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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.32 no.97 São Paulo  2015

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Educação para a sexualidade e prevenção da violência sexual na infância: concepções de professoras

 

Education for sexuality and prevention of sexual violence in childhood: teacher's conceptions

 

 

Raquel Baptista SpazianiI; Ana Cláudia Bortolozzi MaiaII

IDoutoranda do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus Araraquara, Araraquara, SP, Brasil
IIDocente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem, Universidade Estadual Paulista, Campus Bauru, Bauru, SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: O presente estudo teve como objetivo analisar a opinião de professoras sobre a educação para a sexualidade na infância, bem como sobre a prevenção da violência sexual infantil
MÉTODO: Participaram 16 professoras da Educação Infantil de uma cidade do interior paulista. Para a coleta de dados foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada elaborado pelas pesquisadoras sobre as formas de prevenção da violência sexual infantil na escola. Os relatos foram gravados em áudio e transcritos na íntegra para a análise de conteúdo
RESULTADOS: Os resultados deste trabalho revelaram que algumas professoras demonstraram acreditar na prevenção da violência sexual infantil por meio do diálogo sobre o assunto com a criança, porém apenas uma delas relacionou a educação para a sexualidade com a prevenção da violência sexual infantil. Outras professoras relataram que a prevenção deve ser feita com a família, por meio de palestras na escola. Por fim, houve professoras que relataram não ter certeza sobre a possibilidade de prevenção dessa modalidade de violência. Sobre as concepções das professoras a respeito da educação para a sexualidade na Educação Infantil, muitas revelaram compreender esse trabalho como necessário, enquanto outras demonstraram acreditar que as crianças são pequenas demais para se abordar o assunto em sala de aula
CONCLUSÕES: Faz-se necessária a inserção desses temas na formação inicial e continuada dos/as professores/as, para que se reconheçam como protagonistas na prevenção da violência sexual infantil

Unitermos: Educação Sexual. Prevenção. Violência sexual. Docentes. Abuso Sexual na Infância.


SUMMARY

OBJECTIVE: The present study aimed to analyze the view of teachers about education for sexuality in childhood and about the prevention of child sexual violence
METHOD: Participated 16 teachers from kindergarten to a city in the interior. For data collection we used a semi-structured interview guide developed by the researchers about ways to prevent child sexual violence in the school. The reports were audio-recorded and transcribed for content analysis
RESULTS: The results of this study revealed that some teachers showed believe in the prevention of child sexual violence through dialogue on the subject with the child, however only one of them related to sexuality education to the prevention of child sexual violence. Other teachers reported that prevention should be done with the family, through lectures at school. Finally, there were teachers who reported no certainty about the possibility of preventing this type of violence. On the conceptions of the teachers regarding sexuality education in kindergarten, many revealed understand this work as necessary, while others showed believe that children are too small to address the issue in the classroom
CONCLUSIONS: It is concluded that it is necessary to implement training courses for teachers those on the subject, recognizing professionals such as actors in preventing child sexual violence

Key words: Sex Education. Prevention. Sexual violence. Faculty. Child Abuse, Sexual.


 

 

INTRODUÇÃO

A violência sexual infantil é definida como os atos ou jogos sexuais em que uma criança é submetida a participar por alguém que possui desenvolvimento psicossexual mais adiantado do que o seu, utilizando-se de uma relação de poder para satisfazer seus próprios desejos em detrimento ao bem estar da criança vitimizada1-3.

Frequentemente, essa modalidade de violência ocorre dentro do âmbito familiar, fazendo com os laços de dependência e afetividade entre os familiares dificultem o rompimento do segredo estabelecido entre o/a perpetrador/a da violência e a criança, na medida em que a vítima pode experimentar sentimentos de culpa, medo e/ou dificuldades de verbalizar e entender a violência que sofre1,2,4.

De acordo com diversos/as autores/as2,4-6, visto que grande parte da rotina infantil se passa na escola, esse ambiente se configura como um local privilegiado para a detecção precoce da violência sexual infantil, bem como para a prevenção dessa modalidade de violência, por meio da educação para a sexualidade.

