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Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.37 no.114 São Paulo set./dez. 2020
https://doi.org/10.51207/2179-4057.20200029
ARTIGO DE REVISÃO
Teoria histórico-cultural - contribuições para a prática psicopedagógica
The historical-cultural theory - Contributions to the psychopedagogical practices
Janaína Farias de MeloI; Galeara Matos de França SilvaII; Zulmira Áurea da Cruz BomfimIII; Isabelle Cerqueira SousaIV; Lindolfo Ramalho Farias JúniorV
IUniversidade Federal do Ceará (UFC); Mestra em Psicologia - UFC; Doutoranda em Psicologia - UFC; Professora de Psicologia - Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil
IIPedagoga - Universidade Estadual do Ceará (UECE); Mestra em Educação Especial - UECE; Professora de Psicopedagogia -Unichristus, Fortaleza, CE, Brasil
IIIPsicóloga - Universidade Federal do Ceará (UFC); Doutora em Psicologia Social - Pontifícia Universidade Católica (PUC); Professora do curso de Psicologia da UFC, Fortaleza, CE, Brasil
IVTerapeuta Ocupacional - Universidade de Fortaleza (UNIFOR); Mestra em Educação Especial - Universidade Estadual do Ceará (UECE); Doutoranda em Saúde Coletiva - UNIFOR; Professora de Psicopedagogia -Unichristus, Fortaleza, CE, Brasil
VMestre em Linguística Aplicada - Universidade Estadual do Ceará (UECE); Doutorando em Educação - UECE; Professor de Psicopedagogia - Unichristus, Fortaleza, CE, Brasil
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo principal compreender como a Teoria Histórico-Cultural pode contribuir para as práticas e intervenções no campo da Psicopedagogia. Para isto, tem-se como objetivos específicos: Discorrer sobre a Psicologia Histórico-Cultural e seus principais conceitos; relacionar os conceitos de aprendizagem e desenvolvimento em Vygotsky com a Prática Psicopedagógica. Parte-se do pressuposto de que toda prática deve ser orientada por um viés teórico e metodológico, visando coerência. Assim, será discutido brevemente como os conceitos fundamentais da teoria podem ser aplicados nas práticas da Psicopedagogia e como a Teoria Histórico-Cultural vê o papel do psicopedagogo e de suas intervenções. A metodologia utilizada foi de natureza qualitativa, consistindo em uma articulação teórica entre os principais conceitos da Teoria Histórico-Cultural com as práticas em Psicopedagogia, bem como com os conceitos de desenvolvimento e aprendizagem. Conclui-se que a Teoria Histórico-Cultural contribui consideravelmente nos estudos sobre desenvolvimento e aprendizagem, bem como na visão e atuação da Psicopedagogia. Para além disso, a aplicação prática de seus conceitos pode nortear a prática do psicopedagogo, seja em métodos de análise do sujeito aprendente, ou de intervenção. O psicopedagogo e os recursos diversos que utiliza funcionam como mediadores entre o aprendente e o conhecimento, auxiliando na promoção da Zona de Desenvolvimento Proximal, que visa o processo de autonomia do aprendente.
Unitermos: Teoria Histórico-Cultural. Psicopedagogia. Desenvolvimento. Aprendizagem.
SUMMARY
This article's main objective is to understand how the Historical-Cultural Theory can contribute for the practices and interventions in the field of Psychopedagogy. To accomplish this, the specific objectives are: To talk about Historical-Cultural Psychology and its main concepts; relate the concepts of learning and development in Vygotsky with the psychopedagogical practice. It assumes that every practice must be guided by a theoretical and methodological bias, aiming at coherence. That way, it will be briefly discussed how the fundamental concepts of the theory can be applied on Psychopedagogy practice, and how the Historical-Cultural Theory sees the role of the psychopedagogists and their interventions. The methodology used was of qualitative nature, consisting of a theoretical articulation between the main concepts of Historical-Cultural Theory with the practices in Psychopedagogy, as well as with the concepts of development and learning. It is concluded that the Historical-Cultural Theory contributes considerably to the studies on development and learning, as well as in the vision and performance of the Psychopedagogy. Beyond that, the practical application of its concepts can guide the practice of the psychopedagogue, whether in methods of analysis of the learning subject, or of intervention. The psychopedagogue, as well as the diverse resources it uses, function as a mediator between the learner and the knowledge, helping to promote the Proximal Development Zone, which aims at the learner's autonomy process.
Keywords: Historical-Cultural Theory. Psychopedagogy. Development. Learning.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como finalidade discutir sobre os principais conceitos da Teoria Histórico-Cultural, relacionando-os com as práticas realizadas na área de Psicopedagogia. No caso da teoria aqui estudada, esta foi desenvolvida por Lev Vygotsky, que compreende o ser humano como um ser histórico e cultural, que se desenvolve por meio da interação com a cultura, sendo ao mesmo tempo modificado pelo meio e o modificando1.
A teoria de Vygotsky propõe concepções diferentes de desenvolvimento e aprendizagem de outras matrizes epistemológicas, como as de Piaget, Wallon ou Freud, por exemplo. Nas práticas psicopedagógicas no Brasil, Piaget é bastante utilizado, assim como teorias de base psicanalítica, o que decorre também por influência do percurso de chegada da Psicopedagogia no país. A referida teoria traçou o percurso da França para a Argentina, para, então, ser desenvolvida no Brasil2. Assim, as bases psicanalíticas, fortes nos países que influenciam a Psicopedagogia brasileira, possuem grande influência nas práticas clínicas e institucionais no país. O mesmo ocorre com a influência de Piaget, que possui suas bases na França.
