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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020
DOSSIÊ
O despertar da adolescência, o suicídio juvenil e as atuais políticas de morte: questões para o campo da educação
The awakening of adolescence, youth suicide and current death policies: issues for the field of education
El despertar de la adolescencia, el suicidio juvenil y las políticas actuales de muerte: temas para el campo de la educación
Rose GurskiI*; Stéphanie StrzykalskiI**; Cláudia Maria PerroneI***
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
RESUMO
Neste artigo, partimos da noção de que a complexidade dos aspectos clínicos e educacionais apresentada pela adolescência contemporânea evoca questões de ordem ético-política, social e individual. Renovando a aposta na torção irredutível entre o social e o psíquico e, concomitantemente, recusando explicações simplistas de causas puramente orgânicas, buscamos problematizar o aumento preocupante do mal-estar juvenil de nosso tempo, revelado por crescentes índices de depressão e suicídio de jovens brasileiros. De que forma os adolescentes têm vivenciado a mais delicada das passagens subjetivas em meio às configurações do laço atual? O que tais manifestações sintomáticas tem a nos dizer sobre as condições de nosso tempo histórico? O que não vai bem com essa turma que, tantas vezes, insiste em nos perguntar " tá ligado"? Quais interlocuções podem ser pensadas entre a problemática social e o campo da educação? Essas e outras questões foram desdobradas a partir de uma retomada do tema da adolescência na perspectiva psicanalítica. Na sequência, foi analisado um episódio de nossa história recente que, de modo complexo, articula temas como violência, laço social, suicídio, adolescência e ambiente escolar: o Massacre de Suzano. Por fim, recolhendo algumas falas de expoentes políticos de nossa sociedade, buscamos refletir sobre os efeitos psíquicos de uma adolescência vivida em meio à propagação de discursos de ódio assentados em políticas de morte.
Palavras-chave: adolescência, psicanálise, educação, suicídio, políticas de morte.
ABSTRACT
In this article, we start from the notion that the complexity of clinical and educational aspects presented by contemporary adolescence evokes ethical, political, social and individual issues. Renewing the bet on the irreducible twist between the social and the psychic and, at the same time, refusing simplistic explanations of purely organic causes, we seek to problematize the worrying increase in the youth malaise of our time, revealed by increasing rates of depression and suicide among young Brazilians. How have teenagers experienced the most delicate of subjective passages in the midst of the configurations of the current bond? What do such symptomatic manifestations have to say to us about the conditions of our historical time? What does not go well with this group that, so often, insists on asking us "you know?". What interlocutions can be thought about between this social problem and the field of education? These and other questions were developed from a return to the theme of adolescence from a psychoanalytic perspective. Then, an episode from our recent history was analyzed, which, in a complex way, articulates themes such as violence, social ties, suicide, adolescence and school environment: the Suzano Massacre. Finally, gathering some speeches by political exponents of our society, we seek to reflect on the psychic effects of an adolescence lived in the midst of the spread of hate speech based on death policies.
Keywords: adolescence, psychoanalysis, education, suicide, death policies.
RESUMEN
En este artículo partimos de la noción de que la complejidad de los aspectos clínicos y educativos que presenta la adolescencia contemporánea evoca cuestiones éticas, políticas, sociales e individuales. Renovando la apuesta por el giro irreductible entre lo social y lo psíquico y, al mismo tiempo, rechazando explicaciones simplistas de causas puramente orgánicas, buscamos problematizar el preocupante aumento del malestar juvenil de nuestro tiempo, revelado por los crecientes índices de depresión y suicidio entre los jóvenes brasileños. ¿Cómo han vivido los adolescentes el más delicado de los pasajes subjetivos en medio de las configuraciones del vínculo actual? ¿Qué nos dicen estas manifestaciones sintomáticas sobre las condiciones de nuestro tiempo histórico? ¿Qué no le va bien a este grupo que, tantas veces, insiste en preguntarnos "ya sabes"? ¿Qué interlocuciones se pueden pensar entre este problema social y el campo de la educación? Estas y otras preguntas se desarrollaron a partir de un regreso al tema de la adolescencia desde una perspectiva psicoanalítica. Luego, se analizó un episodio de nuestra historia reciente que, de manera compleja, articula temas como la violencia, los lazos sociales, el suicidio, la adolescencia y el ambiente escolar: la Masacre de Suzano. Finalmente, recogiendo algunos discursos de exponentes políticos de nuestra sociedad, buscamos reflexionar sobre los efectos psíquicos de una adolescencia vivida en medio de la difusión del discurso de odio basado en políticas de muerte.
Palabras clave: adolescencia, psicoanálisis, educación, suicidio, políticas de muerte.
Importa lembrar que o encontro frequente entre o tema da adolescência e do laço social é, para a Psicanálise, revelador da irreversibilidade do enlace entre o sujeito e o campo do Outro (Freud, 1921/2010). Dessa premissa deriva a noção de que os comportamentos e manifestações sintomáticas dos adolescentes podem ser tomados como paradigmáticos daquilo que se problematiza em cada tempo social.
A complexidade dos aspectos clínicos e educacionais apresentada pela adolescência contemporânea evoca questões de ordem individual e coletiva, apresentando, portanto, ressonâncias ético-políticas que envolvem diferentes esferas da vida social tais como a escola, a família e o Estado. Ávido, do ponto de vista estrutural, pela construção de novos modos de nomeação de si, o adolescente busca na cultura da época em que vive, bem como em seus dispositivos e ritos, motes de inspiração para a constituição de outras significações de si: tempo revelador, portanto, da já citada torção irredutível entre o social e o psíquico (Freud, 1921/2010). Como afirma o psicanalista francês Bernard Nominé (2001, p. 38), é nessa direção que as modalidades de inscrição na cultura suscitam uma interpretação de nossa época: "bastaria dar uma olhada em seus adolescentes, pois eles revelam tudo o que uma civilização se esforça por dominar ou ocultar".
Atualmente, assistimos a uma proliferação crescente da preocupação com o fato de o adolescente contemporâneo jogar com seu gozo em uma lógica que parece transcender a preservação de vida. A essa ordem de fenômenos soma-se, ainda, o aumento do índice estatístico de quadros de depressão e suicídio entre jovens brasileiros. Nesse diapasão, não se pode esquecer que , se a grande questão de todo sujeito humano é encontrar modos de se fazer representar no discurso social, com os adolescentes isso passa a se apresentar de um modo ainda mais intenso, fato que traz consequências importantes do ponto de vista psíquico e social (Gurski, 2012; Gurski, & Pereira, 2016).