Isso porque a sexualidade infantil se expressa no contexto escolar, por meio de brincadeiras, jogos, autoerotismo e conversas sobre o tema, bem como as crianças vítimas de violência sexual manifestam diversos indicadores em sala de aula. Entretanto, a depender da formação do/a professor/a sobre tais assuntos - ou a ausência desta - essas expressões da sexualidade infantil não são objetos de atenção e reflexão, sendo essas questões omitidas das crianças7.

Considerando que muitos adultos compreendem a criança como assexuada e inocente, negar informações ou esclarecimentos a respeito da sexualidade humana devido ao temor de "estimular" a sua sexualidade torna-se comum, visto que, para muitas/os professores/as, o simples diálogo sobre o tema aguçaria a curiosidade da criança ou a levaria a antecipar a sua vida sexual7-9.

Entretanto, os saberes transmitidos na escola vão além dos conteúdos formais, abarcando a produção de sujeitos de acordo com as normas estabelecidas social e culturalmente8,9. Desse modo, a escola educa sexualmente as crianças, mesmo de forma não intencional, sendo importante que os/as professores/as reconheçam sua participação na educação para a sexualidade infantil.

O discurso que tem como pressuposto que a criança é inocente, assexuada e imatura para falar sobre sexualidade acaba por dificultar o diálogo das/os professoras/es com as crianças, sob o pretexto de que elas não têm nada a dizer, ouvir ou saber sobre o assunto, justificando, assim, a omissão dessas/es profissionais em assumir a educação para a sexualidade na infância9,10.

Dessa maneira, a educação para a sexualidade no contexto escolar visa dar voz às crianças, problematizando as relações de poder e de gênero, sanando as suas curiosidades sobre a sexualidade humana, bem como questionando a utilização da infância como alvo e objeto de consumo - como nas diversas propagandas em que a criança é colocada como um corpo erotizado a ser consumido4.

No que diz respeito à violência sexual, considerando que existe o componente sexual nessa modalidade de violência, preveni-la envolve educar para a sexualidade, fazendo com que a criança, desde pequena, saiba discernir um ato de violência, assim como a se autoproteger, garantindo o seu direito de dizer "não" às investidas sexuais do/a perpetrador/a, bem como revelando o segredo solicitado a alguém de sua confiança2,3,5.

Isso pode ser feito por meio da leitura de livros infantis sobre a prevenção da violência sexual ou, até mesmo, por meio da apresentação de filmes, teatros ou dramatizações sobre o tema2,5. Tais habilidades de autoproteção não delegam à criança a responsabilidade por não ser vítima de violência - essa responsabilidade é sempre do adulto - mas garantem o direito infantil à informação.

Estudos demonstram que a compreensão sobre a sexualidade infantil e o conhecimento sobre a violência sexual contra a criança pelos/as professores/as são fortes indicadores de proteção e cuidado em favor da criança2,3,5,10. Da mesma maneira, existem estudos que revelam que crianças bem informadas sobre tais temas são menos vulneráveis do que as crianças desinformadas, na medida em que estas podem ser mais facilmente coagidas a manter o segredo sobre a violência2,11,12.

Em uma pesquisa realizada por Lamour11 com homens agressores sexuais, pôde perceber-se que estes se sentiam capazes de identificar crianças mais desinformadas, bem como de se aproveitarem de tal falta de informação para torná-las suas vítimas. A autora revelou, também, que a coerção foi um fato inerente à violência sexual, assim como os agressores desenvolveram estratégias de sedução, a fim de dessensibilizar a criança aos contatos sexuais, progredindo os contatos não sexuais em direção aos órgãos genitais.

Já Schmickler12 desenvolveu uma pesquisa realizada nos Estados Unidos com agressores sexuais, em que eles relataram o interesse por crianças familiares, procurando crianças "vulneráveis", sendo seus critérios para tal: a idade menor do que sete anos, crianças mais carentes, submissas e amigáveis com adultos, o que dificultaria a denúncia da violência sexual para alguém próximo.

