tudo o que existe é relativo e só tem uma existência independente na medida em que se diferencie em suas relações com as outras coisas. Dessa maneira, uma vez que todo conceito seria gêmeo de seu contrário, inicialmente ele só poderia ser pensado, ou comunicado, pela expressão de seu oposto. Tendo em vista os vários exemplos citados no texto original de Abel, Freud diz que podemos ver na correspondência entre a peculiaridade dos sonhos e tal característica das línguas antigas a confirmação da hipótese sobre o caráter regressivo e arcaico da expressão dos pensamentos em sonhos. Spielrein (1911/2014), por sua vez, a partir dos exemplos das fantasias de sua paciente, demonstra como esse mesmo mecanismo da representação pelo oposto está presente nas construções fantasiosas da esquizofrenia e que, atrelado a ele, está a ambivalência dos sentimentos, que é exacerbada e cindida na esquizofrenia.

A autora demonstra também como destruição e criação, morte e vida, estavam intimamente conectadas nas construções de sua paciente, mais especificamente como a destruição seria condição para a criação. Uma das fantasias da paciente era de que o útero teria que ser cozido e macerado para ser preparado para a criação de uma nova geração. Assim, o organismo vivo teria que ser morto, triturado, diluído para gerar outro organismo. O ato de matar, punir tinha para a paciente significado de salvar, ressuscitar, e o coito era expresso como matar, cozinhar, queimar (Spielrein, 1911/2014).

A presença simultânea de componentes positivos e negativos nos mesmos fenômenos, assim como a relação indissociável entre destruição e criação, está na base da hipótese do instinto de morte que Spielrein propõe em seu artigo sobre a destruição, de 1912. Nesse texto, ela retoma e desenvolve as ideias apresentadas em 1911 e formula uma concepção mais abrangente sobre o funcionamento mental.

 

A psique da espécie e o instinto de morte

Em "A destruição como origem do devir" (Spielrein, 1912/2014), retomando as hipóteses apresentadas em 1911, Spielrein argumenta que um evento adquire tonalidade emocional apenas na medida em que estimule tonalidades emocionais de conteúdos previamente vivenciados, que permanecem ocultos no inconsciente. Por esse motivo, nós experimentaríamos muito pouco no presente. Pensamentos e representações inconscientes acompanhariam cada representação ou pensamento consciente e transformariam os produtos do pensamento consciente em uma linguagem específica. Este último processo de transformação é denominado assimilação ou dissolução.

Para Spielrein (1912/2014), os conteúdos da consciência se diferenciariam do inconsciente e, neste último, seriam assimilados, o que determinaria a tonalidade emocional de uma experiência. Assim, no inconsciente, cada representação diferenciada seria dissolvida, ou seja, transformada em um estado indiferenciado. A autora retoma a fala de sua paciente mencionada anteriormente para exemplificar esse processo. A terra representaria a grande mãe ou a representação inconsciente de todas as pessoas. Nessa grande mãe (o inconsciente), a paciente transformaria si mesma em sua mãe (terra) indiferenciada.

Spielrein (1912/2014) distingue, então, entre uma psique do eu (Ichpsyche) e outra mais profunda, denominada psique da espécie (Artpsyche). Além de conter experiências do passado individual, o inconsciente conteria sedimentos de experiências de inúmeras gerações, de forma que a assimilação inconsciente de eventos que tivessem ocorrido em muitas gerações se encaixaria na cadeia de pensamentos do presente, ou seja, transformaria uma experiência do eu em uma experiência da espécie. Quanto mais nos aproximássemos de nossos pensamentos conscientes, mais diferenciadas seriam nossas representações, ao passo que, quanto mais penetrássemos no inconsciente, mais universais e típicas elas seriam. Segundo a autora: "o âmago da nossa psique não conhece o eu, mas apenas seu somatório, o nós, ou o eu presente, visto como objeto, é subordinado a outros objetos semelhantes" (Spielrein, 1912/2014, p. 238). Assim, uma parte individual da personalidade poderia ser tomada como objeto.

