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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.103 São Paulo jul./dez. 2022  Epub 08-Jul-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v55n103.03 

Tema: Psicanálise em (de)formação

Formação psicanalítica com fim e sem fim: Transmissão, formação e falta

Formación psicoanalítica con fin y sin fin: transmisión, formación y falta

Psychoanalytic training with end and without end: transmission, formation and lack

Formation psychanalytique avec fin et sans fin : transmission, formation et manque

Bernard Chervet1 

1Psicanalista, membro titular formador e ex-presidente da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP), secretário científico da CPLF e membro do Conselho da IPA. Paris


Resumo

A transmissão da psicanálise combina uma realização do psiquismo referida a um ideal de funcionamento e a uma aculturação que inclui a formação psicanalítica propriamente dita e uma abertura à cultura. Toda a formação é um lugar de transferência de autoridade, mas também de tendências negativas que têm consequências na nossa capacidade de nos tornarmos e permanecermos analistas, bem como no funcionamento institucional. As cisões nas sociedades psicanalíticas são frequentemente associadas à formação de psicanalistas, independentemente do modelo de formação. Transmite-se, assim, uma ética psicanalítica baseada num masoquismo da abstinência que se opõe às tendências redutivas e extintivas. Não há analista que possa se tornar e permanecer tão só. Mas não há analista que seja analista apenas pela instituição. As oscilações entre o superego individual e o superego cultural, entre as regressões das sessões e aquelas específicas de outras cenas da vida fora da sessão estabelecem a possibilidade de tornar-se e permanecer analista.

Palavras-chave análise pessoal; identificação; regressividade extintiva; imperativo de inscrição; rescaldo

Resumen

La transmisión del psicoanálisis combina una realización del psiquismo referida a un ideal de funcionamiento y una aculturación que incluye una formación psicoanalítica propiamente dicha y una apertura a la cultura. Toda formación es un lugar de transferencia de autoridad pero también de tendencias negativas que tienen consecuencias sobre nuestra capacidad de convertirnos y seguir siendo analistas, así como sobre el funcionamiento institucional. Las escisiones en las sociedades psicoanalíticas se asocian con frecuencia a la formación de psicoanalistas, independientemente del modelo de formación. Se transmite así una ética psicoanalítica basada en un masoquismo de abstinencia que opone tendencias reduccionistas y extintivas. No hay analista que pueda volverse y permanecer tan solo. Pero no hay analista que sea analista sólo a través de la institución. Las oscilaciones entre el superyó individual y el superyó cultural, entre las regresiones de las sesiones y las propias de otras escenas de la vida fuera de la sesión establecen la posibilidad de devenir y permanecer analista.

Palabras clave: análisis personal; identificación; regresividad extintiva; imperativo de inscripción; secuelas

Abstract

The transmission of psychoanalysis combines an accomplishment of the psyche referred to an ideal of mental functioning and an acculturation which includes the psychoanalytic training itself and an opening to the whole of culture. Any training is a place of transfer of authority but also of negative tendencies which have consequences on our capacity to become and remain analysts, but also on institutional functioning. The splits in psychoanalytic societies are frequently associated with the training of psychoanalysts, whatever the training model. A psychoanalytical ethic based on a masochism of abstinence is thus transmitted, which opposes the tendencies to reduction and extinction. There is no analyst who can become one and remain one. But there is no analyst who can only be one through the institution. The oscillations between the individual superego and the cultural superego, between the regressions of the sessions and those of other scenes of life outside the session, found the possibility of becoming and remaining an analyst.

Keywords: personal analysis; identification; extinctive regressivity; inscription imperative; après-coup

Résumé

La transmission de la psychanalyse combine un accomplissement du psychisme référé à un idéal de fonctionnement et à une acculturation qui inclut la formation psychanalytique proprement dite et une ouverture à la culture. Toute formation est un lieu de transfert d’autorité mais aussi de tendances négatives qui ont des conséquences sur notre capacité à devenir et à rester analyste, ainsi que sur les fonctionnements institutionnels. Les scissions des sociétés de psychanalyse sont fréquemment associées à la formation des psychanalystes quel que soit le modèle de formation. Se transmet ainsi une éthique psychanalytique fondée sur un masochisme d’abstinence qui s’oppose aux tendances réductrices et extinctives. Il n’y a pas d’analyste qui puisse le devenir et le rester seul. Mais il n’y a pas d’analyste qui ne le soit que par l’institution. Les oscillations entre le surmoi individuel et le surmoi culturel, entre les régressions de séances et celles propres à d’autres scènes de la vie hors séance fondent la possibilité de devenir et de rester analyste.

Mots-clés: analyse personnelle; identification; régressivité; extinctive; impératif d’inscription; après-coup

Introdução

Por que as cisões das sociedades de psicanálise são tão frequentemente associadas à questão da formação dos psicanalistas, independentemente do modelo de formação, seja este dominado por uma liberdade que apela às exigências próprias de cada um ou por um currículo que institui uma exigência coletiva de ensino? A formação dos psicanalistas é um espaço de transferência ocupado por forças intensas com implicações nas instituições psicanalíticas. A transmissão da psicanálise alia uma realização do psiquismo a uma aculturação infinita que inclui a formação propriamente dita.

Nessa formação estão implicadas a análise pessoal, as reminiscências históricas das aprendizagens da infância, a sensibilidade de cada um ao inconsciente, a capacidade de produzir formações do inconsciente e interpretá-las, a identificação com o funcionamento analítico de outros analistas - suportes da transferência de autoridade -, as confrontações interanalíticas, o ensino do funcionamento psíquico e de suas modalidades de trabalho, a frequência repetitiva da realidade clínica, a abertura a outras disciplinas, a experiência masoquista da gravidade da vida encarnada na maturidade, a vida pessoal tanto íntima quanto erógena.

