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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

A atualidade de Hello Brasil!: problematizações sobre a função paterna e a cultura brasileira1

 

The topicality of Hello Brasil!: problematization on paternal function and Brazilian culture

 

L'actualité de Hello Brasil!: problematisations sur la fonction paternelle et la culture brésilienne

 

 

Fernando Basso*; Amadeu de Oliveira WeinmannI**; Gustavo Caetano de Mattos Mano***

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se examinar a atualidade de Hello Brasil!, livro do psicanalista Contardo Calligaris publicado pela primeira vez em 1991 e relançado em 2017. Traçando uma leitura crítica, propomo-nos a apresentar o contexto de produção da obra, destacar suas ideias principais, indicar suas potencialidades, assinalar os diálogos com outras produções e identificar seus limites teóricos. A partir dessas análises, que se inscrevem no domínio das interpretações psicanalíticas da cultura brasileira, postulamos que Hello Brasil! sustenta-se na hipótese do "déficit paterno" e do "Um" da função paterna. Tal esquema teórico requer que se retome com rigor o conceito "função paterna" como operador de análises da cultura.

Palavras-chave: psicanálise, interpretação, função paterna, cultura brasileira.


ABSTRACT

This paper aims to examine the topicality of Hello Brasil!, book written by psychoanalyst Contardo Calligaris, published for the first time in 1991 and reissued in 2017. Adopting a critical approach, we intend to show the context in which the book was produced, highlight its mains ideas, indicate its stronger points, point out its connections with other works and identify its theoretical boundaries. From these analyzes, situated in the domain of psychoanalytic interpretations about Brazilian culture, we postulate that Hello Brasil! is sustained on the hypothesis of a "paternal deficit" and on the "One" of paternal function. Such a theoretical scheme requires that the concept "paternal function" be rigorously resumed as an operator on cultural analysis.

Keywords: psychoanalysis, interpretation, paternal function, Brazilian culture.


RÉSUMÉ

Cet article examine l'actualité de Hello Brasil!, livre du psychanalyste Contardo Calligaris, publié pour la première fois en 1991 et relancé en 2017. En traçant une lecture critique, nous proposons de présenter le contexte de production de l'œuvre, de souligner ses idées principales, d'indiquer ses potentialités, de marquer les dialogues avec d'autres productions et de identifier leurs limites théoriques. A partir de ces analyses, qui sont situés dans le domaine des interprétations psychanalytiques de la culture brésilienne, nous postulons que Hello Brasil! repose sur l'hypothèse du " déficit paternel " et du " Un " de la fonction paternelle. Un tel schéma théorique exige qu'on reprendre rigoureusement le concept " fonction paternelle " comme opérateur d'analyses de la culture.

Mots-clés: psychanalyse, interprétation, fonction paternelle, culture brésilienne.


 

 

Introdução

Em 1991, Fernando Collor de Mello entrava em seu segundo ano de mandato como presidente enfrentando uma inflação anual de 1620%. Em uma tentativa de conter a severa crise econômica que há duas décadas assolava o país, Collor havia, no ano anterior, congelado as poupanças - medida desastrosa que minara fatalmente seu tumultuado governo, marcado por escândalos de corrupção e planos econômicos malsucedidos. Enquanto parte da população apertava o cinto, outra festejava a liberação da importação de automóveis e trazia do exterior possantes de luxo. O automobilismo, aliás, se converteria em paixão nacional com as conquistas de Ayrton Senna, que naquele ano sagrar-se-ia tricampeão mundial de fórmula 1. Por outro lado, ressentida após o fracasso na Copa do Mundo da Itália, parte da imprensa esportiva, ao referir-se à seleção brasileira de futebol, passara a adotar, depreciativamente, o termo "Era Dunga", em alusão ao marcador enérgico e supostamente pouco criativo. No cenário internacional, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai reuniam esforços para compor o Mercosul, a União Soviética dava seus últimos suspiros e a Guerra do Golfo marcaria o início da ininterrupta presença militar americana no Oriente Médio.

A difusão do pensamento lacaniano no Brasil, a partir dos anos 1980, estimulou, como afirma Joel Birman (2004), a retomada da psicanálise como teoria que articula novas possibilidades de pensamento sobre a cultura do país por meio do diálogo com diferentes ciências, como a antropologia social, a filosofia, a linguística e a história. É nesse contexto que Contardo Calligaris lança Hello Brasil!: notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. Calligaris (1991, p. 12) apresentava seu livro como "escrito de amor": "ao mesmo tempo uma declaração, uma elegia e, naturalmente, também uma queixa". Com estilo descompromissado de normas teóricas e do rigor acadêmico, Calligaris conduz uma narrativa ensaística, onde propõe uma visão do país a partir da perspectiva de um europeu recém-chegado aos trópicos. Pelo caráter de pioneirismo, o livro fez marca dentre as publicações psicanalíticas dedicadas à interpretação da cultura brasileira. Após duas décadas longe das prateleiras, a obra ganhou, em 2017, uma reedição com importantes modificações: Hello, Brasil! e outros ensaios: psicanálise da estranha civilização brasileira. Como o novo batismo sugere, nessa versão Hello Brasil! ganhou o estatuto de um longo ensaio, sendo acompanhado por um prefácio e por outros textos publicados posteriormente; a condição de psicanalista europeu que habitava o título foi suprimida; e a vírgula inserida, discretamente, no título sugere que uma pontuação se faz necessária.

A proposta do presente escrito é introduzir na releitura de Hello Brasil! uma escansão, retomando os argumentos principais da obra à luz da contemporaneidade. Primeiramente, apresentaremos um apanhado das ideias fundamentais de Calligaris, norteados pela fidelidade ao texto original, destacando sua hipótese do "déficit paterno" e do "Um" da função paterna. A seguir, apontaremos contrapontos e problematizações de psicanalistas e outros intelectuais sobre a intepretação do autor. Por fim, buscaremos examinar a atualidade do escrito de Calligaris e, considerando o diálogo estabelecido com outros autores - leitores de Hello Brasil! -, extrair potencialidades que permitam expandir os horizontes da interpretação psicanalítica da cultura brasileira.

