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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.103 São Paulo jul./dez. 2022  Epub 08-Jul-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v55n103.21 

Aula inaugural

Por uma ética da formação em tempos sombrios1

Sandra Lorenzon Schaffa2 

2Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo


Agradeço a Dora Tognolli e à diretoria do Instituto o convite, pela oportunidade de estar aqui, ao lado de Luiz Tenório Oliveira Lima, para acolher os novos colegas e transmitir-lhes alguma marca da minha experiência de formação. Agradeço também a Diógenes Gomes, que nesses tempos confinados nos assegura as condições de estarmos aqui reunidos.

Gostaria de agradecer particularmente a Luís Carlos Menezes o diálogo que me permitiu reconhecer na minha leitura de Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon, um caso clínico iluminando o que gostaria de aqui pensar como sintoma teórico. Um caso clínico, na extensão social da clínica.

Para o psicanalista, ético é pensar

(Herrmann, 1993/1995)

Falarei hoje de formação, sintoma teórico e crise.

Começo lembrando da experiência de organização, com Berta Azevedo, a convite de Daniel Delouya, diretor da Febrapsi, do eixo didático do 25º Congresso Brasileiro de Psicanálise em 2015. Escolhemos o tema “A formação analítica e as condições de elaboração do sintoma na formação”. Assim o propusemos:

O paradoxo de uma formação como processo singular, realizada em uma instituição, que, como tal, tem seus parâmetros e ideais, demanda uma reflexão no sentido da busca institucional por uma formação que se baseie na dissolução dos sintomas de aprisionamento e engessamento, seja no campo clínico ou na atividade de teorização do analista. Pensar os dispositivos que possam favorecer a travessia do sintoma na formação e seus desvios é o que propomos para o nosso Congresso Didático. (Azevedo & Schaffa, citadas em Herrmann, 2015, p. 54)

A ideia organizadora de nossa proposta tomava como fonte uma conferência de Pierre Fédida na SBPSP, publicada pelo Jornal de Psicanálise:

Nossa prática psicanalítica (tanto teórica quanto clínica) é feita de tal maneira, que não é simplesmente a resultante de nossa análise pessoal e de nossa formação, mas comporta nossa responsabilidade “ideológica” frente à fala de nossos pacientes. … o que eu não ouço dessa fala pode, com certeza, estar relacionado ao inanalisado ou insuficientemente analisado na minha própria análise pessoal, pode também dizer respeito aos pontos cegos frequentemente percebidos por ele [paciente] sem que ele compreenda as razões - remete de forma considerável à ideologia de uma prática e da formação para essa prática. (Fédida, 1994/1999, p. 340)

A transmissão da psicanálise passa pelas condições institucionais do fundamento de sua comunidade. Essa comunidade repousa sobre uma posição doutrinal; o texto teórico considerado em seu estatuto objetivo, doutrinal, portanto, serve à objetividade que é necessária à comunicação entre os analistas.

A nossa atividade teórica sofre dessa vicissitude, que pode, entretanto, levar a teoria a sofrer efeitos de sedimentação compatíveis a um adoecimento teórico. Nessa condição, verifica-se um deslizamento do doutrinal ao doutrinário, em que a teoria, perdendo sua condição de transformação, fixa-se como um produto de caráter ideológico.

Ao escrever a História do movimento psicanalítico, em 1914, Freud teria sido movido pelo engajamento, pela urgência de chamar à ordem; “uma política da psicanálise que se põe em obra” diante da impossibilidade de controlar o “movimento” que começava a desviar-se das concepções fundadoras, delegando à escrita a função de firmar o sentido doutrinário da trajetória percorrida. “Há perigo na casa e urgência de conjurá-lo. Pela primeira vez a psicanálise está ameaçada por dentro. Antes os ataques vinham de fora …”, diz J.-B. Pontalis (1991, p. xi).

L. C. Menezes, em seu trabalho apresentado sobre “Análise didática” no mesmo eixo didático do cbp, põe-nos diante dessa ordem de conflito. Freud teria fundado em 1910, no Congresso de Nuremberg, a Associação Internacional, a IPA, para, por meio dela, garantir a psicanálise contra desvios que pudessem ocorrer em sua difusão.

Além disso, seria uma maneira de os seguidores da psicanálise poderem “manter laços amigáveis e apoiar-se mutuamente” diante do veto da ciência oficial.