Essa lista nos remete ao fato de que existem tendências inconscientes que podem reduzir nossas capacidades psíquicas e nossa identidade de analista. Devem ser levadas em consideração na formação, para que se possa fazer delas um objeto de conhecimento e cumprir a exigência psíquica de utilizá-las em proveito da atividade mental. Pela formação, transmite-se, assim, uma ética psicanalítica fundada no masoquismo de funcionamento. Ninguém pode se tornar analista nem se manter analista sozinho. Como também não há analista que possa sê-lo exclusivamente por meio da instituição. As alternâncias entre o supereu individual e o supereu cultural, entre as regressões de sessão e aquelas pertencentes a outras cenas, fora da sessão, dão ao analista a possibilidade de se tornar e de sempre voltar a sê-lo de modo intermitente.

Este texto propõe algumas reflexões acerca da formação psicanalítica e da transmissão, versa sobre a formação psicanalítica com e sem fim, título que remete ao texto de Sigmund Freud de 1937: “Análise terminável e interminável” (Freud, 1937/2010c).

Classicamente, a formação psicanalítica repousa sobre um tripé constituído pela análise pessoal, pela supervisão e pelo ensino das concepções psicanalíticas. A transmissão compreende um quarto elemento, uma ética que encontra sua razão de ser no fato de que a psique é o lugar de atrações regressivas que tendem à extinção, às quais devem ser contrapostas por um imperativo de inscrição, uma ética que articula nossa profissão às outras cenas da vida, à cena do sono-sonho e à da vida erógena.

O primeiro elemento da formação, a psicanálise pessoal, é uma condição indispensável, porém insuficiente. Ela tem por objetivo o acesso a um funcionamento psíquico ideal referente à resolução do complexo de Édipo. Esse funcionamento pode ser considerado conquistado quando alcança uma configuração dinâmica e em alternância entre uma atividade regrediente e outra progrediente, entre um funcionamento diurno e outro noturno e, no cerne do funcionamento diurno, entre o trabalho e o erótico. Essa configuração se cumpre em dois tempos, de acordo com o processo do après-coup. Este processo cria uma aparente continuidade, mediante uma ligação de sobredeterminação entre o latente e o manifesto, ali onde existe uma descontinuidade intrapsíquica entre as pulsões e as inscrições.

O segundo e o terceiro elementos constituem a formação psicanalítica propriamente dita. Ela abrange a transferência de autoridade e de identificação, mas também a prática analítica, o encontro com a clínica, modelos de formação e de supervisão, o ensino dos funcionamentos psíquicos, a aquisição de habilidades e saberes, bem como a abertura a uma cultura geral infinita.

Por fim, o último ponto diz respeito à transmissão e à ética. Ele é ocultado pelos dois pontos precedentes, que são dominados pelo desenvolvimento da identidade de analista e pela expansão da aprendizagem da análise e da cultura em cada analista em formação. Esse tempo promissor oculta, como durante nossa tenra idade, um fator limitativo que está envolvido na transmissão e se manifesta por um questionamento acerca daquilo que resiste. Como podemos continuar sendo analistas durante a vida toda após o término da formação? Essa questão delicada é atualizada nos inúmeros encontros que os psicanalistas organizam e dos quais participam. Esse dado quantitativo é matéria para reflexão. Trata-se de rever constantemente o trabalho da transferência de autoridade mediante um compartilhamento interanalítico, considerando-se, portanto, a existência de tendências redutoras ativas no cerne de nossa identidade de analista, mas, também, trata-se de negar tais tendências e suas consequências, como os estreitamentos progressivos, as cronificações institucionais, as crises e cisões, as idealizações e as propensões a designar personagens carismáticos.

Não somos analistas 24 horas por dia e nossa função de analista é beneficiada por sua articulação com outras experiências de vida, sobretudo com a experiência masoquista da gravidade da vida, encarnada na maturidade, mas também com a vida pessoal e, certamente, com a vida íntima e erógena.

A formação psicanalítica tem sua origem nas experiências traumáticas, oriundas dessas tendências redutoras. Ela associa dois planos. Primeiramente, a instauração de um funcionamento psíquico ideal que pode ser considerado como alcançado, o que não descarta sua vulnerabilidade, e que demanda uma identificação com os processos psíquicos de um outro, graças à qual essas vivências traumáticas poderão ser transformadas em experiências de falta. Esse primeiro plano é enriquecido por uma aculturação infinita, efetuada por identificações com habilidades e saberes de outras pessoas - o saber e o “saber fazer” são infinitos.

A psicanálise pessoal e o funcionamento psíquico ideal

As crises e cisões das sociedades de psicanálise são frequentemente associadas à questão da formação dos psicanalistas, independentemente do modelo de formação, seja este dominado por uma liberdade que apela às exigências próprias de cada um ou por um currículo que institui uma exigência coletiva de ensino.

A formação dos psicanalistas é um lugar de transferência ocupado por forças intensas, cujas consequências são significativas. Felizmente, as ações destrutivas não são o único efeito das transferências que animam a formação: um outro efeito, mais auspicioso, é a reflexão sobre a própria formação. Daí resulta um apelo a um compartilhamento coletivo, mas, sobretudo, a uma retomada da mentalização individual.

A dimensão transferencial mobilizada é repleta de reminiscências e lembranças da vida estudantil da infância de cada um. Há uma analogia entre o passado e o atual. Toda analogia, como aquelas envolvidas no sonho, baseia-se em conteúdos inconscientes, o fio condutor inconsciente sendo o terceiro termo que serve de base para a analogia. A interpretação desse terceiro elemento introduz uma quarta dimensão: a da terceiridade. A elaboração que conduz à interpretação desempenha a função de terceiro. Na formação, o que se encontra no centro dessas analogias é o jogo entre a transferência de autoridade e a sedução do apelo identificatório. Essa transferência se refere à diferença das gerações, ou seja, às diferenças entre aqueles que ensinam e aqueles que aprendem, diferença que se declina entre aqueles que são bem providos e os que são desprovidos.