 

Umtegração, função paterna e gozo

Calligaris inicia seu ensaio a partir de uma expressão que, proferida em conversas cotidianas, lhe causa estranhamento e lhe serve para batizar o capítulo inicial do livro: "este país não presta!" O autor pondera que a expressão muitas vezes apresentava-se a ele como uma tentativa afetuosa dos amigos de o dissuadirem de fixar residência no Brasil, visando preveni-lo contra a inevitável frustração futura, mas não deixa de perceber que ela é igualmente utilizada por diversos atores do cotidiano. Expressões desse tipo não são irrelevantes para a psicanálise: elas estabelecem uma narrativa de reconhecimento e identificação, formando uma cadeia de "traço distintivo" (Freud, 1920/2006, p. 213) da cultura nacional. O psicanalista italiano, contudo, lê o "este país não presta" com espanto: para ele, um europeu poderia dizer que determinado governo ou cenário econômico não presta, porém seria improvável que enunciasse algo similar sobre o país de origem. Calligaris (1991, p. 13) também não ignora que a referida expressão se alinha a um ensaio de projeto emigratório: "aqui não presta, vamos embora para onde preste".

Na interpretação de Calligaris, a depreciativa sentença remete a uma dificuldade de umtegração - neologismo que demarca um deslocamento em relação à ideia unificante de integração, pois "[...] não se trata de uma dificuldade em ocultar ou uniformar as diferenças originárias das diversas etnias" (Calligaris, 1991, p. 14.), mas de um obstáculo relativo ao Um, "ao qual uma nação refere os seus filhos, relativa ao significante nacional na sua história e na sua significação" (Calligaris, 1991, p. 15).

O Um, na metapsicologia freudiana, encontra-se referido à dimensão identificatória. Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud (1921/2013) propõe um modelo de identificação através do qual o sujeito não se identifica com a imagem total de uma pessoa, mas com um elemento isolado, um recorte, um traço. Ou, na leitura lacaniana de "ein Einziger Zug", ao traço unário (Lacan, 1961-1962/2003). Na perspectiva de Calligaris, se os brasileiros se autorizavam a falar do Brasil desde a posição de estrangeiros, isso dava testemunho de um certo desencontro em relação ao traço identificatório. O psicanalista propõe, então, dois lugares discursivos relativos à enunciação no Brasil: o colonizador e o colono. Essas posições enunciativas seriam distintas em suas modalidades discursivas, mas estariam presentes no imaginário de cada brasileiro.

Para Calligaris (1991, p. 16-17), o colonizador "é aquele que veio impor a sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo demonstrar a potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar um outro corpo do que o corpo materno) e exercê-la longe do pai". Ele inscreve seu discurso, portanto, no horizonte de um gozo ilimitado da nova terra e o faz explorando, devastando e arrasando. Entretanto, seu desejo endereça-se à terra original, à mãe interditada da qual ele não pode gozar nem fazer gozar. Nessa perspectiva, sua enunciação de que "esse país não presta" denuncia, por um lado, que o colonizador desejava gozar de outro (aquele que ficou para trás) e, por outro lado, que neste ele não goza como presume que deveria. Calligaris aproxima a figura do colonizador à estrutura perversa, na medida em que ele "usurpa a lei do pai para propô-la a um corpo sem interdito" (Calligaris, 1991, p. 156), sendo a exploração extrativista colonial o expoente desse lugar do colonizador.

O colono, por sua vez, coloca-se em outro horizonte: "não um corpo de gozo além do interdito paterno, mas um interdito paterno que, impondo limites ao gozo, fizesse dele um sujeito" (Calligaris, 1991, p. 20). O que o colono espera do país é um pai que, castrando-o, reconheça sua filiação (ou, por reconhecer a filiação, imponha-lhe a castração) e, assim, designe a ele um nome, um lugar, um valor simbólico. Ele espera que uma coletividade inscreva nele uma interdição para poder ser reconhecido como cidadão, estando interessado na construção de um ideal de nação e no progresso social.

Da posição enunciativa do colono, o "esse país não presta" designa, antes de tudo, a insuficiência da potência paterna, que não soube ou não pode interditar os gozos nem transmitir a filiação e, portanto, obstruía as condições para que o colono pudesse fundar seu nome. Se o colonizador se avizinha da perversão, segundo Calligaris o colono mimetiza uma forma peculiar de histeria, em que a filiação original é desmentida em nome de uma nova filiação - que se revela invariavelmente frustrada e que, portanto, relança o apelo a um pai.

De acordo com Calligaris, os fantasmas são personagens do passado coletivo que se expressam em cada sujeito falante, por meio de repetições discursivas. A dialética entre o colonizador e o colono percorre toda a obra de Calligaris; mesmo a escravidão e seus desdobramentos são lidos através dessa ótica, a partir da qual o corpo escravo inscreve-se como "fantasma que parece sustentar o discurso de todos os agentes" (Calligaris, 1991, p. 39). Se, por um lado, colonizador e colono são lugares discursivos, por outro o escravo assinalaria a condição de infans, alienado ao gozo do Outro. Assim, a herança escravista na sociedade teria o lugar de fantasia que atormenta os dois polos históricos do laço social. Calligaris salienta a forte e persistente presença do fantasma da escravidão no imaginário social, com a prevalência de um pai sádico que muitos prefeririam esquecer - apagamento este que dificultaria o reconhecimento da potência da tradição nacional de resistência a este passado colonial. Para o autor, este espectro escravista estaria presente em toda relação interpessoal do país, principalmente pela longa duração da escravidão (1530-1888), servindo de modelo de domínio social, mesmo após o término de seu regime, tendo ainda impactos sociais no que se refere à desigualdade econômica e à criminalidade.

