Deformações e impressões
Na engenharia de materiais, a resistência de um sólido é definida por características como a estabilidade e seu poder de deformação. Entender como um corpo sólido é impactado e transformado por uma força externa é de suma importância para construções e edificações. Muitas são as palavras e as ideias conectadas com as noções de deformação de materiais e suas características físicas: rigidez, estabilidade, elasticidade, cristalização, flexibilidade e assim por diante. Embora a origem dessas expressões advenha da física, esses termos foram utilizados em vários momentos na psicanálise.
Em A interpretação dos sonhos (1900/2019b), Freud intitula um de seus capítulos de “A deformação onírica”, referindo-se ao processo por meio do qual o sonho é substituído e modificado com o objetivo do recalcamento de seu conteúdo inconsciente.
Em outro trabalho seminal, “O problema econômico do masoquismo” (1924/2015a), Freud apresenta a “tendência à estabilidade” como o princípio fundamental que rege todos os processos psíquicos inconscientes, definindo-a como uma intenção do psiquismo de reduzir a zero a quantidade de excitação que lhe chega. A noção de estabilidade é central na psicanálise e está na base dos pilares teóricos, juntamente com o tema da dualidade pulsional.
O termo “elasticidade” também foi apropriado pela teoria psicanalítica, em especial, nos textos de Ferenczi dedicados à técnica. Partindo de um conhecido escrito sobre a flexibilidade da técnica, de 1928, o autor estimula o desenvolvimento de uma série de trabalhos posteriores sobre a prática psicanalítica. Promove abertura de possibilidades em psicanálise sem incorrer no risco de descaracterização do campo; ao contrário, Ferenczi favorece a expansão de seus contornos. Ainda que o termo “elasticidade” esteja muito associado à obra ferencziana, é correto lembrar que Freud, no artigo “O início do tratamento” (1913/2010), já indicava que “a extraordinária diversidade de constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos anímicos e a riqueza dos fatores determinantes resistem à mecanização da técnica” (p. 164).
Recentemente, na literatura psicanalítica contemporânea, principalmente de tradição francesa, o termo “deformação” tem sido utilizado em um jogo de linguagem interessante, ao fazer alusão à ideia de “de-formação”, ou seja, aos riscos de deturpações do processo formativo de um psicanalista. A “deformação” da formação seria resultante das distorções advindas das relações de poder e das interferências institucionais envolvidas nesse processo. Vários são os textos que se dedicam a abordar questões como a supervisão, as peculiaridades da análise didática e a falta de flexibilização na transmissão psicanalítica (Stein, 1992). No Brasil, destacamos os escritos de Pellegrino (1983), Brazil (1990) e Massi (1988), cujos trabalhos trazem no título o termo “deformação” do analista e apontam para o risco de que premissas rígidas impeçam o desenvolvimento ou a criatividade do percurso analítico.
Sendo assim, o termo “deformação” passou a ser abordado sob diversos ângulos na psicanálise. Permite uma série de associações ao discorrermos sobre o assunto. No campo da física de materiais, a definição de deformação, ou seja, a ideia de que um corpo sólido pode ser modificado com a aplicação de uma força externa carrega consigo a importância da influência do meio, além das características próprias do material. Igualmente, o que foi vivido no processo formativo, ou ao longo da constituição analítica, impacta diretamente e promove transformações, tanto na pessoa do analista quanto em sua forma de trabalhar. Na condição de analista que atravessa a formação em uma instituição, me senti convidado a questionar: será que venho sendo “deformado” pelo processo formativo? Estaria passando por processos de “de-formações”, ou foi estabelecida uma forma definitiva? Estaria “con-formado”, ou estaria ainda em processo e na busca de “re-formações”?
