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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.28 no.87 São Paulo  2011

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

Métodos de alfabetização: delimitação de procedimentos e considerações para uma prática eficaz

 

Literacy methods: definition of procedures and considerations for effective practice

 

 

Alessandra Gotuzo SebraI; Natália Martins DiasII

IPsicóloga, Doutora e Pós-Doutorada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Professora, pesquisadora e orientadora do Programa de Pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Bolsista de Produtividade CNPq - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil
IIPsicóloga, Mestre e Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Bolsista FAPESP. Professora convidada do curso de Psicopedagogia da UPM. Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo apresenta os métodos de alfabetização mais difundidos no país, delimitando-os em função de seus três aspectos fundamentais, a saber: a) ponto de partida e encaminhamento da alfabetização, delimitando os métodos analíticos e sintéticos; b) unidade mínima de análise na relação entre fala e escrita, delimitando os métodos global, silábico e fônico; e c) tipo de estimulação envolvida, distinguindo os métodos multissensorial e tradicional. É apresentado breve histórico sobre os métodos de alfabetização e, em maiores detalhes, são descritos os métodos fônico e global. O método fônico tem como objetivo principal ensinar as correspondências grafofonêmicas e desenvolver habilidades metafonológicas, fomentado as habilidades de decodificação e codificação. Já o método global pressupõe que a aprendizagem da linguagem escrita ocorra pela identificação visual da palavra, focando diretamente as associações entre as palavras e seus significados. No Brasil, o método global é o mais enfatizado nas universidades e o mais utilizado nas salas de aula. Além disso, no país, a concepção construtivista tem exercido grande influência sobre as práticas em alfabetização. No entanto, pesquisas nacionais e internacionais têm questionado a efetividade do método global e das concepções construtivistas e revelado o método fônico como o mais eficaz na alfabetização regular e, ao lado do método multissensorial, na intervenção com crianças com dificuldades em leitura e escrita. Recentemente, algumas iniciativas acadêmicas e de setores do governo têm revelado uma possível aproximação entre as práticas educacionais e tais evidências científicas. Essa confluência 'educação-ciência' poderá beneficiar grandemente as práticas na educação fundamental do país.

Unitermos: Alfabetização. Aprendizagem. Linguagem. Leitura.


SUMMARY

The article presents the most widespread literacy methods in the country, defining them in terms of its three fundamental features, i.e., a) starting point and course of literacy, delimiting the analytical and synthetic methods; b) the minimum analysis unit on the relationship between speech and writing, outlining the global, syllabic and phonic methods; and c) type of stimulation involved, distinguishing between traditional and multisensory methods. Brief history is presented on literacy methods, and the global and the phonics ones are described whit more details. The phonic method's main objective is to teach the graphophonemic correspondences and to develop phonological skills, fostering decoding and encoding skills. The global method assumes that the learning of written language occurs by the word visual identification, focusing directly the associations between words and their meanings. In Brazil, the global method is the most broadcast in universities and most used in classrooms. In addition, in the country, the constructivist conception has exerted great influence on literacy practices. However, national and international researches have questioned the effectiveness of the global method and constructivist conceptions, and revealed the phonics as the most effective in literacy and, aside multisensory method, in the intervention with children with reading and writing problems. Recently, some academic and government initiatives has revealed a possible oncoming between educational practices and scientific evidence produced by cognitive psychology. This 'education-science' confluence could greatly benefit the country's practices in elementary education.

Key words: Literacy. Learning. Language. Reading.


 

 

INTRODUÇÃO

Esse artigo tem como objetivo apresentar alguns conceitos sobre os diferentes métodos de alfabetização. Não caracteriza uma revisão sistemática e não pretende aprofundar historicamente o tema, mas é uma reflexão motivada pela observação de desconhecimento, por parte de profissionais da área, com relação aos distintos métodos de alfabetização, seus princípios e procedimentos de aplicação, o que tem limitado a possibilidade de aplicação de diferentes métodos para alunos com diferentes características, prejudicando, dessa forma, a otimização do potencial de cada indivíduo.

 

MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO: DEFININDO CONCEITOS

Atualmente, há uma confusão bastante grande em relação às diferentes características dos métodos de alfabetização. Nesse sentido, devem-se distinguir três aspectos fundamentais de tais métodos:

1) Qual é o ponto de partida e o encaminhamento da alfabetização? Aqui se faz a distinção entre métodos analíticos e sintéticos;

2) Qual é a unidade mínima de análise na relação entre fala e escrita? Aqui se distingue entre método global, método silábico e método fônico;

3) Qual é o tipo de estimulação envolvida? Aqui se distinguem o método multissensorial e o tradicional.

