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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.30 no.93 São Paulo  2013

 

ARTIGO ESPECIAL

 

Reflexões sobre inclusão: desamparo e compromisso ético

 

Reflections on inclusion: helplessness and ethical commitment

 

 

Leda Maria Codeço Barone

Psicanalista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Doutora em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP); Professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Educacional - Centro Universitário FIEO - UNIFIEO, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Sem negar a importância de se pensar na questão da inclusão e no provimento de ações capazes de atender às necessidades especiais dos indivíduos e grupos, o presente trabalho pretende refletir sobre o tema a partir do conceito de desamparo estrutural e do trabalho da cria humana para aceder à ordem da cultura. Tal consideração aponta para o perigo de medidas protetoras e paternalistas, que no lugar de orientarem-se em direção ao compromisso ético, reforçam a dependência, a submissão e a infantilização. Assim, o ponto vivo da reflexão do presente trabalho é trabalhar a ideia de que toda e qualquer ação de inclusão deve ter como horizonte a construção do rosto. Construção nascida dos embates entre desamparo estrutural e a Ananké orientará o homem em seu compromisso ético de inventar com trabalho e pena seu caminho na história humana.

Unitermos: Inclusão. Desamparo estrutural. Compromisso ético.


ABSTRACT

Without denying the importance of considering the issue of inclusion and provision of actions capable of meeting the special needs of individuals and groups, this article aims to reflect on the topic from the perspective of the concept of structural helplessness and the effort of the human infant to get into culture. This consideration points to the danger of paternalistic and protective measures, that differently from an ethical commitment, reinforce dependency, submissiveness and infantilization. Thus the most important point of this article is to discuss the idea that any action of inclusion should aim at the development of a face. The outcome of clashes between structural helplessness and Ananke guide us in one ethical commitment to create through labour and sorrow our own way in human history.

Key words: Inclusion. Structural helplessness. Ethical commitment. Face.


 

 

O rosto é minha história escrita à flor da pele.
Fabio Herrmann, 2001

 

 

I

Uma série de ações políticas tem sido incentivada pelo governo no sentido de promover a democratização de oportunidades do ensino nos diferentes níveis da educação. A ideia é atender as necessidades daqueles que sofrem qualquer tipo de exclusão, seja em decorrência da pobreza, da diferença de classe social ou de etnia ou mesmo em decorrência de deficiências física e mental. Tal ideia tem como resultado a valorização e o incremento de práticas inclusivas que, supostamente, possam garantir educação mais justa e igualitária para todos e, com isso, melhor inserção social.

A consideração desse esforço, no entanto, toca em pontos que merecem ampla discussão na medida em que, por um lado, parece negar a potência constitutiva da diferença que, por isso, precisa ser negada, escamoteada, ao mesmo tempo em que exalta uma ideia de normalidade confundida com certa homogeneização. Dessa maneira, incluir seria silenciar as diferenças e o diferente, uma vez que passa a ser significante de normalizar ou de tornar o outro meu semelhante, conforme aponta Cavallari1 no instigante trabalho O equívoco no discurso da inclusão: o funcionamento do conceito de diferença no depoimento de agentes educacionais.

Por outro lado, tal esforço não problematiza as diferentes facetas inerentes à inclusão, tais como: quem, onde, como e com que objetivo? Na análise que Cavallari faz, a autora salienta que há nesse discurso a ideia de domesticar verdades hegemônicas que se concretizam no discurso e nas ações político-educacionais.

As críticas apontadas por Cavallari, no estudo citado, são decorrentes da análise que fez do discurso, de agentes da educação, proferido por ocasião de um evento organizado para discussão do tema inclusão e diversidade, e a autora toma como ponto de partida para suas críticas a ideia - tão própria à psicanálise - de que todo discurso ou dizer é passível de equívoco se considerar que o sujeito da linguagem é marcado pela ideologia e pelo inconsciente.

Assim, Cavallari vai propor que as diferenças e a ingovernabilidade surgidas no espaço escolar devem ser acolhidas, caso se deseje atuar como agentes educacionais, quer dizer, atuar de forma a acolher a diferença e o diferente como elementos produtivos capazes de desconstruir saberes cristalizados e de reinventá-los.