A Psicopedagogia desenvolveu-se no século XIX, na França, decorrente de diferentes campos de saber, como: medicina, filosofia, educação, entre outros. Todos possuíam em comum a preocupação com os problemas de crianças que decorriam da aprendizagem. Autores como Pestalozzi, Seguin, Pereire e Itard orientam os primeiros estudos sobre dificuldades de aprendizagem. No século XX, há a expansão dos sistemas educativos, principalmente nos países industrializados3.
Com influências europeias, a Argentina também desenvolve estudos e trabalhos com pessoas com dificuldades de aprendizagem. Os estudos das áreas de psicologia, psicanálise, pedagogia e medicina fundamentam os estudos no país em questão3. Quando chegam ao Brasil, as práticas psicopedagógicas têm influências tanto europeias quanto norte-americanas. Porém, Argentina e França tiveram mais força nos estudos psicopedagógicos brasileiros4.
Partindo da breve perspectiva histórica acima apresentada, pode-se perceber que os estudos psicopedagógicos no Brasil, inicialmente, não têm relação direta com a Teoria Histórico-Cultural. Tal teoria chega ao Brasil na década de 1970, influenciando diversos campos de estudos, tais como Educação e Psicologia, em especial a Psicologia Social, que buscava uma psicologia que atendesse às demandas do país, não apenas uma adequação de ferramentas e teorias estrangeiras5.
A Psicopedagogia chega ao Brasil por volta da década de 1980, porém, com foco nas dificuldades de aprendizagem. Esta irá receber influências da teoria Histórico-Cultural conforme há o desenvolvimento do estudo de ambos. Assim, a Psicopedagogia recebe contribuições da teoria de Vygotsky para o trabalho com questões de aprendizagem e desenvolvimento.
Retomando a discussão sobre os estudos em desenvolvimento e aprendizagem, compreende-se que, diversas vezes, é possível lançar mão de diferentes teorias para compreender diferentes fenômenos, porém, em determinado momento, estas irão possuir pontos de vista divergentes, o que pode vir a tornar confusa, ou contraditória a interpretação de determinado fenômeno e, até mesmo, comprometer o método de intervenção a ser utilizado.
Temos como exemplo algumas divergências nas relações entre desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vygotsky. Ambos são considerados teóricos interacionistas, mas o primeiro compreende que é necessário o desenvolvimento de determinados aspectos cognitivos para que, com a interação, a criança venha a aprender características condizentes com seu estágio de desenvolvimento, focando na gênese do conhecimento (daí a terminologia Epistemologia Genética). Para ele, determinados aspectos devem ser trabalhados em determinadas faixas etárias (apesar de tal característica não se dar de forma engessada)6.
Vygotsky, por sua vez, compreende que a aprendizagem "puxa" o desenvolvimento (para ele, aprender é se desenvolver), ou seja, com a interação, a pessoa irá desenvolvendo diferentes aspectos. Assim, este autor busca um trabalho focando em aspectos que o aprendente ainda não realiza sozinho, mas que com auxílio consegue aprender (o que caracteriza o que se denomina de aprendizagem prospectiva)6.
Quando se propõe desenvolver práticas interventivas, então, há a necessidade de ser cauteloso com os métodos, pois, por mais que aparentemente não exista influência, utilizar bases epistemológicas diferentes ao mesmo tempo pode confundir as intervenções, tendo em vista que visões diferentes, algumas vezes inclusive contraditórias, possuem propostas metodológicas também diferentes, o que implica diretamente nas formas de intervenção.
É fundamental, portanto, que o psicopedagogo conheça bem a teoria pela qual irá nortear seus trabalhos, propondo formas de diagnóstico e intervenções que sejam coerentes com sua visão de mundo e de ser humano. Ainda não é tão comum se observar no contexto brasileiro a prática de se adotar apenas um viés teórico que funcione como principal norteador nas práticas psicopedagógicas, algo que é convencional, por exemplo, na psicologia, que, inclusive, possui cursos de formação clínica e de especialização na área clínica voltados especialmente para as abordagens que o psicólogo deseja seguir.
Há, conforme o sujeito que estuda ou trabalha na área psicopedagógica, muitas vezes, a preferência pelas ideias de algum autor. Contudo, é comum ainda se observar, seja por meio de falas, descrições de intervenções, ou, até mesmo, de estudos teóricos, a utilização de autores e ideias, ou conceitos de diferentes bases teórico-epistemológicas, que podem até mesmo concordar no ponto que está sendo discutido naquele momento, mas que, de forma geral, não são totalmente congruentes*.
A teoria Histórico-Cultural, base teórica escolhida para estudo neste artigo, é bastante estudada na Psicologia, principalmente na Psicologia Social Sociológica**, de base latino-americana5. As ideias de Vygotsky no Brasil se desenvolvem inicialmente na PUC São Paulo, com estudiosos como Silvia Lane e Ciampa, para, posteriormente, serem difundidas ao redor do país.
A Teoria Histórico-Cultural também possui forte influência na educação e, mais recentemente, tem sido estudada no Brasil também como abordagem utilizada na psicologia clínica, tendo, por exemplo, no Ceará, estudos desenvolvidos por Ana Ignez Belém7. No entanto, nas práticas psicopedagógicas, apesar de ser bastante utilizada, ainda se fazem necessários mais estudos que se desenvolvam utilizando esta base teórica como referência em suas práticas, tendo em vista sua importância nos estudos de aprendizagem, desenvolvimento e, consequentemente, para questões de transtornos e dificuldades de aprendizagem (como podemos encontrar alguns estudos de Vygotsky8 sobre defectologia***, como já mencionado anteriormente).