A partir desses dados, salienta-se a necessidade de informar as crianças sobre o tema, já que, de acordo com Brino & Williams2, "o abuso sexual pode ser prevenido se as crianças forem capazes de reconhecer o comportamento inapropriado do adulto, reagir rapidamente, deixar a situação e relatar para alguém o ocorrido".

Contudo, a orientação e o esclarecimento sobre a violência sexual infantil será eficiente se houver diálogo aberto sobre sexualidade entre a criança e o/a professor/a de modo que ela se sinta confortável em relatar possíveis ameaças de violência sexual, bem como tirar as suas dúvidas a respeito do tema4,13.

Para isso, é preciso que os/as professores/as tenham a formação necessária sobre o tema na graduação e em cursos de formação continuada, na medida em que precisam estar informados/as sobre o tema, desenvolver habilidades para lidar com o assunto em sala de aula, assim como ter o conhecimento sobre os procedimentos adequados em caso de identificação de violência sexual infantil5,6,10.

Em uma pesquisa realizada por Sánchez14, foi analisada a compreensão de professores/as da Educação Infantil, na Espanha, sobre a violência sexual infantil. Em seu estudo, percebeu que a maior parte dos professores/as entrevistados/as achava que essa violência não era frequente como se mostra a realidade, bem como a compreendiam enquanto um problema da atualidade. Contudo, todos/as os/as professores/as demonstraram compreender a necessidade da denúncia da violência sexual infantil e a maior parte relatou ser esta a forma de prevenir a repetição da violência contra a criança.

Em um estudo realizado por Brino & Williams15, foram investigadas as concepções de professoras da Educação Infantil acerca dos aspectos que envolvem a violência sexual. Como resultado, puderam perceber que as educadoras possuíam informações insuficientes sobre o tema, devido a uma lacuna em sua formação inicial. Pôde-se perceber, também, que apesar de todas afirmarem ser necessário tomar providências diante de casos de violência sexual infantil, apenas algumas a denunciariam.

Já Miranda & Yunes16 investigaram com professoras do Ensino Fundamental as suas concepções sobre a violência sexual infantil. Nesse estudo, as autoras puderam observar o desconhecimento do tema por parte das professoras, que relataram alguns casos de violência sexual detectados na escola. Questionadas sobre os indicadores dessa violência, as professoras disseram perceber mudanças no comportamento das crianças, como dificuldades de aprendizagem, agressividade, medo e dificuldades de relacionamento. Já as famílias destas foram caracterizadas de maneira estereotipada, com características como "desestruturadas" e "perdidas".

Segundo Brino & Williams2, "é importante a capacitação de profissionais em programas de prevenção do abuso sexual, habilitando-os/as a detectar e avaliar casos adequadamente, sendo essa uma etapa fundamental das metodologias gerais nos trabalhos de prevenção".

Dessa maneira, compreende-se a importância da prevenção da violência sexual infantil enquanto um trabalho a ser inserido dentro de um contexto no qual a escola atua com a educação para a sexualidade, ensinando não apenas a criança a se proteger, mas principalmente a questionar as relações sociais de poder. Mas o que pensam os/as professores/as sobre a sexualidade infantil? Como compreendem a educação sexual para crianças e seu papel como educadores/as? Esses/as profissionais relacionam a educação para sexualidade com a prevenção da violência sexual infantil?

A fim de compreender essas questões, o presente estudo teve como objetivo analisar a opinião de professoras sobre a educação para a sexualidade na infância, bem como sobre a prevenção da violência sexual infantil.

 

MÉTODO

Esta pesquisa constitui-se em um estudo qualitativo-descritivo17-19. Para a sua realização, participaram 16 professoras da Educação Infantil de uma cidade do interior paulista, com idade variando entre 28 a 56 anos. Tais participantes atuavam entre 3 a 28 anos na profissão, todas com sala de aula sob a sua responsabilidade - com exceção de uma professora que relatou trabalhar com Ensino Especial, não tendo uma sala de aula com crianças regulares.