 

II

Sem negar a importância de se pensar na questão da inclusão e no provimento de ações - não apenas no âmbito da educação - , capazes de atender às necessidades especiais dos indivíduos e grupos, gostaria de deslocar o foco de minhas reflexões para outro ponto, quer seja, o trabalho efetuado pela cria humana para aceder à ordem da cultura; considerar o avanço do princípio do prazer para o da realidade; o movimento sempre problemático e doloroso de inclusão na história humana, do qual outras inclusões - na família, na escola, no grupo de amigos e de trabalho, e na sociedade - são decorrentes.

Nascida em um estado de desamparo e impotência ímpar, a cria humana, se deixada à sua própria sorte, morre, pois lhe faltam os instrumentos de ancoragem ao mundo. "A criança, ao nascer, esbarra numa muralha de angústia, feita de poderosas, vertiginosas e explosivas excitações que lhe atravessam o corpo"2. E, diante disso, recua. E pelo narcisismo primário, fusão absoluta e imaginária ao organismo materno, a criança atualiza o fantasma de volta ao útero materno. Assim, no começo, a criança alucina a realidade e as experiências de satisfação, e as coloca sob a égide do princípio do prazer.

Mas essa negação da realidade vai até certo ponto. Se indispensável de início como defesa contra as agruras da realidade, é insuficiente para responder à força da realidade. Aos poucos, a criança se dá conta de que os objetos de cujos cuidados ela depende, têm vida própria, vão e voltam ao seu bel prazer, e que absolutamente transcendem sua capacidade de controle.

Começa, assim, a vigência do princípio da realidade que leva a criança a sair de sua posição de abastança narcísica para ir à busca do mundo e dos objetos dos quais necessita. Assim, observa Pellegrino2: "Se quero comer uma maçã, não basta sonhá-la, ou aluciná-la. Essa possibilidade, dirigida ao mundo externo, implica a aceitação do princípio da realidade: tenho que comprá-la, ou pedi-la, ou roubá-la da árvore da ciência do bem e do mal. De qualquer forma, tenho que assumir minha incompletude, a partir do meu desejo de comer maçã. Minha fome é estímulo para que eu, jungindo ao princípio da realidade, vá buscá-la, inventando com trabalho e pena, o caminho até ela".

No entanto, conforme observa Costa3, essa impotência e desamparo não é para o sujeito humano apenas um momento genético, mas um dado estrutural que Freud localiza "no início de cada vida individual, mas também em meio à cultura e à civilização, sob a espécie de Ananké. A Ananké, aliada de Eros na tarefa civilizatória, confronta o sujeito com uma tríplice vicissitude, marca do estado de impotência estrutural: 'A caducidade do corpo; a potência esmagadora da natureza; a ameaça proveniente das relações com os outros seres humanos".

A Ananké é uma espécie de educadora do desejo. Ela ensina ao prazer - por meio da dor e da frustração - os caminhos que deve trilhar. De certa maneira, ela acompanha a história do desejo - do autoerotismo ao amor objetal, forçando o desejo a ultrapassar os objetos arcaicos de satisfação do prazer do tipo narcisista; a renunciar os objetos proibidos do tipo incestuoso. Freud4 reconhece ainda que "Ao lado da necessidade, o amor é o grande educador, e o ser humano incompleto é levado, pelo amor dos que lhes são próximos, a respeitar os mandamentos da necessidade, poupando-se os castigos por sua infração".

Mas conforme nota Di Matteo5, a concepção de Ananké proposta por Freud não o conduz à resignação ou mesmo a uma revolta; pelo contrário, a Ananké ensina o caminho do engajamento ético. Para o autor, o fundamento da ética freudiana não deve ser procurado numa suposta capacidade original de discriminar o bem do mal. Sua origem reside no desamparo infantil e na dependência do ser humano, no medo da perda do amor da pessoa ou das pessoas de que se é dependente. Mesmo com essas limitações, Ananké e a condição de desamparo infantil frente a ela não servem como desculpa para o desespero ou para o descaso com a vida. Pois, como Di Matteo5 observa, são inúmeras as passagens do texto O mal-estar na cultura, em que Freud nos relembra o dever de não ficarmos paralisados frente ao sofrimento proveniente do mundo externo. Depreendemos dessas passagens que se não podemos afastar todo o sofrimento, podemos nos livrar de parte deles e mitigar outros.