Em nossas pesquisas sobre adolescência, educação e laço social, temos construído algumas problematizações que dialogam tanto com questões estruturais do sujeito quanto com as variáveis do laço social: de que forma o jovem tem vivenciado a mais delicada das passagens subjetivas em meio às configurações do laço atual? Como o adolescente de hoje faz para realizar uma tomada de posição na cultura, visto que o adolescer parece ter se tornado um tempo pautado por expressivas incertezas quanto ao futuro? (Gurski & Pereira, 2012).
A reflexão urge, pois, justamente, do ponto de vista estrutural, a adolescência é o momento em que o sujeito se confronta com a condição não ad hoc da lei e das decisões, momento em que é convocado a tomar uma outra posição na relação com o Outro e com a dimensão do ato (Jerusalinsky, 2004). Tal formato de relação com o ato constitui, por certo, uma das condições injuntórias para o adolescente, colocando-o, muitas vezes, próximo da angústia. Isso é temerário, especialmente, ao pensarmos nas configurações da cultura atual, a partir das quais se estabelece uma dialética, cada vez menos pacífica, entre a espera e a precipitação (Gurski & Pereira, 2012).
Nesse cenário, vários são os sintomas que se manifestam presentificando o mal-estar atual de nossos adolescentes. Em setembro de 2019, a Word Health Organization (WHO) divulgou dados alarmantes sobre o suicídio de forma geral. O relatório apontou que o suicídio figura entre as vinte principais causas de morte ao redor do mundo, causando mais perdas humanas do que doenças como malária e câncer de mama, ou mesmo guerras e homicídios (WHO, 2019). A cada ano, quase 800 mil pessoas se suicidam, o equivalente a uma morte a cada 40 segundos.
No âmbito do aumento das mortes, temos acompanhado um fenômeno particularmente preocupante: as altas taxas de mortes autoprovocadas, automutilação e depressão de adolescentes e jovens. O relatório da WHO (2019) indicou que o suicídio foi a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos, ficando atrás apenas dos acidentes de trânsito. No Brasil, comparando o ano de 2000 ao de 2016, outra pesquisa constatou um aumento de 30% nas taxas de suicídios protagonizados por jovens e adolescentes - em 2000, tivemos 2142 jovens tirando a própria vida, já em 2016 esse número subiu para 3097 (Manir, 2019).
Estudos realizados pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) revelaram que, entre os anos de 2006 e 2015, as taxas de suicídio de adolescentes no Brasil aumentaram em 24%. Os pesquisadores recolheram dados de mortalidade autoprovocada por jovens entre 10 a 19 anos, moradores de seis grandes cidades brasileiras (Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo). Após análises, os pesquisadores concluíram que indicadores socioeconômicos, em especial a desigualdade social e o desemprego, apresentam forte correlação com maiores taxas de suicídio (Jaen-Varas et al., 2019).
Frente a essas estatísticas e aos relatos que temos escutado de pais, educadores e dos próprios adolescentes, perguntamos: o que a ausência da vontade de viver, que parece se proliferar entre os jovens brasileiros, pode revelar sobre as condições do despertar dos adolescentes atuais? O que não vai bem com essa turma que, tantas vezes, insiste em nos perguntar " tá ligado?", revelando, no cacoete linguístico, uma interrogação sobre a posição do desejo e da ligação com o Outro? Quais interlocuções podem ser pensadas entre tal problemática social e o campo da educação, em especial, das instituições escolares enquanto espaços fundamentais que promovem condições para o adolescer?
O despertar da primavera e o encontro com o impossível do sexo e da morte
Ora, sabemos que a formulação do desejo de viver não é uma tarefa fácil para ninguém, sobretudo na passagem adolescente, quando o tema do sentido da vida se amplia e a pergunta sobre o si mesmo adquire uma nova importância. Costuma-se dizer que essa passagem se configura como um momento de ruptura com tudo aquilo que, até então, o sujeito considerava como seu. O lugar tecido a partir do Olhar parental já não garante mais a sustentação do sujeito na posição de ser falado. Como, então, pensar as particularidades do adolescer, desde a psicanálise, em nosso tecido social? (Gurski, 2012).
Lacan (1957-1958/1999) toma a puberdade como o momento em que o sujeito finalmente poderá fazer uso dos títulos recebidos na infância para, enfim, afirmar-se legitimamente enquanto um ser sexuado, seja do lado homem, seja do lado mulher ou outro. Dito de outro modo, a puberdade seria o tempo em que o sujeito deverá ser capaz de formular uma resposta em nome próprio a algumas questões primordiais: Afinal,quem sou eu? Que lugar vou ocupar no laço social?
Para dar conta dessa tarefa, que implica na invenção de um novo dito sobre si, o jovem deverá fazer uso daquilo que construiu na relação com o campo do Outro durante os tempos do Édipo (Lacan, 1957-1958/1999). É preciso ponderar que o modo como se dá a possibilidade de uma significação que se desenvolve a posteriori não aparece de modo muito claro e elucidado na obra lacaniana (Gutierra, 2003). O que fica evidente é que, para isso acontecer, o sujeito deve ter passado pelo complexo de Édipo, implicando a inscrição do Nome-do-Pai e a abertura ao campo das identificações que sustentam o Ideal do Eu. De acordo com Gutierra (2003), podemos pressupor que a adolescência será esse tempo dispendido pelo sujeito para dar significação ao posicionamento sexual pré-estabelecido no Édipo.
Afora esses apontamentos, há ainda um outro importante texto em que Lacan (1974/2003) aborda a puberdade, o breve, porém denso, Prefácio escrito para introduzir a montagem teatral do texto O despertar da primavera, de Frank Wedekind, em Londres. Em linhas gerais, podemos dizer que a peça, escrita em 1890 e publicada em 1891, trata dos impasses e angústias vividas pelos adolescentes alemães do final do século XIX. Wedekind, o escritor, foi bastante subversivo e inovador ao trazer à tona temas relacionados à adolescência que seguem sendo motivo de polêmica nos dias atuais, entre eles, a masturbação, a perda da virgindade, o aborto, a homossexualidade e o suicídio. Em razão de sua ousadia, a peça acabou sendo censurada na Alemanha, permanecendo praticamente esquecida até sua reapresentação em 1963 na Inglaterra (Furtado, & Trocoli, 2010).