Preservar o núcleo duro da invenção freudiana, assegurar a formação de novos analistas e ter uma função solidária contra ataques ao novo campo do saber é o que Freud esperava das associações de psicanálise ligadas à Associação Internacional. A formação, tendo, naturalmente, em seu centro a expectativa de que os novos analistas se submetessem eles mesmos a uma análise. (Menezes, 2015, p. 37)

Menezes salienta isso e prossegue: é nesse cenário turbulento, dentro de um clima de militância, que a prescrição do que foi chamado de análise didática se instituiu. A relevância dada à ordem institucional leva Freud a priorizá-la em relação às paixões prementes, às “selvagerias transferenciais”, mobilizadas entre seus primeiros colaboradores. O “paradoxo resistencial contido nessa resposta, não analítica, mas institucional, às demandas transferenciais, encontra-se ainda hoje no cerne dos debates que dizem respeito à análise didática na IPA e em suas sociedades” (Menezes, 2015, p. 1).

Paradoxo originário da formação analítica: Freud legou-nos simultaneamente sua obra escrita e seu movimento militante. Mas, não apenas o ideal da análise didática exige elaboração dentro de uma perspectiva crítica da ideologia de uma prática e da formação analítica, também o ideal de sua doutrina teórica a exige.

Uma tal crítica, penso, é ela - eticamente - formadora da capacidade técnica do analista. Desse ponto de vista, como escrevi em “Formação do psicanalista como sintoma e crise” (2005), a técnica analítica ganha sentido na medida em que o saber teórico pode ser construído com base na crise que lhe impõe a experiência clínica.

A teoria analítica, pois, não vale como um produto, como referência passível de uma assimilação intelectual, tal como pode servir a uma inteligência filosófica. O pensamento universitário, este sim, toma a teoria analítica como um corpo textual e maneja-a dentro de um registro discursivo para fins distintos dos da clínica psicanalítica. A nós, psicanalistas, nossa prática nos confronta com uma tarefa de construção teórica inerente à nossa capacidade de desconstrução - o ato de pôr em crise - das teorias estabelecidas.

De sua experiência com Charcot, Freud trouxe a possibilidade de conceber um pensamento “separado da consciência”. Essa clivagem, na qual reconheceria a condição formadora do sintoma, o faria opor-se a Janet. Freud reconhece no sintoma um processo de formação3 a ser relevado, e não uma insuficiência.

O processo de formação do sintoma é, para Freud, a resultante de um desvio (Umweg) do desejo, cujas formas de apresentação fizeram da teoria do sonho, da sexualidade, do sintoma correspondente das operações de transformação4 que pertencem ao domínio da transferência. A pertinência ao domínio da transferência faz com que a descoberta freudiana, seu trabalho de interpretação, desenvolva-se em um domínio distinto da função intelectual.

A inteligência, que serve ao manejo da transferência, reivindica o animismo que Freud reconheceu no pensamento do sonho e que presta serviço - pela contratransferência - à imaginação da violência selvagem da transferência e da compulsão à repetição situadas no domínio da crença que desafia o pensamento filosófico. Essa questão foi debatida no Congresso Internacional de Filosofia e Psicanálise (cifp), por Luís Carlos Menezes e Alan Meyer em “A linguagem e o aquém da linguagem na psicanálise”. Reclamam uma condição específica à posição do psicanalista:

Tal posição implica uma diferença na relação com a teoria para o filósofo e o psicanalista. Essa distinção decorre da relação do psicanalista para com a teoria que encontra um limite produzido a partir de sua própria prática. Esse limite faz com que sua leitura não assegure nenhuma fixidez normativa. (Menezes & Meyer, 2006)

Ética psicanalítica, ou psicanalética

Em seu artigo sobre a ética psicanalítica, Herrmann propõe como ponto de partida para sua discussão os assim chamados “Escritos técnicos de Freud”: “Os escritos técnicos eram simultaneamente éticos, objetivando manter o bom nome da razão social fundada pelo mestre. Ora, a confusão entre técnica e ética perpetuou-se” (Herrmann, 1993/1995, p. 11).