A palavra “deformação” faz-me pensar em possíveis deformidades que possam instaurar-se ao longo do processo formativo. Ao mesmo tempo, temos de considerar a plasticidade e a resiliência de um analista e que, ao sofrer esses impactos, possa operar sobre eles. Difícil imaginar que uma formação impacte um analista de maneira que este esteja em posição tão vulnerável ou submissa. Em vez de focar exclusivamente no termo “deformação”, escreverei sobre as impressões que ficam inscritas ao longo da formação. Este será um texto sobre as “impressões do analista” e as “impressões no analista”, e os questionamentos que me orientam passam a ser: “como estão ocorrendo as impressões do processo formativo?”
Entre os tipos de estruturas e materiais sólidos, escolho o papel como representativo do processo de constituição de um analista: seu tipo de deformação resulta em impressões e marcas que, em alguma medida, podem ser feitas, refeitas e desfeitas. Como na produção de um origami, é possível dobrá-lo novamente, ainda que se exija o cuidado de não destruir completamente sua estrutura, amassando-o. O papel, entre os materiais, é um dos que configuram maior noção de flexibilidade e menor rigidez. O papel também possui outra peculiaridade: traz a possibilidade do registro, podemos escrever nele uma história. Considerando que um analista em formação carregue uma bagagem prévia consigo e sua história não corresponda a uma folha de papel em branco, novas inscrições poderão ser somadas a anteriores.
Outra inspiração para este escrito: participei da associação de membros filiados3 do instituto formador que frequento, e, na ocasião, a associação completava 50 anos de existência (AMF/SBPSP, 2021). Em comemoração, analistas que ocuparam o lugar de presidentes desde seu início foram convidados a oferecer relatos de experiências para o registro da história associativa em um documentário. Fui percebendo que tudo aquilo que absorveram ou rejeitaram, e, até mesmo, as deformações vividas na formação, parecia tão incorporado na sua constituição, que, com o passar dos anos, torna-se complexo o acesso ao processo que viveram. Ocorreu-me como seria rico se tivessem escrito um diário de bordo contando seu percurso pessoal. Pensei na relevância de um analista em formação escrever o que se passa consigo durante sua trajetória, registrando as impressões em dado momento, com a possibilidade de reavaliá-las em um momento posterior. Herrmann (2001), em um texto a respeito do tema da supervisão, escreveu algo estimulante para que analistas em formação dividam as experiências desse momento: se alguém tem algo a dizer sobre supervisão e formação, é quem está envolvido com o processo. Entendo como um convite a relatos pessoais das experiências formativas. Vamos a eles.
Os origamis de Klein e Mannoni
Tentarei estabelecer um diálogo entre as minhas percepções da formação analítica e relatos de experiências vividas por analistas reconhecidos. Encontrei algumas publicações que relatam as experiências pessoais e os registros de lembranças do contato com psicanalistas seniores, na condição de analistas ou supervisores, contando o que essas experiências tiveram de significativo ou transformador. Escolhi os relatos de duas grandes psicanalistas, Melanie Klein e Maud Mannoni, que descrevem as influências de Ferenczi e Winnicott, respectivamente.
Inicialmente nomeei o lindo material de Klein e Mannoni como “deformações benignas”. Nele, são relatadas as percepções das transformações vividas pelas analistas através das aquisições com base no contato com analistas seniores, mas que, ao mesmo tempo, permitiram a manutenção de estilos próprios e contemplaram as diferenças na psicanálise. As duas analistas foram intensamente afetadas por Ferenczi e Winnicott, mas depois seguiram trilhas singulares. São relatos de respeito às diferenças e da capacidade de aproveitamento máximo da qualidade do contato entre psicanalistas. A atmosfera que ambas nos transmitem é de um profundo respeito ao trabalho de seus antecessores e à contribuição dos mais experientes em seus percursos, sem qualquer tipo de idealização. Além disto, revelam a flexibilidade de seus processos, escapando da rigidez excessiva que por vezes ameaça formas de pensar a psicanálise. É perceptível que essas experiências contribuíram para o surgimento de novos formatos de fazer psicanálise. Assim como nos origamis, aparecem novas dobraduras e uma variabilidade de figuras é criada, em diferentes cores e formas. As marcas feitas no papel resultarão em figuras leves, flexíveis e com movimento. Considerando ambas as autoras experts no território simbólico, fazem descrições vivas de suas experiências: surgem tsurus, girafas, coelhos, sapos ou flores coloridas nos relatos.