O nome do país também não escapa à análise do autor. Ao debruçar-se sobre o significante "Brasil", Calligaris observa que se trata de um raro episódio em que a nomeação se dá não a partir de uma origem mítica, mas de um produto explorado até a exaustão. Calligaris presume que "uma fundação exitosa institui uma ordem simbólica que, no caso de um país, se sustenta no significante nacional" (Calligaris, 1991, p. 100); o significante "Brasil", que deveria servir como Um nacional, contudo, parece-lhe apresentar uma insuficiência correlativa das relações estabelecidas com a matéria da qual extrai seu nome, o pau-brasil. Este significante nacional foi inscrito na cultura não como um valor simbólico, capaz de intermediar relações sociais, em que o brasileiro poderia "ser reconhecido e se reconhecer" (Calligaris, 1991, p. 33), mas, ao contrário, como marca do gozo da exploração colonial. Como consequência, o sintoma nacional brasileiro estaria, para Calligaris, atravessado por uma confusão entre a filiação simbólica e a submissão real, "efeito da história e da histeria nacional" (Calligaris, 1991, p. 165), pois aquele que deveria ser o responsável por permitir um laço simbólico estruturado a partir da falta impôs, ao contrário, um dízimo masoquista com sua exploração violenta.

O psicanalista lacaniano conclui, assim, que o colonizador conseguiu introduzir, no ato de nomeação do país, o discurso da exploração da terra como uma metáfora que regulasse o laço social. Logo, a transmissão da filiação nacional acabaria em um destino trágico, pois levaria o brasileiro ao encontro de uma decepção definitiva: "queres um nome? Eis o pau-brasil, dejeto da mesma exploração que prometo ao teu corpo" (Calligaris, 1991, p. 29). Nessa construção, se tece a apresentação da cena familiar de um pai oportunista que negava o reconhecimento de filiação aos filhos (pelo menos aos filhos locais, nascidos nesse solo conquistado), impossibilitando a inscrição de um significante nacional. Em consequência, essa ausência paterna deixaria somente a marca do abuso, do aproveitamento colonial, e - em ressonância com o nome de alguns ofícios, como sapateiro, jornaleiro, etc. - o povo nomeado como brasileiro "designa filiação nenhuma, mas é o nome comum de quem trabalha, explorado" (Calligaris, 1991, p. 29). Calligaris ilustra a exploração colonial da terra conquistada como um estupro mítico: o colonizador "maneja a nova terra como se pode sacudir o corpo de uma mulher possuída [...], esperando o seu próprio gozo do momento no qual a mulher esgotada se apagará em suas mãos - prova definitiva da potência do estuprador" (Calligaris, 1991, p. 18). Da mesma forma, o corpo escravo é equiparado ao corpo da terra explorada, constituindo-se no representante "de um corpo permitido, aberto, por efeito da potência da língua que o explora e que nele, portanto, se inscreve" (Calligaris, 1991, p. 31).

O binômio colonizador/colonizado também é utilizado por Calligaris para explicar a cronificação da ruptura com a lei no Brasil. Por causa de pais colonizadores que, visando o gozo, negaram a interdição, existiria uma denegação de filiação nacional e, consequentemente, a dificuldade de reconhecer-se como um membro legítimo da cultura. Segundo o psicanalista italiano, esse desamparo filial seria a explicação para o cinismo brasileiro perante a autoridade das instâncias formais da sociedade - governo político, sistema judiciário, organização policial, por exemplo -, pois elas carregariam, fatalmente, o semblante, a maquiagem que conteria de forma latente a violência escravista, ou seja, a vigência do autoritarismo patriarcal. Criminalidade e marginalidade constituiriam, para Calligaris, maneiras de responder socialmente à ausência de lei simbólica, "procurando encontrá-la, suscitá-la, de uma certa forma fundá-la" (Calligaris, 1991, p. 111).

Apesar de uma ligeira imprecisão bibliográfica na nomeação das referências, a discussão de Calligaris sobre marginalidade e criminalidade notadamente toma inspiração em dois textos de Lacan, "A agressividade em psicanálise" e "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia", e nas "Observações sobre a delinquência", de Charles Melman. Desses escritos, Calligaris (1991, p. 110) extrai a seguinte proposição: "quando os laços são reais, os atos devem ser simbólicos; quando os laços são simbólicos, os atos podem ser reais". Para o psicanalista italiano, uma vez que os laços simbólicos seriam frágeis na cultura brasileira, a marginalidade constituiria um caminho, pela via do ato, para obter alguma representação e nomeação social. O ato delitivo teria uma pretensão simbólica, com uma intenção inconsciente de encontrar a lei, mesmo sob a forma de um castigo. Logo, o "laço que o colonizador parece oferecer ao colono como laço de filiação é um laço real" (Calligaris, 1991, p. 112).

Segundo Calligaris (1991, p. 167), haveria um circuito de repetição mortífero, além do princípio do prazer, na procura masoquista por um pai sádico, buscando reconhecimento social estritamente no atravessamento da violência real. A nação constituiria, a priori, o conhecimento suposto de que "não levaria a sério um pai que não cobrasse", pois, na falta de um vínculo simbólico originário, somente seria possível a identificação com o pai privador, o qual, se não existisse de forma efetiva, precisaria, ao menos, ser imaginado nos discursos sociais. Resulta disso a decepção dos filhos nacionais com sua terra local, constituída pela impossibilidade da formação de um ideal de eu inspirado pelo lugar simbólico paterno. Se o colonizador em terras brasileiras veio para gozar e usufruir de suas riquezas, e não para exercer a função paterna na constituição de uma nova nação, ele desistiria do exercício da língua paterna e, portanto, para a criança seria delegado "nada menos que o fantasma paterno de um gozo sem limites" (Calligaris, 1991, p. 48).