Lacan (1974/2003), ao comentar a peça, coloca em evidência o encontro dos personagens com a dimensão do impossível da puberdade, isto é, com o real do sexo e da morte. Apesar da relevância e da complexidade de tal aspecto, o psicanalista apresenta-o de maneira bastante condensada no Prefácio, o que pode resultar em leituras confusas acerca especialmente da relação entre puberdade e o registro do real.
Stevens (2004) afirma que, do ponto de vista da psicanálise, não podemos reduzir o real pubertário ao âmbito biológico da brusca elevação hormonal que tem como uma de suas consequências o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários. Para o autor, se vamos tomar as transformações orgânicas vivenciadas pelo sujeito, temos de fazê-lo considerando que se trata do órgão da libido1 e não do órgão anatômico concebido pelo saber médico.
Nessa direção, o real pubertário, ao qual Lacan (1974/2003) se refere no Prefácio, é aquele que incide no órgão de gozo marcado pela linguagem como discurso do Outro (Stevens, 2004). Baseado nisso, Lacan (1974/2003) afirma que, dentre as questões que Wedekind acabou por antecipar em relação ao próprio Freud, está aquela que diz respeito aos meninos só pensarem em fazer amor com as meninas na medida em que despertam de seus sonhos, isto é, para a sexualidade. Tal argumento transcende, portanto, o surgimento das transformações corporais.
Furtado e Trocoli (2010), ao trabalharem a peça do dramaturgo alemão, lembram que o primeiro sinal sexual para Moritz e Melchior - dois adolescentes que se destacam na trama e a que Lacan faz referência no Prefácio (1974/2003) - não surge em consonância com o tempo cronológico e biológico. Na peça, os meninos evocam sonhos e sinais que se misturam às recordações da infância. Em uma das cenas, por exemplo, Moritz confidenciou a Melchior que, quando este tinha cinco anos de idade, ficava perturbado com o decote voluptuoso estampado nas cartas Dama do baralho. Moritz, então, afirma que a carta já não o afetava mais como antigamente, mas que, naquele momento, se sentia igualmente embaraçado diante do desafio de conseguir falar com uma menina sem pensar naquilo que ele caracterizava como coisas indecentes.
O sentimento de embaraço de Moritz frente aos pensamentos indecentes evoca precisamente o encontro com o real do sexo, com aquilo que irrompe e instala um furo no psiquismo sem que o sujeito disponha de palavras para recobri-lo. Nesses momentos em que o real eclode, seja nos sonhos, nas transformações corporais ou na vivência da primeira ereção, o registro simbólico e as construções imaginárias infantis apresentam-se insuficientes, presentificando para o sujeito sua dimensão castrada (Strzykalski, 2019). E não basta se, na cena, haja a presença de um adulto que anuncie à criança que ela está se tornando um homem ou uma mulher, é como se se instalasse uma não correspondência radical entre as palavras de que dispõe e as manifestações que a acometem (Stevens, 2004).
Diferentemente dos animais e de seu saber instintual, os homens, enquanto seres de linguagem, não dispõem de um saber a priori quanto ao que fazer face ao outro sexo (Stevens, 2004). Esse furo no saber, decorrente do golpe de real pubertário que acompanha a constatação do ineditismo sexual, apresenta-se ao sujeito com todo o seu vigor durante a adolescência, pois é nesse momento que o sujeito se dá conta de que a promessa edípica em relação ao acesso do tão sonhado gozo total, promessa essa que sustentou todo o período da latência, não passa de uma farsa (Strzykalski, 2019). Em outras palavras, é na adolescência que o sujeito atesta a "inexistência de saber no real quanto ao sexo" (Stevens, 2004, p. 5) porquanto esse saber sempre será mediado pela palavra do Outro no registro simbólico.
Resta ao adolescente, então, transformar o real pubertário em enigma: Che Voui?2 O que o Outro quer de mim?. Perante tal responsabilidade de dizer a que veio, Melchior e Moritz respondem de formas bem diferentes - enquanto o primeiro encara a sexualidade como enigma, o segundo a toma como sentença de morte. É como se Moritz seguisse tentando responder ao ideal parental na posição de objeto de completude, o que tem como efeito não os deixar em falta. O suicídio termina por ser a saída encontrada pelo jovem para lidar com as dificuldades que vinha apresentando no âmbito da construção de uma posição sexuada. Assim sendo, ele se situa como excluído do universal e da empreitada de constituir um saber sobre o sexual. Sobre isso, Lacan (1974/2003, p. 558-559) pontua que "é só ali que ele se conta: não por acaso, dentre os mortos, como excluídos do real", real esse que exige um recobrimento pelo simbólico, ainda que nunca em sua totalidade.
Prestes a entrar na adolescência, Moritz não teve condições de lidar com o real da morte, essa que se configura como a outra faceta do real sexual. Na adolescência, a morte diz respeito ao categórico encontro do sujeito com a castração, quer dizer, com a operação que vem (re)afirmar a falta estruturante que acomete todo ser humano. Tal reencontro impõe a necessidade de elaborar o luto decorrente da perda dos pais da infância que, imaginariamente, gozavam sem limites, mas que agora são vistos como uma fraude por não deterem o saber total sobre o sexual. Nesse contexto, também é necessário lidar com a perda do corpo infantil, que outrora era sustentado unicamente pelas identificações oferecidas pelos ideais parentais, assim como do lugar bem delimitado que esses garantiam ao sujeito (Strzykalski, 2019).
Se Moritz excluiu-se da tarefa de responder ao sexual, Melchior tomou-a de uma outra perspectiva. No Prefácio, Lacan (1974/2003) dá a entender que isso só foi possível na medida em que, para Melchior, apresentou-se um terceiro personagem, o Homem Mascarado, cuja função simbólica o psicanalista aproxima à função do Nome-do-Pai. No final da peça, o fantasma de Moritz encontra-se com Melchior no cemitério e lhe faz o convite para que este se junte a ele no vale da morte. Nesse momento, surge na cena o Homem Mascarado, figura que vai propor algo diferente a Melchior, sob a condição de que este possa confiar nele antes mesmo de conhecê-lo. Aqui, Melchior se vê convocado a entregar-se ao discurso desse Outro encarnado, mas que tem tantos e tantos nomes "que não há Um que lhe convenha, a não ser o Nome do Nome do Nome" (Lacan, 1974/2003, p. 559).