A transmissão compreende, portanto, uma dupla diferença, assim como a diferença entre os sexos. No caso da última, trata-se da diferença entre duas realidades tangíveis, o masculino e o feminino, e daquela entre o tangível e o que falta. Toda diferença introduz uma relação com a falta que implica um efeito traumático. Disso advém a teoria sexual infantil que tenta responder a esse efeito, afirmando, por exemplo, que a menina é desprovida e que o que lhe falta resultou de um ato de castração - o que é evidentemente falso, dado que a menina é completa enquanto menina, mas não deixa de ser verdade do ponto de vista daquilo que ela não tem: um pênis. A teoria antitraumática propõe, assim, toda sorte de causalidade para a origem da terceira fantasia originária etiológica: a menina foi castrada pelo pai, ela o perdeu, ele é invisível, ele crescerá mais tarde etc. As analogias com a formação são ainda mais fáceis ao considerarmos que esse termo remete ao segundo tempo da sexualidade humana, a puberdade.

Em toda e qualquer formação, há um mestre, que, conforme esperado, detém o conhecimento e almeja transmitir o que ele sabe ao outro, e um aluno, que supostamente quer aprender. Trata-se, portanto, do encontro entre duas entidades tangíveis, o mestre e o aluno, e de dois desejos. Todavia, essa diferença positiva é acompanhada pelo efeito traumático produzido por outra diferença que é aquela entre o bem provido e o desprovido, entre o pequeno e o grande. Estabelece-se uma gama de teorias e de paixões entre quem ensina e quem aprende, baseadas em experiências de falta. Tal parábola deu muito pano para manga devido à intensidade introduzida pelo efeito traumático transformado em um efeito de sedução entre o grande e o pequeno. Essa sedução pode ter efeitos desorganizadores ou, ao contrário, estimulantes de um advir quando ela suscita o desejo de apropriação que está na origem de uma identificação com o saber do mestre.

A dinâmica da formação e da transmissão se estabelece, portanto, sobre um fundo traumático inerente a todas as diferenças que emanam tanto das percepções sensoriais do mundo externo quanto das endopercepções que se originam no interior do nosso psiquismo. Da mesma forma que nas fobias, essas endopercepções se transpõem para o mundo exterior para tornarem-se medos mais facilmente administráveis. As duas faces se entrelaçam.

As crises institucionais que envolvem a formação dos psicanalistas são, assim, movidas por esse efeito traumático inerente às diferenças transpostas-transferidas para a situação de formação e que ocultam as dinâmicas fóbicas - e, portanto, edípicas - da qual ela é objeto. O fato de ser analisado não é suficiente para impedi-las, não porque a análise individual seja insuficiente, mas devido às regressões à psicologia coletiva e de massa própria dos grupos. A análise individual não constitui uma vacina contra tais efeitos. Ela permite acessar um funcionamento singular mais elaborado, mas não permite escapar à regressão envolvida no contato com a realidade dos grupos. A idealização transferencial é da ordem dessa tendência a regredir a uma psicologia grupal.

Essas afirmações nos remetem a uma frase de Freud segundo a qual educar e governar fazem parte, junto com analisar, dos ofícios impossíveis. Os desafios edípicos da eliminação das restrições e o assassinato do pai são facilmente transferidos para o mestre, assim como se atualizam os laços edípicos secretos mantidos com aquele que supostamente fornece o saber e equipa seu aluno. A clínica dos fracassos escolares pode ser, aqui, identificada, assim como a dos bebês sábios, cujo êxito escolar não constitui, na verdade, uma aquisição, mas se apoia numa idealização e numa comunidade de recusa.

A questão do “com fim e sem fim” leva a três termos: o terminado, o não terminado e o interminável. Ela foi abordada por Freud no que tange ao tratamento psicanalítico. Ela provém de seu reconhecimento da resistência a reconhecer as resistências envolvidas em toda vida psíquica, resistências que confrontam analista e paciente à dificuldade de levar um tratamento a bom termo. Freud denominou essa resistência de “recusa do feminino” e a caracterizou como rocha do biológico. Assim, alguns aspectos do psiquismo seriam radicalmente inacessíveis à psicanálise. A sensibilidade ao inconsciente é o que parece estar em jogo nessa recusa, nessa impossibilidade de abandonar uma resistência em proveito de uma dinâmica sensível que aceite as experiências de falta. Essa recusa das diferenças é destinada a reprimir o trabalho psíquico que origina as experiências de falta. Apresentam-se, então, inibições de determinados processos psíquicos, das quais advém a incapacidade de alcançar uma resolução consolidada do complexo de Édipo.

Essa questão da resolução é essencial, pois ela envolve o futuro supereu, bem como os imperativos para instaurá-lo. O supereu é a garantia das diversas modalidades de trabalho que o psiquismo deve realizar. Se ele é o herdeiro do complexo de Édipo, sua ascensão depende de imperativos que o precedem. Suas formas incoativas são orientadas pelo objetivo que devem atingir: a referida resolução. Por conseguinte, são esses imperativos e as futuras funções do supereu que se tornam os focos da atenção em sessão. A solução que Freud propõe em “Construções em análise” (Freud, 1937/2010b), artigo que sucede imediatamente “Análise terminável e interminável”, não deixa de nos fazer refletir. O que falta a um paciente deve ser construído pelo analista. Assim, a convicção é obrigada a desempenhar a função comumente atribuída à memória. Essa resposta deixa em suspenso a capacidade de um paciente de se apropriar da construção do analista e de lhe conceder uma convicção. Um analista não pode criar os processos de um paciente.

É possível conceber uma analogia a respeito dessa questão do “com fim e sem fim” entre o tratamento e a situação da formação? A avaliação do funcionamento psíquico ocorre no momento da seleção dos candidatos. Teoricamente, trata-se de avaliar o funcionamento psíquico do candidato e compará-lo com um funcionamento mental ideal que serve de referência para um grupo de analistas didatas reunidos em um instituto de formação. Contudo, existem, entre eles, diversos referenciais que entram em conflito. Os conflitos intrainstitucionais envolvem concepções diferentes acerca do funcionamento psíquico ideal. O efeito traumático dessas diferenças tem sua origem na diferença de seus funcionamentos psíquicos.

Em certos modelos, a avaliação é feita quando a análise pessoal já se encontra muito avançada; em outros, trata-se de avaliar a potencialidade de uma personalidade de alcançar, por meio de uma análise, tal funcionamento ideal. Em ambos os modelos, é uma tarefa difícil!