Ao longo do seu escrito, Calligaris alude a vários colegas também empenhados em lançar um olhar sobre o Brasil, principalmente a Luiz Tarlei de Aragão e Octavio Souza. Mas há um que, anônimo, chama nossa atenção: o "colega francês" que, no Colóquio Franco-Brasileiro organizado em Paris pela Association Freudienne Internationale, na Maison de l'Amerique Latine, no ano de 1989, realiza uma exposição sobre o Brasil. Calligaris não poupa o apresentador de críticas e confessa sua irritação com o fato de que, embora o congresso propusesse um exame abrangente e transnacional, o único sintoma social discutido era o brasileiro, denunciando uma "lisonja histérica" (Calligaris, 1991, p. 159) dos participantes lationamericanos em relação aos representantes de um europai intocável em seu trono. "Como os amigos franceses poderiam, com efeito, se interrogar sobre o sintoma europeu quando se achavam investidos por um amor ilimitado que os colocava na pouca invejável posição do pai ideal?", pergunta-se Calligaris (Calligaris, 1991, p. 160).

Calligaris não revela, explicitamente, a identidade desse "colega francês", mas cruzando algumas informações é possível chegar a um suspeito: trata-se de Charles Melman, que naquela ocasião fechou o evento com uma fala intitulada "Casa grande e senzala", francamente inspirada na obra magna de Gilberto Freyre. Melman (2000) propõe que a situação colonial produz uma alteração estrutural no esquema do discurso do mestre e, a partir disso, o laço social reconheceria somente a violência como modo de manutenção. Em decorrência disso, conclui Melman (2000, p. 20), encontraremos um sujeito que "está inevitavelmente engajado em um apelo desesperado ao pai". Essa é, notadamente, uma conclusão problemática e Calligaris (1991, p. 158) sugere que tal interpretação deriva de um descaminho transferencial: "o colega francês, mais do que fundar suas reflexões sobre o que lhe dizem seus pacientes brasileiros na França, talvez devesse fundá-las sobre as razões e as modalidades do amor que eles lhe declaram".

Enfim, a cultura brasileira, na leitura de Calligaris, padeceria de um déficit na nomeação que deveria constituir suporte como valor de significante nacional. Tal condição comprometeria o estabelecimento de um traço identificatório para que cada brasileiro pudesse se reconhecer como pertencente ao povo constituído e ser reconhecido em suas tradições coletivas. Haveria, para Calligaris, a inversão da função paterna diante da lei social: o mandamento paterno seria a própria subversão de qualquer regra, o que consiste em um paradoxo, pois aquele que inscreveria o registro da lei é justamente quem solicitaria a impunidade como fator de reconhecimento identificatório. Daí derivaria, segundo a hipótese do psicanalista italiano, a frequente queixa de insatisfação com o país e degradação dos compromissos éticos firmados com o seu povo.

 

Fundações

O apelo ao pai e a falta de um significante nacional, que possibilitaria a inscrição de um ideal de eu e de uma posição desejante, proposta por Calligaris em Hello Brasil!, remetem a debates estabelecidos sobre a posição paterna no ensino lacaniano. Em Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938/2008), Lacan cunha a expressão "declínio social da imago paterna", para nomear as mudanças decorrentes da falência do modelo patriarcal, vigente durante séculos nas sociedades ocidentais, onde o pai - pater familias - era reconhecido como uma figura suprema na cena familiar.

O declínio da imago paterna se tornara, segundo o psicanalista francês, a grande neurose contemporânea, tornando o pater familias uma personalidade "sempre carente, de alguma forma ausente, humilhada, dividida ou postiça" (Lacan, 1938/2008, p. 60). Não se trataria, somente, da perda de uma posição social de autoridade, mas da perda de um referencial organizador, a figura paterna ficando reduzida a uma dimensão imaginária de idealização e hostilidade. A partir do conceito de declínio da imago paterna, formulou-se uma crítica social que insiste nos efeitos desagregadores do enfraquecimento das autoridades constituídas. No entanto, a compreensão do declínio social da imago paterna como a grande neurose de seu tempo parece indicar um importante deslocamento no falocentrismo burguês. Se, em Os complexos familiares..., por um lado, chora-se a morte do pai, por outro, ela é festejada. Na leitura lacaniana, posteriormente desenvolvida em seus seminários, a ênfase recai na potência criadora desse processo, isto é, nas possibilidades de inscrição de um nome que tal transformação instaura.

Lacan (1956-1957/1998), a partir da postulação do conceito nome-do-pai, situa o lugar paterno como um porta-voz, reconhecendo esta posição como organizadora da subjetividade, podendo ser inscrita por qualquer sujeito que exerça o papel de incluir a criança em um universo discursivo, concedendo-lhe a possibilidade de desejar. Longe de ser uma autoridade patriarcal, o lugar do pai é aqui pensado como uma função simbólica de reconhecimento e nomeação. Tal função, que deve ser entendida em seu sentido lógico-matemático, supõe um lugar vazio, isto é, diferenciado de suas eventuais encarnações imaginárias. Ela consiste na operação da Lei, que limita o gozo e, portanto, permite a produção de cultura.

Em 1963, Lacan (1963/2005) propõe uma virada decisiva: de Nome-do-Pai passa a falar em Nomes-do-Pai, indicando, com a conversão do singular em plural, uma mudança em seu pensamento. Na década de 1970, com o avanço de sua transmissão, o psicanalista francês sublinha a pluralização da função paterna; segundo Lacan (1975-1976/2007, p. 132), "podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição de nos servirmos dele". Servir-se do pai pressupõe a singularização da metáfora paterna; trata-se de saber como um pai transmitiu sua inscrição para seu filho e de como esse filho foi capaz de criar, de forma particular, certo estilo de fazer laço social.

Retomar esse fundamento do ensino lacaniano é um passo vital para compreender o argumento de Calligaris em Hello Brasil!, na medida em que o sintoma social brasileiro é pensado a partir de um hipotético déficit da inscrição paterna na cultura. No entanto, na reedição da obra o psicanalista não assume a utilização desse conceito, redirecionando o problema da ambiguidade ao leitor:

Se digo que no Brasil falta função paterna, é a mesma coisa: subentende-se que neste país faz falta algo que na Europa, "por sorte há de sobra". Mas é difícil de dizer quando esse subentendido está no meu texto e quando ele está mais nos meus leitores do que em mim (Calligaris, 2017a, p. 22).