Todos os procedimentos éticos em pesquisa com seres humanos foram respeitados. Esta pesquisa foi aprovada por um Comitê de Ética de uma universidade pública, respeitando a Regulamentação do CONEP, 196/96. (Parecer favorável n.1485/46/01/11). Além disso, as professoras participantes assinaram o termo de consentimento informado autorizando sua participação de modo voluntário.

Para a coleta de dados foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada elaborado pelas pesquisadoras - testado em sua finalidade em uma situação piloto - contendo dados pessoais e profissionais, bem como questões abertas sobre a temática estudada. Assim, as questões norteadoras diziam respeito às formas de prevenção da violência sexual infantil na escola: a) possibilidade de prevenção; b) maneiras de prevenir em sala de aula; c) educação para a sexualidade na Educação Infantil; d) educação para a sexualidade enquanto maneira de prevenir a violência sexual infantil.

Os relatos foram gravados em áudio, assim como transcritos na íntegra. A análise de dados ocorreu por meio da análise de conteúdo proposta por Bardin20. Assim, embora as categorias temáticas tenham sido previstas na elaboração do roteiro de entrevista, as mesmas foram organizadas a partir dos relatos obtidos, seguindo os passos: leitura flutuante, análise exaustiva do material, configuração temática, organização de categorias mutuamente exclusivas e análise interpretativa.

A fim de preservar as identidades das professoras, as participantes serão identificadas com a letra maiúscula P, seguida de números arábicos. O critério da numeração das participantes foi a ordem da realização das entrevistas, sendo a P1 a primeira a ser entrevistada e assim por diante.

 

RESULTADOS

1. Percepções sobre a possibilidade e as maneiras de prevenir a violência sexual infantil

1.1 Diálogo com as crianças sobre o tema enquanto forma de prevenção

As participantes relataram a incerteza sobre a possibilidade de prevenir a violência sexual infantil, porém, independente dessa percepção, demonstraram acreditar na importância de dialogar com a criança sobre o tema. Os assuntos eleitos como importantes seriam: cuidados com o corpo, não deixar estranhos tocá-las, o respeito com o corpo de outras crianças, etc.

Para essas professoras, a prevenção seria saber com quem a criança está, ensiná-las a não confiar em pessoas desconhecidas, assim como a contar-lhes caso fossem vítimas de violência sexual.

Uma participante demonstrou acreditar que a proximidade com a criança pode não necessariamente prevenir a violência sexual, porém ser um modo de acabar com esta mais rapidamente, caso ocorra. Enquanto outra se mostrou em dúvida sobre como orientar a criança, visto que a maior parte dos/as agressores/as sexuais é membro da família da vítima.

De acordo com seus relatos:

"(...) quando eu estou trabalhando corpo, partes do corpo, a importância do corpo, eu sempre falo que ninguém pode tá tocando o nosso corpo, que a gente tem que... quando uma pessoa diferente vai dar banho em você, que você não deve tocar, tem que respeitar o corpo do amigo. Agora prevenção... não sei se eu posso prevenir o abuso" (P1).

"Prevenir? Só com a conscientização, né, assim, não dá pra poupar, é difícil prevenir, porque, às vezes, você conscientiza a criança, mas às vezes é uma pessoa tão próxima dela (...). O que você pode alertar é não conversar com estranho, não aceitar proposta de estranho, né, mas muitas vezes a criança vai ser abusada pela família" (P5).

"Talvez, eu não sei se é possível prevenir, eu não sei, porque a gente tem essa, eu acho que alguma coisa a gente tem que tentar fazer. Agora se consegue prevenir, eu acho que é difícil, porque você não tem como falar com uma criança, você pode alertar algumas coisas, 'olha, cuidado, nem todo mundo é bom, às vezes aquele parece tão bom', porque o abuso sexual, geralmente, é dentro da família, né, então como pode falar pra uma pessoa que não pode confiar na família? É difícil, complicado" (P8).