Partindo das questões acima citadas, este artigo possui como proposta realizar uma articulação teórica entre a teoria Histórico-Cultural e a Psicopedagogia, buscando relacionar os principais conceitos inerentes à teoria com as práticas psicopedagógicas.
Com base na discussão acima, desenvolve-se o Objetivo Geral deste artigo, que é: compreender como a Teoria Histórico-Cultural pode contribuir para as práticas e intervenções no campo da Psicopedagogia. Para isto, desenvolveram-se neste artigo como Objetivos Específicos: analisar como a Teoria Histórico-Cultural entende os Transtornos e Dificuldades de Aprendizagem; relacionar os principais conceitos da Teoria Histórico-Cultural com as práticas em Psicopedagogia.
Entende-se por dificuldades de aprendizagem todos os problemas que, de forma geral, geram algum tipo de comprometimento, ou alteram o processo de aprender (ordem secundária), podendo ser intrínsecos ou extrínsecos à pessoa. Dislexia, discalculia e disgrafia, no entanto, são considerados transtornos de aprendizagem, ou dificuldades de aprendizagem específicas. Isso se dá devido ao fato de o próprio transtorno gerar a causa da dificuldade (ordem primária)9.
Neste artigo, o foco é nas relações com o aprender para além de o sujeito possuir algum transtorno ou dificuldade de aprendizagem. Portanto, aqui focaremos na aprendizagem de forma geral, não em transtornos ou dificuldades que decorrem desse processo.
É válido ressaltar que este trabalho não se propõe a dar conta de toda a discussão teórica inerente à articulação proposta, podendo ser articulada de maneira mais aprofundada em outros estudos. O desenvolvimento de pesquisas e estudos sobre a Teoria Histórico-Cultural podem contribuir para as práticas psicopedagógicas, tendo em vista que a visão teórica proposta por Vygotsky trabalha tanto questões voltadas para o desenvolvimento quanto para a aprendizagem e traz a perspectiva de que alguma dificuldade, transtorno, ou deficiência não impedem da pessoa aprender e se adaptar ao meio cultural, apenas faz com que este sujeito se ajuste à realidade e aprenda de forma diferente do que é considerado "normal".
Para além disso, a Teoria Histórico-Cultural não ignora as questões de ordem biológica, nem de ordem cultural, compreendendo que ambas atuam de forma conjunta nos processos de desenvolvimento e aprendizagem dos seres humanos. Para além disso, traz a noção de que o sujeito é ativo em seu processo, não sendo determinado pelo meio que o circunda, nem por suas características herdadas biologicamente, estando em constante processo de modificação, significando e ressignificando suas ações no mundo e a si mesmo1.
MÉTODO
A metodologia deste artigo é de cunho teórico, consistindo em uma revisão bibliográfica de natureza qualitativa. Esta será realizada por meio da articulação dos principais conceitos da abordagem Histórico-Cultural, bem como sua visão de desenvolvimento e aprendizagem com as práticas na área de Psicopedagogia.
Como define Baffi10, referindo-se a pesquisas teóricas:
Esse tipo de pesquisa é orientada no sentido de re-construir teorias, quadros de referência, condições explicativas da realidade, polêmicas e discussões pertinentes. A pesquisa teórica não implica imediata intervenção na realidade, mas nem por isso deixa de ser importante, pois seu papel é decisivo na criação de condições para a intervenção.
Segundo Minayo et al.11, a pesquisa qualitativa tem como proposta o estudo das dimensões da realidade que não são passíveis de explicação quantitativa, respondendo a questões muito particulares, cujos fenômenos não são "reduzidos à operacionalização de variáveis". Portanto, nas pesquisas de natureza qualitativa, tanto significados quanto crenças e motivações, por exemplo, são analisados de forma mais densa e aprofundada.
Pesquisas teóricas buscam aprofundar conhecimentos sobre determinado campo do saber, o que exige que as mesmas sejam realizadas com certo aprofundamento teórico, tendo em vista que podem vir a ser bases para o desenvolvimento de novas pesquisas e campos de estudos e práticas.
Neste artigo, então, inicialmente, pretende-se discorrer brevemente sobre a Teoria Histórico-Cultural, englobando sua visão de ser humano, desenvolvimento e aprendizagem. Também se tem a intenção de explanar sobre a visão desta teoria acerca dos Transtornos e Dificuldades de aprendizagem, tendo em vista que o próprio autor da teoria inicia seus estudos em defectologia, buscando compreender crianças que possuíam questões em seus desenvolvimentos e em suas aprendizagens.
Posteriormente, há a intenção de explanar sobre a Psicopedagogia e sobre a importância de suas práticas no campo da aprendizagem. Em seguida, pretende-se articular conceitos importantes desenvolvidos por Vygotsky com as práticas psicopedagógicas, tendo em vista que esta tem o objeto de estudo centrado na aprendizagem e, consequentemente, no desenvolvimento do ser humano.