 

Reverberações e contrapontos

Desde seu lançamento, Hello Brasil! mobilizou um grande número de leitores - seja corroborando e contribuindo na expansão dos argumentos nele presentes, seja apresentando divergências e problematizações. Exploraremos a seguir alguns desses desdobramentos.

Em Fantasia de Brasil, Octavio Souza (1994) faz de Calligaris um interlocutor privilegiado, retomando o conceito de umtegração e a dialética do colonizador e do colono, bem como o fantasma da escravidão que atravessa ambas posições discursivas: "o colonizador tem na escravidão a sua ambição, enquanto o colono tem na escravidão o seu temor" (Souza, 1994, p. 84). Pelo passado colonial, se constituiria no Brasil uma fantasia escravista com cenário sacrificial (base de toda a fantasia neurótica), no qual um "Outro onipotente toma o sujeito como objeto de seu gozo" (Souza, 1994, p. 89). No caso do Brasil, o pai não seria aquele que possibilitaria a interdição do gozo, viabilizando o advento do desejo; pelo contrário, ele se revela um novo agente que apenas incrementa o gozo da mesma construção fantasmática.

Souza destaca que colonizador e colono se medem por uma patologia social em relação à figura paterna: por um lado, o colonizador abandona sua terra natal com o projeto de conquistar a potência paterna ilimitada nesse novo solo estrangeiro; por outro, o colono busca um novo pai para se reconhecer como sujeito. Portanto, um "tem pai demais; outro, pai de menos" (Souza, 1994, p. 83). Fica marcada, nessa interpretação da cultura brasileira, que, em vez de promover uma castração simbólica pela função paterna, o lugar do colonizador é daquele que inseriu um objeto fetichista no lugar do ideal de eu. O colono, por sua vez, careceria justamente de um pai a quem se endereçar como ideal de eu.

Seguindo a trilha da umtegração, Doris Rinaldi (2005) sugere que o Um que faltaria ao país surgiria, para os brasileiros, não a partir de uma criação genuína nacional, mas de fora, no estrangeiro, reconhecido na expressão cotidiana "tudo o que vem de fora é melhor", ou na utilização de anglicismos, como shopping, por exemplo. Seria reeditada a posição de povo colonizado, agora numa submissão ao discurso norte-americano, pela qual ocorreria, na cultura nacional, a perpetuação da servidão voluntária ao Outro colonizador. Assim, os brasileiros novamente estariam submissos "ao eleger o Um estrangeiro como fetiche, no qual aparecem coagulados o significante e o objeto" (Rinaldi, 2005, p. 149). Essa servidão repetida produziria o esquecimento da diversidade interna brasileira, ao ignorar a cultura indígena e utilizá-la, assim como o negro e suas tradições africanas, apenas para compor uma aquarela brasileira mítica, em que o país seria uma suposta democracia racial.

Também é interessante notar como a leitura de Calligaris sobre o Brasil afina-se com a análise proposta por Sérgio Buarque de Holanda, principalmente no que concerne ao homem cordial. Essa aproximação teórica não é explícita no texto de 1991; sua confirmação pelo psicanalista italiano ocorre somente em 2017, em um Café filosófico dedicado ao relançamento de Hello Brasil! (Calligaris, 2017b). De acordo com Holanda (1936/2016, p. 281), "a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios [...]". Ao contrário do que aconteceu em países da América espanhola ou na América do Norte, no Brasil as elites privilegiaram uma vida no isolamento das fazendas, onde "[...] a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica" (Holanda, 1936/2016, p. 131). O intérprete do Brasil evidencia sua hipótese sobre as raízes do mal-estar nacional: a cordialidade (não de um homem afável, mas daquele que deseja reter vantagens individuais) no lugar da civilidade e a troca do Estado pela família, constituindo uma sociedade de marcas rurais, por meio da personificação do lugar político e da invasão do público pelos interesses privados. Devido à particularidade de sua configuração colonial, o país foi concebido como uma grande sociedade agrária liderada por interesses particulares de donos de terra que, dentro de suas propriedades, faziam suas próprias leis e na qual todos eram submetidos às regras do colonizador. Segundo Holanda, o patriarcado rural não estaria restrito a ser um fenômeno das fazendas. Ele representaria, na cultura brasileira, o contínuo padrão de exercício do poder, organizado em torno do patriarca latifundiário (o pater familias), pelo qual as famílias eram protegidas e, ao mesmo tempo, oprimidas: essa "família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos" (Holanda, 1936/2016, p. 133) - ou, para utilizar o binômio proposto por Calligaris, entre colonizadores e colonos.

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (1936/2016, p. 39) enuncia sua hipótese sobre o desterro: "trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra". Haveria um desencontro fundamental no alicerce da cultura nacional, que faz referência à terra não para destacar o solo firme, mas o desterro identificatório como uma marca constitutiva do país. Se o povo brasileiro podia falar como se fosse estrangeiro em sua própria pátria, é porque o que constituiria alicerce nacional não seria uma função simbólica que implicaria o reconhecimento de um ordenamento civilizatório. Existiria desterro desde sua origem histórica, pois o colonizador buscaria explorar e gozar da terra conquistada - e, consequentemente, do povo colonizado -, e não transmitir uma inscrição representativa para a nação surgida. Logo, o "país que não presta" e os obstáculos da umtegração enunciariam a condição de desterro dos brasileiros, evidenciada pela contradição, intrínseca ao discurso nacional, de buscar no estrangeiro seu lugar enunciativo.

Alguns psicanalistas, contudo, problematizam posições específicas presentes em Hello Brasil!, em especial aquelas referidas à hipótese da fragilização do lugar paterno (proposta, lembremos, construída a partir da perspectiva do colono, embora não esteja ausente, em absoluto, na posição do colonizador). Para Ana Maria Medeiros Costa (2000), a suposta "crise de autoridade", derivada de uma inscrição paterna frágil, é lembrada sempre que nos deparamos com o fantasma da dissolução de laços sociais - sejam estes da família, da escola ou de sistemas de governo.