1.2 Diálogo com as famílias sobre o tema enquanto forma de prevenção

Houve participantes que demonstraram compreender que é possível prevenir a violência sexual infantil por meio de um trabalho na escola a ser realizado com a família. De acordo com elas, esse trabalho seria o de orientar as famílias sobre o tema, a partir de palestras realizadas na escola. Os assuntos eleitos como importantes foram: importância de cuidar da criança, as consequências da violência sexual, atenção em ouvir a criança e acreditar em seus relatos, etc.

Segundo uma professora, tal trabalho não deveria se nortear apenas no campo da educação, sendo importante também haver uma fundamentação religiosa e espiritual. Abaixo, os relatos:

"Conversar com os pais, tá divulgando imagens, informações, passando realmente todo um trabalho que pode ser feito pra prevenção disso, eu acho que o trabalho com a comunidade é interessante" (P10).

"(...) até daria pra fazer um trabalho mais educativo, que só um trabalho educativo não resolve, também tem que ter uma fundamentação religiosa, espiritual (...) também na escola dá pra trazer palestrante pra discutir o assunto, porque se você abre isso pra escola, os pais participam, é o momento de se refletir a respeito" (P12).

"(...) é um fator a longo prazo, seja inserido nas escolas a forma de reagir também, educar os alunos a se prevenir, a contar, a não se calar, seria mais no campo educacional e de orientação com as famílias" (P16).

1.3 Incertezas sobre a possibilidade de prevenção

Algumas professoras demonstraram não acreditar ou terem dúvidas sobre a possibilidade de prevenir a violência sexual infantil. Isso porque, de acordo com elas, a criança seria imatura e inocente, não devendo abordar tal assunto com elas. Segundo uma professora, existem crianças muito pequenas que já apresentam indícios de problemas, compreendendo que a prevenção da violência sexual seria a mudança de valores sociais e familiares.

Como mostram os relatos abaixo:

"Não. (...) depende muito da família, dos valores da família, a gente percebe que tem criança desestruturada desde os dois anos de idade, sabe, que se não pegar firma, porque a gente faz reunião com pais e a gente vê que eles estão descompromissados (...) se não tiver uma reviravolta nisso daí, pra voltar nos tempos antigos de família-família, escola-escola, a coisa está se complicando (...) tá muito difícil de segurar isso" (P6).

"Acho que não, né. Porque isso aí é uma coisa que você nunca sabe quando vai acontecer (...) acho que eles não tem muita noção pra conversar esse assunto, ainda são imaturos, inocentes [crianças de três anos de idade]" (P14).

 

2 Concepções sobre a educação para a sexualidade na Educação Infantil

2.1 Trabalho importante já na Educação Infantil

Segundo algumas professoras, a educação para a sexualidade na infância seria um trabalho importante para esclarecer as diversas curiosidades das crianças, assim como não criar tabus em relação à sexualidade. Este trabalho foi descrito, em sua maior parte, como um esclarecimento sobre o corpo humano e suas funções, perpassando a diferença entre os sexos e a autoestima.

De acordo com algumas professoras, a educação para a sexualidade para crianças teria como objetivo desmistificar conceitos errôneos sobre o tema, assim como cumprir uma função da família no diálogo sobre sexualidade, já que esta não tem tempo para tal. Contudo, uma professora salientou que, apesar de favorável, não possui formação para realizar esse trabalho, na medida em que a sua história pessoal sobre o tema foi baseada no silêncio e na omissão de sua família.

Exemplos de relatos são:

"Eu acho muito importante, desde o começo, que aqui as crianças vão se descobrindo (...). Acho que pra dar uma orientação, é... assim, porque a criança se descobre, né, descobre o corpo, vai se autodescobrindo, então pra ela, que aquilo não cria um tabu nela, que não seja uma coisa proibida dela fazer" (P3).

"Eu acredito que um trabalho voltado para ensinar, tirar a curiosidade deles, é importante" (P5).

"Eu acho que se for com um material bom, de uma forma clara, eu acho que é interessante, entendeu, porque a criança é curiosa, né, ela tem as curiosidades dela, e fica aquela coisa meio escondida (...) talvez até pra criança mesmo conhecer o próprio corpo" (P15).