Em seu texto de 1912 sobre a destruição, Spielrein (1912/2014) retoma também a hipótese de que, na esquizofrenia, como consequência da falta de atividade do eu, as representações deste são transformadas em representações da espécie ou objetivas. A autora sustenta que tal patologia poderia ser interpretada como uma batalha entre as duas tendências antagônicas da psique. Dessa maneira, o antagonismo presente na esquizofrenia é concebido, em 1912, como uma exacerbação de um conflito inerente ao funcionamento mental em geral. A autora caracteriza tal conflito da seguinte forma: "a psique da espécie quer transformar a representação do eu em uma representação tipicamente impessoal, a psique do eu defende-se dessa diluição" (Spielrein, 1912/2014, p. 240).

Com essas hipóteses, então, a autora sustenta que duas tendências opostas - uma tendência à dissolução e assimilação e uma tendência à diferenciação - estariam presentes no psiquismo, as quais seriam expressões psíquicas das pulsões de conservação da espécie e de autoconservação, respectivamente. Assim, a oposição - sustentada ainda por Freud na época - entre estes dois tipos de pulsões é mantida5. No entanto, Spielrein insere o instinto de morte no interior do instinto sexual.

No início de seu texto de 1912, a autora levanta a questão sobre por que razão a pulsão de procriação, a mais poderosa das pulsões, pode trazer consigo sentimentos negativos, como ansiedade e desgosto, ao lado de sentimentos positivos. O que acontece ao indivíduo na presença da atividade sexual que justifica esse estado mental, pergunta-se ela. Após mencionar hipóteses de alguns autores que apontaram essa relação e tentaram explicá-la, Spielrein formula uma hipótese própria para respondê-la: "tais sentimentos correspondem aos componentes destrutivos do instinto sexual" (Spielrein, 1912/2014, p. 232). Adiante no texto, ela se refere à presença de um "instinto de morte no instinto sexual" (Spielrein, 1912/2014, p. 259)6.

A necessidade de supor um componente destrutivo no instinto sexual é defendida pela autora após a consideração de alguns fatos biológicos. Na reprodução, as células unitárias são destruídas dando origem a uma nova vida. Alguns seres inferiores morrem após se reproduzirem. No caso dos seres multicelulares, a diferença seria apenas quantitativa: uma parte do organismo (células germinativas), que representa o organismo inteiro, é destruída. Nesse caso, o componente masculino funde-se ao componente feminino, o qual é reorganizado e assume uma nova forma mediada pelo intruso desconhecido. Assim, diz ela:

Destruição e reconstrução, as quais estão presentes mesmo em circunstâncias normais, ocorrem bruscamente. O organismo descarrega os produtos sexuais como qualquer uma de suas excreções. É improvável que o indivíduo não tenha no mínimo uma suspeita, traduzida em afetos correspondentes, sobre a existência desses processos de destruição e reconstrução em seu organismo. Assim como os próprios afetos de bem-estar associados ao devir estão presentes na pulsão de procriação, os afetos de defesa, como angústia e aversão... correspondem aos componentes destrutivos do instinto sexual (Spielrein, 1912/2014, p. 232).

Como mencionamos acima, encontramos vários exemplos da relação necessária entre sexualidade e destruição no caso relatado por Spielrein no texto de 1911. Neste, após relatar tais exemplos, a autora defende a existência de dois elementos antagônicos na sexualidade: o instinto sexual e o instinto de morte a ele associado trabalhariam no sentido da conservação da espécie e dariam origem à tendência à dissolução e assimilação, à qual se oporia a tendência à diferenciação, que seria expressão da pulsão de autoconservação. Enquanto a primeira dessas tendências visaria transformar a experiência do eu em uma experiência da espécie, a segunda visaria manter a inércia da personalidade do eu. Como não haveria devir sem destruição, a conservação da espécie daria origem à tendência à dissolução e assimilação, da qual dependeria a criação. Já a pulsão de autoconservação não daria origem a nada de novo, uma vez que visaria manter a inércia do eu (Caropreso, 2016). Assim, Spielrein argumenta que:

A pulsão de autoconservação é uma pulsão simples, composta apenas de um lado positivo. Já a pulsão de conservação da espécie, que precisa dissolver o antigo para que o novo surja, é composta de um componente positivo e um negativo. A pulsão de conservação da espécie é, por essência, ambivalente; por isso, o estímulo dos componentes positivos provoca, ao mesmo tempo, o estímulo dos componentes negativos, e vice-versa. A pulsão de autoconservação é uma pulsão "estática", na medida em que deve proteger o indivíduo que já existe contra influências externas. A pulsão de conservação da espécie é uma pulsão "dinâmica" que anseia pela alteração, pela "ressurreição" do indivíduo em uma nova forma. Nenhuma alteração pode acontecer sem o aniquilamento do estado antigo (Spielrein, 1912/2014, p. 261).