Essas três distinções encontram-se representadas na Figura 1 e são descritas mais detalhadamente a seguir.

O ponto de partida e o encaminhamento da alfabetização referem-se a qual é a unidade inicialmente apresentada durante a alfabetização, dentre a parte ou o todo (unidade de significado). Há duas possibilidades: método analítico e método sintético. Nos métodos sintéticos, são usados procedimentos que partem de unidades menores para chegar a unidades maiores (da parte para o todo). Ou seja, as unidades ensinadas são menores que as unidades de significado da língua em questão. Logo, podem ser apresentadas inicialmente as letras, os sons das letras ou as sílabas. Tal apresentação pode ocorrer conforme uma ordem específica ou sem uma sequência previamente determinada. Após a introdução das unidades mínimas, ensina-se a sua síntese em unidades maiores, formando sílabas, palavras, frases e, finalmente, textos. Nos métodos analíticos, ao contrário, as unidades apresentadas inicialmente são unidades de significado, sejam elas palavras, frases ou textos. Assim, os métodos analíticos partem de unidades maiores, sem um foco primário sobre as unidades menores (do todo para a parte).

A unidade mínima de análise na relação entre fala e escrita refere-se à menor unidade cuja relação com a fala é explicitamente apresentada. Ou seja, refere-se a qual segmento da fala é "oralizado" ou "verbalizado" pelo professor. Por exemplo, pode-se apresentar uma palavra escrita e dizer o correspondente falado daquela palavra (ou seja, ler a palavra). Em um nível mais segmentado, podem-se apresentar sílabas escritas e dizer o correspondente falado daquelas sílabas (ou seja, ler a sílaba). Finalmente, podem-se apresentar as letras e dizer o seu correspondente falado (ou seja, ler os fonemas correspondentes às letras). Dessa forma, em relação à unidade mínima de análise na relação entre fala e escrita, há os métodos global (unidade mínima é a palavra), silábico (unidade mínima é a sílaba) e fônico ou fonético (unidade mínima é o fonema).

Em relação ao terceiro critério, o tipo de estimulação envolvida, distinguem-se o método multissensorial e o método tradicional. Tais métodos diferenciam-se em relação às modalidades sensoriais engajadas, ativa e intencionalmente, no processo de alfabetização. No método tradicional, a linguagem escrita é ensinada principalmente usando a visão (o aluno vê o item escrito) e a audição (o aluno ouve seu correspondente oral). No método multissensorial, há um engajamento muito maior e mais explícito de outras modalidades sensoriais, como a tátil (o aluno sente uma letra desenhada com um material de textura específica, por exemplo), a cinestésica (o aluno movimenta-se sobre uma letra desenhada no chão, por exemplo), e a fonoarticulatória (o aluno, de forma intencional, atenta aos movimentos e posições de lábios e língua necessários para pronunciar determinado som). Assim, o método multissensorial tenta, intencionalmente, apresentar a linguagem escrita, tendo como input outras modalidades não usadas no método tradicional, como o tato e a cinestesia.

Tendo sido apresentados esses três critérios possíveis para classificação dos métodos de alfabetização, pode-se prever que há diferentes combinações possíveis dos critérios. Pode haver, por exemplo, um método analítico que tenha como unidade mínima o fonema e que seja multissensorial. Nesse caso, o ensino parte do texto como unidade inicial de apresentação ao aluno, ensina explicitamente a relação entre os fonemas da fala e as letras da escrita, e engaja ativamente diversas modalidades sensoriais.

Dessa forma, diferentes combinações dos critérios são possíveis. As combinações mais comuns, usadas ao longo da história da educação formal, são descritas a seguir.

 

MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO: BREVE HISTÓRICO

Identificar qual das várias formas de alfabetização é a mais eficaz não é algo recente; ao contrário, remete a uma discussão antiga e constitui uma das maiores disputas no campo da pedagogia e da educação1. Historicamente, o uso e a transição entre diferentes métodos de alfabetização têm sido marcados por períodos de insatisfação e resistência, delimitando conflitos e disputas, quase sempre ideológicas, entre defensores de antigas e novas concepções2. A Figura 2 apresenta esquematicamente uma linha do tempo sobre disputas e práticas em alfabetização no Estado de São Paulo. O esquema foi amplamente baseado e sintetiza a revisão histórica e teórica de Mortatti2, porém é complementado por outras referências3-12.