O que seria, pergunta Herrmann, natural à prática psicanalítica? Dois gêneros de coisas, propõe:

Em primeiro lugar, aquelas que não são próprias da psicanálise (da disciplina e de seu método), mas que são exigíveis de qualquer atividade terapêutica, psicológica ou não. Respeito ao paciente, sigilo profissional, certo grau de coleguismo e consideração pelos mestres, uma pitada de piedade, por oposição à hybris, enfim. (Herrmann, 1993/1995, p. 17)

a dimensão ética específica da psicanálise é muito menos clara e pode se tornar verdadeiramente escorregadia, caso a queiramos congelar numa série de enunciados normativos. (Herrmann, 1993/1995, p. 17)

Ético é tomar em consideração o desejo.

Mas o desejo é precisamente aquilo que desconhecemos a cada momento: o paciente e o analista (o desconhecem). Por conseguinte, este tomar em consideração tem de ser esclarecido. Em primeiro lugar, ele tem um pressuposto. É forçoso que o analista deixe que surja o desejo, essa criatura esquiva, ou melhor, esse criador oculto … A obstrução da manifestação do desejo é o polo antiético da prática psicanalítica, por excelência … Ora, aquilo que o campo transferencial exige do analista é, antes de tudo, um trabalho constante de pensamento. Pensar, nesse sentido, é afastar-se da causalidade imediata e aparente, deixar de lado o senso comum … para enveredar pelo reino dos sentidos possíveis, pelos recantos mais absurdos da experiência humana … É interessante, por fim, reconhecer que, enquanto a ética nasce da invenção de uma prática e exprime o que é natural ou essencial a essa prática, os códigos de ética nascem, num segundo momento, de sua institucionalização. (Herrmann, 1993/1995, pp. 17-18)

Paradoxo originário, como viu Menezes.

A leitura de uma grande obra pode ser a ocasião de um trabalho de análise: entregar-se ao trabalho de decomposição de nossa psicologia projetada no mundo exterior, aceitar que o texto nos interpele, nos interprete. Abrir-se a essa interpelação é uma via de superação do enrijecimento doutrinário.

Um indissociável mal-estar: “A psicologia individual é ao mesmo tempo psicologia social”

Elisabeth Ann Danto surpreende-nos ao mostrar que lemos Freud com lentes conservadoras, ao revelar-nos um conteúdo inesperado no conhecido texto de Freud “As vias da terapia psicanalítica” (Wege der psychoanalytischen therapie), apresentado no Congresso Internacional de Budapeste, em 1918.

Foi ali que Freud disse que, no futuro, o tratamento psicanalítico seria gratuito. Isso muda a narrativa de uma psicopatologia individual para uma narrativa de patologia social. Ele não fala de indivíduos com transtornos mentais, mas sim, de maneira mais ampla, sobre mulheres que sofrem privações, crianças em situação de rua. Ele está falando de patologia social. E afirma que é a isso que a psicanálise precisa prestar atenção a partir daquele momento. (Danto, 2019)

Nosso colega Pedro Colli Leite traz como epígrafe ao seu trabalho “A conquista do tempo. Psicanálise, big data e o capitalismo de vigilância”, um testemunho do analista atravessado pelos impasses dos vínculos sociopolíticos que determinam nosso horizonte virtual, a sentença de Lacan (Discurso de Roma, 1953): “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.

Questões urgentes apresentam-se ao analista hoje. Alcançar a subjetividade de seu tempo não é assumir uma atitude benevolente diante dessas questões. Questionamentos como os assumidos pelos movimentos antirracistas e ou pela revolução dos valores sexuais que está em nosso cotidiano, que se deita em nossos divãs, anunciada pelos Estudos de Gênero aos psicanalistas, devem ser recebidos como questionamentos atingindo o edifício da doutrina para que a repensemos. Na psicanálise, ético é pensar!

Não farei aqui mais do que aludir à intervenção de Paul Preciado (2019/2020) na Escola Freudiana de Paris: “Eu sou um monstro que lhes fala” (“Je suis un monstre qui vous parle”) e a resposta de Silvia Lippi.

A questão antirracista começa muito recentemente a ser debatida entre nós. Gizela Turkiewicz e Vanessa Figueiredo, psicanalistas do Instituto de Psicanálise, em “A pele de Moïse pelo avesso” (2022), nos dão seu testemunho da atrocidade com base na leitura de O avesso da pele, de Jeferson Tenório.