A autora afirma que o processo de dissolução e assimilação poderia ser vivido de forma prazerosa ou desprazerosa. Na demência precoce, a transformação das representações do eu em representações da espécie daria origem inicialmente a ansiedade e depressão severas. Tais sentimentos surgiriam enquanto o paciente se empenhasse em sustentar uma relação egoica. Com a progressão da doença, a indiferença se instalaria. Ela chama atenção para o fato de que podemos sentir um prazer real no desprazer ou na dor, o que conduz à hipótese de que nem todo o funcionamento mental é regido pelo princípio do prazer, tal como ainda proposto por Freud (Caropreso, 2016).

Spielrein (1912/2014) diz concordar com a suposição de Freud de que a causa movens de nosso ego consciente e inconsciente é a busca pelo prazer e pela supressão do desprazer. No entanto, ela se pergunta se não possuiríamos impulsos poderosos que colocassem em movimento nossos conteúdos psíquicos sem consideração pela miséria do ego. Sua resposta é afirmativa. Ela defende que a psique da espécie não obedece ao princípio do prazer; que esse princípio diz respeito apenas ao funcionamento do eu consciente e inconsciente. Na psique da espécie, poderia estar presente um regozijo pela dor que prejudicaria a luta pela autopreservação, assim como um desejo de danificar a si mesmo (o eu). O desejo de ferir a si mesmo e o regozijo pela dor tornariam necessária a suposição de que existe um funcionamento psíquico mais profundo, que não seria guiado pelo princípio do prazer (Caropreso, 2016). Dessa maneira:

A psique do eu só pode desejar sentimentos de prazer, mas a psique da espécie nos revela o que desejamos, o que é carregado de afetos positivos e negativos para nós, e então vemos que os desejos da espécie que vivem dentro de nós não correspondem nem um pouco aos desejos do eu, que a psique da espécie quer assimilar em si a psique do eu recente, enquanto o eu, sim, cada partícula do eu possui a ambição de se autoconservar na forma presente (capacidade de perseveração). Mas a psique da espécie, a qual, portanto, nega o Eu atual, consegue fazê-lo de novo justamente por meio da negação, pois a partícula do Eu submersa volta a emergir travestida de novas representações, mais rica do que nunca (Spielrein, 1912/2014, p. 242).

O impulso de destruição, ou instinto de morte, proviria dessa psique profunda, cujo funcionamento não obedeceria ao princípio do prazer e seria o motor da tendência à dissolução nela presente.

 

A originalidade das hipóteses de Spielrein

No apêndice, publicado em 1912, do texto "Notas psicanalíticas sobre um caso de paranoia descrito autobiograficamente", Freud (1911/1998) diz que o trabalho de 1911 de Spielrein o ajudou a perceber a riqueza simbólica das fantasias e ideias delirantes de Schreber e discernir melhor o pertencimento ao mitológico de algumas de suas afirmações delirantes. Em "O interesse pela psicanálise" (Freud, 1913b/1998), Freud comenta que, nos últimos anos, psicanalistas como Spielrein, Jung e Abraham haviam percebido que a tese de que a ontogênese é uma repetição da filogênese teria que ser aplicada também à vida anímica. Como aponta Ritvo (1990/1992), nesse mesmo ano, em "Totem e tabu", Freud (1913c/1998) desenvolve sua mais famosa e controversa aplicação dessa teoria ao complexo de Édipo, propondo que este seria a recapitulação ontogenética de uma ocorrência real no desenvolvimento da civilização. Nos anos que se seguem, Freud (1917/1998, 1918/1998) continua defendendo essa hipótese, sobretudo com a noção de fantasias primordiais. Em sua segunda teoria do aparelho psíquico, proposta em "O ego e o id" (Freud, 1923/1998), ele sustenta que o Id seria composto em parte por aquisições filogenéticas. A seguinte passagem desse texto é elucidativa a esse respeito:

Descender dos primeiros investimentos de objeto do Id e, portanto, do complexo de Édipo, significa para o Superego algo mais... o coloca em relação com as aquisições filogenéticas do Id e o converte na reencarnação de formações egoicas anteriores, que deixaram seus sedimentos no Id (Freud, 1923/1998, p. 49).