Acrescentamos que foi precisamente por deixar fal(t)ar que Melchior, não sem angústia, pôde seguir outro caminho que não aquele eleito por Moritz (Strzykalski, 2019). Para dar sentido à sua vida, o sujeito precisa jogar com o que restou de gozo depois da operação estrutural de castração: o gozo fálico. Tal modalidade de gozo é organizada pelo falo, significante da falta no Outro que funciona mediando as relações entre sujeito e objeto, possibilitando ao primeiro ascender como desejante em uma relação ternária. É por essa razão que, no Prefácio, Lacan (1974/2003, p. 558) diz que "o sentido do sentido está em que ele se liga ao gozo do menino como proibido. Isso, certamente, não para lhe proibir a relação dita sexual, mas para cristalizá-la na não-relação que ela vale no real". Ora, não se trata de negar a existência da relação sexual enquanto ato, mas, sim, de afirmar a não relação sexual no nível da linguagem.
Jean Jacques Rassial (1999), psicanalista francês, pensa a adolescência como uma passagem na qual o sujeito precisa fazer uso de uma operação psíquica necessária para dar conta da chamada pane do Outro. O sujeito percebe que os adultos de referência, na verdade, não são os fundadores da Lei, mas, sim, apenas os seus transmissores. A queda desse suposto saber direcionado a eles, figuras que encarnaram inicialmente o Outro para a criança, é o que gera essa pane, traduzida enquanto falta de consistência imaginária do Outro. Nesse momento, a operação lógica que garante a ancoragem do sujeito no Outro é convocada a se reinventar.
Para Philippe Lacadée (2011, p. 75), o adolescente, nessa passagem, é aquele que, frente ao despertar da primavera, se encontra "exilado de seu corpo de criança e das palavras de sua infância, sem poder dizer o que lhe acontece". Essa experiência de exílio se instala como efeito do reencontro do sujeito com o que o autor nomeia de mancha, o ponto de real inassimilável pela função simbólica que borra o quadro da existência do sujeito e que, ao mesmo tempo, é o que o torna desejante.
Valendo-se da poesia de Arthur Rimbaud e Victor Hugo, Lacadée (2012, p. 261) sustenta que o dever ético da adolescência, a mais delicada das transições, é o de "encontrar uma língua para dizer sobre si ao Outro". Isso porque, em sua essência, a crise da adolescência seria uma crise da linguagem: o ser do sujeito já não encontra mais um modo de articulação possível à língua do Outro. Tal crise é vivenciada como uma experiência de bizarro sofrimento, fato que vem reforçar a importância de o laço social oferecer espaços de qualidade de escuta que acolham e legitimem as angústias da adolescência.
Segundo Alexandre Stevens (2004), o adolescer é um conjunto de escolhas sintomáticas que visam formular uma resposta singular frente aos embaraços da puberdade. Lembramos que, para a psicanálise, a noção de singular não pode ser empregada como sinônimo de individual, já que a singularidade em questão se refere ao desejo inconsciente e este, por sua vez, está sempre remetido ao campo do Outro (Strzykalski, 2019). Nessa direção, Gurski (2019a) afirma que Lacan demonstrou tal assertiva pela via de uma das mais famosas figuras topológicas presentes em seu ensino, a banda de Moebius, cuja continuidade entre as faces interna e externa revela aquilo que Freud (1921/2010) sinalizou e que, neste escrito, gostaríamos de sublinhar: toda psicologia do sujeito é também do social.
A partir da exploração das nuances da constituição psíquica na passagem adolescente, talvez seja importante explicitar que, para uma certa adolescência, o lugar de proteção da infância, cujo abrigo era o lastro da consistência do adulto, gradativamente faz trânsito. É nesse contexto que o sujeito, ainda sem muito preparo, se vê na iminência de ter de dizer-se em nome próprio, de bancar um lugar de fala com toda a exposição que essa situação comporta. Este novo nome é escrito a partir de elementos que os jovens recolhem da cultura com todas as instabilidades próprias às variáveis de raça, de classe social e de gênero (Gurski, 2020). Sabendo, portanto, que o Outro Social não se apresenta de forma universal e homogênea, devemos falar de adolescências no plural e não no singular (Strzykalski, 2019).
No cerne do adolescer se faz presente a dor de crescer, a dor de sentir a passagem do tempo na carne, a dor de se encontrar com a referida dimensão do sexo e da morte, dois enigmas humanos que lançam os jovens em uma certa escuridão; escuridão que pode ser apenas uma estação, um ponto de parada necessário para as elaborações dessa transição, mas que pode, também, em algumas situações, deixar alguns jovens de cara com a morte - seja a morte física, sejam as pequenas mortes do sujeito, quando falta o ânimo para sustentar atos de criação, produção e aprendizagem (Gurski, 2020).
Tais condições estruturais e sociais nos colocam frente à necessidade de falar sobre as nuances psíquicas desse momento de transição incerta em que o sujeito, em meio ao apagar das luzes da infância, trilha um caminho muitas vezes guiado somente pelas sombras do que já foi em um passado recente, sem conseguir enxergar o que pode vir a ser no futuro. Todo esse turbilhão de incertezas que permeia o adolescer se traduz, frequentemente, em episódios que desacomodam o cotidiano das famílias e das instituições sociais e educacionais por onde circulam os jovens, produzindo, entre outras questões, apatia, isolamento, pequenas transgressões, abandono escolar e, também, tentativas de suicídio (Gurski, 2019b, 2019e).
Para lidar com essas angústias, muitas famílias e instituições têm apostado nas intervenções rápidas e eficientes prometidas pela psiquiatria medicamentosa. Nesse contexto, um estado melancólico tende a ser tomado não como um sintoma singular, produto da dialética entre o público e o privado, mas, sim, como um mero desequilíbrio neuroquímico.
Para trabalharmos essas e outras questões, vamos nos remeter ao massacre de Suzano, tal como ficou conhecido o lamentável tiroteio ocorrido em 13 de março de 2019 na Escola Estadual Professor Raul Brasil, no município de Suzano, no estado de São Paulo. Aparentemente, por se tratar de um episódio que envolveu a morte de outras pessoas, a discussão sobre o suicídio premeditado pelos jovens atiradores ficou silenciada, contudo queremos resgatar tal dimensão também como elemento interrogante importante do tecido social atual.