2.2 Trabalho que não deve ser realizado com crianças

De acordo com algumas professoras, não seria adequado abordar questões relativas à sexualidade com crianças pequenas, já que tais conversas poderiam erotizá-las precocemente, bem como acabar com a ingenuidade delas. Segundo elas, a educação para a sexualidade na infância poderia fazer com que a criança deixasse a sua infantilidade ao aprender sobre sexualidade.

Para uma participante, é necessário responder somente as perguntas pontuais das crianças, não havendo necessidade de se criar um espaço na aula, ou no currículo, para o diálogo sobre sexualidade.

Isso pode ser observado nos seguintes relatos:

"Eu acho que eu não sei, eu ajo com as minhas crianças, e até com os meus filhos, eu agi assim, no sentido de tá respondendo apenas o que eles perguntam, de repente você ter uma aula formal, você ter dentro do currículo, da sua grade, uma hora específica pra você tá abordando esse assunto, não sei (...). De repente no Fundamental, que eles são mais velhos ou no Ensino Médio, mas na Educação Infantil, não sei" (P1).

"Ah... eu não sei até que ponto é bom contar pros menorzinhos, porque isso acabaria com a inocência deles" (P7).

"(...) acho que a criança tem que, tem que ser criança, né, eles estão antecipando muito as coisas, por conta dos adultos que não foram bem criados, agora vão continuar sem criar bem as crianças, eu acho que não, não é por aí" (P8).

"Na Educação Infantil eu não vejo necessidade, porque eles são muito inocentes, eu acho que se não for um excelente profissional, com muita experiência com Educação Infantil, talvez acelere o processo" (P16).

2.3 Maneira de prevenir a violência sexual infantil

Apenas uma professora relacionou a educação para a sexualidade com, também, a prevenção da violência sexual infantil. Segundo essa participante, há a compreensão de que quanto mais bem informada a criança, mais fácil será para ela identificar e relatar uma possível situação de violência sexual.

"Eu acho interessante, primeiro porque a criança precisa verdadeiramente conhecer o corpo (...) até pra ela chegar no momento e falar assim 'ó, tal pessoa tá colocando a mão no meu pênis'" (P4).

 

DISCUSSÃO

A educação para a sexualidade na Educação Infantil se configura como uma fonte de cuidado e proteção à criança, na medida em que a trata como sujeito de direitos, começando pelo direito à informação. Dessa maneira, a educação para a sexualidade visa a atingir os seguintes propósitos: respeitar e orientar as crianças sobre as expressões da sexualidade que surgem na infância; sanar as suas curiosidades sobre o tema; refletir sobre as questões de gênero, bem como educar para o respeito à diversidade; promover a autonomia e o empoderamento sobre o próprio corpo; prevenir a violência sexual infantil7-9.

Indo ao encontro de tais objetivos, algumas professoras relataram compreender como importante o diálogo sobre a sexualidade já na infância, sendo os aspectos priorizados tais quais: a informação sobre o corpo e as suas funções, as diferenças entre os sexos, a autoestima, etc. Dessa maneira, compreende-se como importante a atenção dessas professoras sobre a sexualidade na infância e, principalmente, sobre o papel da escola diante das expressões da sexualidade infantil e da reflexão sobre o tema, embora elas não tenham relacionado a educação para a sexualidade à prevenção da violência sexual infantil.

Apenas uma professora relacionou este trabalho com a prevenção da violência sexual. Isso pode ser analisado pelo fato de que assuntos como sexualidade e violência sexual não são comumente abordados na formação inicial ou em cursos de formação continuada, fazendo com que a atuação dos/as professores/as em torno desses temas seja por meio do bom senso e de seus valores pessoais, e não a partir de um conhecimento sistematizado no qual se pode pensar a prevenção por meio da educação para a sexualidade.

No que diz respeito ao rompimento do segredo sobre a violência sexual que vem sofrendo, uma professora demonstrou acreditar que a sua proximidade com a criança vitimizada favoreceria a revelação desse segredo, na medida em que ela se colocaria como uma pessoa de confiança da criança.