A psicanalista Maria Rita Kehl (2009) salienta que, no meio psicanalítico, tem-se tornado um clichê o discurso da "falência" ou "fraqueza" do lugar paterno, seja na clínica ou no laço social, principalmente quando a figura paterna não cumpre os ideais sociais que o alinham do lado do poder - tornando-se, rapidamente, um pai que não vale. O ressentimento com esse lugar paterno, cuja idealização desmorona, por não configurar um espaço totalizante de poder ou prestígio, marcaria também determinados discursos, que gerações de grupos sociais utilizariam para esquecer suas lutas e, principalmente, para não lembrar das derrotas sofridas. Dessa forma, os herdeiros dos "derrotados da história" apagariam lembranças, marcas significantes de seus antepassados, para tentar se inserir ao lado dos "vencedores do turno". Kehl (2003ª, p. 79) ressalta, ainda, que o caminho do ressentimento coloca o sujeito em uma posição de objeto de gozo, buscando ser reconhecido por um Mestre, visto primeiramente como onipotente e que será "destituído e substituído assim que lhe revelar sua falta, ou seja, seu desejo".

Afastando-se das proposições do psicanalista italiano, Kehl (2005, p. 217) é enfática ao afirmar que, na cultura brasileira, o mal-estar, justamente, estaria em torno do exagero da presença paterna: há de sobra a figura do "painho mandão e pseudoprotetor (vide Antônio Carlos Magalhães e Getúlio Vargas)". A psicanalista interroga: não haveria, no Brasil, falta de pai e excesso da figura paterna? Uma ausência da função simbólica paterna e um hipertrofiado lugar imaginário do pai? E nós perguntamos: em que isso difere da posição de Calligaris? Trata-se, nessas leituras da cultura brasileira, de pôr o acento na hipertrofia do pai da horda. Em contrapartida, elas parecem ter dificuldade de reconhecer as vozes de pais totêmicos, que proliferam em nossa cultura. Em sua bela reflexão sobre a função fraterna, Kehl (2000), ainda que assinale que a fratria não opera apenas na ausência da função paterna, não parece tomar isso que faz laço - o significante "mano" - como um dos nomes do pai.

Sobre essa tendência à busca por "Um" pai - herança monoteísta? -, que acarreta a hipótese de que há nenhum, convém lembrar Betty Milan (1985, p. 60), em A Psi do Zil:

"A Psi do Zil" é a Psicanálise do Brasil que, à semelhança do analisando, fala pelos cotovelos. Mas o que diz o país? Primeiro, eu não sou Um, sou vários, pelo menos dois. Vivo dividido entre o Brasil, que, se querendo Um, quer reduzir a multiplicidade, e o Brasil contrário a essa tendência, cuja vocação é a de deixar ser o outro e, através de vários outros, vir a ser. O primeiro país é nacionalista e, à maneira do resto do Ocidente, pode ser dito do "isto ou aquilo", alternativa em que imagina estar sua seriedade. O segundo país é diferente, diz "isto e aquilo" e ainda "isto é aquilo". À moda, aliás, dos orientais, descrê do princípio da não-contradição, é adepto de todos os santos e de todas as crenças [...].

Kehl (2003b) também indaga sobre o sentimento brasileiro de nostalgia da família tradicional, da perda de valores e referenciais antigos e, principalmente, do enfraquecimento da figura paterna: o que estaria de fato envolvido no lamento daquilo que fora transformado ou perdido na cena familiar do país? A autora constrói a hipótese de que essa lamentação conservadora, essa idealização de afetos de segurança e conforto, adquiridos com a imprescindível regulação paterna, seria uma nostalgia da elite brasileira do antigo sistema escravista e ruralista. O meio psicanalítico não está isento do contágio da nostalgia: como observa Vitor Hugo Triska (2016), em vez de buscar o movimento singular das novas configurações culturais, se torna mais frequente encontrar uma enunciação saudosa de um período imaginário que não volta mais ("no meu tempo não era assim"), demarcando a insuficiência teórica da própria produção psicanalítica nas questões do contemporâneo.

Kehl (2005) assinala ainda outro problema crucial: a interpretação do Brasil estabelecida pelo olhar estrangeiro. A incessante necessidade por atenção e aceitação do povo brasileiro diante de nações mais fortes reproduziria a submissão colonial que seria condição para o ressentimento e incremento do "complexo de inferioridade nacional" (Kehl, 2005, p. 174)2. Essa busca por reconhecimento e valorização - pedido de alienação ao desejo do Outro - não seria mais suplicada ao pai colonizador: ela seria atualizada, nesse ciclo repetitivo temporal, aos "atuais representantes do mundo desenvolvido" (Kehl, 2005, p. 173). A psicanalista brasileira propõe que o progresso em direção à Modernidade teria custado à sociedade brasileira o "preço do apagamento da origem" (Kehl, 2005, p. 173): com a desvalorização da raça negra e do povo indígena; o desprezo ao português branco, oriundo de um país já em decadência social; a exaltação do discurso francês no paradigma cultural e do modelo inglês no sistema capitalista como ideais a serem seguidos pela nação.

Christian Dunker (2015) também problematiza a visão de Calligaris apresentada em Hello Brasil!. Dunker reconhece que o psicanalista italiano oferece um diagnóstico refinado para o mal-estar brasileiro ao incluir em sua hipótese teórica um pedido de filiação deslocado e desencontrado. Esse diagnóstico, entretanto, carregaria problemas. Com um estilo muito elegante, Dunker insinua que Calligaris subestima o peso da cena do mundo em sua leitura da situação brasileira:

a hipótese alternativa de que há relações reais de exploração, provenientes de nosso lugar periférico na economia mundial, baseada em discursos que tratam o conflito no nível das relações internas como se ele tivesse de ter a mesma estrutura do conflito no nível das relações externas, fica atenuada na pena de nosso autor (Dunker, 2015, p. 172).