A Jornada “Questões raciais e formação psicanalítica. É tudo para ontem”, organizada pelo Projeto Virgínia Bicudo em 05/03/2022, apresenta-se certamente como um divisor de águas que mobilizou um grande número de pessoas de nossa sociedade em vários níveis a se debruçar sobre esse campo de investigação.

Esse questionamento, entretanto, remonta a uma aguda polêmica dos anos 1950-1960 entre Frantz Fanon e Octave Mannoni. Frantz Fanon, em Pele negra, máscaras brancas (1952/2020), consagra-se a uma crítica contundente de Psicologia da colonização, de Octave Mannoni (1952).

Psychologie de la colonisation foi escrito a propósito da revolta de 1947 em Madagascar. Mannoni analisa-a fazendo um paralelo com os heróis shakespearianos de A tempestade, Próspero e Caliban. E, antes de Fanon, a análise de Mannoni já havia sido criticada por Aimé Cesaire em Discurso sobre o colonialismo, em 1950.

As críticas levantadas a sua tese levam Octave Mannoni a elaborar uma autocrítica apresentada no artigo “The decolonisation of myself”, publicado em Londres em 1966, o título em inglês tendo sido conservado na versão francesa. Mannoni reconhece que não se consegue lutar contra o racismo só com boas intenções e que superestimara a importância dos fatores psicológicos no desencadeamento da revolta.

Psicologia da colonização foi concebida dentro um espírito assumidamente anticolonialista. Apoiada, entretanto, na ideia de um mecanismo de dependência psicológica, a análise inscreve-se dentro de um terreno do imaginário que se fecha ao reconhecimento das particularidades da situação cultural dos malgaxes. Vejo aí o que considero um sintoma teórico. As linhas principais de Psicologia da colonização traçam uma interpretação que empresta à condição dos nativos uma organização baseada em um “complexo de dependência” que os levaria a uma transferência para com o colonizador, representante da autoridade ancestral. Do lado do colonizador, Mannoni postula uma imposição pelo branco, uma atribuição ao nativo, de seu “complexo de inferioridade” de branco (fundado, segundo Mannoni, em sua culpabilidade pela rejeição da figura paterna no fundamento da organização social europeia). O branco projetaria sobre o negro seus próprios pavores: “O negro é o medo que o branco tem de si mesmo”, formula Mannoni (1997, p. 8)

Fanon em sua crítica traz à luz o sintoma ideológico implícito nessa teoria:

A ideia central é que o fato de “civilizados” e “primitivos” entrarem em contato cria uma situação particular - a situação colonial -, fazendo aparecer um conjunto de ilusões e mal-entendidos que apenas a análise psicológica é capaz de definir. (Mannoni, citado em Fanon, 1952/2020, p. 100)

Fanon contesta essa colocação: “Ora, sendo esse o ponto de partida de Mannoni, por que ele busca fazer do complexo de inferioridade algo que antecede a colonização? … Sim”, afirma Fanon, “a civilização europeia e seus representantes mais qualificados são responsáveis pelo racismo colonial” (Fanon, 1952/2020, p. 105).

Fanon altera o foco analítico de modo decisivo. Para além dos motivos psicológicos, considera a inscrição de estruturas racializadas e racializantes na vida psíquica dos sujeitos “pós-coloniais” como a base do desenvolvimento do sintoma.

De um ponto de vista metodológico, Fanon, sendo psiquiatra e crítico da psicanálise, sustenta uma abordagem, diríamos, essencialmente analítica, examina uma série de sintomas antes de elaborar sua interpretação da condição subjacente e geracional da qual emanam. Vide o capítulo “O negro e a psicopatologia”.

Em seu prefácio a Os condenados da terra (1961), último livro de Fanon, Sartre reconhece na raiz da insurreição malgaxe de 1947 um antagonismo cujo alcance foi negligenciado pela análise psicológica que dela faz Mannoni.

