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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.26 no.81 São Paulo  2009

 

ARTIGO ESPECIAL

 

Dislexia, cognição e aprendizagem: uma abordagem neuropsicológica das dificuldades de aprendizagem da leitura

 

Dyslexia, cognition and learning: a lurian neuropsychological approach to dyslexia

 

 

Vitor da Fonseca

Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa, docente no Departamento de Educação Especial e Reabilitação, Mestre em Dificuldades de Aprendizagem pela Universidade de Northwestern (Evanston, Chicago, EUA). Psicopedagogo e psicomotricista. Autor de várias obras e artigos no domínio da psicomotricidade, da antropologia, das perturbações do desenvolvimento, das dificuldades de aprendizagem, da estimulação precoce, da educação especial, da psicopedagogia, da neuropsicologia, e da educação cognitiva

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor introduz a dislexia, definindo-a como dificuldade de aprendizagem específica, diferenciando-a, consequentemente, de uma dificuldade de aprendizagem global, partindo da noção que tal dificuldade invulgar revela uma discrepância do potencial intelectual, e não uma incapacidade, devendo ser definida com base num quociente intelectual, igual ou superior a 80, excluindo-a claramente, de qualquer categorização taxonômica do domínio da deficiência ou das dificuldades desenvolvimentais e intelectuais. A dificuldade de aprendizagem da leitura é apresentada como uma disontogênese do processo contínuo do desenvolvimento da linguagem, abarcando a duplicação das funções da linguagem falada (1º sistema simbólico) na linguagem escrita (2º sistema simbólico). Partindo de uma perspectiva de comorbidade, a dislexia é encarada como uma dificuldade que pode apresentar vários problemas de extração, captação e processamento de informação simbólica, subentendendo uma multiplicidade de competências cognitivas, que compreendem os sistemas funcionais propostos pelo neuropsicólogo russo A. R. Luria. Introduzindo os sistemas funcionais lurianos, a aprendizagem da leitura é equacionada como resultando do funcionamento sistêmico, ontogenético, concatenado e integrado das três unidades funcionais, a saber: a 1ª unidade de atenção e integração dos optemas; a 2ª unidade de processamento simultâneo e sucessivo ou sequencial e conversão dos optemas em fonemas e concomitantes redes semânticas e compreensíveis, e finalmente, a 3ª unidade de planificação, execução e de autorregulação, onde se opera a rechamada, o controle e a expressão dos articulemas. O autor sugere, com base no modelo de Luria, que a avaliação dinâmica do potencial de aprendizagem da criança seja equacionado a partir do perfil de áreas fortes e fracas revelado nas três unidades funcionais indicadas, perfil esse que deve ser tomado em linha de conta, para posteriormente desenvolver estratégias de intervenção psicopedagógicas individualizadas para cada caso.

Unitermos: Dislexia. Cognição. Aprendizagem.


SUMMARY

The author introduces dyslexia, defined as a specific learning difficulty differentiating the result, a global learning disability, based on the idea that this unusual difficulty, reveals a discrepancy of the intellectual potential, not a disability, that should be defined with on an intelligence quotient, equal to or greater than 80, excluding it clearly, from any categorization of the status field of disability or developmental difficulties and intellectuals. The difficulty of learning to read is presented as a dysontogenesis of the continuum of language development, covering the duplication of functions of spoken language (1st symbolic system) in written language (2nd symbolic system). Starting from the perspective of co-morbidity, dyslexia is seen as a problem that can present many problems of extraction, collection and processing of symbolic information, implying a range of cognitive skills, which include functional systems proposed by the Russian neuropsychologist A. R. Luria. Introducing Luria's functional systems, learning to read is addressed as a result of a systemic, ontogenetic, concatenated and the integration functioning of the three functional units, namely: the 1st unit of attention and integration of optemes; the 2nd unit of simultaneous and successive processing in conversion of phonemes and concomitant semantic networks, and finally, the 3rd unit of planning, implementation and self-regulation, which operates the callback, control and expression of articulemes. The author suggests, based on the Luria model that the dynamic assessment of learning potential of children is equated from the profile of strengths and weaknesses revealed in the three functional units indicated profile that should be taken into account for further develop individualized intervention psychopedagogical strategies for each case.

Key words: Dyslexia. Cognition. Learning.


 

 

INTRODUÇÃO

A dislexia tem sido basicamente considerada uma desordem da leitura e da linguagem, envolvendo, igualmente, dificuldades no ditado e na redação1-6.

Trata-se de uma inesperada dificuldade de aprendizagem, e não incapacidade, e muito menos doença, considerando-se a inteligência média e superior do indivíduo e a oportunidade educacional em que ele se encontra integrado. O Quociente Intelectual (QI) a ser considerado como critério seletivo deverá ser igual ou superior a 80, mas a literatura especializada7-10 ilustra casos de dislexia com indivíduos portadores de QI > 115 ou superior. Quanto à oportunidade educacional, o critério seletivo deverá considerar o processo ensino-aprendizagem onde o indivíduo se encontra integrado com condições pedagógicas suficientes. Tal processo deve ser considerado, portanto, adequado e eficaz para a maioria dos indivíduos, ou seja, não poderá ocorrer nele nenhum sinal de dispedagogia.

A dislexia não é, portanto, sinônimo de um QI baixo, pois pode ocorrer em todos os seus níveis, ou de disfunções visuais e auditivas detectadas por meios médicos convencionais. Também não deve ser considerada na sua definição a evidência manifesta de falta de motivação para aprender a ler, ou da presença de condições socioeconômicas desfavoráveis e desviantes.

Em termos gerais, a dislexia pode se manifestar no indivíduo, ao longo da vida, independentemente de adequada oportunidade de aprendizagem, e da sua intrínseca integridade sensorial (input), mental (integração/elaboração), motora (output) e comportamental.