É válido ressaltar que se compreende que a teoria aqui estudada não é superior ou inferior a outros estudos teóricos, apenas possuem visões teóricas divergentes.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Psicopedagogia e Possíveis Relações com a Teoria da Aprendizagem Histórico-Cultural
No desenvolvimento do percurso teórico desse estudo, inicialmente será apresentada uma breve história da Psicopedagogia e, a seguir, será descrita brevemente a Teoria Histórico-Cultural e as suas contribuições nos estudos de aprendizagem e desenvolvimento.
Breve Histórico da Psicopedagogia
A Psicopedagogia é uma área de estudos que busca compreender como ocorrem os processos de aprendizagem e quais dificuldades possíveis podem ocorrer durante o processo12. É uma área que perpassa a medicina, neurologia, psicanálise, educação, psicologia, antropologia, biologia, entre outras, podendo o profissional de Psicopedagogia atuar em diversas áreas, como afirmam Smerdel & Murgo13(p. 5):
A Psicopedagogia não pertence unicamente à área clínica, pois ela também abrange áreas institucionais como a organizacional, social e educacional, utilizando-se de recursos técnicos, metodológicos e teóricos de diversos saberes.
Segundo Viana14, a Psicopedagogia se desenvolve como um campo que possui interfaces com a psicologia educacional e escolar, que se volta para o estudo dos processos de aprendizagem. Surge como solução para o auxílio nesses processos, principalmente para crianças em suas "dificuldades de aprendizagem"15. É também uma área que é transversal não só à psicologia, mas à pedagogia.
Para compreender como a Psicopedagogia se constitui no Brasil e quais interfaces possui hoje, é importante nos remetermos às suas origens e ao percurso processual de sua construção no país12. Portanto, antes de refletirmos a perspectiva Histórico-Cultural aplicada à Psicopedagogia, faz-se importante retomar brevemente seu histórico.
No caso do Brasil, a Psicopedagogia sofre influências principalmente da Argentina, que, por sua vez, recebe influências da França. Autores argentinos, como Jorge Visca, Alícia Fernandez, Sara Paín e Emília Ferreiro são referenciais muito importantes para os estudos em Psicopedagogia no Brasil e até hoje trazem importantes contribuições nos estudos e práticas psicopedagógicos do país2.
Por volta dos anos 40, estudiosos europeus vêm para a América do Sul em decorrência da Segunda Guerra Mundial e trazem consigo suas ideias e estudos referentes aos processos de aprendizagem e dificuldades decorrentes destes12.
Nos anos 1970, cria-se na cidade de Buenos Aires (Argentina) o Centro de Estudos Psicopedagógicos. Nos anos 1980, iniciam-se alguns cursos de Psicopedagogia no Brasil, ainda com foco nas dificuldades nos processos de aprendizagem e nos processos de fracasso escolar. Contudo, no presente século, há a visão da atuação psicopedagógica nos processos de aprendizagem e dos sujeitos que o integram, não focando apenas nos "problemas" e dificuldades4.
No que se refere à sua proposta de atuação, a Psicopedagogia volta-se para os problemas relacionados e Transtornos e Dificuldades de Aprendizagem, de forma individual, ou grupal, atuando principalmente de forma preventiva2.
Durante os anos 1960 e 1970, suas principais bases epistemológicas eram o Humanismo e o Behaviorismo. A primeira foca seus estudos no ser humano como um todo, em uma perspectiva holística, não priorizando os sintomas, mas o sujeito. A segunda tem seu foco nos comportamentos humanos como objeto de estudo. Esta compreende que os comportamentos podem ser aumentados, diminuídos, ou extintos conforme os reforçadores, ou punições que o indivíduo recebe, podendo, portanto, selecionar comportamentos adequados e extinguir comportamentos considerados inadequados para determinado contexto2.
Atualmente, no entanto, a Psicopedagogia no Brasil fundamenta-se principalmente nas bases psicanalíticas e construtivistas. A primeira lida com o estudo dos processos inconscientes do sujeito e a segunda, com a epistemologia genética, ou seja, com o processo de construção do conhecimento humano12. Ambas possuem diferentes focos de desenvolvimento e aprendizagem, logo, diferentes formas de atuação. Portanto, no que tange às teorias e práticas em Psicopedagogia, estas possuem fortes influências principalmente da psicanálise, bem como da teoria piagetiana, o que advém das influências argentinas e francesas, já anteriormente citadas.
Como já discutido anteriormente, a Teoria Histórico-Cultural inicia seus estudos em defectologia, ou seja, no estudo do desenvolvimento e da aprendizagem de crianças ditas como "anormais****". O autor defende que o desenvolvimento de crianças com algum tipo de deficiência não é limitado, ou incompleto, mas ocorre de forma diferente. Vygotsky tinha foco em compreender que os estímulos que a criança com algum tipo de limitação possuía deveriam ser diferentes e que eram estes que tinham o maior comprometimento no processo de aprendizagem, apesar de em nenhum momento negar as limitações orgânicas e biológicas. Ou seja, para o autor, o foco não era a deficiência em si, mas em como o meio cultural lidava com ela, saindo da perspectiva limitadora e biologizante das deficiências e dificuldades de aprendizagem16.
Para Vygotsky1, a forma de aprendizagem não deve ser dissociada da cultura e do período histórico com a qual o ser humano interage, nem se deve desprezar seus processos individuais de aprendizagem e desenvolvimento.
A Teoria Histórico-Cultural, portanto, oferece à Psicopedagogia uma perspectiva importante para compreender os processos de desenvolvimento e aprendizagem como parte da interação do sujeito com a cultura e este também como ativo em seu processo. Para compreender melhor, faz-se importante um aprofundamento inicial sobre a teoria de Vygotsky, bem como de seus conceitos, para então realizar um paralelo entre a perspectiva histórico-cultural e a atuação psicopedagógica.