Melaine Klein e Ferenczi: impregnações do analista
“Uma das coisas que Ferenczi me transmitiu e consolidou foi a convicção de que o inconsciente existia e de sua importância na vida psíquica. Tenho muito o que agradecer a Ferenczi” (Melanie Klein, citada em Grosskurth, 1990). Este relato de gratidão é feito por Melanie Klein em sua biografia. Ela iniciou uma análise com Ferenczi em 1914 em função de um quadro depressivo deflagrado pela morte de sua mãe. O trabalho durou vários anos, e, em 1924, iniciou outro processo com Abraham, seu maior influenciador. Segundo Segal (1983), Klein despediu-se da análise com Ferenczi referindo não ter analisado de forma adequada a transferência negativa. Ficou com a sensação de que a análise não lhe havia proporcionado insights duradouros. Ferenczi, naquele momento, havia abandonado a técnica tradicional e utilizava intervenções ativas. Ele não se apresentava como um analista neutro e chegava, segundo Segal, a encorajar e dar sugestões a Klein, o que a incomodava. Ao mesmo tempo, Klein relatou ter incorporado o conceito de introjeção desenvolvido por Ferenczi e sentia-se agradecida pelo estímulo que o psicanalista deu a seu trabalho. Ela ainda estava em análise com ele quando, em 1919, apresentou à Sociedade Húngara o seu trabalho “Relato da análise de uma criança”. Foi imediatamente admitida como membro em função do elogiado trabalho, em um dos momentos centrais de sua carreira. Apesar dos comentários de Klein sobre o que teria “faltado” nessa análise, o fato é que ela foi tão produtiva, que, ao longo dela, certificou seu interesse pelo desenvolvimento psíquico infantil.
Segundo Almeida e Naffah (2021), a atenção e a forma de cuidado de Ferenczi foram essenciais para o processo de melhora de Klein. O poder de sua análise foi tão libertador, segundo os autores, que ela conseguiu liberar-se das amarras depressivas e se tornou uma das maiores psicanalistas da história. Para além de revelar o caráter imprescindível da análise pessoal, o processo de Klein aponta para a importância das influências, ainda que imprimam estilos e formas próprias de trabalhar. Nesse sentido, uma extrapolação que é possível fazer é que noções como escuta e empatia, essenciais à clínica, tenham sido herança do autor. Klein, como Ferenczi, valoriza sobremaneira a experiência clínica, assim como a sistematização da observação rigorosa e o desenvolvimento de um pensamento próprio do campo.
Mannoni e Winnicott - as influências de um jeito de ser analista
Em 1997, Mannoni apresenta um trabalho na Associação de Pesquisadores Freudianos na França (Mannoni, 1998). Além de ser um excelente escrito clínico sobre a abordagem da psicose no trabalho familiar, relata sua experiência com Winnicott enquanto supervisor e como foi transformada por ele. O contato com Winnicott permitiu a Mannoni compreender que alguns pacientes necessitam de um lugar onde possam viver o afeto e que, no espaço de análise, isso é possível, contanto que haja um mínimo de reasseguramento advindo do meio. Winnicott promove uma reformulação de conceitos em psicanálise quando desenvolve a importância do espaço e do tempo, defendendo a ideia de que é importante ao paciente ter um lugar para delirar. Há risco, segundo o autor, de um analista não ter tolerância a isso em função da ansiedade e da preocupação com as “melhoras”. Isto contrastaria radicalmente com a tarefa central em uma análise, que é o analista acompanhar o sofrimento daquele a quem atende.