Nos primeiros séculos de ensino de leitura e escrita, havia um predomínio de instruções denominadas sintéticas, conforme descrição anterior. O método mais usado era o método alfabético, iniciado com o ensino das letras e seus nomes13.

O método fônico, que propõe o ensino sistemático e explícito das correspondências entre letras e sons, nasceu provavelmente no século XVI, com educadores alemães. Esta proposta à alfabetização ensina, como parte fundamental da sua prática, as correspondências grafofonêmicas, ou seja, entre as letras e seus sons. Por sua vez, o método global nasceu provavelmente no século XVII13. Segundo esse método, seria mais econômico ensinar a palavra como um todo às crianças, sem focalizar unidades menores. Assim, era preconizado o ensino direto das associações entre as palavras e seus significados12.

Apesar de diversos outros métodos de alfabetização terem surgido, um grande debate tem ocorrido entre o método fônico, de um lado, e o método global, de outro lado. Tal debate tem ocorrido já há algumas décadas internacionalmente1 e, no Brasil, tem se intensificado nos últimos anos. Esses dois métodos, portanto, serão descritos mais detalhadamente a seguir.

Método fônico

Esta proposta à alfabetização tem dois objetivos principais: ensinar as correspondências grafofonêmicas e desenvolver as habilidades metafonológicas, ou seja, ensinar as correspondências entre as letras e seus sons, e estimular o desenvolvimento da consciência fonológica, que se refere à habilidade de manipular e refletir sobre os sons da fala. Enquanto o ensino das correspondências grafofonêmicas é considerado fundamental desde o início do método fônico, que provavelmente data do século XVI, como anteriormente descrito, o desenvolvimento da consciência fonológica é mais recente, tem sido incentivado principalmente a partir do século XX.

Este método baseia-se na constatação experimental de que as crianças com dificuldades na alfabetização têm dificuldade em discriminar, segmentar e manipular, de forma consciente, os sons da fala. Esta dificuldade, porém, pode ser diminuída significativamente com a introdução de atividades explícitas e sistemáticas de consciência fonológica, durante ou mesmo antes da alfabetização. Quando associadas ao ensino das correspondências entre letras e sons, as instruções de consciência fonológica têm efeito ainda maior sobre a aquisição de leitura e escrita. Além de ser um procedimento bastante eficaz para a alfabetização de crianças disléxicas, o método fônico também tem se mostrado o mais adequado ao ensino regular de crianças sem distúrbios de leitura e escrita12.

Estudos têm evidenciado resultados bastante animadores com o uso do método fônico. Por exemplo, Gersten et al.14 relataram benefícios de longo prazo de um programa baseado em instruções fônicas, o modelo de Instrução Direta. Tais benefícios foram evidentes em termos de menor repetência ao longo das séries escolares e, até mesmo, de maior aceitação em faculdades. Estes resultados de longo prazo são explicados pelo fato de que o método fônico fornece às crianças habilidades e conhecimentos autogerativos de decodificação fonológica, o que é concebido por Share15 como um mecanismo que possibilita o autoensino. Assim, após dominar essa habilidade básica de decodificação, o leitor possui os pré-requisitos necessários para desenvolver suas habilidades de leitura, necessitando basicamente da prática para alcançar fluência e automatismo.

Alguns princípios derivados da abordagem de processamento de informação da Psicologia Cognitiva dão sustentação ao método fônico, e são descritos a seguir:

• Não se sustenta a noção de que a linguagem escrita apresenta uma continuidade em relação a outras formas de representação, como o jogo simbólico e as imagens mentais, conforme proposto por outras abordagens, como a epistemologia genética de Piaget16;

• Logo, um ensino específico deve ocorrer para que a criança desenvolva as habilidades necessárias para dominar a leitura e a escrita, incluindo atividades de consciência fonológica, como síntese e segmentação de fonemas, e o ensino dos sons das letras;

• Para o ensino dos sons das letras, pode-se começar pelas vogais e pelas consoantes cujos sons podem ser pronunciados isoladamente, como /f/, /j/, /l/, /m/, /n/, /s/, /v/, /x/, /z/17;