O massacre de Suzano
Durante o que ficou conhecido como o massacre de Suzano, uma dupla de atiradores invadiu uma escola pública e matou cinco estudantes e duas funcionárias. Amigos de infância e crescidos em famílias de classe média baixa, os jovens tinham 17 e 25 anos e eram ex-alunos da instituição. Após o ataque, o atirador mais novo teria matado o companheiro para, logo em seguida, tirar a sua própria vida. O suicídio não foi mero acaso, mas, sim, um combinado prévio da dupla.
É interessante notar que o massacre de Suzano reproduz várias características marcantes do acontecimento pregresso que é denominado de massacre de Columbine. Naquele 20 de abril de 1999, dois estudantes invadiram a escola secundária Columbine, nos Estados Unidos, e deixaram um rastro de 13 mortos e 21 feridos. Os atiradores tinham 17 e 18 anos de idade. O massacre de Columbine não foi o primeiro tiroteio em massa, mas foi o primeiro da era digital, o primeiro de larga magnitude, amplamente coberto pela imprensa americana e divulgado nos principais jornais ao redor do mundo.
Separados por quase 20 anos, ambos os casos apresentam elementos centrais em comum: os atiradores eram jovens e sofriam bullying na escola, o ataque foi realizado em plena luz do dia no ambiente escolar, as vestimentas utilizadas, o uso de armas brancas e de fogo e o suicídio como ato final previamente combinado3. Segundo relato4 de um antigo amigo dos atiradores de Columbine, os adolescentes americanos ocupavam o lugar dos esquisitões na microssociedade escolar separada em grupos de pessoas de acordo com preferências, clubes a que pertenciam e preconceitos nos quais se encaixavam. Ele também afirmou que a dupla era conhecida como a perdedora das perdedoras5.
Ao que tudo indica, os autores do episódio de Suzano também sofriam bullying. Segundo relatos, o mais jovem da dupla teria abandonado os estudos antes mesmo de concluir o ensino médio - não aguentava mais ser zoado por ter espinhas no rosto, relatou a mãe6. Apreendido pela Polícia Civil, o caderno do mais jovem atirador de Suzano compilava palavras de ódio e culto às armas. Recolhemos uma das frases em que o adolescente parece revelar o modo como a dupla foi constituindo a sua relação com a alteridade: " Quando caminhando em território aberto, não aborreça ninguém. Se alguém o aborrecer, peça para parar. Se ele não parar, destrua-o"7.
Rejeitados na realidade escolar, os jovens foram bem acolhidos e reconhecidos na realidade virtual dos fóruns anônimos da deep web, também conhecidos como chans. Acredita-se que o ataque à escola foi planejado cerca de um ano e meio antes, com auxílio dos usuários do maior fórum de propagação de ódio da internet brasileira, o Dogolachan - espaço de referência de disseminação de discursos racistas, homofóbicos, misóginos e em prol da violação de direitos humanos. Além de participarem do chan, os jovens assistiam a vídeos de massacres nos Estados Unidos na lan house que frequentavam semanalmente, já que não tinham computadores em casa. Chama a atenção que o fato passou, aparentemente, totalmente desapercebido ou, pelo menos, naturalizado. O que não pôde ser visto e escutado pelos adultos que cercavam esses jovens? (Gurski, 2019d).
No referido fórum, os jovens discutiram abertamente os caminhos para a realização do atentado. Depois de concretizado, os membros do chan ainda usaram a plataforma para celebrar o sucesso do massacre. Ainda, no dia 07 de março de 2019, um dos atiradores teria deixado a seguinte mensagem no fórum virtual: "Muito obrigado pelos conselhos e orientações, DPR [administrador do fórum]. Esperamos do fundo dos nossos corações não cometer esse ato em vão. Todos nós e principalmente o recinto será citado e lembrado. Nascemos falhos, mas partiremos como heróis"8. Fica evidente o quanto o suicídio premeditado não foi uma tentativa de apagamento de si, muito pelo contrário. Tratou-se de uma tentativa de, finalmente, inscrever-se na história. É como se a criação de um novo nome, principal desafio da adolescência, só tivesse sido possível pela via da ruptura do laço com o outro, sendo a passagem à morte um último ato que, finalmente, os inscrevia em uma página da história com reconhecimento e visibilidade.
Por meio de testemunhas ouvidas no curso da investigação, foi confirmada pela polícia a hipótese de que os jovens de Suzano se inspiraram no atentado americano. Segundo a polícia, as testemunhas tiveram medo de denunciar. Para o diretor-geral, "a motivação tem mais um caráter pessoal de reconhecimento por parte da sociedade em relação à atividade deles dentro da própria comunidade". "Eles não se sentiam reconhecidos", acrescentou o diretor9.
Uma das questões que suscita debate é a hipótese do bullying ter sido descartada como motivação do crime pela polícia. Tal ponto deve inquietar, sobretudo, os agentes educacionais, pois sabemos que a instituição escolar tem sido um dos locais onde primeiro surge o sofrimento psíquico destes jovens que buscam reconhecimento e sofrem a violência silenciosa não só do bullying expresso, mas também dos efeitos de uma sociedade utilitária e mercantilista, na qual os laços são minimizados em nome de valores como sucesso e lucro (Dardot & Laval, 2016).
Não podemos permitir a banalização de violências que parecem menores, porque sabemos que a naturalização destes processos pode acabar resultando na desumanização de alguns sujeitos e grupos. Nesse sentido, por exemplo, o racismo estrutural que atravessa a nossa sociedade, a intolerância com as diferentes orientações sexuais, a homofobia, a transfobia, a banalização da violência contra a mulher, a falta de proteção à infância e juventude e os diferentes tipos de exclusão social que parte da população brasileira está submetida, precisam ser cotidianamente trabalhados e combatidos de modo que a escola e os atores da comunidade escolar tenham a possibilidade de acolher e identificar as manifestações de sofrimento psíquico de crianças e adolescentes. Também importa que sejam estipuladas e asseguradas as consequências caso haja abuso de qualquer natureza nos laços. Em suma, a violência não pode ser tolerada em nenhuma de suas faces, isso, sobretudo, por entendermos que episódios como o de Suzano apresentam uma pré-história - não se tratam de atos pontuais e impulsivos.