Será que existe um funcionamento mental que possa ser abordado como tendo atingido um grau de desenvolvimento ideal e que possa ser considerado como atingido? Trata-se daquele alcançado pelo luto dos objetos edípicos, luto que ocorre na presença deles. Essa renúncia a satisfazer seus investimentos sexuais com os objetos-suportes de identificação é essencial. Entretanto, o psiquismo resiste e recorre a todos os tipos de artimanhas para evitar essa renúncia. A psique está sempre pronta para inventar escapatórias. Esse luto é muito específico, uma vez que ocorre na presença dos objetos, ou, na verdade, graças à intermitência de sua presença-ausência. Essa especificidade deve ser levada em consideração na reflexão acerca dos limites dos tratamentos à distância. Esse luto em presença possibilita, durante toda a vida, fazer lutos pela perda definitiva dos objetos.

Essa renúncia instaura o supereu e funda a estrutura do psiquismo que se encerra na adolescência. Ela dessexualiza uma parte das pulsões e a transforma em libido narcísica, enquanto a outra parte se torna o desejo objetal voltado aos objetos do mundo. Essa realização estabelece um processo em dois tempos, o après-coup e o funcionamento em alternância, regrediente-progrediente, que o caracteriza. Esse processo é vulnerável. Ele tem valor de término sob a forma de uma dinâmica constante.

A objetalidade é a capacidade de investir alternadamente os objetos externos e de poder regredir, sem se desorganizar, até o narcisismo noturno e o gozo erótico. Uma realização finita do psiquismo estabelece, portanto, uma dinâmica infinita do pensamento, que não cessa de seguir tal oscilação.

Todo futuro analista deve se aproximar de tal funcionamento ideal fazendo uma análise pessoal. Esse dever é uma das condições essenciais para se tornar analista, seja qual for o modelo de formação adotado; outra condição é realizar uma formação em um dos institutos de formação administrados por uma das organizações psicanalíticas, com padrões precisos e rigorosos e que ofereça um certo grau de flexibilidade. Daí a importância da existência de diversos modelos de formação, sendo todos associados a esses padrões discutidos pela ipa e pelas sociedades que a compõem, e definidos em códigos de procedimento e regimentos evolutivos.

A obrigação de realizar uma análise pessoal, por vezes chamada de análise didática ou de formação, é tão importante a ponto de ter sido denominada a segunda regra fundamental da psicanálise. A primeira, que se refere ao “dizer tudo” em sessão, é, na verdade, a única verdadeira regra analítica. As outras derivam dela. Uma outra instrução é, por vezes, tida como a terceira regra. Ela se aplica ao analista, que não deve fazer uso da transferência para os seus próprios fins, nem deve sucumbir à tentação “de desempenhar diante do paciente o papel de um profeta, de um redentor de almas, de um messias” (Freud, 1923/1991). Trata-se da regra de abstinência no sentido amplo do termo. Essa instrução se aplica a todos os tratamentos e, portanto, também às análises ditas de formação, nas quais é mais difícil respeitá-la.

A formulação mais precisa da regra analítica, aquela que dispensa enunciar outras, foi introduzida por Freud em “Compêndio de psicanálise” (Freud, 1940[1938]/2010a): sinceridade total em troca de estrita discrição. De modo a ser efetiva, é necessário que o analista tenha feito uma análise pessoal. Essa regra prescreve a livre associação e a atenção flutuante, assim como a ética psicanalítica, ou seja, o imperativo de realizar um trabalho psíquico regrediente-progrediente que tenha como finalidade a regeneração de uma gratificação de desejo disponível ao mundo.

A formação propriamente dita

A identificação com o funcionamento analítico de um outro

A sedução oriunda do efeito traumático associado à diferença entre os dois protagonistas pode levar a uma identificação que tem sua origem na avidez canibalesca que busca apropriar-se do saber de um, do qual o outro se sente desprovido. Aliam-se a transferência de autoridade, a sedução, a avidez e a exigência de uma renúncia a satisfazer as moções pulsionais em prol das aquisições. A construção do psiquismo e as aquisições por identificação se conjugam em toda formação, como foram conjugadas nos primeiros anos de vida. Essa época foi ocupada pela resolução da dinâmica edípica e por uma inibição quanto à meta, por uma renúncia às satisfações imediatas em proveito de uma aculturação própria do período de latência. Essa identificação com um ou mais psicanalistas didatas em seu trabalho concerne à aquisição de um “saber fazer” (as supervisões) e a uma aculturação que, por sua vez, se abre em duas direções: em direção a uma cultura específica da psicanálise e em direção à cultura geral. Se, por um lado, o analista didata pode promover tal identificação, por outro, ele não pode criá-la. Nenhum programa de formação pode criar a transferência de autoridade e tampouco a identificação favorável às aquisições. Além disso, quanto mais diretivo for o programa, maior será o risco de ele conduzir ao efeito inverso. Contudo, um programa flexível não fornece maior garantia quanto à atualização dessa transferência e ao advento dessa identificação. Eles dependem, acima de tudo, do analista em formação. Com muita frequência, a transferência de autoridade ocorre sem que a pessoa que serve de suporte saiba, e seja qual for o protocolo do programa de formação.

O único trabalho possível consiste em tornar disponíveis, durante o tratamento, as reminiscências históricas referentes às aprendizagens da infância, nas quais estão envolvidas as transferências de autoridade. Esse processo se repete ao longo da análise e da vida. Trata-se de liberar o conflito entre o ódio da cultura e a utilização do ódio em proveito da aculturação.

O trabalho do analista envolve uma outra qualidade, uma sensibilidade individual ao inconsciente que varia consideravelmente de um indivíduo a outro e de um momento a outro, podendo ser concebida como um dom ou, pelo menos, como um talento no que tange à capacidade de ouvir as lógicas do inconsciente envolvidas nos eventos da vida e no discurso associativo dos pacientes. Para que alguém se torne psicanalista, essa sensibilidade tem de ser acompanhada pela capacidade de produzir formações do inconsciente - tais como sonhos, pensamentos incidentais, figurações, teorias infantis e experiências emocionais - e de expressá-las por meio de conteúdos correspondentes. A sensibilidade ao inconsciente só pode se implicar na arte da interpretação quando conjugada com essa capacidade de poder relacionar ao código linguístico as moções inconscientes, que são variáveis em toda linguagem, e de poder expressar esses pensamentos irracionais por meio da interpretação.