• Deve haver um ensino dirigido das palavras: inicialmente devem ser ensinadas as palavras com ortografias regulares, posteriormente com ortografias reguladas pela posição (mesa, em que o "s" intervocálico soa como /z/) e somente então as palavras com ortografias irregulares (por exemplo, flecha ou xale para irregularidade de ch/x; jeito ou gente para irregularidade de g/j). Isto porque o ensino de palavras irregulares logo no início da alfabetização pode confundir o aprendiz, impedindo-o de desenvolver consistentemente a noção de correspondência entre letras e sons13. Somente após essa noção estar estruturada, as irregularidades devem ser introduzidas;

• Os exercícios de coordenação motora são importantes. Eles auxiliam o aluno a adquirir as formas ortográficas das letras13. Isto permitirá, posteriormente, que o aluno apresente uma caligrafia mais adequada e, principalmente, ajudará na consolidação mental das formas das letras, o que permitirá a escrita mais automática e a identificação mais fácil das letras durante a leitura.

Assim, abordagens fônicas usualmente propõem o ensino explícito e sistemático, com grau crescente de dificuldade, das habilidades de decodificação grafofonêmica e de codificação fonografêmica, paralelamente ao trabalho para desenvolvimento da consciência fonológica18.

Método global

O método global ou ideovisual pressupõe que a aprendizagem da linguagem escrita se dê pela identificação visual da palavra. Apesar de haver outros métodos analíticos, como os métodos de 'palavração' e 'sentenciação', o global ou ideovisual é o mais amplamente conhecido, desenvolvido provavelmente no século XVII13. Como anteriormente descrito, tal método pressupõe que é mais econômico ensinar a palavra como um todo ao aluno, sem focalizar unidades menores, sendo, portanto, ensinadas diretamente as associações entre as palavras e seus significados. Tais ideias foram reforçadas pela Gestalt, que pressupõe que o todo é maior que a soma das partes, ou seja, que a informação contida na unidade total de significado é maior do que a soma das informações contidas separadamente nos elementos menores. Tal pressuposto, proveniente de estudos basicamente de percepção, foi aplicado à alfabetização, supondo que a forma global das palavras forneceria dicas importantes aos leitores iniciantes12. Para os defensores do método global, o conhecimento das correspondências letra-som seria adquirido naturalmente pelas crianças, após o reconhecimento total da palavra estar bem estabelecido.

Para além do nível da palavra, a maioria dos métodos analíticos toma o contexto como absolutamente relevante para a leitura de uma palavra. Assim, angariado nas concepções de Ben Goodman e Frank Smith, em tais métodos considera-se que a aprendizagem de leitura e escrita só pode ocorrer a partir de unidades que sejam significativas à criança. Em geral, métodos globais ou ideovisuais partem de unidades como palavras, textos, parágrafos, sentenças ou palavras-chave (como no método de Paulo Freire). É a partir destas unidades maiores e, portanto, significativas que, em um segundo momento, o aprendiz chegaria a uma compreensão das unidades menores que compõem as palavras, porém sem necessidade de instrução sistemática e explícita para isso.

Em meados do século XX, em todo o mundo, o método global difundiu-se amplamente nas escolas. Desde então, um dos maiores pesquisadores sobre o método tem sido Goodman19,20. O autor sustenta a visão de que as ideias do método global são progressistas e sensíveis às necessidades das crianças e buscam desenvolver a criatividade destas, permitindo a elas próprias "descobrirem" os princípios subjacentes à leitura e à escrita. Além disso, as práticas do método global evitam a submissão das crianças a programas estruturados e sistemáticos, como os programas fônicos e seu ensino sistemático e explícito de correspondências grafema-fonema.

Assim, o método global propõe o ensino das associações entre palavras inteiras e seus significados (abordagem ideovisual), individualmente ou em textos introduzidos desde o início12. Dentre os princípios de sua prática, podem-se elencar:

• A leitura é compreendida como atribuição de sentido e interação entre o leitor e texto; a leitura não deve ser focada na decifração;

• A leitura é um "jogo de adivinhação psicolinguística"21. As crianças devem ser estimuladas a adivinhar o que está escrito a partir de pistas contextuais;

• A aprendizagem da leitura deve ocorrer a partir de unidades maiores que sejam significativas para a criança (palavras, sentenças, textos), com incentivo à associação direta entre palavras e significados.