Teoria Histórico-Cultural e as suas contribuições nos estudos de Aprendizagem e Desenvolvimento
A Teoria Histórico-Cultural, proposta por Lev Seminovich Vygotsky (1896-1934), inicia-se com o que o autor denomina de "Crise da Psicologia". No período em que seus estudos são elaborados, havia duas correntes de pensamento que predominavam os estudos sobre subjetividade e desenvolvimento.
Uma delas, de matriz introspeccionista, defendia que a análise do pensamento poderia ser realizada pelo próprio sujeito. Em contrapartida, havia outra matriz que defendia o estudo do psiquismo humano como um conjunto de comportamentos isolados, que fossem passíveis de observação, logo, poderiam ser mensurados e controlados5,17.
Vygotsky, então, critica ambos os modelos e propõe, com base no materialismo dialético de Marx, uma nova teoria, em que o ser humano é visto como um ser histórico e o único capaz de produzir cultura, tendo como principal mediador a linguagem17. A construção subjetiva humana, então, ocorre em um processo dialético, em que o ser humano é constituído pelo meio e constituinte deste ao mesmo tempo, de forma dialética. Como afirma Nunes7, Vygotsky defende que o ser humano é constituído por uma realidade que é concreta, contudo, sua essência constitui-se por meio das relações sociais.
Ou seja, o autor irá afirmar que o ser humano é, ao mesmo tempo, cultural e biológico, além de também ser fruto do período histórico ao qual pertence1. Portanto, "A obra de Vygotsky busca um modelo explicativo que contemple os mecanismos cerebrais do funcionamento psicológico e a constituição do sujeito no processo histórico-cultural"18(p. 7).
Conforme Vygotsky1, os seres humanos se constituem no e pelo meio, sendo que esta constituição ocorre pelos signos e instrumentos que são desenvolvidos neste meio cultural. Quando se remete às questões ligadas à aprendizagem, segundo a perspectiva histórico-cultural, tanto a cultura quanto a época na qual o ser humano pertence influem não só na sua constituição subjetiva, mas em seu modo de pensar, em sua formação de conceitos e, consequentemente, em sua aprendizagem19.
Voltando-se para os conceitos de aprendizagem, como afirma Melo19 (p. 83) na perspectiva Histórico-Cultural, esta consiste em
[...] um processo de humanização, que permite aos homens o desenvolvimento de suas aptidões, numa apropriação das obras da cultura historicamente constituídas pela humanidade, através das interações sociais estabelecidas.
A aprendizagem ocorre por meio da linguagem, que funciona como um mediador entre o sujeito e o meio cultural. Mediação, então, é um conceito chave para a teoria. Esta significa algo que interpõe o sujeito e seu objeto de conhecimento17. Essa mediação ocorre através de signos e instrumentos.
A mediação é fator chave para a aprendizagem, pois tanto o professor, o psicopedagogo, as pessoas que detêm o conteúdo, como os materiais didáticos servem como mediadores do conhecimento. É também a mediação que permite que uma pessoa possa aprender algo sem ter que necessariamente passar pela experiência de forma direta, mas aprender com o que é a ela transmitido por meio das vivências de outros sujeitos, ou, até mesmo das vivências aprendidas já através de outras vivências, o que faz com que, por sua vez, o ser humano possa ser um produtor histórico.
Como mediador, o psicopedagogo não deve fazer suas intervenções de forma diretiva, mas incitar o aprendente a realizar a atividade. Quando houver erros, deve fazer com que o aprendente busque melhores formas de executar a atividade, auxiliando-o até que este consiga executar a atividade de forma autônoma e correta.
O processo de aprendizagem para a Teoria Histórico Cultural se dá na interação com o meio, num processo de internalização de significados e sentidos, sendo este processo de significação mediado por signos e instrumentos. Compreendendo, então, os conceitos de signo e instrumento, ambos trazem transformações nos processos de aprendizagem e desenvolvimento. No caso, o instrumento realiza modificações externas ao sujeito. Já o signo, por sua vez, proporciona modificações internas ao aprendente. No caso do signo, este é constituído culturalmente e influencia psicologicamente o comportamento do sujeito e de outros17.
É por meio de signos e instrumentos que o processo de desenvolvimento de significados e sentidos ocorre. O aprendente, no caso, irá dispor, por meio do psicopedagogo, de diferentes recursos que o auxiliem no processo de aprendizagem. Estes vão desde elementos, como atividades de leitura, escrita, ortografia, cálculo, etc., até jogos, dinâmicas, entre outros. Para além dos recursos, o próprio psicopedagogo funciona como mediador no processo de aprendizagem, assim como todas as atividades que utilizar.
Deve compreender o sujeito como ativo no processo, trabalhando desde aquilo que ele já sabe sozinho e do que consegue executar com auxílio. A partir daí, trabalhar na promoção da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), tornando o sujeito autônomo para compreender o conteúdo.
Além disso, é importante ressaltar que o fluxo em que essa aprendizagem ocorre é do plano interpsíquico para o intrapsíquico, ou seja, de fora do sujeito para dentro dele. Vygotsky entende que há o objeto de conhecimento primeiramente fora do sujeito, que, ao interagir com ele, seja por meio de outras pessoas, ou por meio de recursos didáticos formais e informais, por exemplo, irá construir o conhecimento cognitivamente "dentro de si"20.