Spielrein (1912/2014), no entanto, atribui um papel mais amplo do que Freud às memórias filogenéticas ao propor a hipótese da psique da espécie e da tendência à dissolução e assimilação do conteúdo do eu. Segundo a autora, a psique da espécie herdaria traços de memória de experiências vivenciadas por inúmeras gerações, os quais tenderiam a se sobrepor aos conteúdos da experiência pessoal. Para ela, essa influência dos conteúdos da espécie sobre nossa consciência atual seria generalizada, ou seja, todas as nossas experiências, em última instância, ganhariam seus significados a partir da associação com tais conteúdos. Dessa forma, já em 1912 ela parece dar uma importância às memórias filogenéticas que não encontra paralelo na teoria freudiana.

Alguns autores apontam a relação existente entre o conceito de psique da espécie, de Spielrein, e o conceito junguiano de inconsciente coletivo. Skea (2006) comenta que a emergência da ideia junguiana de inconsciente coletivo pode ser vista já no texto "Significação do pai", de 1909, embora ela tenha se concretizado na segunda parte de "Metamorfoses e símbolos da libido", publicado em 1912, onde é empregado o termo modos arcaicos de adaptação. Contudo, o termo inconsciente coletivo foi usado por Jung, pela primeira vez, apenas em "A estrutura do inconsciente", de 1916. Skea (2006) defende que Spielrein teve uma importante contribuição na então emergente teoria junguiana do inconsciente coletivo. Ele relata que, na segunda parte de "Metamorfoses e símbolos da libido", publicada no Jahrbuch, no mesmo volume de 1912 em que o texto de Spielrein sobre a destruição foi publicado, Jung se refere dezessete vezes ao estudo de Spielrein sobre a demência precoce de 1911, citando material do delírio da paciente que ela havia relacionado com o nível mitológico do inconsciente. No entanto, a tradução para o inglês de 1916 e todas as edições subsequentes, culminando em "Símbolos da transformação", de 1952, datam incorretamente o texto de Spielrein como sendo de 1912. Skea (2006) comenta ainda que, embora Jung tenha mantido a maior parte das referências ao trabalho de Spielrein em "Símbolos da transformação", ele retirou a única referência a ela presente na primeira parte de "Metamorfoses e símbolos da libido", publicado em 1911. Nessa referência, ele mencionava a interessante correlação entre formas patológicas e mitológicas reveladas nas investigações analíticas de Spielrein e enfatizava expressamente que ela havia descoberto o simbolismo aí presente através de seu trabalho, independente e sem conexão com suas ideias. Skea (2006) considera que, com a hipótese de psique da espécie, apresentada em seu texto sobre a destruição de 1912, Spielrein antecipa em quatro anos a definição de inconsciente coletivo de Jung e que isso nunca foi reconhecido por ele. Van Waning (1992) também considera que Spielrein antecipou o conceito junguiano de inconsciente coletivo.

Na edição de 1943 de "Sobre a psicologia do inconsciente" (Jung, 1943/1968), Jung afirma que o conceito freudiano de pulsão de morte foi proposto originalmente por Sabina Spielrein em seu texto sobre a destruição. Como se sabe, em "Além do princípio do prazer", Freud (1920/1998) defende a existência de uma pulsão de morte constitutiva do psiquismo. No entanto, a referência ao pensamento de Spielrein é parcimoniosa. No sexto capítulo do texto, ao comentar a hipótese de que o masoquismo pode ser primário em relação ao sadismo, ele insere uma nota dizendo: "Uma porção considerável dessas especulações foram antecipadas por Sabina Spielrein (1912) em um instrutivo e interessante artigo, o qual, contudo, infelizmente não me é inteiramente claro. Nele, ela descreve os componentes sádicos do instinto sexual como destrutivos" (Freud, 1920/1998, p. 55).

No texto "Mal-estar na civilização" (Freud, 1930/1998), Freud diz lembrar-se de sua própria atitude defensiva quando a ideia de um instinto destrutivo apareceu pela primeira vez na literatura psicanalítica e quanto tempo demorou para que se tornasse receptivo a ela. Katan (1966) afirma que essas considerações de Freud claramente se referem à publicação de Spielrein.