Segundo Mannoni, com Winnicott, ela entendeu que o fazer clínico não é aplicação de teoria e aprendeu a valorizar a experiência clínica como a principal bússola do analista. Além das contribuições do próprio Winnicott, Mannoni integrou ainda os trabalhos de autores como Lacan e Dolto, cada um com suas características e formas de olhar. É bonito como a autora descreve as acomodações e aproximações do que esses analistas lhe ensinaram. Ao ser perguntada sobre a referência com a qual trabalha, diz: “com todas essas e sem esquecer as indicadas pelo paciente”. Uma atitude dogmática poderia tornar um analista surdo ao que o paciente tenta transmitir, pois, para a autora, a teoria serve para ajudar o analista a encontrar palavras para a experiência vivida com o paciente. Mannoni, além de ter incorporado algumas das noções winnicottianas mais importantes, como a do espaço transicional e da capacidade de estar só, incorporou a tentativa de não criar uma teoria totalizante, com resposta para tudo. Para Winnicott, diz Mannoni, interessa um tipo de verdade local que se dirige primeiramente ao próprio analista, e ensinou-lhe que um analista carrega consigo continuamente uma posição de humildade: a verdade está na dupla analista/paciente e não pertence a ninguém, sendo fruto da conceituação sobre transicionalidade.
Por fim, Mannoni salienta o encantamento pela preocupação que Winnicott tinha em relação ao campo social e à prática psicanalítica institucional, principalmente em hospitais. Para Winnicott, a psicanálise deve sempre ter um caráter subversivo, seja na terapêutica, seja no ensino ou no trabalho institucional. Mannoni encerra seu relato dizendo que Winnicott evitou a estagnação da psicanálise no plano institucional e que a experiência com o autor induz a pensar nos processos da formação analítica, especialmente nas transformações e deformações neles sofridas.
Percepções de um analista em formação: trechos de um diário de bordo
A formação analítica institucional pode favorecer uma sistematização do estudo da psicanálise, um mergulho pessoal e uma considerável dedicação na incorporação do ofício. Além disso, a formação institucional pode ser inclusiva ao facilitar a proximidade com uma comunidade e o estabelecimento de um lugar de troca com pares. A proposta é que isso ocorra por meio de três processos integrados: análise pessoal, supervisão e estudos do campo, o famoso tripé formativo. Atualmente, se entende a necessidade de um quarto pé: a participação institucional do analista em formação. Sendo assim, a relação com a instituição formadora passa a fazer parte do percurso formativo analítico. E é justamente quanto a esse aspecto que me senti impelido a dividir minhas impressões pessoais. Apresentarei algumas ideias extraídas do meu diário de bordo, são impressões de um analista em formação que consideraram meu repertório profissional prévio. O intuito principal é a abertura para reflexões e ampliação de diálogos posteriores. A ideia não é proferir verdades absolutas ou imutáveis: é um relato em primeira pessoa de impressões, principalmente no que tange à visão da vida institucional, ou seja, do denominado “quarto pé” formativo.
No campo da gestão da saúde coletiva, em que trabalho há alguns anos, discussões sobre a instituição e a organização de contextos de saúde são muito caras e corriqueiras. Confesso que, quando discussões dessa natureza surgem no universo formativo em psicanálise, fico surpreso. Entendo como uma premissa básica, nas ocasiões em que discutimos temas coletivos ou de caráter social, a necessidade de estabelecimento de espaços e contextos próprios, que busquem promover debates da coletividade envolvida. Isso deve incluir tanto instâncias representativas, quanto os participantes da comunidade relacionada.
Na organização do Sistema Único de Saúde (sus), por exemplo, é imprescindível que a discussão se dê nos planos municipal, estadual e federal, e que conte com a presença dos atores do processo de saúde: trabalhadores, usuários, representantes do governo etc. Essa organização é emblemática como um dos princípios do sus: a participação social e coletiva. Mas, para que ocorra, é necessária uma organização institucional: não é somente um desejo de participantes externos ou trabalhadores em saúde discutirem temas. O estabelecimento desses espaços não pretende que eles sejam propriamente os mesmos destinados a discussões técnicas, eles visam à integração de diversos pontos de vista e das necessidades de várias pessoas envolvidas com a construção conjunta.