A Ananké pode levar o homem a uma verdadeira sabedoria, integrando arte, ciência e ética para que o desamparo fundamental frente ao mundo seja vivido de forma menos dolorida se não puder ser de forma prazerosa e feliz. Leva o homem a se implicar e responsabiliza-se por seus atos.

Naturalmente que a consideração de tais ideias nos leva a refletir sobre o perigo de medidas protetoras e paternalistas que, no lugar de orientarem-se em direção ao compromisso ético, reforçam a dependência, a submissão e a infantilização, quando não o cinismo.

Na mesma linha de pensamento é o texto de Freud4 sobre as exceções. Nele, o autor reconhece que o trabalho psicanalítico sempre se defronta com a tarefa de convencer o doente a renunciar a obtenção fácil e imediata do desejo. Esclarece que não se trata de uma renúncia em geral, posto não se poder esperar isso de nenhum ser humano, mas de postergação do prazer. Trata de pedir "ao doente que renuncie apenas às satisfações que inevitavelmente terão consequências nocivas; ele deve apenas experimentar uma privação temporária, aprender a trocar a imediata obtenção de prazer por uma mais segura, ainda que adiada. Em outras palavras, espera-se que, sob a direção do médico, ele realize o avanço do princípio do prazer ao princípio da realidade, que diferencia o homem maduro da criança".

Prosseguindo, o autor observa que alguns indivíduos, se convidados a suportar algum sacrifício - mesmo que em vistas de conseguir um objetivo melhor no futuro - , ou se convidados a submeter-se a uma imposição comum a todos, se rebelam e se opõem utilizando um motivo especial. Eles argumentam que já sofreram demais e que, por isso, têm o direito de não se submeter a qualquer imposição desagradável, "pois são exceções e pretendem continuar a sê-lo".

Dando continuidade ao argumento, Freud4 vai fazer uso de um personagem, criado por Shakespeare, que reivindica de forma contundente sua condição de excepcionalidade. Trata-se da peça Ricardo III, em cujo monólogo inicial assim pronuncia Gloucester: Mas eu, que não fui talhado para habilidades esportivas, nem para cortejar um espelho amoroso; que, grosseiramente feito e sem a majestade do amor para pavonear-me diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu, privado dessa bela proporção, desprovido de todo encanto pela pérfida natureza; disforme, inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo dos vivos; terminado pela metade e isso tão imperfeitamente e fora de moda que os cães ladram para mim quando paro perto deles; [...]

E assim, já que não posso mostrar-me como amante, para entreter estes belos dias de galanteria, resolvi portar-me como vilão e odiar os frívolos prazeres deste tempo."

Freud4 vai dizer que do monólogo se pode extrair a seguinte ideia: "A natureza cometeu uma grave injustiça comigo, ao me negar as belas proporções que conquistam o amor humano. A vida me deve por isso uma reparação, que eu tratarei de conseguir. Eu tenho o direito de ser uma exceção, de não me importar com os escrúpulos que detêm os outros. Posso ser injusto, pois houve injustiça comigo".

No entanto, Freud4 vai reconhecer que o engenho do poeta acaba por nos levar à identificação com o personagem e a reconhecer que em escala menor, cada um de nós é como Ricardo III; que a ficção shakespeariana desvela de modo ampliado um aspecto comum a todos nós. Pois: "Todos nós cremos ter motivo para nos irritar com a natureza e o destino por desvantagens congênitas e infantis; todos exigimos reparação por antigos agravos ao nosso narcisismo, ao nosso amor próprio. Por que a natureza não nos deu os dourados cachos de cabelo de Balder ou a força de Siegfried, ou a excelsa fronte do gênio, ou os nobres traços de um aristocrata? Por que nascemos numa casa simples e não num palácio real? Ser belo e nobre seria tão bom para nós, quanto é para todos os que agora temos de invejar por isso".

Dessas colocações de Freud apreendemos que o sentimento de ser uma exceção é próprio do humano e expressa a dificuldade de assimilar os limites impostos ao narcisismo, ao desejo infantil de onipotência e de realização plena e imediata dos desejos. De suportar o longo e difícil trabalho de luto pela perda do lugar imaginário de onipotência infantil.