Além de Jung, vários autores afirmam que Spielrein antecipou o conceito freudiano de pulsão de morte (Lothane, 2003; Britton, 2003; Van Waning, 1992; Robert, 1966; Carotenuto, 1980/1984; Angelini, 2008; Peres, 2012). No entanto, embora não seja possível negar que Freud tenha sido, de alguma forma, influenciado pelas hipóteses de Spielrein, pode-se argumentar que há diferenças significativas entre o instinto de morte proposto pela psicanalista e a pulsão de morte freudiana.

A primeira delas é o fato de que, enquanto Spielrein (1912/2014) defende a existência de um instinto de morte no instinto sexual, Freud (1920/1998) sustenta que a pulsão sexual pertence à classe das pulsões de vida, à qual se oporia outro grupo de pulsões opostas, que trabalhariam a serviço da morte do organismo. Assim, ele não aceita a existência de uma pulsão de morte interna à pulsão sexual, embora reconheça a relação íntima entre sexualidade e destrutividade manifesta, sobretudo nos fenômenos do sadismo e do masoquismo. Dessa maneira, o que Freud explica a partir da vinculação entre a pulsão de morte e a pulsão sexual - as quais corresponderiam a duas classes de pulsões independentes e opostas -, Spielrein explica a partir de uma intensificação do componente destrutivo do próprio instinto sexual (Caropreso, 2017). Como aponta Kerr (1988), para Spielrein a sexualidade seria inerentemente ambivalente e a morte estaria contida em sua dialética. Já para Freud, a tendência para a morte seria manifestação primária de um instinto de morte independente da libido.

Outro ponto importante de distinção entre os dois autores é que, justamente por supor um instinto de morte no instinto sexual, Sabina considera o impulso destrutivo indissociável de um impulso reprodutivo, os quais se expressariam na tendência à dissolução e assimilação. Assim, para ela, a destruição impulsionada pelo instinto de morte seria indissociável da criação. Podemos dizer que a destruição seria condição para o surgimento do novo e o traria consigo necessariamente. Por esse motivo, ela considerava que a pulsão de preservação das espécies surgiria de componentes positivos e negativos. Já para Freud (1920/1998), a pulsão de morte visaria, em última instância, o retorno ao inorgânico, à aniquilação da vida, e não teria como consequência necessária, portanto, a criação. Freud explica a preservação e o desenvolvimento da vida a partir da ação das pulsões de vida, ou seja, a partir de outra classe de pulsões independentes (Caropreso, & Simanke, 2008). Assim, a pulsão de morte, por si só, conduziria à aniquilação da vida; ela não traria algo novo como consequência da destruição; ela não seria criativa. Nesse sentido, podemos dizer que, para Freud, a pulsão de morte seria puramente negativa, diferentemente do que sustenta Spielrein.

Além de propor que a destruição é indissociável da criação, para Spielrein (1912/2014), o instinto de morte visaria à aniquilação da psique do eu e sua submissão à psique da espécie. Assim, o que estaria em questão não seria a destruição da vida como um todo, mas sim a destruição do eu. Esse é outro ponto significativo que distancia os conceitos dos dois autores. A diferenciação entre psique do eu e da espécie e a suposição de que a primeira buscaria sobrepor-se a segunda não encontra paralelo na teoria freudiana.

Podemos dizer, portanto, que, com seu conceito de instinto de morte, Sabina Spielrein antecipa a hipótese de que existe "um" instinto de morte no psiquismo. No entanto, entre a sua hipótese e o conceito freudiano de pulsão de morte há diferenças fundamentais que distanciam o pensamento dos dois autores.

Como vimos, Spielrein (1912/2014) argumenta que o fato de haver, no funcionamento mental, um regozijo pela dor que prejudica o ego conduz à suposição de que nem toda atividade mental obedece ao princípio do prazer. Para ela, este último princípio diria respeito apenas ao ego consciente e inconsciente. Com isso, a autora parece antecipar a hipótese, introduzida na teoria freudiana em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1998), de que haveria um funcionamento psíquico primordial que antecederia aquele regido pelo princípio do prazer.