Por exclusão, a criança ou jovem disléxico não pode ser considerado em nenhuma categoria ou taxonomia defectológica, e jamais deverão ser confundidos com déficit ou disfunção mental. Por inclusão, as crianças e jovens disléxicos revelam perturbações e problemas: subtis, invulgares, multicomplexos, por vezes, inexplicáveis, de processamento de informação não simbólica e, sobretudo, simbólica, que poderão envolver dificuldades cognitivas de compreensão, análise e utilização dos sistemas e subsistemas da linguagem falada e escrita, isto é, podendo abarcar, isolada ou sistematicamente, componentes receptivos, integrativos, elaborativos e expressivos.

A dislexia pode ser superada em tempo útil com uma reeducação multiterapêutica, mas as suas causas mantêm-se inalteradas. Muitos sinais preditores podem ser identificados já na pré-escola, mas a dislexia inicia-se com a aprendizagem da leitura, onde se começa a detectar problemas de conscientização dos sons (fonemas), de reconhecimento de letras (optemas), de expressão verbal (articulemas), de cópia (grafemas), etc.

A aprendizagem da leitura no caso de uma criança disléxica é sempre lenta e muito laboriosa em termos de investimento emocional. A equivalência auditivo-visual (fonema-optema), visuo-gráfica (optema-grafema) e auditivo-verbal (fonema-articulema) parece ser bloqueada por um déficit fonológico específico, que afeta o reconhecimento e a utilização rápida de palavras, assim como a sua decodificação e compreensão7.

Problemas em identificar segmentos de sons que constituem as palavras (lêem braco por barco, pato por prato, etc), e em representá-los graficamente, parecem dificultar o surgimento de automatismos de processamento de informação, tornando a aprendizagem inicial da leitura pouco fluente e pouco gratificante em termos emocionais. Segmentar e ordenar sons, soletrá-los, decompô-los, ou mesmo rechamá-los e articulá-los verbalmente de forma proficiente são aspectos dificilmente identificáveis nas crianças disléxicas.

Aprender a ler é certamente a tarefa mais relevante da escola primária, e a porcentagem de indivíduos alfabetizados funcionalmente é um dos indicadores mais fidedignos de desenvolvimento cultural e de prosperidade econômica, só por esse fato se torna importante estudar, pois cerca de 10% das crianças escolarizadas têm dificuldades específicas de aprendizagem da leitura.

A maioria das crianças aprende a ler sem dificuldades, outras não aprendem a ler por instrução suboptimal ou de muito baixa qualidade, outras ainda não aprendem a ler devido a limitações cognitivas, enquanto as crianças disléxicas não aprendem a ler no tempo adequado ou esperado, independentemente da sua inteligência ser normal e das condições de ensino serem minimamente satisfatórias.

Não havendo ainda uma razão óbvia para o insucesso na aprendizagem ou uma única causa biossocial da dislexia, sabemos que ela coexiste com outros problemas, ela apresenta uma característica de comorbidade, cuja natureza do problema é complexa de identificar e de solucionar, onde de fato não cabe uma solução ou um tratamento milagroso.

A dislexia atinge um espectro muito amplo de expressões comportamentais; algumas crianças superam a dificuldade sem sequelas, enquanto outras não atingem a literacidade.

A leitura é um processo por meio do qual se extrai e se capta informações de textos (por exemplo, páginas impressas, imagens, diagramas, legendas, gráficos, ilustrações, etc). Não se trata de mera ou simples decodificação de símbolos escritos em sons, nem tampouco de uma recepção passiva de uma imagem colhida em qualquer lugar no cérebro a partir da palavra escrita, com a qual pode ser associada. A leitura é um processo ativo, autodirigido pelo leitor em múltiplas formas e apresentando várias finalidades11.

Extrair e captar informações de textos pressupõe que o leitor possa dispor da capacidade de processar, integrar e exprimir informação, isto é, de um ato ou processo de apropriação de conhecimento a que vulgarmente se chama cognição12.

Para ler e para que se processe a informação, portanto, o leitor, inexperiente ou experiente, tem necessariamente que exibir um conjunto dinâmico, sistêmico, coeso e autorregulado de competências cognitivas, como atenção, percepção, memória, processamento simultâneo e sequencializado, simbolização, compreensão, inferência, planificação e produção de estratégias, conceptualização, resolução de problemas, rechamada e expressão de informação, etc (Figura 1).

Ler não é apenas o resultado da coleção destes componentes cognitivos, mas o processo e o produto de um sistema complexo onde eles contribuem e cooperam de forma dinâmica, envolvendo inúmeros sistemas funcionais neuropsicologicamente integrados.

Como se desenvolvem então esses sistemas funcionais na aprendizagem da leitura?

 

ABORDAGEM NEUROPSICOLÓGICA DA COGNIÇÃO: INTRODUÇÃO À NOÇÃO DE SISTEMAS FUNCIONAIS

Para Luria13-15; o cérebro humano é o produto filogenético e ontogenético de sistemas funcionais adquiridos em vários milhões de anos, ao longo do processo sócio-histórico (sociogenético) da espécie humana.

O mesmo autor define sistemas funcionais como a coordenação de áreas em interação no cérebro tendo em vista a produção de um dado comportamento ou conduta, consubstanciando qualquer processo de adaptação ou de aprendizagem, cujo produto final subentende um sistema cognitivo complexo como é o caso da aprendizagem da leitura.

A aprendizagem da leitura no modelo luriano resulta, portanto, da criação de conexões entre muitos grupos e redes de células que se encontram posicionadas em distantes áreas do cérebro.

Consequentemente, a aprendizagem da leitura, da escrita ou do cálculo, à luz desse modelo, implica que no cérebro da criança se opere um processo ativo conjuntural e reorganizador de sistemas funcionais múltiplos e de integração sensorial progressiva, envolvendo na sua superfície o sistema visual e o sistema auditivo, e na sua profundidade, o sistema cognitivo complexo, já referido anteriormente.