Para o autor, as pessoas constroem seu psiquismo no social e interagem com ele, que, por sua vez, modifica o meio e se modifica, através de suas experiências vividas (perejivanies*****). Essas experiências, tanto externas quanto internas, é que irão construir e reconstruir esse psiquismo humano21.
Quando relacionamos à prática do psicopedagogo, por exemplo, em suas intervenções com o aprendente, esse funciona como mediador do conhecimento, bem como os materiais que utilizar para realizar tal intervenção. Como mediador, não irá tratar o sujeito como alguém que não sabe e que precisa "absorver" algum novo conteúdo, por exemplo, mas como um ser ativo em seu processo de aprendizagem, que, ao interagir com o meio, irá construir um novo conhecimento, podendo, então, se tornar autônomo em relação ao novo conhecimento aprendido.
Outro conceito fundamental da Teoria Histórico-Cultural é o de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP)******. A ZDP consiste em um espaço simbólico entre aquilo que o sujeito (no caso da Psicopedagogia, o aprendente) consegue realizar no momento atual com auxílio de outra pessoa, que já detém tal conhecimento, e aquilo que em breve ela conseguirá realizar de forma autônoma23.
A ZDP não é um intervalo, ou passível à quantitativização, ou seja, mensuração, mas é um espaço que funciona de forma dinâmica23. No caso da prática do psicopedagogo, ele (bem como os recursos que utiliza), como mediador, irá auxiliar na promoção de ZDPs de seus aprendentes, visando, então, a aprendizagem do sujeito e, consequentemente, o desenvolvimento e a autonomia.
É importante ressaltar, que, para que ocorra a promoção da ZDP, a interação entre aprendente e psicopedagogo deve ocorrer de forma complementar e com objetivos comuns e que essa interação si dê por meio de uma linguagem voltada para a comunicação24.
Além dos conceitos de ZDP e mediação, outro fator importante a ser pontuado é como o autor define os planos de desenvolvimento. Vygotsky, apesar de falar sobre algumas idades em que determinadas características de desenvolvem, ou possuem maior facilidade para se desenvolver (como por exemplo, o que denomina de crise dos 7 anos), não divide o desenvolvimento em estágios, como por exemplo Piaget, Erikson ou Wallon. Contudo, ele fala que o desenvolvimento ocorre por meio das interações entre o sujeito com o meio cultural. Vygotsky afirma em sua teoria que existem quatro planos de desenvolvimento, que contemplam desde as questões de desenvolvimento biológico até o cultural, além de considerar o sujeito como singular e ativo em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem25.
Os planos de desenvolvimento propostos por Vygotsky são: filogenético, que tem relação com o desenvolvimento biológico da espécie humana (como por exemplo o fato de ser bípede, ou possuir polegares opositores); ontogenético, que tem relação com o desenvolvimento do ser de determinada espécie, o processo de desenvolvimento (como no caso da criança humana, que em seu desenvolvimento segue a ordem de sentar, engatinhar e depois andar); sociogenético (ou cultural), que é a história na qual o sujeito está inserido e com a qual interage. No caso do plano cultural, este interfere na construção subjetiva do sujeito e também naquilo que aprende, na forma como interage com o mundo; microgenético, por fim, é o que caracteriza o "não determinismo" da teoria, ou seja, que o ser humano não será apenas fruto da biologia, ou o ambiente, mas além das duas coisas, há sua forma de significar, dar sentido e de interagir com o mundo25. Constitui-se, então, de aspectos singulares e específicos de cada pessoa17.
Para o autor, os dois primeiros planos (filogenético e ontogenético) são também presentes no desenvolvimento das outras espécies de animais. Os planos sociogenético e microgenético, no entanto, são exclusivos dos seres humanos. O desenvolvimento e a aprendizagem, portanto, ocorrem com a interação de todos os planos acima citados, não sendo nenhum deles superior ao outro, nem deixando algum deles de existir. Todos atuam simultaneamente e de forma complementar25.
Refletindo sobre os planos de desenvolvimento propostos por Vygotsky, relacionando-os às práticas psicopedagógicas, faz sentido discutir sobre alguns aspectos que são avaliados e trabalhados pelo profissional em Psicopedagogia. Os aspectos psicomotores, cognitivos, pedagógicos, emocionais e sociais são importantes de serem discutidos, atrelados à teoria Histórico-Cultural.
Quanto aos aspectos psicomotores, sabe-se que Vygotsky trabalhou juntamente com Luria, que é considerado como referência central nos estudos em neuropsicologia, portanto, também influencia nos estudos psicomotores, uma vez que os oito níveis do sistema psicomotor humano possuem relação direta com o desenvolvimento neurológico do sujeito.
É comum, por exemplo, haver uma relação de dificuldades psicomotoras atreladas a dificuldades, ou transtornos de aprendizagem (TDAH e dislexia, por exemplo). Geralmente, essas dificuldades já são percebidas antes mesmo dos anos escolares, como dificuldades em amarrar o cadarço, andar de bicicleta, abotoar a camisa, ou usar tesoura como características encontradas em pessoas com Transtornos de Leitura, por exemplo9. Então, o trabalho motor também se faz importante de ser atrelado às intervenções psicopedagógicas. Quando se pensa no conceito de ZDP e no desenvolvimento psicomotor, portanto, é importante compreender o aprendente em seu processo e buscar mediar sua aprendizagem, sempre buscando fazer com que este se torne autônomo.