Tanto para Freud como para Spielrein, esse funcionamento primitivo teria um aspecto regressivo, embora isso não signifique o mesmo para os dois autores. Para Freud (1920/1998), tal atividade psíquica consistiria em uma compulsão à repetição, que visaria retornar a um estado anterior ao surgimento da própria vida. Para Spielrein (1912/2014), seria a atividade da psique da espécie que estaria para além do princípio do prazer e esta trabalharia no sentido de reproduzir uma experiência do passado da espécie. Tal diferença entre as hipóteses dos dois autores está na base da diferença que apontamos anteriormente a respeito do aspecto puramente negativo do conceito freudiano de pulsão de morte, o qual não está presente no conceito de instinto de morte de Spielrein. Além disso, para Freud (1920/1998), a compulsão à repetição promoveria a ligação da excitação e, assim, permitiria o surgimento do funcionamento mental governado pelo princípio do prazer. Dessa maneira, a compulsão à repetição trabalharia, ao fim e ao cabo, a favor deste último princípio (Caropreso, & Simanke, 2008). Já Spielrein (1912/2014) supõe que a atividade da psique da espécie se oporia àquela da psique do eu, o que se manifestaria na oposição entre a tendência à dissolução e assimilação, da primeira, e a tendência à diferenciação, da segunda.

Richebächer (2005/2012, p. 194) comenta que "quando Sabina Spielrein diz, em seu trabalho sobre a destruição, que há forças impulsivas que põem em movimento nosso aparato psíquico sem se preocupar com o bem-estar ou o sofrimento do ego, que obtemos diretamente prazer da desgraça e da dor, está expressando uma ideia completamente nova". Para a autora, Freud, nessa época, ainda não estava pronto para se dedicar a tais considerações.

 

Considerações finais

Em "Sobre o conteúdo psicológico de um caso de esquizofrenia (Dementia praecox)", Spielrein (1911/2014) se apoia nas concepções de Jung e Freud acerca do paralelismo entre os fenômenos neuróticos e oníricos e os esquizofrênicos, mas vai além ao apontar que a doença evoca conteúdos que transcendem a experiência individual. Ela interpreta as falas e fantasias esquizofrênicas como expressões de um processo de dissolução de conteúdos pessoais em sedimentos de experiências impessoais, pertencentes ao passado da espécie, e, a partir disso, defende que o inconsciente contém sedimentos de vivências de inúmeras gerações. As ideias do texto de 1911 são desenvolvidas em "A destruição como origem do devir" (Spielrein, 1912/2014), dando origem à distinção entre psique do eu e psique da espécie e ao conceito de instinto de morte.

Em 1912, Spielrein esclarece que o processo de dissolução, presente na esquizofrenia, é impulsionado pelo instinto de morte contido na pulsão de preservação da espécie. A autora propõe também que a tendência à dissolução está presente em todo funcionamento mental, embora se manifeste de forma mais intensa na esquizofrenia. Segundo ela, o conflito estaria presente em dois níveis no funcionamento mental. Haveria, em primeiro lugar, um conflito entre a psique da espécie (e sua tendência à dissolução e assimilação) e a psique do eu (e sua tendência à diferenciação). Ele seria expressão da oposição entre os impulsos de autopreservação e aqueles de preservação da espécie. Com isso, o primeiro dualismo pulsional freudiano é mantido, mas Spielrein introduz os componentes filogenéticos e o instinto de morte no interior das pulsões sexuais. Em segundo lugar, haveria um conflito interno ao impulso de preservação das espécies, o qual se daria entre os componentes destrutivos e reprodutivos do mesmo. A exacerbação dos componentes destrutivos do instinto sexual impulsionaria o processo de dissolução que estaria na base da esquizofrenia.

Na época, a discussão sobre a possibilidade de memórias filogenéticas estava emergindo no âmbito da psicanálise e viria a adquirir importância cada vez maior nos anos seguintes. Contudo, com o conceito de psique da espécie e psique do eu, Spielrein propõe uma concepção original da dinâmica mental e do conflito psíquico e atribui a tais memórias uma importância até então inédita nas hipóteses psicanalíticas sobre o funcionamento mental. Suas hipóteses do instinto de morte e da existência de um funcionamento mental primordial, que não seria governado pelo princípio do prazer, antecipam certos aspectos das ideias que Freud viria a elaborar em 1920, apesar das diferenças entre as concepções dos dois autores apontadas anteriormente.