 

EVIDÊNCIAS DA SUPERIORIDADE DO MÉTODO FÔNICO

Como anteriormente descrito, no século XX, o método global difundiu-se entre as escolas em diversos países. Com seu amplo uso, começaram a ser conduzidos estudos questionando sua eficácia. O primeiro grande ataque ao método global surgiu com o estudo de Flesch22, intitulado Why Johnny can't read? (Por que Johnny não pode ler?). Segundo o autor, o método global é mais uma forma de treinamento animal do que método de alfabetização. Seu posicionamento é corroborado por outros estudos de grande porte, como os de Chall23 e Bond & Dykstra24, que arguiam que os programas de alfabetização baseados em instruções fônicas eram superiores aos globais, levando a melhores desempenhos em reconhecimento de palavras, escrita e vocabulário12.

Conforme alguns estudos apontam25-27, o tipo de instrução característica do método global não enfatiza o ensino explícito e sistemático dos princípios da língua escrita, tal como faz o método fônico, de modo que nem todas as crianças conseguem apreender tais princípios. Essa dificuldade é ainda maior, fazendo ainda mais evidente a discrepância entre os métodos, com clara inferioridade do global, no caso de crianças que apresentam risco de atraso de leitura e escrita ou aquelas com desvantagens socioculturais28-30.

Porém, apesar de evidências da inferioridade e das desvantagens do método global, seu uso foi grandemente difundido e ele continuou sendo utilizado por anos em escolas em todo mundo1. Tal discrepância entre a prática educacional na alfabetização e as evidências oriundas de estudos científicos foi apontada por diversos autores1,13,31, que destacavam, entre outros fatores, a falta de pesquisa experimental conduzida pelos adeptos do método global e uma postura na qual imperava o dogmatismo, apesar do fracasso a que eram fadados seus estudantes.

No Brasil, a história tendeu a se repetir e, nos cursos de formação, tanto na graduação quanto na pós-graduação, o método global ainda é enfatizado como eficaz e moderno12. Com isso, anualmente, as escolas ganham novos educadores, pedagogos e psicopedagogos, que continuam a aplicar e difundir uma prática ineficaz, em total contrassenso às pesquisas conduzidas na área. E é, sobretudo, nas escolas públicas, com seu maior contingente de crianças de nível socioeconômico baixo, que esse fato é mais preocupante, pois estas crianças, muitas vezes, não possuem alternativas que possam suprir estas falhas educacionais. Vale lembrar que o Censo educacional de 2010 declarou que 87,3% dos estudantes brasileiros no ensino fundamental estão matriculados na rede pública de ensino32.

Ainda no âmbito nacional, na década de 1980, houve grande difusão das ideias de Emília Ferreiro que, até os dias de hoje, permeiam e influenciam as práticas de alfabetização em todo território brasileiro. Ferreiro baseou seus trabalhos na teoria piagetiana, investigando, sobre esta perspectiva, o processo de aquisição da leitura pela criança33-36. De acordo com suas pesquisas e de modo conciso, a autora descreveu três períodos evolutivos ou de conceitualização do escrito pela criança16,34. No primeiro nível conceitual, começa a haver uma distinção entre o material gráfico icônico e o não-icônico. No segundo, a hipótese central formulada pela criança é que coisas diferentes devem ser lidas/escritas de formas diferentes; também surgem as noções de quantidade e diversidade de letras por palavra. E, no terceiro nível conceitual, surge a tentativa de dar valor sonoro às letras que formam a palavra, ou seja, surge a noção de fonetização da escrita. Inicialmente, a criança elabora uma hipótese silábica, na qual a cada letra faz equivaler uma sílaba; posteriormente, compreende que a cada letra corresponde um som ou fonema, pautando sua leitura e sua produção escrita em uma hipótese alfabética.

As ideias de Ferreiro originaram a concepção construtivista que se autoproclama uma revolução conceitual e não um novo método de alfabetização. Tal concepção defende uma alfabetização contextualizada e, portanto, significativa que deve dar-se por meio da transposição didática das práticas sociais de leitura e escrita para o contexto da sala de aula. É por meio de sua imersão às práticas sociais de leitura que a criança começa a se organizar para apreender o significado deste objeto. Pouco a pouco ela elabora hipóteses sobre o que a escrita representa. Neste processo, por meio da ação reflexiva da criança, a consciência fonológica desenvolver-se-ia naturalmente, não sendo necessárias práticas sistemáticas para sua estimulação. Na concepção construtivista, o aluno deve ser levado a pensar sobre a escrita e, assim, construirá e reelaborará seu próprio conhecimento36,37.