Em 2011, o psiquiatra norte-americano Timothy Brewerton apresentou um estudo cujo resultado apontou que, nos 66 ataques em escolas que ocorreram no mundo de 1966 a 2011, 87% dos atiradores sofriam bullying e foram movidos pelo desejo de vingança. Brewerton afirma que "o bullying pode ser considerado a chave para entender o problema e um enorme fator de risco, mas outras características são importantes, como tendências suicidas, problemas mentais e acessos de ira". O psiquiatra insiste que não há um estereótipo ou perfil para um assassino potencial nas escolas. Outro interessante dado apresentado por ele é que 76% dos ataques feitos por adolescentes nos EUA foram realizados por aqueles que tinham fácil acesso às armas de parentes. Brewerton ainda sugere "que os pais fiquem atentos a alguns comportamentos, como maus-tratos contra animais, alternância de estados de humor, tendências incendiárias, isolamento e indiferença"10.
O amplo espectro de variáveis sociais e psíquicas que se apresentam em situações como a de Suzano nos leva a compreender que os massacres juvenis e os altos índices de suicídio de jovens brasileiros devem ser sempre acompanhados de uma extensa e complexa discussão acerca das nuances da cultura em que vivemos.
A adolescência e as atuais políticas de morte
O sequestro atual do suicídio juvenil pela psiquiatra medicamentosa deve nos fazer interrogar de que forma afinal temos tratado as questões de saúde mental de nossos jovens, especialmente no campo da educação escolar. Como vem funcionando a rede de proteção e acolhimento dos jovens que fazem as suas primeiras incursões ao mundo social?
Referimo-nos às condições de saúde mental das instituições sociais e educacionais, como a família, a escola e as políticas públicas dirigidas a crianças e adolescentes. Se tomarmos o acontecimento de Suzano, temos de, necessariamente, problematizar uma série de questões que são anteriores ao dia 13 de março de 2019.
Segundo narrativa póstuma à tragédia, por exemplo, um dos meninos teria evadido precocemente da escola. Nesse sentido, devemos discutir uma série de fracassos que tornaram possível esse incidente, dentre eles, observamos que não há uma política clara em relação ao abandono escolar, tampouco uma busca ativa do jovem que evade da escola; a Rede de Proteção Integral, preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), se questionada, certamente, não saberá responder sobre quem seocupa daqueles que, em idade escolar, abandonam a escola.
Se, quando nos deparamos com as estatísticas de suicídio de adolescentes, nos perguntamos sobre o desejo deles de viver, temos que, necessariamente, nos perguntar sobre os discursos e práticas que circulam no laço social atual, discursos esses que são anteriores e que constituem a materialidade simbólica com a qual os jovens certamente irão dialogar durante o exercício de construção de um novo nome.
Nesse sentido, importa perceber que o Brasil, de 2013 em diante, foi um caldeirão de tensões sociais e de instabilidades crescentes, isso, especialmente, quando pensamos nos jovens em situação de vulnerabilidade social. As Eleições de 2018 foram responsáveis pelo retorno de políticos de extrema direita, com discursos de ódio e incentivo às práticas de extermínio de cunho racista e fascista. O uso de armas, a intolerância com as diferenças e a polarização foram os grandes ganhadores das urnas naquele momento. Neste diapasão, enquanto os dois rapazes de Suzano sofriam calados e sozinhos, sem poderem simbolizar as angústias da passagem adolescente, sem desfrutarem de políticas sociais e educacionais efetivas em seu cotidiano a ponto de ajudá-los na construção de uma perspectiva de futuro, crescia, no mesmo ritmo de seu mal-estar, os discursos de ódio e violência no Brasil.
Hannah Arendt (1988), no texto A crise da educação, sugere que a crise de autoridade no mundo moderno, do qual a educação é fiadora, se forja também em meio a uma postura de pouca responsabilidade dos adultos com a natalidade, ou seja, com a dimensão da vida nova que chega em um mundo já constituído. Ela diz: "a educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana que se renova continuamente através do Nascimento e da vida de novos seres humanos" (p. 234).
Ora, em que medida temos transmitido aos nossos jovens a segurança de que chegam em um mundo pautado pela autoridade da preservação da vida? Referimo-nos à autoridade como efeito que se produz quando os adultos se responsabilizam por pautas de vida no espaço público e político. Nesse sentido, as formas como o par cultura e barbárie vão circular no laço social revelam o modo como a sociedade regula (ou não) os inevitáveis impasses e tensões a partir do mal-estar na cultura de cada tempo social. Seguindo Freud (1930/2010), e depois Lacan (1969-70/1992), sublinhamos que as pulsões de vida e de destruição estão sempre juntas, mesmo que não se saiba exatamente de que forma elas se fusionam e se desfusionam.
Quando Einstein pergunta a Freud Por que a Guerra?, ou seja, quais as motivações humanas para a guerra, Freud (1932/2010) responde que o ódio e a destrutividade fazem parte do ser humano e não há como eliminá-lo, pode-se, no máximo, atenuar sua presença de modo que sua expressão não precise aparecer na forma de guerras (Freud, 1932/2010). Ou seja, não se trata de dualismo, a negatividade das pulsões de morte, também, pode ser fonte de criação e de pensamento. Freud, em carta escrita a Marie Bonaparte, no ano de 1937, assinalou: "na combinação regular das duas pulsões há uma sublimação parcial da pulsão de destruição. Assim, pode-se considerar a curiosidade e o impulso de investigar como uma completa sublimação da pulsão agressiva ou destruidora" (Freud, 1937, apud Jones, 1979, p. 449-450). Pensando nos atuais espaços políticos e nas praticas cotidianas, quais os destinos pulsionais que estão vigorando em nosso laço social?
É interessante perceber que, em maio de 2019, quando já empossado, o presidente Jair Bolsonaro orgulhou-se de fazer a primeira amputação do Estatuto do Desarmamento como ato inicial de governo por via de um decreto-lei11. Nele, entre outras questões, consta a liberação do uso de armas em clubes de tiro para adolescentes, quando autorizados por um dos responsáveis, onde vemos a combinação perigosa que articula criminalidade e deseducação.
O interessante é que, desde a eleição de 2017, os analistas se perguntavam o que fez com que 55% da população brasileira elegesse como presidente um político cuja trajetória pública, ao longo de 30 anos no Congresso Nacional, fosse pautada por morte e não por vida (Perrone & Gurski, 2020). Suas lutas não foram ao encontro de temas como educação, saúde e ação social, mas, sim na defesa da violência, sobretudo a letal e especialmente contra as minorias. Suas propostas como homem público o levaram a disseminar, em seus discursos e ações, a perigosa combinação de violência e delinquência intelectual, banalizando a barbárie nos laços sociais através de um claro incentivo ao gozo com a tortura e com o apagamento do outro. Estariam os brasileiros anunciando simbolicamente o desejo por lideranças marcadas por políticas de morte? (Perrone & Gurski, 2020).