Em decorrência disso, existiria, nas proposições de Calligaris, "uma heterogeneidade que não é reconhecida" (Dunker, 2015, p. 172) entre a posição simbólica paterna na transmissão do desejo e o lugar do mestre no sistema escravista. Em outras palavras, uma confusão improdutiva entre o pai e o mestre. Além disso, Dunker sugere que Calligaris situa o sintoma brasileiro como um "complexo de falso pai" (Dunker, 2015, p. 172), correlato do falso self teorizado pelo psicanalista inglês Donald Winnicott. Ainda acompanhando o pensamento de Dunker, a ausência paterna, como pressuposto teórico para evidenciar o mal-estar, revelaria uma crise interna à teoria psicanalítica: o "déficit paterno é na verdade um déficit do totemismo como esquema explicativo" (Dunker, 2015, p. 404). As interpretações de insuficiência simbólica parecem apressadas frente às distintas possibilidades de criação de laços sociais na cultura brasileira. Nessa perspectiva, a sociedade brasileira estaria inscrita em uma trama significante amarrada em torno de alguns "nomes do pai" - se ainda quisermos usar a nomenclatura lacaniana -, mas ameaçada, a todo o momento, pelo retorno do Urvater (pai primordial): o patriarca colonizador e escravocrata.

 

Inflexões

Como podemos notar, as propostas de Calligaris, em Hello Brasil!, estão longe de constituir uma unanimidade - e o próprio Calligaris (2017a) dedica-se a rever algumas de suas posições originais na introdução da reedição dessa obra. O psicanalista não ignora a crítica de que, em sua obra, o Brasil é sistematicamente colocado em um contraste quase sempre desvantajoso com as nações europeias e os Estados Unidos da América, e reconhece que "há ideias no livro que parecem supor a comparação, especialmente com a realidade europeia" (Calligaris, 2017a, p. 22) - embora sugira também que os leitores possam ter alguma parcela de participação nesse suposto mal-entendido.

Além disso, Calligaris reconhece o pouco conhecimento histórico que tinha sobre o Brasil, no período em que se dispôs a escrever o livro, e assinala mudanças de opinião em alguns temas - em especial, na questão do contexto da psicanálise no Brasil, denunciada, em 1991, como marcada por uma denegação da autoria e, consequentemente, por uma renúncia à filiação. Calligaris afirma, com justiça, que as proposições de um autor não devem ser desconectadas da experiência subjetiva que lhes concede o lastro necessário e fornece o testemunho de ocasiões em que suas próprias ideias foram expropriadas. É lícito, portanto, considerar a posição do autor de Hello Brasil! e suspeitar que a dialética discursiva do colonizador e do colono diga respeito mais ao dilema colocado à enunciação do psicanalista italiano chegado em terras brasileiras do que efetivamente dos brasileiros desterrados, ressentidos e carentes de pai. Calligaris deixa claro que mudou de opinião e sente-se, hoje, mais próximo dos analistas que adaptam sua prática à singularidade do paciente do que daqueles que obedecem devotamente às doutrinas teóricas, confessa Calligaris: "na época de Hello Brasil!, no campo da psicanálise, eu era um europeu: qualquer posição (prática ou teórica) que não fosse uma obediência a uma filiação me parecia ser uma heresia, uma traição, uma espécie de descompromisso" (Calligaris, 2017a, p. 29).

Não se deve ignorar, porém, que a condição de europeu, enunciada desde o título e retomada ao longo de todo o livro, constitui, simultaneamente, a condição de escrita e seu limite. É notável que os lugares discursivos do colonizador e do colono, propostos por Calligaris, constituem uma redução radical da interpretação da cultura legada pela psicanálise. O psicanalista não parece levar em conta a possibilidade de uma posição narrativa nativa, como se declarasse consumado o genocídio ameríndio e, na lógica proposta em Hello Brasil!, não houvesse lugar possível para discursividades de matriz afro-brasileira.

A interpretação de Calligaris se insere na tradição que constrói uma cena fundante da história brasileira. Existiria, para ele, uma imagem mítica na qual a terra-mãe é reconhecida como abundante e repleta de riquezas naturais e os portugueses são reconhecidos como exploradores que dela usufruíram e a abandonaram. Para Mériti de Souza (2002), tais discursos psicanalíticos criam na memória social uma cena de fundação marcada por uma mãe dadivosa e um pai usurpador, deixando os filhos nacionais com falhas na constituição de um ideal de eu. De acordo com a autora, Hello Brasil! se alinha às leituras que criam imagens do país como um povo exótico e com dificuldades de organização social. Tais interpretações constituem um brasileiro universal, sem contar que apagam muitos personagens históricos que fizeram resistência à colonização e à escravidão, como, por exemplo, Zumbi dos Palmares e Antônio Conselheiro. Elas acabam por perpetuar uma imagem nacional de "povo sem lei" ao não evidenciar movimentos criadores de cultura.

José Miguel Wisnik (2004), em seu estudo sobre a música popular brasileira, ao comentar a obra de Calligaris avalia que o psicanalista não soube discernir, com a devida atenção, o lugar da canção popular e sua contribuição na constituição da umtegração do país - compreendida aqui como nomeação para os processos pelos quais se constrói o simbólico numa cultura. O professor de literatura destaca que, nas canções da MPB, a temática da fundação do país retorna com vitalidade e "desenha uma outra filiação a uma outra paternidade plural, múltipla, dialógica" (Wisnik, 2004, p. 238), reconhecida, por exemplo, na música de Chico Buarque, "Paratodos", na qual pai é o que não falta: "o meu pai era paulista, / meu avô pernambucano, / o meu bisavô mineiro, / meu tataravô baiano, / meu maestro soberano / é Antonio Brasileiro".