Essa percepção é compartilhada por diversos/as autores/as, que acreditam que a orientação sobre a violência sexual é mais eficiente quando o/a professor/a se mostra acessível à criança, tanto para esclarecer as suas dúvidas, como para que ela se sinta confortável em relatar possíveis ameaças3,6,13,15,16.

Algumas professoras, ainda que não tenham nomeado o esclarecimento sobre a violência sexual como um trabalho de educação para a sexualidade, relataram compreender que o diálogo com a criança sobre a violência sexual poderia se configurar como uma fonte de prevenção. Entretanto, esse diálogo seria em torno de orientar as crianças a não se envolverem com estranhos.

Diferente do que essas professoras demonstraram compreender como a informação mais relevante a ser ensinada para a criança, a literatura revela que a maior parte dos/as perpetradores/as da violência sexual infantil são pessoas em que a criança confia e ama, e muito raramente estranhos/as. Tendo isso em vista, é preciso ensinar as crianças a se protegerem de abordagens coativas feitas por pessoas desconhecidas ou não2,3,5,15.

Qualquer esclarecimento sobre sexualidade e violência sexual feito para as crianças é importante no contexto da educação para a sexualidade, mas as autoras Landini4 e Xavier Filha et al.6 argumentam que se deve ampliar a discussão, indo além dos cuidados com o corpo, problematizando as questões de gênero, bem como as relações de poder que criam modelos de normalidade já na infância, assim como produzem perpetradores/as de violência.

Isso porque, frequentemente, a criança é colocada pela mídia como objeto de desejo a ser consumido, fazendo com que se torne alvo de erotização. No que diz respeito à questão de gênero presente na violência sexual infantil, os dados revelam que o perpetrador dessa violência é, na maior parte dos casos, o homem, enquanto as vítimas são meninas. O que pode ser relacionado a esse fenômeno é a educação sexista já na infância, na medida em que o menino é educado para a agressividade e o poder, enquanto a menina para a docilidade e a submissão1,4,6,13.

Apesar da necessidade de incluir a educação para a sexualidade no currículo escolar, há, muitas vezes, professores/as que se sentem receosos/as e/ou despreparados/as para trabalhar o assunto em sala de aula, como mostrou os estudos de Sánchez14, Brino & Williams15 e Miranda & Yunes16. Isso pôde ser percebido no relato de uma professora que, embora favorável ao diálogo sobre a sexualidade com crianças, salientou não ter formação suficiente para discutir o tema em sala de aula, na medida em que a sua própria educação foi baseada no controle e na omissão de informações por parte da sua família.

Esse relato é interessante para a compreensão de que o silêncio também educa para a sexualidade, porém reforçando o tabu e a repressão em torno do tema. Para ela, a sua história de educação sobre a sexualidade deixou-a insegura para dialogar sobre o assunto com as crianças, revelando um aspecto importante na formação de educadores/as sobre a sexualidade e a violência sexual: é preciso considerar e refletir sobre a própria história do/a professor/a.

Outro fator que está relacionado a alguns/as professores/as se sentirem inseguros/as em dialogar com crianças sobre questões relativas à sexualidade, é a compreensão errônea de que a criança é inocente e assexuada, devendo ser poupada de assuntos complexos como a violência ou temas que possam "erotizá-las precocemente"7,9.

Isso pôde ser observado nas professoras que relataram não serem a favor da educação para a sexualidade na Educação Infantil, por compreender que esse assunto não diz respeito às crianças, assim como nas professoras que relataram não acreditar na possibilidade de prevenir a violência sexual infantil devido ao fato da criança ser muito pequena para abordar tal assunto.

Entretanto, ao contrário de tais convicções, a literatura demonstra que crianças bem informadas e esclarecidas sobre a sexualidade estão mais protegidas de situações de violência sexual, na medida em que a ingenuidade e a desinformação alimentam uma condição de vulnerabilidade, fazendo com que sejam alvos de interesse pelos/as perpetradores/as dessa violência2,3,5,11,12.