Por exemplo, se o aprendente tem dificuldades na parte de lateralidade e esquema corporal, trabalhar com ele a partir do que ele já consegue fazer sozinho, daquilo que ele consegue desenvolver com auxílio e buscar que ele ganhe autonomia, podendo, por exemplo, vir a diferenciar esquerda e direita, sem auxílio de alguém, ou de algum aparato externo. Inicialmente, utilizando atividades, como jogos não estruturados, espelho, jogos que envolvem o corpo e anatomia, indiretamente trabalhando, sem fazer pelo aprendente, mas instigando-o a buscar realizar as atividades, valorizando os progressos, não os resultados e trabalhando a questão do erro não como punitivo, mas como importante para o ato de aprender.
Em relação aos aspectos cognitivos e pedagógicos, Vygotsky propõe uma educação que se diferencia dos aspectos tradicionais, considerando o progresso do aprendente, não os resultados positivos, como já dito anteriormente. Para ele, cada criança tem seu processo particular, mesmo que inseridas em um mesmo meio, cada uma possui sua microgênese e um tempo de desenvolvimento e aprendizagem singular. Como afirma Vygotsky23,
Quando pela primeira vez esbarram nesse fato e mostram que as crianças com o mesmo nível de desenvolvimento mental são capazes de aprender sob a orientação do pedagogo em dimensões inteiramente diversas, ficou claro que elas não são da mesma idade mental e, evidentemente, o seu destino no processo de aprendizagem deverá ser diferente (2004, p. 501).
Quanto aos aspectos emocionais, a Teoria Histórico-Cultural irá compreender que no ser humano são mediadas pelas relações culturais, apesar de também serem de origem biológica, principalmente quando ligadas a questões de sobrevivência, o que são denominadas de Funções Psicológicas Elementares (FPE). Já no caso das emoções mediadas, estas são Funções Psicológicas Superiores (FPS), justamente pela presença do mediador, além destas serem características unicamente humanas, o que não ocorre com as FPE23,26.
Vygotsky, em relação aos trabalhos sobre afetividade, diferencia-se da perspectiva cartesiana, adotando uma perspectiva monista*******, baseando seus estudos em Espinoza. Compreende-se, na Teoria Histórico-Cultural, que as emoções não são dissociadas dos aspectos racionais, nem devem ser tratadas como inferiores ao cognitivo.
Por fim, discutindo os aspectos sociais, é imprescindível falar do plano cultural na Teoria Vygotskyana25. Para o autor, a cultura é elemento constituinte do psiquismo humano, sendo essa elemento fundamental para o processo de desenvolvimento e aprendizagem do homem. Os elementos culturais são passados por meio da linguagem, que é o principal mediador entre os sujeitos e o meio cultural. Muitas vezes, questões ligadas à cultura e a processos sociais interferem diretamente na aprendizagem e no desenvolvimento. Pode-se observar, por exemplo, que pessoas que têm menos acesso aos meios culturais, à educação de qualidade e ao auxílio extraescolar possuem mais dificuldades no processo de aprendizagem formal, como aquisição de leitura, ou de aprendizagem de operações matemáticas, por exemplo9.
Também ocorre de materiais didáticos não serem adaptados a contextos culturais, o que dificulta os alunos a se familiarizarem melhor com os conteúdos e, consequentemente, a aprenderem. Um exemplo é a utilização da palavra "elevador" para ensinar palavras iniciadas com a letra "e" para alunos de uma comunidade rural, que onde vivem não possui nenhum elevador, nem este faz parte do cotidiano desses estudantes. Ou utilizar para alunos, ao ensinar sobre frutas, exemplos que não existem no Brasil, ou não são comuns ao cotidiano da criança, como por exemplo lichia, ou pitaia.
Na Teoria Histórico-Cultural, busca-se a aproximação do aprendente com o objeto de conhecimento por meio de elementos presentes em seu cotidiano, o que facilita e promove o processo de aprendizagem de forma efetiva.
Como exemplo de intervenção, pode-se citar a cena do filme "Escritores da Liberdade" (baseado em fatos reais)28, em que a professora, para ensinar inglês para seus alunos, utiliza um rap conhecido por eles, para tornar sua aula contextualizada. Assim, ela vai inicialmente utilizando textos e adaptando exemplos à linguagem deles, como na cena em que compara o acontecimento do holocausto com as guerras entre gangues que eram fortemente vivenciadas por seus alunos. Assim, ela ia ensinando seus conteúdos, comparando-os ao dia a dia de seus estudantes, o que fez com que os mesmos aprendessem e conseguissem concluir o ensino médio e, alguns deles, até ingressassem na universidade. Muitos de seus alunos foram os primeiros de suas famílias a ingressarem na universidade, ou, até mesmo, a concluírem o Ensino Médio.
É importante ressaltar, que se deve, conforme a Teoria Histórico-Cultural, sempre valorizar o processo do aprendente, não os resultados, visando a promoção da ZDP e, consequentemente, a autonomia do sujeito em situação de aprendizagem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Teoria Histórico-Cultural tem ricas contribuições para as teorias da aprendizagem e do desenvolvimento, consequentemente, sua utilização e avanço de estudos no campo da Psicopedagogia contribui e pode vir a contribuir ainda mais, tendo em vista que a visão de Vygotsky traz uma quebra dos paradigmas tradicionais de ensino, propondo uma aprendizagem prospectiva, ou seja, que se anteceda ao desenvolvimento.