É dentro dessa ótica que a criança normal, também segundo Piaget16,17 evolui de uma inteligência sensorial a uma inteligência formal, passando pelas inteligências pré-operacional e operacional concreta. Neste aspecto, o modelo neuropsicológico de Luria equilibra dialeticamente o modelo cognitivo construtivista de Piaget e o modelo co-construtivista de Vygotsky.

Para Luria18-20; a maturação cerebral efetua-se igualmente por meio da emergência de sistemas funcionais, pondo em jogo e em interação sistêmica vários conjuntos de células e redes neuronais bem específicos. É, portanto, a instalação de conexões neuronais provocadas pela aprendizagem que sucessivamente vão permitir a integração complexa da informação multissensorial que ilustra a passagem da linguagem corporal à linguagem falada, e desta, à linguagem escrita9,21,22.

Segundo o pensamento luriano, a aprendizagem da leitura resulta da sequência bem definida de estadios e da integração complexa de circuitos neuronais disponíveis, ilustrando uma reorganização cognitiva progressiva, onde cada área pode operar unicamente em conjugação com outras, a fim de produzir comportamentos, como, por exemplo, ler e escrever.

Nenhuma área do cérebro pode assumir responsabilidade exclusiva por qualquer comportamento humano voluntário ou superior, como ler, exatamente porque o desempenho ou a realização de funções psíquicas superiores, como a aprendizagem da leitura, se fundamenta em uma interação dinâmica e sistêmica de muitas áreas do cérebro, isto é, uma espécie de equivalente funcional como sugerem os "equipotencialistas", mas como os "localizacionistas", Luria confere, igualmente, funções específicas a cada área do cérebro no processo da leitura.

Dessa forma, Luria coloca-se numa posição em claro desacordo com ambas as teorias. Por considerar que algumas áreas, e não todas, combinam-se e articulam-se para gerar comportamentos, Luria está em oposição aos localizacionistas. Paralelamente, porque o tecido cerebral é psicologica e fisiologicamente especializado, Luria está em contradição também com os equipotencialistas.

Para ler, escrever ou calcular, por exemplo, o cérebro põe em marcha, para cada um dos processos, um complexo sistema funcional, composto de vários subsistemas visuais, auditivos, tatil-cinestésicos e motores, subléxicos, léxicos, cognitivos e metacognitivos que interagem sequencialmente, melodicamente e sistemicamente.

Em síntese, a aprendizagem da leitura resulta do funcionamento de sistemas funcionais que integram várias áreas ou unidades de cérebro, mais do que resultados de áreas específicas bem determinadas. De acordo com esse axioma, uma dada aprendizagem pode ser afetada quando qualquer parte do sistema funcional por ele responsável estiver igualmente perturbada.

Com base nessa perspectiva, um indivíduo pode apresentar, por exemplo, sinais de dislexia, sem apresentar lesões no girus angular (denominado "centro de leitura" para os localizacionistas), pois é possível verificar-se disfunções em um ou mais componentes do sistema funcional da leitura.

O conceito de sistemas funcionais é para Luria, consequentemente, diferente dos conceitos inerentes à teoria da localização ou da equipotencialidade.

A teoria da localização, preconizada por frenologistas como Gall, citada por Luria23; sugere que todos os comportamentos resultam de áreas ou centros específicos do cérebro (por exemplo, "centro de leitura", "centro da escrita", "centro do cálculo", etc) e, consequentemente, indicia que todas as desordens ou lesões possam ser adstristas a áreas cerebrais circunscritas.

A teoria da equipotencialidade defendida por outros autores, nomeadamente Flourens, também citado de Luria, e essencialmente Lashley24; em contrapartida, sugere que todos os comportamentos envolvem a participação equitativa de todas as áreas, ou seja, defende que nenhuma área pode conclusivamente especificar uma aprendizagem particular.

Halstead25 e especialmente Galaburda & Hemper26; nas suas pesquisas com inúmeros casos portadores de lesões cerebrais e em casos de dislexia não conseguiram encontrar evidências que sustentassem os pressupostos desta doutrina de "ação em massa" do cérebro, entendido aqui como órgão da aprendizagem da leitura.

A visão de Lúria, portanto, é inequivocamente diferente de ambas. Nenhuma área do cérebro por si só pode ser responsável por qualquer aprendizagem da leitura, ou por algum comportamento particular. Por analogia também, nem todas as áreas são consideradas igualmente contribuintes para a leitura e a escrita, o que pressupõe uma organização hierarquizada e desenvolvimental muito complexa e sistêmica.

A teoria luriana dos sistemas funcionais concebe que o cérebro opera apenas com um número limitado de áreas quando está envolvido na produção de uma aprendizagem específica, cada uma delas jogando um papel peculiar dentro do sistema funcional, denominada pelo mesmo como uma constelação de trabalho.

A noção de sistema funcional tende a equacionar uma concatenação ou uma cadeia de transmissão onde cada ligação, elo ou zona de mediação, representa uma área particular. Cada elo é necessário para que a cadeia seja uma totalidade funcional, cada um participando com uma função específica no conjunto global da cadeia funcional. A cadeia funcional que opera na leitura e na escrita, como já vimos, integra pelos menos os sistemas visual, auditivo, cognitivo e motor, oromotor para a leitura, e grafomotor para a escrita.

Daqui resulta a noção de que, se alguma parte do sistema funcional está disfuncional ou desagregada em termos sistêmicos, a aprendizagem representada pela cadeia funcional pode ficar obviamente afetada, como evidenciam inúmeros casos clínicos de incapacidade de aprendizagem (Luria15,27), como, por exemplo: de agnosia (disfunção grave de input), de afasia (disfunção grave de integração e de elaboração da linguagem falada), de apraxia (disfunção grave de output), de alexia e agrafia (disfunção grave da leitura e da escrita, respectivamente).