O construtivismo de Ferreiro é uma teoria epistemológica e não um método de alfabetização. Sua transposição para a sala de aula tem se mostrado problemática e pouco eficaz, e os riscos que tal concepção sobre alfabetização podem trazer podem ser verificados nos dados das avaliações nacionais e internacionais que constatam o fracasso do alunado brasileiro na aprendizagem da leitura5,7-11.

 

ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS COM DISLEXIA E PROBLEMAS DE LEITURA E ESCRITA

Além da superioridade do método fônico na alfabetização em contexto regular, diversas associações de dislexia em todo o mundo recomendam instruções fônicas para o ensino de indivíduos com dislexia. De fato, nas diretrizes da British Dyslexia Association38 para o ensino de crianças disléxicas, é recomendada a inclusão de atividades do método fônico. Os professores são incentivados a desenvolver habilidades de rima, segmentação fonêmica e discriminação de sons e a ensinar as relações entre as letras e os sons. É interessante observar que tais diretrizes são recomendadas em países de língua inglesa, cuja ortografia tem relações grafofonêmicas bastante irregulares, com correspondências imprevisíveis entre letras e sons. Logo, se o método fônico é recomendado para o inglês (que é extremamente irregular), certamente ele é ainda muito mais eficaz no português, cujas relações entre letras e sons são bem mais regulares e que, portanto, propicia maior sucesso na aplicação de regras de conversão grafofonêmicas39.

No contexto nacional, autores têm desenvolvido e testado programas fônicos com resultados bastante positivos. Tais procedimentos podem ser utilizados no contexto educacional ou clínico12,40,41. Há também um programa computadorizado que permite a aprendizagem de habilidades importantes de uma forma bastante lúdica42. Vale lembrar que estudos têm evidenciado que as dificuldades em leitura e escrita se devem, em grande parte, a problemas de processamento fonológico, podendo estes ser atenuados e/ou solucionados com a incorporação de atividades fônicas e metafonológicas em diferentes níveis escolares43. Isto tem sido demonstrado em diversos estudos internacionais43-51 e nacionais12,41,53-58.

Outro método também utilizado no trabalho com crianças com dislexia ou com dificuldades de leitura e escrita é o chamado multissensorial39. Este procedimento busca combinar diferentes modalidades sensoriais no ensino da linguagem escrita às crianças. Assim, ele facilita a leitura e a escrita ao estabelecer a conexão entre aspectos visuais (a forma ortográfica da letra ou da palavra), aspectos auditivos (a forma fonológica), aspectos táteis e cinestésicos da grafia (os movimentos necessários para escrever letras e palavras) e aspectos cinestésicos da articulação (os movimentos e posições necessários para pronunciar sons e palavras).

Maria Montessori foi uma das precursoras do método multissensorial. Ela defendia a participação ativa da criança durante a aprendizagem e o movimento era visto como um dos aspectos mais importantes da alfabetização. A criança devia, por exemplo, traçar a letra enquanto o professor dizia o som correspondente59.

Fernald e Keller60, outros proponentes do método multissensorial, também incentivavam as crianças a pronunciar em voz alta os nomes das letras enquanto as escrevessem. Orton61 deu continuidade ao desenvolvimento de técnicas do método multissensorial, mantendo a associação tríplice visual, auditiva e cinestésica e, em 1925, Orton e Gillingham propuseram uma variação do método multissensorial, em que inicialmente devem ser ensinadas as correspondências entre as letras e seus sons, aumentando as unidades progressivamente para palavras e, somente depois, para frases39. Esse procedimento delimitava:

• Apresentação de cada letra separadamente, com seu nome e seu som;

• Criança traça a letra enquanto diz seu nome, inicialmente com o modelo visual e, depois, sem ele;

• Apresentação das sílabas simples com sons regulares;

• Combinação dessas sílabas para formar palavras;

• Introdução de palavras com correspondências irregulares;

• Combinação de palavras em frases.