O pensamento de Spielrein revela uma riqueza de ideias e de intuições teóricas e clínicas que parece conter o germe de hipóteses centrais que seriam desenvolvidas nos anos subsequentes, sobretudo por Freud e Jung. No entanto, ele apresenta uma originalidade teórica que justifica uma análise mais cuidadosa de seu desenvolvimento interno e uma maior divulgação, para que o papel de Spielrein na história da psicanálise possa ser devidamente reconhecido7.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 03/04/2017
Aprovado para publicação em: 26/09/2017

Endereço para correspondência
Fátima Siqueira Caropreso
E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br

 

 

*Professora do Curso de Psicologia e do PPG em Psicologia e em Filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.
1No sexto capítulo do texto, ao comentar a hipótese de que o masoquismo pode ser primário em relação ao sadismo, Freud (1920/1998, p. 53) insere uma nota dizendo: "Sabina Spielrein, em um trabalho substancial e rico em ideias (1912), ainda que infelizmente não totalmente compreensível a mim, antecipou boa parte dessa especulação. Ela designa ali o componente sádico da pulsão sexual como 'destrutivo'".
2As cartas e o diário de Spielrein permaneceram guardados na Biblioteca do Instituto de Psicologia da Universidade de Genebra desde sua partida para a União Soviética, em 1923, e foram descobertos em 1977.
3O termo complexo foi cunhado, em 1898, por Theodor Ziehen, um dos primeiros psiquiatras infantis da Alemanha. Jung usou o termo para se referir aos ditos "pontos de acesso" apontados pelo teste de associação de palavras (Petchkovsky et al., 2013).
4Segundo Jung (1907/2011), o eu consistiria na expressão psicológica de uma combinação firmemente associada entre todas as sensações corporais. Ele seria um complexo entre outros, embora, na normalidade, preponderasse sobre os demais.
5A explicação do primeiro dualismo pulsional, elaborada por Freud (1914/1998) no texto "Introdução ao narcisismo", já permite inferir que a pulsão sexual é concebida como uma pulsão de conservação da espécie. Nesse texto, na tentativa de fundamentar o dualismo entre pulsões sexuais e pulsões egoicas, o autor afirma: "em primeiro lugar, essa divisão conceitual corresponde à divisão popular corrente entre fome e amor. Em segundo lugar, considerações biológicas advogam em seu favor. O indivíduo, realmente, leva uma existência dupla, uma vez que é fim em si mesmo e elo dentro de uma cadeia da qual é tributário contra a sua vontade ou, ao menos, sem que a medeie. Ele tem a sexualidade como um de seus propósitos, enquanto que outra consideração o mostra como mero apêndice de seu plasma germinal, à disposição do qual coloca suas forças em troca de um ganho de prazer; é o portador mortal de uma substância, talvez, imortal, assim como um herdeiro é apenas o detentor temporário de uma instituição que sobrevive a ele. A separação das pulsões sexuais a respeito das egoicas apenas refletiria essa função dupla do indivíduo" (Freud, 1914/1998, p. 76). Essa concepção da pulsão sexual como pulsão de conservação da espécie é mais claramente afirmada na seguinte passagem do texto "Esboço de psicanálise", onde Freud (1940/1998, p. 146) comenta sua hipótese do segundo dualismo pulsional: "Após longa vacilação e oscilação, resolvemos aceitar apenas duas pulsões básicas: Eros e pulsão de destruição (A oposição entre pulsão de conservação de si mesmo e de conservação da espécie, assim como a outra entre amor egoico e amor objetal, se situam no interior de Eros)". Spielrein, em seu texto de 1912, claramente identifica o instinto sexual ao instinto de conservação da espécie.
6Spielrein (1912/2014b) usa os termos Instinkt, Trieb e Drang ao longo do texto. Ela usa Instinkt nos substantivos compostos Todesinstinkt (instinto de morte) e Sexualinstinkt (instinto sexual). O termo Drang é usado em Destruktionsdrang (impulso de destruição) e o termo Trieb é usado em Selbsterhaltungstrieb (pulsão de autoconservação), Arterhaltungstrieb (pulsão de conservação da espécie) e Fortpflanzungstrieb (pulsão de reprodução). Ela usa também, em poucas ocasiões, Fortpflanzungsinstinkt (instinto de reprodução) e Selbsterhaltungsinsinkt (instinto de autoconservação).
7Apoio: CNPq - Bolsa de Produtividade em Pesquisa.

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