No caso das dificuldades de aprendizagem, como por exemplo da disfasia, da disnomia, da disartria, da dislexia, da disortografia ou da discalculia (igualmente designada por dismatemática por alguns autores) também se podem identificar formas mais sutis e ligeiras (ditas "soft" na bibliografia anglo-saxônica) de disfunção ou de desagregação da cadeia funcional que ilustra qualquer aprendizagem da leitura ou da escrita, como atestam algumas das novas tecnologias, como a ressonância magnética, a emissão de pósitrons, a neurometria, a citoarquitetura neuronal, o mapa de atividade elétrica do cérebro - BEAM, e outras.

Para esclarecer essa questão, Luria propõe a noção de pluripotencialidade, reforçando a idéia que qualquer área específica do cérebro pode participar em inúmeros sistemas funcionais ao mesmo tempo, reforçando aqui a extraordinária plasticidade do órgão da aprendizagem.

Em consequência dessa propriedade neurofuncional, além de muitas outras21,28; se uma área do cérebro se encontra lesada, disfuncional ou imatura, então várias aprendizagens podem estar comprometidas e não apenas um determinado tipo, dependendo do número de sistemas funcionais nos quais tal área participa, e tal é fundamental para compreender a dislexia.

Em síntese, as várias áreas do cérebro não trabalham isoladas, uma vez que uma dada aprendizagem só pode emergir quando resulta da cooperação sistêmica, melódica e sinergética das mesmas, assim é também no surgimento das subcompetências e competências simbólicas da leitura e da escrita.

Dentro do mesmo contexto, Luria refere-se ao conceito de sistemas funcionais alternativos, sugerindo que uma dada aprendizagem pode ser produzida por mais de um sistema funcional, evocando que o cérebro, como o órgão de incomensurável flexibilidade, não se estrutura ou reorganizar com base em sistemas funcionais fixos, rígidos ou imutáveis.

Por este conceito se explica porque muitos indivíduos com lesões, disfunções ou traumatismos cerebrais não apresentam os déficits esperados, ou porque muitos deles recuperam espontaneamente algumas funções, independentemente da ocorrência de uma lesão.

Por analogia, quando identificamos vários sinais de dislexia (disfonética, diseidética ou mista) ou disortografia também não podemos tomá-los como indicadores fixos ou perpétuos do potencial de aprendizagem, razão pela qual em muitos desses casos clínicos uma prescrição psicoeducacional bem desenhada e implementada em tempo útil, a partir de um diagnóstico cognitivo dinâmico, pode superar e compensar a vulnerabilidade dos componentes e subcomponentes que participam na cadeia funcional da leitura ou da escrita. A aprendizagem pode interferir, portanto, na criação de novos sistemas funcionais no cérebro.

Neste domínio, Luria15,20,29; Luria & Tsetkova30 adiantam que a recuperação de funções após lesões talvez se verifique porque:

  1. as competências decorrentes de níveis superiores de integração cerebral, em alguns casos, poderão compensar competências adstritas a níveis inferiores;
  2. a recuperação de funções psíquicas superiores pode ser alcançada por reforço, automatização ou enriquecimento de funções psíquicas básicas;
  3. o papel de uma determinada área lesada pode ser assumido por outra área no cérebro.

O cérebro sob condições normais é um órgão plástico e flexível, e é nessas condições que o processo normal de aprendizagem da leitura ou da escrita ocorre. Se efetivamente surge um problema ou uma dificuldade, por lesão, imaturidade ou por outra razão, não dizer que o sistema funcional esteja prospectivamente bloqueado ou desagregado. Pelo contrário, o que esta concepção sugere é algo muito diferente. Se existe alguma dificuldade, podemos mudar a natureza da tarefa (condições externas), ou então, mudar a composição do sistema ou cadeia funcional, mudando a localização neurofuncional onde a informação é processada (condições internas), alterando a modalidade de input ou de output, adequando novas formas de processamento simultâneo ou sequencial da informação, modificando o conteúdo verbal para não-verbal, ajustando a estrutura mental de um componente para subcomponentes mais elementares, ou então, promover e automatizar as funções cognitivas de processamento de dados (input, elaboração e output) etc; adaptando a tarefa ao perfil cognitivo do indivíduo.

Apesar do pouco conhecimento de como o ser humano aprende e o seu cérebro funciona, e da análise cérebro-aprendizagem ser ainda rudimentar, a teoria neuropsicológica de Luria apresenta uma arquitetura perceptível e coerente para compreender como a aprendizagem da leitura e da escrita se estrutura, pois se suporta na grande quantidade de investigações neuropsicológicas realizadas sobre o problema31.

A organização funcional do cérebro proposta por Luria permite entender como os sistemas funcionais operam, quer seja nas praxias ou na linguagem falada e escrita.

A aprendizagem da leitura, da escrita e do cálculo, composta de componentes receptivos (input), integrativos, elaborativos e expressivos (output), emerge, como já vimos, da cooperação de várias áreas ou zonas corticais e subcorticais, e não como se pensava na teoria neurológica clássica, de uma só área específica.

Tal cooperação complexa joga com a participação particular de cada uma das áreas cerebrais relacionadas com um determinado sistema funcional, de tal modo que a sua destruição, disfunção ou imaturidade, porque não causa e perda total da performance (afunção ou incapacidade), induz necessariamente a desintegração ou desconexão de algumas subfunções, enquanto outras podem se manter intactas, o que é promissor em termos de modificabilidade cognitiva para muitos casos clínicos.