Essa sensibilidade ao próprio inconsciente e ao inconsciente do outro não pode ser aprendida nem ensinada. Ela pode ser desenvolvida e aprimorada pela análise pessoal e pelo contato regular e constante com a clínica. O exercício da psicanálise exige, portanto, uma prática clínica e um desenvolvimento concomitante dessa reflexividade, ou seja, uma escuta de seu próprio inconsciente perante a presença de um outro investido - logo, o reconhecimento da contratransferência.

As habilidades para interpretar nascem da propensão interpretativa do pensamento, que a análise pessoal pôde tornar mais disponível, e da necessidade de produzir teorias causais infantis para responder às experiências traumáticas despertadas no contato com toda alteridade. Essa capacidade depende, também, da cultura psicanalítica adquirida durante os estudos anteriores e durante a formação psicanalítica, do encontro com o irracional e da capacidade de permanecer em contato com a incoerência.

A transferência de autoridade é indispensável para que advenha a identificação com o funcionamento psíquico de um outro - neste caso, de um psicanalista. Trata-se da aquisição de uma identidade de analista por meio de uma identificação com a capacidade analítica de outros psicanalistas. A escolha dos objetos de identificação é evidentemente sobredeterminada em cada um.

A identificação mais essencial durante o tratamento, fundadora dos processos psíquicos e de sua utilização na condição de analista, é ampliada por identificações com as capacidades dos mais velhos e dos mestres, por meio das supervisões, dos seminários, dos grupos de trabalho, das jornadas e congressos etc. Essa atividade de verticalização é acompanhada, também, por uma identificação horizontal, fraterna, com outros analistas. Associadas, elas viabilizam um trabalho de grupo e trocas interanalíticas produtivas.

Não há escuta psicanalítica sem, para além de um pensamento teorizante, uma bagagem metapsicológica que permita levar em consideração os mecanismos de pensamento envolvidos no trabalho do sonho, no trabalho da sessão e, em geral, no funcionamento psíquico. A escuta psicanalítica é plena de um saber latente.

Cabe acrescentar, ainda, a necessidade do psiquismo de ter à sua disposição inúmeros materiais de cultura. Cada um os encontrará no mundo ao seu redor, de acordo com sua própria eletividade, seus interesses, sua curiosidade e sua capacidade de surpreender-se. Essa abertura a toda sorte de outras disciplinas tem a função de abastecer o pré-consciente e facilitar o trabalho que o psiquismo deve realizar. Essa necessidade psíquica permite a todo analista cultivar-se ao longo da vida. Essa transposição para disciplinas anexas tem, também, outra função psíquica. Todas as realidades do mundo e as criações humanas podem ser eleitas como objetos de transposição de elementos inconscientes que nelas se reconhecem e que delas se servem para fabricar metáforas substitutivas, ao mesmo tempo em que tais elementos permanecem inconscientes. Essa etapa de transposição e de metaforização funda o animismo do nosso pensamento. Assim, Freud recorreu a química, física, eletricidade, termodinâmica, medicina, cirurgia, antropologia, filosofia, linguística, mitologia e artes, assim como a biologia, sociologia, história, religião, astrologia, ciências ocultas etc. Atualmente, neurofisiologia, física quântica e biologia são os objetos de predileção das transposições grupais. Tais incursões por realidades tangíveis constituem o método pelo qual a metapsicologia é elaborada. Elas fazem parte da epistemologia do pensamento psicanalítico.

Os modelos de formação: princípios e protocolos

Existem, atualmente, três modelos de formação adotados pelos Institutos para desempenhar sua missão de formar psicanalistas: o Eitingon, o francês e o uruguaio.

Convém distinguir brevemente os princípios que os movem, bem como os seus protocolos concretos. Esses modelos foram estabelecidos, de modo geral, sob a influência de circunstâncias conjunturais e não a partir de reflexões teóricas, as quais só foram contempladas em um segundo momento.

O modelo de Eitingon foi o primeiro modelo de formação criado por Eitingon entre 1920 e 1925 na clínica psicanalítica de Berlim, inaugurada em 1920. Foi também em Berlim que o primeiro instituto de formação de psicanalistas foi criado por Eitingon, antes de sua migração para a Palestina, onde fundou a Sociedade Psicanalítica da Palestina (1933), a qual se tornou, depois de 1948, a Sociedade de Psicanálise de Israel.

A recontextualização da criação do modelo de Eitingon exigiria uma imersão na história da Alemanha e de suas relações com a Áustria, bem como, evidentemente, na história da psicanálise no cenário da história do século 20. Em “A questão da análise leiga” (Freud, 1926/1994), somos apresentados a um breve panorama dessa história. Freud se refere de forma muito clara, em sua argumentação em defesa da análise leiga, à necessidade de tomar cuidado para não regulamentar demais, dado que um excesso faria com que toda a autoridade das regras estabelecidas se perdesse. Daí advém o risco de promover condições que favoreçam as transgressões. Esse pensamento referente às regras deriva de uma dialética entre os benefícios do que poderíamos chamar de enquadre definido pelo legislador e uma prática que se desenvolve de maneira espontânea no plano grupal - um equilíbrio difícil entre as vantagens e as desvantagens de cada uma das posições. Atualmente, esse dilema sustentado por Freud no texto mencionado acima, sob a forma de uma dialética com um personagem imaginário benevolente, pode ser encontrado em todas as nossas discussões no que tange aos princípios dos modelos de formação (Kernberg, 2002).

Um deles prioriza uma organização institucional que prescreve a análise e estabelece um programa, bem como exigências; organização na qual os analistas em formação devem desenvolver seu talento e nele encontrar sua liberdade.

O outro modelo atribui uma prioridade ao desejo de ser analista, aos elãs individuais relacionados a esse desejo, sendo necessário, para realizá-lo, passar pela instituição. O analista em formação faz, então, seu programa a partir daquilo que a instituição disponibiliza, mas, também, com o que encontra fora dela.