Ao percebermos o papel de mediador exercido pelo psicopedagogo em suas práticas, pode-se entender sua atuação em conjunto com o aprendente, ocorrendo de forma dialética e complementar. Ver o aprendente também como ativo em seu processo é fundamental para as intervenções e para vislumbrar sua autonomia futura.
Os materiais de forma geral, bem como qualquer tipo de recurso utilizado pelo psicopedagogo (como testes, jogos, materiais não estruturados, atividades orientadas, etc.), também funcionam como mediadores no processo de aprendizagem. Tanto o profissional quanto os recursos auxiliam no processo de promoção da ZDP do aprendente, que em breve, após as intervenções, poderá se tornar autônomo em relação aos conhecimentos adquiridos e, consequentemente, irá desenvolver-se e ser capaz de adquirir novos conhecimentos.
Então, tanto os materiais quanto as intervenções devem ser pensadas de forma prospectiva, ou seja, que foquem naquilo que o aprendente ainda não sabe, mas que consegue realizar com auxílio de alguém, ou de algum recurso. Com o processo de intervenção psicopedagógica, irá se desenvolver uma "ponte" para que este aprendente consiga realizar em breve de forma autônoma aquilo que hoje não consegue.
O sujeito é visto como ativo em todo seu processo de aprendizagem, não sendo colocado em posição de inferioridade, nem suas dificuldades vistas como empecilhos para que ele venha a aprender. Entendemos que o aprendente com alguma dificuldade ou transtorno de aprendizagem não é incapaz nem inferior aos demais, mas apenas possui uma forma de aprender e um processo que não é igual ao da maioria.
Devemos, portanto, considerar o sujeito como singular em seu próprio processo de aprender, não buscando compará-lo aos demais, nem forçando-o a se encaixar aos formatos tradicionais de ensino, que muitas vezes o causam frustrações e bloqueios, fazendo-o se enxergar como incapaz ou inferior aos demais no processo educacional, desmotivando-o e, até mesmo, fazendo com que ele desista de continuar a estudar.
Entendemos, por fim, que o foco do ensino e das intervenções deve se dar no processo do aprendente e não nos resultados que se busca obter, até mesmo porque a aprendizagem não possui um final, mas é algo constante e dinâmico, podendo sempre ser superada, em relação a como se encontra no momento presente.
Ainda são necessários maiores aprofundamentos entre as relações da Teoria Histórico-Cultural e as práticas em Psicopedagogia. Pretende-se, em outros momentos, aprofundar tais estudos, visando um enriquecimento teórico que auxilie o psicopedagogo em suas intervenções. A Psicopedagogia visa uma prática integrada às teorias norteadoras do Desenvolvimento e da Aprendizagem, buscando favorecer a autonomia dos sujeitos em seus processos de aprendizagem.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Janaína Farias de Melo
Centro Universitário Christus - Sede Parque Ecológico.
Rua João Adolfo Gurgel, 133 - Cocó - Fortaleza, CE, Brasil - CEP 60190-180
E-mail: janjanmelo86@gmail.com
Artigo recebido: 13/10/2019
Aprovado: 11/11/2020
Trabalho realizado no Centro Universitário Christus, Fortaleza, CE, Brasil.
Este artigo foi desenvolvido como fruto do Trabalho de Conclusão de Curso da Pós-Graduação em Psicopedagogia Clínica e Institucional (Unichristus).
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.
* Existem diversos estudos que tratam, por exemplo, das diferenças entre Piaget, Vygotsky e Wallon, podendo ser encontrados inclusive em obras dos próprios autores aqui mencionados.
** Farr traz a perspectiva da Psicologia Social em duas vertentes: Psicologia Social Psicológica e Psicologia Social Sociológica. A primeira se baseia num método experimental, centra suas explicações no indivíduo, considera os fenômenos sociais como naturais e afasta-se dos referenciais marxistas. A segunda, cuja Teoria Histórico-Cultural se aproxima, estuda o sujeito como parte do meio cultural e ativo no processo de construção de sua subjetividade. O indivíduo é construtor e construído pela sociedade, em um processo dialético.
*** Defectologia: terminologia utilizada por Vygotsky em seus estudos no início do século XX, que se refere aos estudos sobre a aprendizagem e o desenvolvimento de crianças com deficiência (chamadas pelo autor em seus textos de "crianças anormais"). Os estudos em defectologia são base fundamental para compreender o desenvolvimento e aprendizagem na perspectiva sociointeracionista e trazem ricas contribuições para a Psicopedagogia.
**** É válido ressaltar, que a terminologia "anormal" era utilizada anteriormente, não sendo mais tratado o ser humano que possui condições diferentes em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem com este termo. Aqui o mantivemos entre aspas para nos remetermos a como eram chamadas as pessoas com questões em seus desenvolvimentos e aprendizagens no período histórico em que a defectologia se desenvolve.
***** Perejivanie é um termo que se origina do russo, utilizado por Vygotsky, que significa "experiências vividas".
****** Algumas traduções para o português adotam o termo Zona de Desenvolvimento Imediato (ZDI), porém, optou-se por utilizar ZDP por ser a forma mais utilizada na literatura sobre o tema.
******* Monismo é o termo atribuído às teorias filosóficas que afirmam que há uma identidade una entre mente e corpo (em filosofia da mente), ou a unidade da realidade como um todo (em metafísica). Estas teorias se opõem ao dualismo (pluralismo), que, por sua vez, defende a existência de realidades separadas.