 

A ORGANIZAÇÃO NEUROFUNCIONAL DO CÉREBRO NA APRENDIZAGEM DA LEITURA

De acordo com Luria14,32; Geschwind33,34 e Das35; a linguagem, quer falada ou escrita, integra também em termos funcionais a cooperação de várias áreas.

No caso da linguagem falada, por exemplo, a recepção da fala ou a compreensão auditiva (input) envolve a sensação procedente dos ouvidos, que é recebida pelo córtex auditivo primário (captação de fonemas), sendo posteriormente processada em morfemas com base semântica na área de Wernicke (2ª unidade funcional luriana), enquanto a sua expressão verbal (output) requer que as suas representações sejam transferidas daquela mesma área, para a área de Broca (3ª unidade funcional luriana), através dos fascículos arqueados,

Nesta área pré-frontal, a fala envolve um detalhado plano oromotor de articulação (produção de articulemas), onde participa o anel cortico-cerebral, por sua vez transmitido para a área motora primária para desencadear a execução sequencializada dos múltiplos micromovimentos da laringe, faringe, língua e lábios que materializam a verbalização.

No caso da linguagem escrita receptiva-leitura, a recepção das letras (input) é feita no córtex visual primário (captação de optemas) por meio de complicados processos de fixação e focagem onde participam o sistema magnocelular, sendo posteriormente transmitida ao girus angular para associar e equivaler a logografia da palavra com o correspondente modelo auditivo (fonológico e morfológico) na área de Wernicke. No caso de uma leitura silenciosa, a compreensão opera-se neste sistema funcional (2ª unidade funcional), no caso de uma leitura oral, o processo é similar ao processo expressivo da linguagem falada, utilizando os mesmo substratos neurológicos acima descritos.

Em contrapartida, a linguagem escrita expressiva-escrita (output) envolve que as representações das letras (traços e linhas pormenorizadas e fonemas correspondentes) sejam transferidas do córtex associativo visuo-auditivo, em primeiro lugar para o córtex parietal associativo, a fim de formular visuo-espacialmente e tátil-cinestesicamente as formas das letras, e em segundo lugar, para a área de Exner (3ª unidade funcional), onde se opera um detalhado programa grafomotor (produção de grafemas), terminando na área motora primária a execução sequencial micromotora dos gestos da escrita, pondo em movimento múltiplos músculos da coluna, do ombro, do braço, do antebraço, do pulso, da mão e dos dedos, onde de novo o anel cortico-cerebral tem um papel crucial.

Todos estes sistemas funcionais da linguagem corporal, falada e escrita, põem em jogo, como acabamos de ilustrar, uma melodia complexa de componentes de processamento de informação, que no fundo constituem o conjunto das funções cognitivas que suportam as aprendizagens simbólicas superiores23,27.

Em resumo, quando um dos componentes dos sistemas funcionais que acabamos de descrever se encontra lesado, disfuncional ou imaturo, a organização da linguagem pode ser comprometida, podemos gerar ora disfasias, disnomias, disastrias, no caso 1º sistema simbólico, ora dislexias (diseidéticas.disfonéticas ou mistas), disortografias e disgrafias, no caso do 2º sistema simbólico, podendo ocorrer entre ambos os sistemas uma cadeia ontogenética causal.

Por esta simples apresentação dos sistemas funcionais da linguagem falada e da escrita, podemos constatar que os problemas encontrados em disléxicos, por exemplo, poderão ser atribuídos não só a déficits cerebrais7; que interferem com a atenção e com a produção rápida e fluente de processos automáticos sensório-motores básicos, como a déficits de processamento multissensorial, quer simultâneos e sequenciais, quer visuo-gráficos, quer fonológicos e semânticos.

Outro conceito fundamental de Luria para compreender a aprendizagem da leitura é o da falta unicidade ou de uniexclusividade dos sistemas funcionais, sugerindo que é a multiplicidade dos sistemas que surge como responsável por uma aprendizagem específica.

Com base nestas formulações funcionais, os efeitos de uma lesão ou disfunção cerebral numa criança tendem a ser substancialmente diferentes dos do adulto, na medida em que ambos dispõem de sistemas funcionais distintos em termos de organização neuropsicológica, um ainda imaturo, e o outro eventualmente, maturo23,36,37.

De acordo com estes conceitos lurianos, não existe uma correspondência linear entre uma aprendizagem e uma zona específica do cérebro, levando-se em consideração a natureza sistêmica das funções cerebrais.

Luria23 adota, assim, uma metodologia de estudo do cérebro centrada mais em síndromes (padrões de sintomas) do que em sintomas isolados, quando o estuda funcionalmente a partir da análise dos seus distúrbios. A disfunção cerebral que resulte de uma estrutura ou de uma zona específica dentro do sistema total pode manifestar-se por diferentes déficits cognitivos, de acordo com o foco da lesão ou a distribuição da disfunção.

Por exemplo, no caso de uma dislexia, se a criança não pode ainda ler por razões de imaturidade neurológica, os sistemas funcionais responsáveis por tais funções cognitivas superiores, sejam corticais ou subcorticais, podem estar disfuncionais pelo menos num elo da sua cadeia ou, possivelmente, em mais do que um.

Esta perspectiva não se baseia, portanto, numa abordagem lesional fixa ou imutável do cérebro, mas sim em uma abordagem clínica dinâmica susceptível de modificabilidade neurofuncional sustentada por uma análise qualitativa da sua plasticidade e da sua reorganização hierárquica e sistêmica.

De acordo com Luria15; o cérebro opera como um organizador cognitivo complexo, sinergético e super-articulado em qualquer tipo de aprendizagem, tendo por fundamento o papel multicomponencial do processamento da informação, consistindo o seu trabalho em múltiplas interações neurofuncionais e sistêmica, abrangendo por essa qualidade funcional várias áreas do cérebro.