Encontramos, aqui, o conflito entre as lógicas histéricas e as obsessivas, entre a primazia do desejo sobre a organização do Eu e a prevalência das instituições do Eu que deveriam regular o desejo; um conflito entre uma pulsionalidade que teria livre curso e não culminaria em nada, e uma processualidade que controlaria as pulsões e impediria o advento de qualquer novidade. É claro que esse esquema simplificado serve apenas para nossa reflexão e delineia duas idealizações. No primeiro caso, considera-se uma instituição ideal capaz de garantir uma evolução baseada em um conservadorismo; no segundo caso, um desejo individual ideal capaz de subsumir as limitações institucionais e garantir uma criatividade singular. O supereu individual e o supereu coletivo terão de potencializar um ao outro.

É assim que o modelo de Eitingon considerou a gestão institucional à demanda de tornar-se analista, em primeiro lugar. A resposta concerne tanto ao fato de fazer uma análise quanto àquele de frequentar um ensino. A análise individual é, então, considerada como análise de formação, e a progressão do ensino pode envolver o analista em grau menor ou maior. Essa ingerência era denominada Reporting e causou diversos conflitos à medida que as condições não eram mais as mesmas dos pioneiros e que o princípio da discrição, tal como estabelecido na regra fundamental, foi teorizado. Lembremos que Eitingon fez apenas algumas semanas de análise com Freud em 1907, quando fazia seus passeios noturnos.

O atrelamento de um instituto a uma clínica permitiu que candidatos talentosos sem recursos financeiros pudessem aderir à profissão de analista e ter pacientes disponibilizados pela clínica-instituto. Elementos relacionados ao clientelismo e às leis do mercado se infiltraram, então, na formação.

O modelo francês surgiu em um contexto completamente diferente (Chervet, 2019). Os parâmetros anteriores estavam certamente latentes, mas seu protocolo se originou no período posterior à Segunda Guerra Mundial. O anseio de pôr o movimento do desejo em primeiro plano foi sustentado pelas circunstâncias do Baby Boom.

O princípio da separação das funções - a realização de uma análise pessoal anterior à formação - foi desenvolvido apenas nos anos 1960 e deu origem a esse novo modelo que promovia uma estrita impermeabilidade entre análise e currículo de formação.

A anterioridade da análise individual reconhece implicitamente a existência de psicopatologias privadas que podem ser modificadas antes de qualquer avaliação seletiva para ingressar em uma formação. “Somos todos antigos pacientes” é uma expressão de humildade, mas também de reconhecimento de uma experiência íntima: a da psicopatologia e de sua evolução favorecida pela análise. No melhor dos casos, somos devedores a nossas análises por terem permitido que nos aproximássemos do funcionamento psíquico ideal de referência, conforme abordado anteriormente. Uma parte do tratamento ocorre, portanto, antes de qualquer engajamento na formação. O desejo de ser analista já pode estar presente desde o início, mas pode, também, modificar-se e surgir durante a análise.

O princípio consiste em criar uma impermeabilidade entre o tratamento individual e a formação e respeitar a estrita discrição exigida pela regra fundamental. O analista não intervém de forma alguma na formação. Ela começa vários anos após o início da análise e depende de uma seleção realizada por uma comissão da qual o analista pessoal jamais participa.

Voltemo-nos para um caso contemporâneo de uma análise que continua após o paciente ter se tornado um analista em formação, até mesmo um membro, e que sua transferência para a sua instituição alimenta suas associações de sessão. É isso que o modelo uruguaio recomenda. As configurações psíquicas mobilizadas e transpostas para os grupos, as mentalidades de grupo e psicologias de massa se tornam, então, material de sessão. Isso pode auxiliar o analista em formação ou o membro a melhor administrar sua participação nas dinâmicas grupais, mas isso não impede que as tendências a investir um funcionamento regressivo a partir do contato com a entidade-grupo continuem a existir. Somente a oscilação individualidade-grupalidade pode evitar alienar-se nela.

O protocolo do modelo francês surgiu, portanto, em um contexto conjuntural específico: o do Baby Boom. A prática da psicanálise foi oficialmente introduzida na França em meados de 1920 por Eugénie Sokolnicka, quando o pensamento freudiano já era conhecido em diversas disciplinas. Antes da Segunda Guerra Mundial, o modelo de formação adotado pela Sociedade Psicanalítica de Paris era o de Eitingon. Após a Segunda Guerra, a spp, que se dispersou completamente entre 1938 e 1945, se reorganizou. As regras referentes à prática da psicanálise permaneceram então as mesmas que foram adotadas antes da guerra. Contudo, um novo parâmetro concreto entrou em cena: uma grande demanda de análise e de formação. O Baby Boom pós-guerra, aliado ao número restrito de analistas didatas, suscita, então, de maneira pragmática, a questão do ensino da psicanálise e da formação de novos analistas, assim como aquela da organização de um instituto de formação, com as escolhas que tal organização implica entre várias opções: independência ou aproximação em relação à universidade, modalidades práticas do currículo de formação tendo como referência a formação médica, a finalidade terapêutica ou a cultura etc. Essa grande demanda deu origem à prática da psicanálise de quatro sessões em vez de cinco e da psicanálise didática com três sessões semanais de 45 minutos em vez de uma hora. Esses critérios foram, então, estendidos às supervisões individuais. Pelos mesmos motivos, foi criado o modelo de supervisões coletivas. Um objetivo urgente: formar um número máximo de analistas em um espaço de tempo mais curto; atender à demanda do mercado, reconstruir a spp e a presença da psicanálise na França. Foi nesse contexto que Lacan promoveu as sessões curtas, diferente de sua introdução da técnica da escansão.

Essas adaptações foram negociadas com a ipa, que as aceitou, provavelmente de maneira temporária. Assim, o protocolo do modelo francês foi estabelecido, sobretudo, por razões pragmáticas, não por razões teóricas. Em pano de fundo dessas modificações, encontram-se as devastações da guerra, o desaparecimento da spp, a esperança de recuperar o tempo perdido e, certamente, a morte de Freud, cujo luto foi mascarado pelos tormentos da guerra.