De acordo com algumas professoras, a prevenção da violência sexual infantil se daria na realização de um projeto a ser realizado com a família, por meio da escola. Isso, com a apresentação de palestras sobre a violência sexual e as suas consequências.

Este trabalho em conjunto com a família é de extrema importância, pois torna a escola um ambiente em favor da criança, na medida em que fortalece o vínculo de confiança com os pais e as mães, que acabam por compreender a escola como um local para sanar as suas dúvidas sobre o desenvolvimento infantil, facilitando o trabalho de prevenção da violência sexual contra a criança5,15. Contudo, o trabalho apenas com adultos, e não diretamente com as crianças, também pode sugerir uma dificuldade dessas professoras em assumir a educação para a sexualidade na escola, evitando conversar sobre o assunto em sala de aula.

Por fim, ficou clara a necessidade de formação de professores/as sobre a sexualidade infantil e a violência sexual na infância, pois tais assuntos certamente surgirão no cotidiano escolar, seja por meio de situações reais, como em dúvidas e diálogos das crianças, sendo papel da escola promover o desenvolvimento infantil, para além dos conteúdos formais2,6,10,15,16.

 

CONCLUSÕES

Tendo em vista a possibilidade da prevenção da violência sexual infantil, defendemos que a educação para a sexualidade deve ser realizada já na Educação Infantil, com o intuito de promover a reflexão com as crianças sobre a sexualidade, corpo e gênero, ensinando-as a questionar os valores hegemônicos sobre sexualidade transmitidos pelas mídias e pelas diversas instituições.

É a partir da educação normativa e não reflexiva que se se constrói uma hierarquia na relação de poder, onde o homem é educado para dominar os demais, a mulher para obedecê-lo e a criança para ser submissa a ambos, por serem adultos. Dessa maneira, a violência sexual infantil se torna um reflexo dessa educação, na qual as categorias de gênero e geração apresentam níveis de poder. A fim de desconstruir tais padrões, a educação para a sexualidade pode vir a educar a criança a não reproduzir tais valores ao longo do seu desenvolvimento.

É preciso deixar claro que a educação para a sexualidade, enquanto um trabalho de prevenção da violência sexual infantil, não tem a intenção de delegar à criança a responsabilidade de se proteger - visto que o/a culpado/a é sempre o adulto, que utilizou de seu poder para coagir a criança - porém as crianças desinformadas sobre sexualidade são as vítimas mais frequentes dos/as perpetradores/as. Dessa maneira, o intuito da educação para a sexualidade nesse aspecto, é esclarecer que a violência sexual infantil existe, e que o segredo solicitado pelo/a perpetrador/a não deve ser mantido, bem como de descontruir os valores sexistas que acabam por também gerar essa violência.

Diante do presente estudo, fica a questão de como as políticas públicas de enfrentamento da violência sexual infantil estão sendo implementadas, visto que há o documento Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, sendo um de seus tópicos a formação de educadores/as sobre o tema. Outro aspecto dessa política pública é a veiculação de campanhas preventivas pelas diversas mídias, que gera o questionamento sobre a maneira que essas campanhas estão informando e atingindo o público-alvo, visto que as professoras desse estudo, com a exceção de uma, demonstraram não fazer uma relação direta entre o diálogo com a criança e a prevenção dessa modalidade de violência, assim como existem estudos que revelam que os/as professores/as se sentem receosos/as em conversar com a criança sobre o assunto.

Conclui-se que é preciso implementar o conteúdo da sexualidade humana e gênero na formação dos/as educadores/as, uma vez que essas questões irão, muito provavelmente, fazer parte do cotidiano escolar desses/as profissionais, bem como poderão auxiliar na prevenção da violência sexual infantil.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Raquel Baptista Spaziani
Rua Dom Pedro II, 2411 - apto 21 - Piracicaba
SP, Brasil - CEP 13419-210
E-mail: raquelspaziani@outlook.com

Artigo recebido: 15/1/2015
Aprovado: 11/3/2015

 

 

Trabalho realizado na Universidade Estadual Paulista, Campus Bauru, Bauru, SP, Brasil.

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