Esquematicamente Luria confere a tais áreas funções específicas, cada uma delas participando, como vimos, em diversos sistemas funcionais, dependendo da experiência de aprendizagem peculiar do indivíduo e do seu contexto sócio-histórico de mediatização21,22.

A INTEGRAÇÃO NEUROFUNCIONAL DA ATENÇÃO, DO PROCESSAMENTO E DA PLANIFICAÇÃO NA APRENDIZAGEM DA LEITURA

Luria apresenta o cérebro humano como o resultado da integração sistêmica e progressiva de três unidade funcionais básicas:

• 1ª unidade de alerta e de atenção;

• 2ª unidade de recepção, análise, integração, codificação e processamento sensorial sequencial e simultâneo;

• 3ª unidade de execução motora, planificação e autorregulação.

Cada uma destas unidades está envolvida em todos os tipos de aprendizagem, como na leitura e na escrita, sem exceção, todavia a relatividade da contribuição de cada uma delas varia conforme o comportamento considerado, isto é, verbal ou não-verbal, simbólico ou não-simbólico, linguístico ou práxico, etc. A 2ª e a 3ª unidades são igualmente subdivididas em áreas distintas; primárias, secundárias e terciárias.

Vejamos de forma sintética as funções principais de cada uma das unidades:

1ª Unidade de Alerta e de Atenção (Figura 2): localizada nas estruturas subcorticais e axiais do cérebro que suportam os dois hemisférios, integra o sistema de ativação reticular ascendente e descendente (SARA e SARD) e um conjunto difuso e interligado de estruturas reticulares, que são responsáveis pela modelação do alerta cortical, pelas funções de sobrevivência, pela vigilância tônico-postural, pela filtragem e integração dos inputs sensoriais e pela gestão emocional e motivacional das situações.

Esta unidade compreende a medula, o tronco cerebral, o cerebelo, o sistema límbico e o tálamo, sem ela o cérebro é incapaz de responder aos estímulos do mundo ao redor, pondo em risco não só a interação corpo-cérebro (dita intrassomática), como igualmente a interação sensório-motora do organismo total do indivíduo com os seus ecossistemas (dita extrassomática). Sem esta unidade funcional, nenhuma aprendizagem simbólica é possível, nem o acesso a funções psíquicas superiores é viável.

As desordens desta unidade podem explicar vários casos de déficits de atenção, de hiperatividade e de hipoatividade em muitas crianças com dislexia.

Por estar implicada na filtragem e seleção sensorial, na integração sensório-tônica básica e no controle postural e atencional, esta unidade impede que o cérebro seja inundado desnecessariamente com informação sensorial irrelevante que possa interferir negativamente com o processamento cognitivo mais elaborado, jogando dessa forma um papel fundamental no foco, na fixação e na sustentação postural da atenção, na concentração, na integração experiencial e emocional e em outras funções automáticas similares.

2ª Unidade de Recepção, Análise, Integração, Codificação e Processamento Sensorial Sequencial e Simultâneo (Figura 3): trata-se da unidade que é responsável pela maioria das aprendizagens precoces, quer tônico-emocionais, quer posturo-motoras (quando envolvem as áreas primárias) e mais tarde pelas aprendizagens pré-escolares e escolares (quando envolvem as áreas secundárias e terciárias), como na leitura e na escrita.

Ela é essencialmente constituída pelas zonas hemisféricas posteriores dos lobos occipitais (visão), temporais (audição) e parietais (tatil-cinestésico) e composta por:

áreas primárias - áreas de recepção sensorial e atencional que estão em estreita conexão com a periferia corporal e com os órgãos sensoriais (próprio e exteroceptivos), predeterminadas geneticamente e sem diferenciação hemisférica, cuja disfunção provoca a cegueira ou a surdez cortical, dados que representam o início da integração cortical dos dados de informação;

áreas secundárias - áreas de análise, de síntese, de retenção (memória e armazenamento) e integração da informação intrassensorial específica, recebida nas áreas primárias com base em processos perceptivos sequenciais já especializados hemisfericamente, onde se verifica a ocorrência de múltiplos processos de discriminação e identificação, de associação, de retenção e categorização de dados intra e interneurossensoriais para além de:

    inúmeros subprocessamentos acústicos do som (por exemplo, timbre, ritmo, intensidade, tolerância, etc.), de fonemas e de monemas, para o caso do sentido da audição;

    múltiplos e diversificados subprocessamentos do espaço (por exemplo, locação, detecção, posição, orientação, lateralização, direção, navegação virtual, etc) que incluem os subsistemas magnocelular e parvocelular envolvidos no rápido escrutínio de dados espaciais e envolvimentais, e também, a integração e interação visuo-motora, a discriminação e identificação da figura-fundo, da cor, da forma, da espessura, do tamanho, das letras, dos números, dos signos, etc. no caso do sentido da visão;

    complexos subprocessamentos somatognósicos das posturas e das praxias globais e finas, da analise, síntese e localização proprioceptiva, vestibular, táctil e cinestésica do corpo e da sua integração emocional e experiencial de gestos e de ações espaço-temporalmente organizadas, no caso do sentido tátil-cinestésico28.

Tais funções tornam-se essenciais para fazer emergir a linguagem falada e, mais tarde, a escrita, onde os fonemas devem ser devidamente fragmentados (consciencializados), sequencial e rapidamente articulados para que se formem palavras e frases nas áreas terciárias, ou fazer emergir a rápida categorização e nomeação optema-fonema e fonema-monema no caso da leitura, bem como a rápida rechamada dos grafemas, onde os traços, os ângulos, as figuras e as inferências picturais devem ser rapidamente manipulados para produzir a escola.

Nesta unidade, os optemas (visão), os fonemas (audição) os articulemas (fala-oromotricidade) e os grafemas (escrita-grafomotricidade) deverão produzir rápidas e automáticas equivalências interneurossensoriais (gnosias) para serem mobilizadas posteriormente pela 3ª unidade do lobo frontal, a fim de exprimirem posteriormente respostas adaptativas (praxias).