Wisnik cita também a canção "Língua", de Caetano Veloso: "a língua é minha pátria / e eu não tenho pátria, tenho mátria / e quero frátria". O hino nacional enaltece as figuras parentais - "dos filhos deste solo és mãe gentil" - que, desde os primórdios da psicanálise freudiana, sempre foram palco de complexos, conflitos e ambivalências no romance familiar infantil. Caetano, então, propõe que a língua seja frátria - o próprio tecido do laço social, em sua imanência, e não em uma suposta transcendência, que alude a uma superioridade hierárquica.

O próprio Caetano, em sua autobiografia Verdade tropical, discute Hello Brasil! e o faz com respeito e admiração, não se furtando, contudo, à crítica pertinente à interpretação do psicanalista italiano, que, para ele, "forçava a mão para, numa sanha diagnosticadora, meter no mesmo saco a mediocridade dos misturadores de informações mal assimiladas e o gesto audaz de um grande poeta" (Veloso, 1997, p. 248). Ante a concepção trágica de Calligaris a que o futuro do povo estaria condenado, sob os efeitos de uma "fundação fracassada", Caetano retruca de forma sagaz: o psicanalista italiano entende "[...] que a melhor maneira de ajudar esse país amado a superar sua falência como projeto era jogar-lhe na cara sua desesperança fatal" (Veloso, 1997, p. 249).

As considerações sobre a posição autoral de Calligaris nos remetem de volta ao "este país não presta!". No Hello Brasil! de 1991 (Calligaris, p. 173), a expressão encontra, ao final do livro, uma torção curiosa: a sugestão de ler a frase como a réplica a "uma mulher que se mostra surda às nossas propostas [de amor]", em um falso desdém similar ao da raposa pelas uvas na velha fábula de Esopo. No prefácio à reedição, porém, Calligaris (2017a, p. 18) reconhece o que há de familiar no estranhamento percebido na expressão: "comentei sobre a vontade de fugir dos amigos brasileiros ao meu redor sem que isso evocasse em mim o fato de que eu nunca parei de fugir da Itália, como se eu achasse, de certa forma, que a Itália não presta". Talvez esse limite impossibilite ao psicanalista reconhecer a potência afirmativa contida naquilo que é, aparentemente, uma enunciação depreciativa em relação ao nacional, especialmente considerando que esse tipo de enunciação foi, durante muitos anos, explicitamente rejeitada por um slogan oficial que determinava apenas duas modalidades discursivas possíveis: amar o Brasil ou deixar o Brasil. Não haveria algo de libertador em falar mal do Brasil - em poder falar mal do Brasil, em exercer o direito de falar mal do Brasil -, rejeitando as opções oferecidas pela política de linguagem estabelecida durante a ditadura civil-militar, especialmente quando a sombra dos anos de chumbo estava tão viva?

Por fim, a leitura proposta por Calligaris em Hello Brasil! enfatiza que, como resíduo do passado colonial, há uma desagregação na organização do laço social brasileiro decorrente do não reconhecimento da figura paterna em sua função simbólica. Constrói-se, no país, uma cena fantasmática em que o desterro nacional é base para a leitura dos conflitos sociais. Uma insuficiência ou ausência paterna subjacente ao déficit de filiação impossibilitaria a construção de um ideal de eu e, portanto, de um projeto coletivo, o que explicaria a violência, a deterioração política e a fragilidade do sentimento de pertença. Como vimos, essa não é uma posição unívoca; muitos autores contestam a argumentação - influenciada, especialmente, pela tradição francesa da psicanálise - de que a posição simbólica, no Brasil, seria deficitária, escassa ou incompleta.

A interpretação de Calligaris sobre a problemática da filiação no país acerta na temática: como pensar a inscrição simbólica em um país marcado por uma complexa relação com a autoridade patriarcal? Entretanto, o psicanalista italiano, ao considerar seus recortes da cultura nacional a partir de uma hipótese de atrofia da função paterna, abre mão, por um lado, de conferir um sentido afirmativo à radical experiência de indeterminação que constitui a heterogênea formação social brasileira e, por outro, de distanciar-se da posição - conservadora, normativa e nostálgica, como aponta Jô Gondar (2012) - da declinologia francesa. Aparentemente inspirada em Os complexos familiares na formação do indivíduo, tal posição ignora desdobramentos posteriores do pensamento lacaniano, que transitam da imago paterna ao nome-do-pai e, mais adiante, aos nomes-do-pai. Sem abandonar - ou, pelo menos, tensionar - a totêmica busca por Um pai, Calligaris propõe o binômio colonizador/colono que soa, no mínimo, anacrônico frente à discussão decolonial atual, revitalizada com as contribuições de Frantz Fanon (1952/2008) em que restitui ao colonizado a possibilidade de afirmação de si como sujeito e agente de processos históricos. Mas, de toda forma, é imperioso reconhecer que o estilo ensaístico escolhido por Calligaris permitiu a elaboração de hipóteses e a oferta de construções sobre a cultura nacional que encontraram reverberações dentro e fora do meio psicanalítico. Em vez de um posicionamento distante e objetivo, há, nas contribuições contidas em Hello Brasil!, uma escrita passional que revela algo da ordem do excesso, do sublime e da desmesura, diante dos impactos da cultura brasileira, a partir de um olhar europeu e de uma escuta psicanalítica.

 

 

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Artigo recebido em: 14/04/2019
Aprovado para publicação em: 08/05/2020

Endereço para correspondência
Fernando Basso
E-mail: psicfernandobasso@gmail.com
Amadeu de Oliveira Weinmann
E-mail: weinmann.amadeu@gmail.com
Gustavo Caetano de Mattos Mano
E-mail: gustavo.mano@gmail.com

 

 

*Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
**Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
***Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
1Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2Nelson Rodrigues (1993), em suas crônicas sobre futebol, já alertava sobre essa carência de convicção do povo brasileiro no que concerne a suas tradições e conquistas, colocando-se geralmente em uma postura de inferioridade perante o estrangeiro, denominando essa inclinação complexo de vira-latas: "o brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar as próprias deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. Sim, amigos: - somos uns Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem" (Rodrigues, 1993, p. 35).

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