Após ser pressionado para se manifestar sobre o tiroteio de Suzano, na tarde do dia 13 de março de 2019, o presidente Bolsonaro caracterizou os jovens como monstros covardes, tática discursiva que, entre outras questões, desumanizou os atiradores de Suzano. A um só tempo, sua fala individualizou e silenciou problemáticas sociais e coletivas como, por exemplo, o apaixonamento por discursos de ódio, a evasão escolar e ambiente cultural nocivo semeador do bullying sofrido pelos adolescentes.
Tal modo de conduzir a problemática nos leva a interrogar: o que aconteceria no contexto de um novo atentado? Armar os seguranças e professores da escola, como muitos sugeriram, seria um encaminhamento possível para situações como essas? O que silenciamos quando reduzimos esses acontecimentos à lógica dos bons e maus, dos culpados e inocentes? Ora, o evitamento através das armas, prometido por muitos, parece ser pensado sempre em uma lógica pós-ventiva e não preventiva. Trabalha-se com a ideia de exterminar o jovem que tentar fazer algo parecido, mas não se pensa sobre formas a fim de evitar que um adolescente chegue a ter tal desejo - que inclui não só o apagamento do outro, como dele mesmo.
Neste sentido, como esperar o incremento do desejo de viver de nossos jovens quando lhes apresentamos um mundo cada vez mais bélico, polarizado e pautado por expressões de ódio? Como sustentar relações não destrutivas se o apagamento do outro é apresentado por algumas lideranças políticas como a única maneira de lidar com o mal-estar produzido pelas diferenças?
Dos anos 2000 para cá, vivemos no Brasil a experiência de abertura democrática junto com um enorme retrocesso econômico e social no país. No campo da educação, além destas variáveis econômicas e sociais, teve início uma mudança discursiva relacionada ao desenvolvimento do paradigma de habilidades e competências, o incremento do avalicionismo e a expansão de métricas de resultados para todas as áreas e etapas da educação.
Os pensadores franceses Dardot e Laval (2016) definiram essa mudança como a materialidade da ordem racional do neoliberalismo no campo da educação. No livro A nova razão do mundo, há um capítulo de clara inspiração lacaniana, denominado "A fábrica do sujeito neoliberal", no qual eles indagam sobre o modo como a condição primordial ilimitada do neoliberalismo se introduziu na vida dos seres falantes. Eles denominam de condição ilimitada o novo capitalismo financeiro que não admite sofrer interferência ou regulação por nada exterior a ele.
Os autores insistem que a lógica neoliberal construiu um "imaginário ao qual não conseguimos nos contrapor" (Dardot, & Laval, 2016, p. 4), pois temos gerentes de almas que introduzem a lógica do rendimento e de "autovalorização de si". Há um espírito empresarial que leva toda a nossa existência a se comportar como uma empresa, um mandato de tornar a relação consigo mesmo uma espécie de capital financeiro humano. Dardot e Laval (2016) enquadram essa operação como uma fórmula pela qual o sujeito engendra a si mesmo, ilimitadamente, enquanto capital financeiro. Nesse discurso ilimitado, vão se apagando, progressivamente, os legados simbólicos e a alteridade - até o ponto de tornar a vida uma expressão de um presente absoluto, um processo infinito de automaximação no qual o sujeito goza do valor de si mesmo.
Precisamos interrogar como a psicanálise, enquanto ciência do sujeito e do desejo, pode problematizar essa nova ordem imperativa. Conforme dizíamos no início, para Lacan (1964/2008), trata-se de um gozo sem limites, o que é bem diferente das relações de prazer. O gozo é algo para além do princípio do prazer, que se ajusta adequadamente ao dispositivo do rendimento empresarial vinculado a um certo caráter compulsivo, viciante e, finalmente, em sua face reversa, depressivo e destrutivo (Lacan, 1964/2008).
Precisamos discutir os efeitos da referida nova ordem imperativa, especialmente pelo engodo que é pensar que tal exigência neoliberal tem o poder de nos tornar indivíduos mais livres, independentes e felizes (Strzykalski, 2019). Não é difícil compreender que, ao negar a dimensão do impossível da fruição desse gozo absoluto, o sujeito tende a sofrer ainda mais pela culpa neurótica em relação às demandas inalcançáveis de um supereu sádico (Kehl, 2009).
Pe nsamos que esse discurso ilusório do gozo sem limites, presentificado, atualmente, pela citada lógica do rendimento empresarial, também opera produzindo efeitos sobre os adolescentes e suas famílias, bem como sobre as escolas e os educadores. Em relação aos adolescentes, importa lembrar que o próprio adolescer torna-se necessário justamente porque o sujeito sofre um abalo em sua economia psíquica de gozo: ele é confrontado com a ausência de um gozo total, sem limites. Contudo, se foi exatamente a promessa de completude que sustentou as renúncias pulsionais durante a latência, não é de se estranhar que, durante esse trabalho de reorganização psíquica, eles, por vezes, resistam à castração (Strzykalski, 2019). Aqui, referimo-nos às condutas de risco e às transgressões, incluindo as violências direcionadas à alteridade ou ao próprio sujeito, que, não raro, são atos cuja função é tentar burlar o que foi constatado durante o golpe de real pubertário (Stevens, 2004), a saber, de que não há como gozar senão parcialmente.
No cotidiano de trabalho com as escolas, o efeito do discurso do gozo sem limites parece se traduzir, por exemplo, em situações nas quais as instituições ficam cada vez mais pressionadas pelo apelo a responder ao que os consumidores (famílias e pais) querem ouvir. Nesse contexto, nos perguntamos: afinal, qual o futuro da educação no Brasil? Em momentos anteriores, chegamos a acreditar que a tecnologia resolveria todos os problemas do ensino, da aprendizagem e da inovação. Do mesmo modo, cultivamos a ilusão de que bastaria tornar nossos jovens bilíngues que o futuro estaria resolvido; hoje, as universidades realmente de ponta querem saber de soft skills: empatia, ética, capacidade de escutar o outro e responsabilidade social, o que ninguém no Brasil foi capaz de prever.