Em 1953, sob a égide de Marie Bonaparte, iniciou-se o projeto de organizar o Instituto de Psicanálise de Paris. Sérios conflitos entre Daniel Lagache e Sacha Nacht levaram à cisão da spp em 1953. Essa cisão não foi uma consequência das três sessões por semana, das sessões curtas e tampouco da técnica da escansão tal como praticada por Lacan. Daniel Lagache era um professor universitário que propunha um programa semelhante aos modelos universitários, enquanto Sacha Nacht desejava, de forma oposta, um instituto independente que promovesse um outro modelo, tido por seus adversários como excessivamente médico, mas defendido por Marie Bonaparte por ser mais expressamente psicanalítico.

As razões oficiais das demissões e da cisão foram, portanto, critérios de formação, com uma guerra entre vários modelos: universitário, médico ou centrado nas supervisões. Não se tratou de um conflito entre o modelo de Eitingon e o modelo francês.

A disputa entre os modelos, passada para um segundo plano, retornaria por meio da questão da duração variável das sessões, preconizada por Lacan, e por meio da escansão, mas não pelo número de sessões.

Em 1964, a Sociedade Psicanalítica da França, oriunda da cisão de 1953, sofreu uma nova cisão devido à escansão. A Associação Psicanalítica da França (apf) foi, então, fundada, adotando os critérios da prática e da formação da ipa. Entretanto, em 1971, a apf aboliu a análise didática ou análise de formação e, em 1994, a spp suprimiu a necessidade de realizar uma análise com um analista didata-formador. É o “tudo no divã”. Toda solicitação de formação apresentada por uma pessoa que tenha feito uma análise pessoal com um membro da ipa é examinada. É o funcionamento psíquico do candidato que é posto como central na avaliação e na seleção, bem como sua capacidade de utilizar sua experiência analítica pessoal para praticar a análise.

Essa evolução ocorre em nome do princípio fundamental do modelo francês: o fato de que não existe nenhuma outra análise a não ser a análise pessoal, e que uma rígida impermeabilidade entre a análise pessoal e a formação deve ser respeitada. Esse princípio irá se estender à formação em seu conjunto, com uma recomendação de limitar as interferências entre o analista pessoal e seu paciente-candidato no cerne da formação.

Paralelamente, a reflexão acerca da formação prosseguiu dentro e fora das sociedades oficiais e deu origem a diversas propostas, tais como a “quarta análise”, associada à supervisão promovida no centro de uma nova organização, o Quarto Grupo, e o “passe”, promovido por Lacan na causa freudiana.

Em 2004, quando Daniel Widlöcher foi presidente da ipa, o modelo dos tratamentos analíticos utilizado pelos Institutos de formação da spp e da apf foi reconhecido oficialmente pela ipa como uma forma válida de realizar uma análise e uma formação.

Seu protocolo é esquematicamente o seguinte: três sessões semanais no mínimo, dispositivo divã-poltrona, duração fixa mínima de 45 minutos de sessão, pagamento feito pelo analisando; tudo isso em um espaço protegido das variações dos estímulos oriundos da percepção sensorial em proveito da enunciação verbal de tudo aquilo que se apresenta à consciência do analisando, tanto os conteúdos verbais incidentes quanto as imagens oníricas, os afetos e as sensações corporais. Cabe ressaltar que esse protocolo não se faz presente nos textos dos procedimentos da ipa. O que confirma que o protocolo é evolutivo e que a especificidade desse modelo é o seu princípio de separação das funções. Esse princípio articula duas assertivas. A análise é um assunto pessoal; e, por isso, existe a liberdade de escolha do analista. A separação das funções e a liberdade são os critérios que baseiam o princípio do modelo francês.

A liberdade concerne à escolha do analista, dos supervisores, dos seminários, dos grupos de trabalho, dos congressos. Mas há, também, a liberdade do analista de aderir à demanda de análise de um paciente e de atendê-lo de três a quatro vezes por semana. Por fim, há a liberdade da instituição de aceitar ou recusar um candidato, no que diz respeito aos critérios de seleção baseados nessa identificação com o modo de pensamento regressivo sensível ao inconsciente, assim como a liberdade dos institutos de organizar seus programas de formação, os seminários, os grupos de trabalho, as supervisões individuais e coletivas.

Essa liberdade concerne, também, à decisão do candidato quanto ao momento de requerer seu ingresso em um instituto de formação para iniciar sua formação.

Certamente, essa liberdade não equivale à ausência de rigor e de incentivo - muito pelo contrário. O incentivo apela ao sentimento de responsabilidade do candidato e ao seu desejo de aprender, à sua curiosidade, ao caminho identificatório envolvido em suas escolhas, à sua transferência de autoridade e à sua capacidade de utilizá-la para aprender seu ofício, e não para manter idealizações.

O princípio de separação das funções tem consequências. Uma ética da discrição é exigida do analista do candidato, estendendo-se também à formação, principalmente às supervisões que, por meio da contratransferência, envolvem a análise pessoal do candidato. Essa limitação das interferências visa também a uma prevenção contra a mentalidade grupal.

São necessários vários anos (ao menos três) de análise pessoal antes do início da formação. Há alguns anos, na França, era aconselhado que os candidatos se apresentassem à formação após terem finalizado sua análise pessoal e já terem uma prática privada, mesmo que isso não estivesse textualmente estabelecido quanto à seleção dos candidatos. Atualmente, muitas vezes, a análise pessoal continua após o início da formação, de modo que as associações acerca da formação podem se tornar um material de sessão. Isso não é simples, mas é preferível a um isolamento. Nessa perspectiva, os três modelos mantêm mais pontos de contato do que frequentemente apontado; tanto mais que a separação das funções é cada vez mais respeitada pelos institutos que adotaram o modelo Eitingon desde a supressão do reporting. Não obstante, no modelo Eitingon, o acesso à análise pessoal, a formação, em grande parte programada, e as supervisões permanecem muito mais entrelaçadas do que no modelo francês.