Cabe destacar que algumas variantes do método multissensorial trabalham apenas com os sons das letras, e não com seus nomes. A maioria delas parte das unidades mínimas (no nível da letra) para unidades mais complexas (nível da palavra e, depois, da frase). Apesar de requerer muito tempo de intervenção, o método multissensorial é um dos procedimentos mais eficazes para crianças mais velhas, que apresentam problemas de leitura e escrita há vários anos e que possuem histórico de fracasso escolar.

Alguns princípios que orientam a prática do método multissensorial são:

• Audição: ênfase nos sons das letras e na forma fonológica das palavras;

• Visão: ênfase na forma visual de letras e palavras, podendo usar cores e tamanhos diferentes;

• Cinestesia - traçado: ênfase no traçado da letra/palavra, por exemplo usando letras com setas desenhadas que indicam a direção do movimento correto para a grafia;

• Tátil: ênfase na memória tátil da forma das letras/palavras, por exemplo usando texturas diferentes;

• Articulação: ênfase na memória articulatória das letras/palavras, de forma consciente e intencional.

No Brasil, um procedimento multissensorial bastante difundido e adotado é o Fonovisuoarticulatório, conhecido mais informalmente como 'Método das boquinhas'. Utiliza-se das estratégias fônica (fonema/som), visual (grafema/letra) e articulatória (articulema/Boquinhas) e é indicado tanto para a alfabetização de crianças quanto na reabilitação dos distúrbios da leitura e escrita62-64.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo apresentou e delimitou os métodos sintéticos e analíticos. Após, centrou-se na discussão entre os métodos fônico e global, apresentando, por fim, sugestões tanto para a alfabetização quanto ao trabalho interventivo com crianças com dislexia ou problemas de leitura e escrita. Para tal atuação, os procedimentos fônico e multissensorial têm sido reconhecidos como os mais eficazes.

Pesquisas comparando os métodos de alfabetização têm se concentrado principalmente nos procedimentos fônico e global. Em geral, estas investigações têm demonstrado a superioridade do fônico, especialmente com crianças com desvantagem sociocultural ou cognitiva. Estudos de meta-análise comprovam que introduzir instruções fônicas (ensinar correspondências grafofonêmicas) e metafonológicas (desenvolver a consciência fonológica) auxilia a aquisição de leitura e escrita. Porém, no Brasil, até hoje predomina o método global, tanto no contexto clínico quanto no educacional.

As razões para a insistência em um modelo que tem logrado péssimos resultados nas avaliações nacionais e internacionais, tendo sido descartado como ineficaz por outros países7, possui uma explicação complexa, que perpassa conjecturas políticas e ideológicas até problemas próprios da formação de professores nas universidades do país. Não se sugere aqui uma linha de raciocínio simplista de que o método de alfabetização é o único responsável por todos os problemas educacionais do país. Porém, no que tange ao domínio específico da aquisição da linguagem escrita, e com aporte em pesquisas e nas avaliações de desempenho nacionais e internacionais, é inevitável a conclusão de que a confluência 'Construtivismo-método global', endossada nos PCN's3, apenas está conduzindo as crianças brasileiras ao posto de incompetentes.

Se durante a última década a educação caminhou sem a parceria do conhecimento científico, algumas evidências mais recentes têm sugerido a possibilidade de um encontro entre as duas áreas. Exemplos disso são o Relatório Novos Caminhos da Alfabetização5,7, solicitado a especialistas nacionais e internacionais pela Câmara dos Deputados e a própria referência ao treino da consciência fonológica no relatório publicado pelo MEC, em 20096, intitulado "A criança de 6 anos, a linguagem escrita e o ensino fundamental de 9 anos". Além disso, em 2011, ocorreu na cidade de São Paulo o "Seminário Internacional de Alfabetização na Perspectiva da Psicologia Cognitiva", contando com importantes e influentes pesquisadores da área e representantes das Secretarias de Educação de alguns estados brasileiros.

A psicologia cognitiva tem muito a contribuir com a Educação e a Pedagogia. Que estas áreas possam dialogar e que a educação possa se beneficiar das evidências científicas estarão subordinados os próximos anos da educação fundamental brasileira.

 

REFERÊNCIAS

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Correspondência:
Alessandra Gotuzo Sebra
Av. Higienópolis, 846, apto 22
São Paulo, SP, Brasil - CEP 01238-000
E-mail: alessandragseabra@gmail.com

Artigo recebido: 18/5/2011
Aprovado: 30/7/2011

 

 

Trabalho realizado no Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, SP, Brasil.

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