Voltando a nosso tema, acho curioso que os debates a respeito da formação psicanalítica orbitem fundamentalmente ao redor de questões teóricas e que as justificativas usadas nas argumentações sejam intelectuais. Os espaços destinados a essas discussões são, geralmente, os eventos científicos ou artigos publicados nos periódicos especializados. Além disso, percebo que os diálogos em nível institucional, para além das reuniões técnicas, ocorrem em comissões específicas, com pequena representatividade de pessoas. São obviamente importantes na perspectiva administrativa e da organização institucional, mas com pequeno espectro de ação. Nas associações de analistas em formação, noto um esforço para o estabelecimento de diálogos institucionais de maior amplitude, mas são atos isolados, envolvendo discussão entre os próprios analistas em formação. Eventualmente, alguns analistas mais experientes se apresentam para dialogar com os analistas em formação, mas não identifico uma proposta institucional de construção conjunta entre analistas de diferentes gerações. Em uma associação representativa de caráter formativo, é natural que os recém-chegados reproduzam discursos institucionais de antecessores que já conheçam e/ou admirem previamente. Analistas em formação mais cautelosos, por não conhecerem a fundo o movimento institucional, seguirão em silêncio buscando alguma compreensão, sempre com a possibilidade de se recolherem caso não captem a dinâmica institucional. Seria muito interessante se, a um analista em formação, fosse apresentada a história da instituição e, através dela, revelados os grupos e linhas de pensamento em torno das práticas institucionais, com transparência. Evitaria que o analista em formação compreendesse a instituição a prestações, por meio de conversas locais e com parcialidade. Seria desejável que a vida institucional pudesse ser apresentada aos recém-chegados pela própria instituição psicanalítica, revelando suas tensões e seus avanços ao longo da história.
Sinto falta de propostas que partam de instâncias com força de decisão política ou poder de mudança, no sentido de dialogarem e, ao mesmo tempo, de conhecerem mais profundamente as perspectivas e dúvidas do coletivo de analistas. É preciso dizer que existem, sim, pessoas que tentam desenvolver trabalhos na busca dessas ações. O que não identifiquei foi uma organização institucional promovedora desse tipo de encontro, para além das discussões ou reuniões em comissões. Vejo, em sua maioria, discussões em pequenos grupos, nos quais as diferenças pessoais ficam em evidência para quem está chegando à instituição. Nesse tipo de configuração, é muito difícil que não ocorram atravessamentos dos interesses individuais ou que não predominem as alianças pessoais e as danças institucionais já estabelecidas. Fica o analista em formação em meio a uma atmosfera marcada por polarização dos posicionamentos, sem matizações de ideias e com chance de perpetuar uma dinâmica institucional prévia.
As propostas de debates carecem, a meu modo de ver, de maior amplitude, clareza e horizontalidade, contemplando pontos de vista e ideologias distintas, em espaços de discussão inclusivos e ventilados. Penso em como seria rico o envolvimento de toda a coletividade: tanto os analistas em formação, quanto os analistas que não tenham vida institucional ativa, assim como os analistas que detenham maior poder ou força de mudança, como aqueles com cargo político-institucional ou com alguma posição de destaque no plano da formação. Algumas questões pertinentes que poderiam ser discutidas em espaços mais amplos: “qual a perspectiva de trabalho de um jovem psicanalista em processo de formação?”, “como entender que alguns colegas tenham filas de espera de analisandos e outros estejam com os consultórios vazios?”, “como compreender e conviver com o fato de um analista receber, por exemplo, 150 e outro, 1.500 reais por uma sessão?”, “há preocupação do grupo com o colega analista que envelhece e perde sua capacidade de trabalho?” Escuto comumente uma fala institucional de que os analistas convivem uns com os outros na instituição, tolerando os diferentes pontos de vista e as diferenças de suas ideias. Penso que caberia aqui considerar a proposição de construções de caminhos novos, de forma conjunta, ao mesmo tempo que possam contemplar as divergências de pontos de vista e que são saudáveis. A saúde pública diz que isso é possível, embora o caminho seja sempre trabalhoso e exija que pessoas saiam dos seus microuniversos, expressando-se na coletividade.