Para continuar meus argumentos vou considerar o trabalho de passagem do princípio do prazer para o da realidade, ou dito de outra forma, esse processo de humanização, de entrada na história humana, a partir da noção de rosto, proposta por Herrmann6.

 

III

A noção de rosto

O rosto, conforme concebe Herrmann6, é a forma que torna a nossa história pessoal, e a sua construção é tarefa para a vida inteira. O rosto, nessa concepção, é uma construção por meio da qual nos reconhecemos e nos sentimos reconhecido pelo outro. Não se trata, naturalmente, do rosto físico, fisionômico, mas de outra noção que Herrmann6 formula como uma dimensão de autoconhecimento posicionalmente colocada entre o inconsciente, inacessível ao conhecimento direto, e a superfície representacional, sempre conhecida, mas raramente reconhecida como sendo a forma do sujeito.

O rosto é esse algo que distingue fisionomicamente o sujeito, de modo que ele possa se reconhecer, no duplo sentido de distinguir e de sentir reconhecido por isso. E o reconhecimento do rosto - dessa forma total do desejo historicamente inscrito na vida - se revela para o sujeito sob o aspecto de outro rosto buscado.

No entanto, observa Herrmann6 que a essência do reconhecimento de si próprio pode ou não ser aceita pelo sujeito. E exemplificando, diz o autor: "No amor de uma mulher posso reconhecer-me; ou posso ambicionar possuir todas as mulheres, quem sabe também todos os homens".

A essa fúria do desejo indiscriminado de posse total do objeto e de negação da dimensão de reconhecimento, Herrmann6 nomeia império, doença do espírito, passível tanto no plano individual como no social. Diz o autor: "Se não aceito que se tenha esfumado minha autobastância, a posse integral da mãe sublime onde sou-me em sonho ou delírio, lanço-me ao mundo como sultão, querendo possuir tudo, fascinado pela miragem que afirma que sou tudo e que tudo é meu. Neste caso não tenho rosto, sou apetite de tudo". Mas, ao contrário, "terei de descobrir meu próprio rosto, que demarcará daqui por diante os contornos limitantes do que posso possuir. Em vida, construirei uma vida que me retrate entre meus iguais e não ambicionarei em demasia o ser alheio, seja eu homem ou reino", finaliza o autor.

O trabalho de humanização - e que às vezes também nos leva a procurar uma análise - possui os dois sentidos de reconhecimento apontados por Herrmann6: o de aceitação do rosto próprio e o de agradecimento pelo reconhecimento da diferença que permite ao sujeito ser entre os demais.

Assim, considero como o ponto vivo da reflexão que proponho nesse trabalho, o fazer trabalhar a ideia de que toda e qualquer ação de inclusão deve ter como horizonte a construção do rosto. Construção nascida dos embates entre desamparo estrutural e a Ananké orientará o homem em seu compromisso ético de inventar, com trabalho e pena, seu caminho na história humana.

 

REFERÊNCIAS

1. Cavallari JS. O equívoco no discurso da inclusão: o funcionamento do conceito de diferença no depoimento de agentes educacionais. RBLA. 2010;10(3):667-80.         [ Links ]

2. Pellegrino H. Édipo e a paixão. In: Novaes A, coord. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras; 1987. p.307-27.         [ Links ]

3. Costa JF. Narcisismo em tempos sombrios. In: Fernandes HR, org. Tempo e desejo. Sociologia e psicanálise. São Paulo: Brasiliense; 1988. p.109-36.         [ Links ]

4. Freud S. Alguns tipos de caráter encontrados na prática psicanalítica. In: Freud S. Obras completas. vol. 12. Trad. Souza PC. São Paulo: Companhia das Letras; 1916/2010. p.253-86.         [ Links ]

5. Di Matteo V. Ananké em o mal estar na civilização: desamparo e compromisso ético. Rev Perspectiva Filosófica. 1999;6(11).         [ Links ]

6. Herrmann F. A Rani de Chittor. In: Herrmann F. O divã a passeio. À procura da psicanálise onde não parece estar. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001. p.77-110.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: ledabarone@uol.com.br

Artigo recebido: 5/11/2013
Aprovado: 8/12/2013

 

 

Trabalho realizado no Centro Universitário FIEO - UNIFIEO, São Paulo, SP, Brasil.