Pensamos que, quando os laços sociais e educacionais se tornam dominados pela ideia de financeirização da vida, é porque estamos frente a uma espécie de suicídio da humanidade - até porque nenhuma vida dá conta dos ideais de automaximação. Na lógica da liturgia empresarial, além de devermos nos imunizar do fracasso, precisamos cuidar para não cair na tanatogestão da vida, na qual nos sentimos dispensáveis e dessubjetivados. Nesse contexto, a escola acaba funcionando como o palco em que o sentimento persistente de inadequação e fracasso se faz presente tanto para os alunos como para os educadores. Em meio a toda a banalização da educação, agrega-se, ainda, a devastação do meio ambiente, o empobrecimento da vida psíquica, a privatização e outros índices de precarização da vida que, sem dúvidas, afetam as condições psíquicas dos jovens (Perrone, 2019).
A guisa de conclusão: algumas notas sobre a escola e o despertar do sujeito na passagem adolescente
Theodor Adorno (2003), no conhecido texto A educação após Auschwitz, sugere que depois do genocídio nazista, programado cientificamente para extinguir categorias de pessoas, a educação tem apenas e, fundamentalmente, uma função: a de impedir o retorno à barbárie através da emancipação do sujeito.
Tal reflexão de Adorno ganha dramaticidade em um momento no qual o Brasil parece trocar a emancipação pelo retrocesso e a educação pelas armas. Interessa-nos problematizar essa reflexão a partir do que Arendt (1988, p. 247) pontua no livro Entre o passado e o Futuro: "a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele […], cuidando de nossas crianças o suficiente para não abandoná-las aos seus próprios recursos [...]".
Tal apontamento da filósofa vai ao encontro de algumas colocações feitas por Freud (1910/1969), em uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, na qual tratava justamente do suicídio de adolescentes de escolas secundárias. Freud sublinhou, vivamente, que a escola deveria fazer mais do que deixar de impelir os jovens para o suicídio - argumento dos educadores da época; a escola deveria lhes transmitir a vontade de viver, pois se trata de uma época em que os sujeitos estão afrouxando os laços com os pais e precisam de um outro espaço, que não a casa e a família, para investir o seu despertar no mundo lá fora.
O tema do despertar do jovem para a vida lá fora, para a sexualidade, para a dimensão da falta e da castração pode ser tomado como a própria operação psíquica da adolescência. Vimos que é no despertar do sonho do Édipo que o sujeito toma nas mãos a responsabilidade de fazer uma versão singular de si. Nesse sentido, a adolescência talvez possa ser pensada como o verdadeiramente novo do sujeito, aquilo que esse despertar pode acrescentar como um passo além do Outro - momento de realizar um certo deciframento do enigma de quem o sonhou (Gurski, 2019c).
Assim, se os adultos de hoje produzem narrativas mórbidas e a morte da alteridade fica na ordem do dia, precisamos seguir apostando na adolescência como um tempo de despertar no qual o sujeito forja a condição de inaugurar novos possíveis a partir das diferentes formas de leitura do real que recebe como herança. Nesse sentido, o despertar da adolescência pode ser visto como um ato que carrega um efeito ético-político capaz de inscrever o singular do sujeito e, ao mesmo tempo, a dimensão coletiva dessa inscrição.
Ao entregar o seu novo ao mundo, na forma de desejo pela vida e pela criação, o jovem confirma a cara noção de que tudo está em transformação o tempo todo e de que a origem necessariamente não precisa ser o destino - questão que abre a possibilidade da polissemia e da criação infinita para o sujeito e para o social.
Nesse sentido, precisamos sublinhar que apesar da potência deste momento de vida, quando, no lugar do desejo de viver da juventude de uma época, encontramos, no discurso social, a posição de deixar morrer, estamos realmente frente a um adoecimento que não é só do sujeito, mas, sobretudo e de modo anterior, do laço social.
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Endereço para correspondência
Rose Gurski
E-mail: rosegurski@ufrgs.br
Stéphanie Strzykalski
E-mail: stephanie.strzykalski@hotmail.com
Cláudia Maria Perrone
E-mail: cmperrone@ig.com.br
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Prof. do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Coordenadora do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS). Membro do GT Psicanálise e Educação ANPEPP.
**Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Psicóloga, Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Pesquisadora associada ao Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS).
***Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Prof. do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS).
1Lacan (1964/1998, apud Stevens, 2004, p. 6) concebe a libido como um órgão "em sua dimensão mais orgânica possível, mas justamente fora do corpo, como aquilo que, do gozo, restará estrangeiro ao corpo que se torna significante, ao corpo que fala".
2A expressão, que pode ser traduzida pela pergunta " Que queres de mim?", foi trabalhada por Lacan no escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo do inconsciente freudiano (1998/1960), recolhida do conto O diabo amoroso de Jacques Cazotte. No conto, o interrogante é proferido pelo diabo que, apresentando-se ao protagonista sob a imagem de uma bela mulher, consegue seduzi-lo. Desde a literatura fantástica, gênero que veio marcar um contraponto radical ao empirismo que predominava na época, Lacan recorre ao interrogante "Che voi?" como um modo de adensar as teorizações sobre o desejo inconsciente: aquilo que se apresenta como um enigma e que, por isso mesmo, singulariza a experiência do sujeito diante do universal da lei na qual ele se insere.
3Ver: <https://veja.abril.com.br/brasil/suicidio-roupa-preta-arma-branca-semelhancas-entre-columbine-e-suzano/>.
4Ver: Bullying em Columbine, <https://www.youtube.com/watch?v=rpav5AuQM60>.
5A expressão traduz o termo loser, uma expressão que significa "perdedor" e que é bastante utilizada de forma pejorativa na cultura americana.
6Ver: <https://www.hypeness.com.br/2019/03/bullying-abandono-e-saude-mental-os-verdadeiros-responsaveis-pela-tragedia-de-suzano/>.
7Ver: <https://www.hypeness.com.br/2019/03/bullying-abandono-e-saude-mental-os-verdadeiros-responsaveis-pela-tragedia-de-suzano/>.
8Ver: <https://www.hypeness.com.br/2019/03/bullying-abandono-e-saude-mental-os-verdadeiros-responsaveis-pela-tragedia-de-suzano/>.
9Ver: <https://www.buzzfeed.com/br/tatianafarah/massacre-suzano-columbine-atiradores>.
10Ver: <https://www.hypeness.com.br/2019/03/bullying-abandono-e-saude-mental-os-verdadeiros-responsaveis-pela-tragedia-de-suzano/>.
11Ver: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/05/07/bolsonaro-assina-decreto-que-muda-regras-sobre-uso-de-armas-por-colecionadores-e-atiradores.ghtml/>.