O que lemos em Sartre é que uma situação paradoxal encontra-se na origem da relação de colonização. O colonizador espera encontrar reconhecimento do nativo quando afrouxa seu domínio. Mas aí advém o efeito inverso: quanto mais esse emancipa o nativo, mais este lhe responde com sua revolta. Como na situação analítica individual, a intensificação dos afetos, decorrente do aprofundamento da transferência, advém como reação que não deveria ser identificada como uma violência instintual. Ao contrário, trata-se de determinação pulsional. É o que mostra Sartre quando vê nessa violência a via de recuperação da humanidade (do negro). O que aí está “é o homem ele próprio se recompondo” (Sartre, 1961, p. 9). “Filho da violência, dela extrai sua humanidade … ela o libera nele e fora dele, progressivamente, das trevas coloniais … ele se conhece à medida que o faz” (Sartre, 1961, p. 10).

Uma lógica da violência (pulsional) que não deve ser entendida como mera expressão de efeitos imaginários, mas sim no registro do simbólico, no registro do real, nos traços de uma história recalcada.

O colonizador esquece: ele negligencia a memória humana, as marcas indestrutíveis; e então, sobretudo, há isso que ele talvez nunca tenha sabido; nós só nos tornamos o que somos através da negação íntima e radical do que fizeram de nós. Três gerações? Já a segunda, mal abrem os olhos os filhos que viram espancar seus pais. (Sartre, 1961, p. 6)

Obras como O avesso da pele, de Jeferson Tenório (2020), Torto arado, de Itamar Vieira Junior (2018), Beloved, de Toni Morrison (2007), Passing, de Nella Larsen (1929), Invisible man, de Ralph Ellison (1952), mesmo ano em que Fanon escreve Pele negra, máscaras brancas, dão um testemunho contundente do trauma agindo implacavelmente através de gerações. Pulsionalmente: “em seus corpos, toda uma raiva vulcânica cujo poder é igual ao da pressão que exerceu sobre eles” (Sartre, 1961, p. 7).

Sartre me trouxe a dimensão do fundamento psicanalítico da crise que a abordagem do trauma da colonização, do racismo, exige de nós. Nosso trabalho de descolonização exige um “strip-tease de nosso humanismo” (Sartre), que “extirpa por uma operação sangrenta o colonizador que está em cada um de nós…” (Sartre, 1961, p. 11).

Deivison Faustino, em seu livro Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro, reconhece em Os condenados da terra, na descrição de Fanon sobre a colônia, os mesmos elementos que falam do Rio de Janeiro:

Aliás, ler Fanon sem saber que se trata de um autor de algumas décadas atrás é dizer que essa descrição é das favelas de Rio, São Paulo, Recife e Rio Grande do Norte … Fanon nos ajudaria muito a olhar para a ocupação militar no Rio de Janeiro e dizer: “isso é a expressão contemporânea do colonialismo e é contra isso que precisamos lutar”. (Faustino, citado em Dulce, 2018)

Em Lacan, no Seminário 11 - Sobre os 4 conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão, conceitos fundamentalmente paradoxais, a condição do aparecimento do sujeito psicanalítico corresponde à travessia de sua alienação no campo do Outro em direção à separação constitutiva, afirmação subjetiva do desejo, processo sempre inacabado, como o de nossa formação de analistas. Aqui ressoa, penso eu, a formulação de Sartre: “nós só nos tornamos o que somos através da negação íntima e radical do que fizeram de nós”. Eis o que poderia ser um processo de descolonização de si: assumir a crise que nos permite perseguir inesgotavelmente nossa formação.

3 A interpretação do sintoma implica a perspectiva de um fóssil diretor. O fóssil dá a medida do anacronismo que orienta a decriptação de suas marcas temporais constitutivas.

4 A interpretação é um ato decisivo. Freud, no capítulo sobre “O trabalho do sonho” de A interpretação dos sonhos, evoca Nietzsche para nomear a derrocada de todos os valores psíquicos que a transferência põe em jogo. Mais do que um sentido latente, a interpretação da transferência encontra o bárbaro, o selvagem, o inominável. Encontra o indizível na origem da linguagem.

Referências

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Dulce, E. (2018). Obra de Frantz Fanon traça paralelo entre colonialismo e intervenção militar no Rio [texto e podcast]. Brasil de Fato, 15 mai. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2018/05/15/obra-de-frantz-fanon-traca-paralelo-entrecolonialismo-e-intervencao-militar-no-rio>. Acesso em: 16/7/2022. [ Links ]

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Aula inaugural no Instituto de Psicanálise da SBPSP em 2 de abril de 2022.

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