As lesões que se verificarem nestas regiões irão obviamente interferir com a natureza sequencial da análise, daí resultando desordens de processamento ou de reconhecimento de informação, ora omitindo, invertendo e substituindo dados, ora adicionando e distorcendo outros, desordens essas que apresentam um elevado grau de especialização intra e inter-hemisférica, e que em muitos casos caracterizam as dificuldades invulgares das crianças disléxicas.

O hemisfério esquerdo é mais vocacionado para o processamento e reconhecimento de informação verbal e simbólica, ou seja, mais analítico e espacialmente mais organizado, enquanto que o hemisfério direito é mais preferencialmente orientado para o processamento e reconhecimento da informação não-verbal e não-simbólica, espacial e musical, postural e facial, ou seja, é mais difusamente organizado, por subsistirem redes funcionais que apresentam distintos mediadores químicos em ambos os hemisférios.

Numa perspectiva evolutiva, o direito é mais precoce e holístico que o esquerdo na filogênese e ontogênese da aprendizagem, ponde em realce o papel dos dois hemisférios no seu desenvolvimento hierarquizado23,28.

Independentemente desta especialização hemisférica fundamental, que ocorre sensivelmente por volta dos 7-8 anos de idade, período crucial da aprendizagem da leitura, os dois hemisférios devem atuar em perfeita harmonia e empatia funcional.

Em resumo, para se atingir eficácia na aprendizagem, o que se passa é mais uma intrincada, coordenada e hierarquizada interação inter-hemisférica, mediada pelo corpo caloso, do que uma mera divisão dicotômica e funcional entre os dois hemisférios, sugerindo que a aprendizagem da leitura deve ser antecedida de aprendizagem de proto-pré-leitura, de proto-pré-escrita.

áreas terciárias - áreas essencialmente localizadas no lobo parietal de ambos os hemisférios e que são responsáveis pela síntese sensorial crosso-modal e intermodal em oposição à integração sequencial característica das áreas secundárias.

Esta integração e interação simultânea interneurossensorial (auditivo-visual ou visuo-auditiva, auditivo-tatil-cinestésica, visuo-tatil-cinestésica ou visuo-espacial) completa a análise sequencial e intraneurossensorial daquelas mesmas áreas, envolvendo processos cognitivos de decodificação-codificação necessários para a leitura (integração visuo-auditiva ou óptico-fonética) e a escrita (integração auditivo-tátil-cinestésica para o ditado).

A gramática, a abstração, a análise lógica, a compreensão das preposições, a rotação espacial, a determinação e projeção angular, as esterognosias, entre outras, são funções específicas das áreas terciárias funções essas, com algumas exceções, que constituem a maioria dos testes de inteligência, como o WISC39-41 daí que muitos disléxicos escapem ao seu escrutínio.

São, portanto, funções cognitivas com maior profundidade e poder de especialização hemisférica, cuja disfunção sugere a taxonomia das dificuldades de aprendizagem9,10 clinicamente subdividida em: disnomias, disfasias, disartrias no caso da linguagem falada; ou dislexias disortografias, disgrafias, e seus subtipos, no caso linguagem escrita.

3ª Unidade de Execução Motora, Planificação e Autorregulação (Figura 4): compreende a unidade de output motor do cérebro, consistindo no lobo frontal, que representa também o seu nível mais elaborado de desenvolvimento, verdadeira central de comando das funções executivas de onde partem as vias motoras piramidais fugais descendentes que se dirigem à medula e aos grupos musculares específicos, para concretizarem, realizarem e executarem qualquer tipo de praxia, macro, micro, oro ou grafomotora.

É também estruturada em áreas primárias, com as unidades motoras de output, onde a execução motora é desencadeada; em áreas secundárias, com centros de organização sequencial e temporal de condutas dependentes de retro-informações e referências cinestésicas e proprioceptivas, de onde emanam os centros de planificação; e, finalmente, em áreas terciárias, também designadas pré-frontais, com cetros de antecipação, de autorregulação, de extrapolação, de desprogramação-reprogramação, de retrocontrole emocional, de superfocagem e sustentação da atenção, de flexibilidade e plasticidade, etc que refletem a atividade cognitiva que antecede a produção de competências de aprendizagem.

Todas as áreas desta unidade frontal, independentemente de um processo neuroevolutivo idêntico às áreas da 2ª unidade, evoluem da maturação das áreas motoras primárias, passando sucessivamente às áreas secundárias e depois terciárias, operam também de forma interligada e sistêmica.

Para que a aprendizagem da leitura e da escrita ocorra de forma adequada e progressiva, as três áreas contribuem de forma coesa e melódica para a sua expressão.

Nas áreas pré-frontais, também designadas psicomotoras, emergem as funções de planificação, de autorregulação, de suporte à decisão (decision making), de avaliação, de continuidade temporal, de controle emocional, de controle inibitório, de atraso e distância interiorizada, de gratificação adiada, de atenção voluntária, de criatividade, etc.

A função de planificação antecipada da performance, práxica ou linguística, é obviamente responsável pela evolução humana e pela evolução dos processos de aprendizagem.

Devido ao fato dos lobos frontais receberem informações das áreas secundárias e terciárias sensoriais da 2ª unidade funcional posterior do cérebro, assim como recebem informações do sistema límbico, do tronco cerebral e fundamentalmente do cerebelo da 1ª unidade funcional, os seus sistemas funcionais ao analisarem esta informação multifacetada dispõem das condições necessárias para planificar a resposta terminal, rápida e perfeitamente adequada às mudanças envolvimentais, às exigências da informação sensorial presente e às experiências passadas e acumuladas.