Riscos de engessamentos e cristalizações
Os mecanismos de endurecimento da matéria estão relacionados ao aumento da resistência mecânica, como na formação do gesso: em contato com a água, o pó forma uma substância dura pela precipitação de cristais. A meu modo de ver, os riscos de engessamento ou de deformidade formativa não parecem frutos de um contato entre analistas de diferentes linhas teóricas ou de diferentes gerações. O risco maior parece advir da atmosfera criada em torno dessas relações, predominando as influências dos aspectos institucionais ou de interesses distantes da transmissão e da clínica em psicanálise.
Ao falarmos em deformações e rigidez, é possível relacioná-las a aderências extremas a seus próprios analistas ou supervisores, repletas de idealizações e certezas imutáveis. O tema central passa a ser de natureza analítica, imaginando que alguém em formação psicanalítica tenha condições de aprofundar essas questões. Um analista em formação, comprometido com a necessidade de reproduzir discursos e se formatar, carece avaliar profundamente esse tema em sua própria análise. Com atenção maior, caso a dupla analista/analisando tenha estabelecido acordos ou pactos (inconscientes ou não) que impeçam a elaboração de temas dessa natureza. Esse é um risco nas análises didáticas, predominantemente atravessadas por questões institucionais. E sabemos o quanto o não dito e a impossibilidade de expressão são problemáticos para a prática em psicanálise. Cabem ao analista em formação o protagonismo de seus percursos e a construção de uma trajetória própria e autêntica. Isto inevitavelmente refletirá em sua atitude clínica e profissional, que possa ser sempre singular e criativa.
Freud, no texto “O romance familiar dos neuróticos” (1909/2015b), marca que o crescimento de um sujeito ocorre quando este se libera da autoridade dos pais, um processo doloroso, mas necessário ao desenvolvimento. Ainda segundo Freud, todo progresso da sociedade repousa na oposição de gerações que lhe sucederão. Kaës (2014) desenvolve o tema das alianças inconscientes baseadas nas noções de contratos narcísicos, conceito originariamente desenvolvido por Piera Aulagnier. Nessa relação, indivíduos ficam sujeitos a inscrições em seu grupo inicial de pertencimento, aos seus pais primeiramente e, por consequência, na sociedade na qual se inscrevem posteriormente. Neste caso seria como se um bebê necessitasse desempenhar uma missão pré-definida e tivesse um destino desenhado; um tipo de aliança inconsciente que, embora possa ser estruturante para o psíquico, poderá ser defensiva, promovendo estagnação. Contratos narcísicos predestinam um caminho: extirpam a expressão de autenticidade e flexibilidade do analista, opondo-se ao que Klein e Mannoni apresentam.
Viaro, Guirado e Albanese (2016) entrevistaram analistas em formação em instituições com distintas linhas teóricas. Os autores constatam que os entrevistados mostravam pouca percepção e falta de reconhecimento do quanto a psicanálise é condicionada por como os próprios psicanalistas desenvolvem suas práticas, além de não identificarem o risco de estarem submissos aos discursos estabelecidos em torno da psicanálise. Apontam para o risco de uma certa alienação no processo formativo e da sua relação com a própria psicanálise a ser considerado.
Enquanto minha experiência revela uma concepção frágil do discurso coletivo, participo da formação com vivências bastante positivas na construção do analista na clínica. Poland (2009) diz que os psicanalistas aprendem a ouvir muito melhor seus pacientes, mas pouco se escutam reciprocamente. Faz uma articulação entre os aspectos institucionais que envolvem o narcisismo, a perda da curiosidade científica genuína pelo campo e o abismo entre aspectos da psicologia individual e de grupo para o psicanalista, principalmente naquilo que impacta a dificuldade de adaptação a novas ideias. Entendo que esse tipo de influência institucional é o que traria os maiores riscos de deformações indesejáveis na formação. Poland estimula a pensar sobre a relação entre as forças intrapsíquicas e interpessoais que interferem na confiança e na permeabilidade para a abertura da mente, muito pertinentes em um processo formativo. Para o autor, há possibilidade de crescimento no campo quando o prazer em ajudar a próxima geração a se desenvolver seja maior que o desejo de prestígio pessoal. Este é o ponto nevrálgico de deformidade formativa: o risco de afastamento do propósito da psicanálise em função de um estado de alienação no processo, tanto do lado dos candidatos quanto dos formadores.