Manter-se analista: como utilizar as tendências pulsionais extintivas2

Como manter-se analista com o passar dos anos? O termo formação permanente não é adequado, pois faz referência tão somente à atualização de conhecimentos que supostamente evoluem e dissimula a existência das tendências intrapsíquicas já ativadas no processo de formação, as quais se opõem à manutenção das aquisições tanto no nível do funcionamento psíquico ideal quanto no nível dos conhecimentos adquiridos.

O fato de que o psiquismo ideal seja finito e descontínuo, dado que é organizado de acordo com o processo em dois tempos do après-coup, o fato de que a lista das disciplinas utilizadas para alimentar o pré-consciente e para realizar o trabalho psíquico de substituição seja infinita, o fato de nos reunirmos constantemente e de que nossas vidas profissionais sejam caracterizadas por uma alternância entre uma atividade solitária e atividades grupais, essas mesmas atividades estando inseridas nas alternâncias entre noite e dia e entre labor e erótico, todos esses fatos devem ser levados em consideração do ponto de vista daquilo que os obriga a existirem de acordo com essas modalidades.

A enumeração referida anteriormente no que diz respeito às outras disciplinas não é exaustiva. Cada um de nós pode desejar completá-la. Sua extensão reforça a necessidade do psiquismo de encontrar externamente novos materiais para tratar as diferenças existentes em nós. A qualidade traumática destas nos obriga a buscar e encontrar toda sorte de diferenças externas presentes no mundo que nos cerca e a utilizá-las de modo a responder às diferenças internas. Nossa progressão está ligada ao “aguilhão” das tendências extintivas traumáticas e às respostas do nosso psiquismo.

A particularidade da organização do trabalho psíquico em dois tempos pode ser explicada a partir da pressão oriunda dessas diferenças internas, e daí advém a descontinuidade de nossos investimentos. Essa descontinuidade é o resultado das tendências pulsionais extintivas, às quais se opõe um imperativo de inscrição e de investimento. Esse imperativo cumpre sua missão em dois tempos. A transmissão se refere a esse imperativo e à tomada em consideração da tendência regressiva extintiva.

Existentes em cada um de nós, tais tendências pulsionais tentam anular nossas capacidades psíquica e nosso saber, seja por meio de uma redução direta, seja por meio de uma idealização que tende a um infinito para além de todo conteúdo. Nos dois casos, a capacidade de adquirir e conservar uma identidade de analista é ameaçada. Aliás, o próprio termo identidade busca dissimular tais incertezas e vacilações. Essas forças misteriosas ativas que agem para apagar e impedir a inscrição explicam o número de atividades das quais participamos, bem como o tempo que dedicamos a elas; são atividades que se reúnem sob a designação de formação. O contato permanente com essas tendências negativas, presentes tanto no interior de nós mesmos quanto na clínica com a qual lidamos diariamente, demanda, sobretudo, nosso masoquismo de retenção. A formação e o manter-se analista têm como suporte vivo tal masoquismo de funcionamento. Em contrapartida, as tendências redutoras se manifestam por meio da cronificação e da redução do campo dos nossos pensamentos. Freud percebeu a existência delas e sua consequência no que tange à dificuldade de manter-se analista. Como resposta, ele preconizou a realização de uma análise regularmente, por exemplo, a cada cinco anos. Felizmente, esse conselho nunca foi institucionalizado e permanece sujeito às vicissitudes de nossos funcionamentos psíquicos e à liberdade de nossas avaliações.

A formação permite tornar-se psicanalista, mas não garante, de modo algum, o permanecer analista. Esta última frase nos leva a uma das mais importantes alternâncias: aquela entre nossa atividade solitária e a necessidade de articulá-la com o coletivo. As forças redutoras devem ser levadas em conta na formação, certamente a fim de fazer delas um objeto de conhecimento, mas, sobretudo, para apelar à exigência psíquica de utilizá-las em proveito de nossa atividade mental e de nossa atividade de psicanalistas, cultivando-nos e prosseguindo com a nossa atividade de pensamento. Nossos encontros têm a missão de reatualizar e revigorar um trabalho que se opõe às tendências extintivas individuais. Mas apresentam, também, como consequência, a organização de fixações coletivas em níveis culturais; daí advém a importância dos efeitos de corte introduzidos pelo trabalho psíquico individual.

Transmite-se, assim, por meio da formação, uma ética psicanalítica, uma exigência de manter, devido a tais alternâncias entre o singular e o coletivo, uma disponibilidade de acolhida perante a diversidade clínica, perante sua infinita alteridade.

Ninguém pode se tornar analista nem se manter analista sozinho, como também não há analista que possa sê-lo apenas por meio da instituição e da atividade grupal. As alternâncias entre o supereu individual e o supereu cultural são indispensáveis ao próprio supereu. É isso que explica o fato de que a nossa atividade psíquica específica de sessão, essa atividade psíquica regressiva da passividade, adquire maior efetividade quando permanece em contato com nossas outras atividades regressivas, como aquelas íntimas próprias de outras cenas, fora de sessão, principalmente a do sonho e da erogeneidade. Juntas, elas fundamentam a possibilidade ao analista de tornar-se e de sempre voltar a sê-lo de modo intermitente.

Um psicanalista é um ser humano confrontado pelas experiências da vida: o crescimento, a formação, a realização, as renúncias e os lutos tanto da vida grupal como da vida íntima. Daí advém sua experiência masoquista da gravidade da vida, experiência encarnada em sua maturidade. Esse último ponto ancora profundamente a formação analítica na vida global de cada analista, em sua vida pessoal que inclui a vida privada, em família e entre amigos, e a vida íntima, em particular no que tange à intimidade erógena dos corpos.

2 N. T. Refere-se a um neologismo do autor que pode ser mais bem acompanhado em Chervet, B. (2020). O après-coup. O traço perdido e suas mises em abyme. Revista de Psicanálise da SPPA, 16(1), 31-125.

Referências

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Recebido: 17 de Agosto de 2022; Aceito: 31 de Agosto de 2022

Tradução de Vanise Dresch

Revisão técnica de Claudia do Amaral de Meireles Reis

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