Sendo a unidade funcional que mais tarde é desenvolvida em termos neurológicos, ela integra por inerência a 2ª e a 1ª unidades, mais precocemente desenvolvidas. Consequentemente, ela guia e orienta hierarquicamente as áreas subcorticais, permitindo a sua modelação consciente e atencional.

Dotada desta arquitetura cibernética complexa, a 3ª unidade frontal avalia se a família de procedimentos de planificação-execução são consentâneos com objetivos de longo prazo e se a monitorização dos fins está ou não assegurada. Pôr em prática planos representa uma função crucial dos lobos frontais, tornando a ação (praxia e linguagem) vicária do pensamento, é disso que se trata quando a criança domina os mecanismos léxicos e simbólicos da aprendizagem da leitura e da escrita.

O cérebro, como órgão da civilização36,42,43 e como órgão da aprendizagem13; transforma precocemente a ação em pensamento e, posteriormente, o pensamento em ação, ambos mediados pela linguagem interiorizada. Tal circularidade e anel funcional garantiram à espécie humana um processo evolutivo e maturativo sem paralelo na natureza, consubstanciando a função principal dos lobos frontais na produção de comportamentos ou condutas superiores.

Em síntese, para diferenciamos a maturidade da imaturidade dos lobos frontais, teremos que equacionar não só a natureza dos déficits como a natureza da aprendizagem e da mediatização, pois só aguardando pela adolescência podemos inferir, ou esclarecer, o verdadeiro potencial de modificabilidade que se observa da infância.

Desta forma, o diagnóstico psicopedagógico ganha outra dimensão antropológica e educacional, pois não pode apenas apresentar indícios etários classificativos, mais tem de se centrar em dimensões dinâmicas mais prescritivas e prospectivas, mais tem de se centrar e dimensões dinâmicas mais prescritivas e prospectivas44,45.

Levando-se em consideração a arquitetura da organização funcional do cérebro, o desenvolvimento neuropsicológico em Luria parte da noção que, na criança (ser inexperiente), o processo maturacional é substancial e qualitativamente diferente quando comparado ao adulto (ser experiente), onde neste todas estas unidades são supostas funcionarem integralmente.

Todo este processo de desenvolvimento, extremamente complexo e articulado entre as três unidades funcionais cerebrais, ocorre num tempo ontogenético e é necessariamente contextualizado num tempo social, dito sociogenético. A multiplicidade interativa dos ecossistemas sociais (micro-meso-exo-macro) que atuam sobre a criança, ora sequencialmente ora simultaneamente, vão determinar a qualidade multiexperencial e multicontextual do seu desenvolvimento46.

O desenvolvimento neuropsicológico e concomitantes sistemas funcionais surgem só quando interagem com um envolvimento apropriado e com adequados requisitos de mediatização22. Se uma criança for criada com indivíduos que não falam, nem lêem e não a mediatizam cognitiva e simbolicamente, ela nunca aprenderá a falar, a ler ou a pensar criticamente com fluência, ilustrando assim o paradigma das crianças selvagens (por exemplo, caso Genie)47.

O desenvolvimento neuropsicológico é o produto final de vários fatores: mielinização, crescimento axo-dendrítico, crescimento dos corpos celulares, sinaptogênese, estabelecimento de circuitos e redes interneuronais e muitos outros eventos bioquímicos, mas não explicam a complexidade dos processos de aprendizagem.

Os substratos neurológicos intactos e o envolvimento ecológico facilitador interagem reciprocamente para que as formas transientes ou sequenciais de aprendizagem possam surgir de acordo com uma hierarquia progressivamente e plasticamente integrada.

Sem experiências de aprendizagem mediatizadas38,48-51; as habilidades cognitivas e simbólicas não emergem, pois não basta que a maturação neurológica ocorra de acordo com a lógica temporal, é crucial que se observe um processo intencional de interação social e mediatizadora entre indivíduos experientes e inexperientes42.

A compreensão da organização neuropsicológica da cognição, com base em Luria, torna-se assim um paradigma fundamental da educação, da reabilitação, na medida em que ela permite operacionalizar o desenvolvimento da inteligência nas suas habilidades e sub-habilidades.

A leitura e a escrita, como funções psíquicas superiores que não, devem ser desenvolvidas com programas de enriquecimento linguístico adequados e com treino cognitivo de processos: de atenção; de Informação sequencial e simultânea; de associação e generalização; de decodificação e codificação; de equivalência intermodal (optema-fonema-articulema-grafema); de análise e fragmentação fonológica; de memória visual e semântica; de autorregulação e de metacognição, etc (Figura 5)35.

De fato, a finalidade essencial da educação e da reeducação é acelerar o desenvolvimento cognitivo das crianças e dos jovens, com ele, a aprendizagem da leitura e da escrita são mais facilitadas.

Com a educação cognitiva, devemos visar à otimização máxima possível do potencial de aprendizagem de estudantes com rendimento normal ou superior. Com a reabilitação cognitiva, a finalidade da sua intervenção deve visar à compensação e o enriquecimento do potencial habilitativo de indivíduos portadores de desigualdades sociais, dificuldades, perturbações, transtornos ou dificuldades de aprendizagem mais graves52.

Uma abordagem cognitiva à aprendizagem da leitura e da escrita constitui, portanto, um novo desafio aos sistemas de educação e de formação que têm a responsabilidade social de desenvolver, ao máximo possível, os recursos humanos de uma sociedade em qualquer idade, condição ou contexto.

 

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Correspondência:
Vitor da Fonseca
Rua Ernesto Veiga de Oliveira, 21, 2º A/B
Edifício S. Julião - Oeiras
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E-mail: vitordafonseca@netacabo.pt

Artigo recebido: 10/10/2009
Aprovado: 5/11/2009

 

 

Trabalho realizado na Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, Portugal.

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