A própria psicanálise oferece recursos para a investigação dos motivos pelos quais uma instituição psicanalítica negaria o tema do coletivo. Segundo Kaës (2002), entre os maiores desafios para entender as instituições está a compreensão dos aspectos narcísicos envolvidos. O risco está em negar, assassinar ou fetichizar a instituição, e não há como esquecer suas funções e reconhecer sua legitimidade. Para o autor, há que considerar tanto os autores da política institucional como a instância política de sujeitos singulares na instituição, contemplando tanto os aspectos institucionais como os individuais, intrinsecamente relacionados.
O tema da polarização das linhas e do paroquialismo das escolas representa a defesa de uma forma adequada de fazer psicanálise, justificada pela formatação do pensamento e pela competitividade entre as linhas de compreensão. Em uma formação, é esperado que tenhamos espaço para discussão das linhas, para pontos de vista distintos, respeito à alteridade e aos estilos próprios, sem incorrer em atravessamentos impeditivos de convivência ou crescimento. Mannoni e Klein são impecáveis em apontar o fato de que a questão não é com o que seus antecessores contribuíram enquanto teóricos ou defensores de uma linha, mas a transmissão de suas coerências em suas práticas e posturas clínicas. As afinidades teóricas, bem como as divergências, absolutamente naturais e saudáveis, são pautadas pelo respeito, curiosidade e proposição de formas de trabalho originais em psicanálise. Bolognini (2010) faz uma analogia interessante: ao atender um paciente, este permite que autores inesperados venham a sua mente, que há algo na sessão que permite essa alusão. Podemos vislumbrar a possibilidade de convivência com vários autores, de forma semelhante ao que ocorre no ambiente familiar: pessoas com competências e características distintas, caminhando juntas. Surge a esperança de que novas gerações tenham ousadia para propostas mais inclusivas e maior tolerância com as diferenças.
Tsurus e diálogos longevos
As associações entre o flexível, o maleável, o rígido, o estável, as impressões e as deformações foram metáforas extraídas do universo da engenharia de materiais para pensar o processo formativo. A cristalização e a rigidez do gesso contrastam com a flexibilidade do papel percebida na confecção de um origami. Relações marcadas por narcisismos paralisantes, imersas em discursos institucionais pouco ventilados ou caracterizados pela rigidez do pensamento em escolas, simbolizadas pela dureza do gesso, contrastam com a leveza das imagens que podem surgir por meio das dobraduras de origamis, ou seja, novas formas e maneiras criativas de fazer/ transmitir psicanálise. As formas dos origamis nos oferecem os formatos de transmissão que Klein e Mannoni experimentaram, e contrastam com as maneiras enrijecidas com as quais alguém possa se constituir analista, preso a silêncios ou alianças narcísicas.
Klein, Mannoni, Winnicott e Ferenczi são autores cujos trabalhos atemporais inspiram desdobramentos e diálogos intermináveis. A sensação que tenho é de que os votos desses autores são que os debates intergeracionais continuem e que os analistas tenham expansões. Defendem relações construtivas em psicanálise, afastadas de contatos desanimadores ou estagnantes.
Entre as figuras de origami, a mais comum é a do tsuru, uma ave sagrada do Japão, que simboliza o desejo de saúde, boa sorte e felicidade para quem a recebe. Reza a lenda que ele pode viver até mil anos, com poderes sobrenaturais para não envelhecer nem parar de voar: é o pássaro da longevidade. Tudo a ver com Klein, Winnicott, Mannoni e Ferenczi e as boas propostas de formação em psicanálise.