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Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.38 no.117 supl.1 São Paulo  2021

https://doi.org/10.51207/2179-4057.20210047 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

A construção de um fazer em psicopedagogia motivado pela pandemia em 2020/2021

 

The construction of a doing in Psychopedagogy motivated by the Pandemic in 2020/2021

 

 

Laura Monte Serrat Barbosa

Psicopedagoga, pedagoga, mestre em Educação, coordenadora de grupos de aprendizagem, professora, palestrante, escritora, Curitiba, PR, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este relato de experiência apresenta um caminho trilhado pela autora e dez aprendizes, com idade entre 6 e 13 anos, no período de um ano e meio de Pandemia de COVID-19 no Brasil, a partir de março de 2020. Sua intenção é mostrar como a existência de um Esquema Conceitual Referencial Operativo (ECRO), no qual o profissional da Psicopedagogia ancora-se, dá segurança para enfrentar as novidades advindas do aprendiz, de sua família, do psicopedagogo ou, até mesmo, as impostas pelo meio. A autora apoia-se no esquema da práxis em Psicopedagogia, proposto pela Epistemologia Convergente de Jorge Visca. Partindo-se do ECRO dessa proposta teórica e prática, que considera o aprendiz como um sujeito em situação de aprendizagem, foi possível encarar o inusitado. A partir do conhecimento e das vivências, em processo de adaptação ativa, construíram-se dois caminhos não presenciais: a) acompanhamento em Psicopedagogia, destinado aos aprendizes mais novos e mais confusos com a situação; b) atendimento psicopedagógico, para aprendizes que já estavam vivendo a possibilidade de compreender um pouco melhor a situação e encontravam-se em processo de alta, assim como para um aprendiz que iria iniciar o processo de atendimento psicopedagógico já na modalidade on-line e, portanto, sem condições de estabelecer comparações com um atendimento presencial. Para tal, o primeiro elemento utilizado foi o enquadramento, o qual envolveu a família, o aprendiz e a psicopedagoga. Ambos os caminhos foram descritos e concluiu-se que os avanços foram possíveis, considerando-se a análise das situações vividas e a construção de soluções necessárias fundamentadas em um esquema conceitual.

Unitermos: Psicopedagogia. Fundamentação. Experiência. Inusitado. Aprendizagem.


ABSTRACT

This experience report presents a path walked by the author and ten apprentices, aged between 6 and 13 years, in the period of one and a half years of COVID-19 Pandemic in Brazil, from March 2020. Its intention is to show how the existence of an Operative Referential Conceptual Scheme (ECRO), in which the psychopedagogy professional is anchored, gives security to face the novelties coming from the learner, his family, the psychopedagogue or even those imposed by the environment. The author relies on the praxis scheme in Psychopedagogy, proposed by The Convergent Epistemology of Jorge Visca. Starting from the ECRO of this theoretical and practical proposal, which considers the learner as a subject in a learning situation, it was possible to face the unusual. From the knowledge and the experiences, in the process of active adaptation, two non-face-to-face paths were constructed: a) accompaniment in Psychopedagogy, aimed at younger and more confused apprentices with the situation; b) psychopedagogical care, for apprentices who were already living the possibility of understanding the situation a little better and were in the process of discharge, as well as for an apprentice who would start the process of psychopedagogical care already in the online modality and, therefore, without conditions to establish comparations with a face-to-face care. For this, the first element used was the framework, which involved the family, the apprentice and the psychopedagogue. Both paths were described and it was concluded that advances were possible, considering the analysis of the situations experienced and the construction of necessary solutions based on a conceptual scheme.

Keywords: Psychopedagogy. Reasons. Experience. Unusual. Learning.


 

 

INTRODUÇÃO

Em março de 2020, com a instalação de uma pandemia no mundo, foi possível experimentar concretamente os versos de Antônio Machado (1875-1939)1:

Caminhante, são teus passos, o caminho e nada mais.

Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao andar.

Ao andar, se faz caminho e, ao voltar a vista atrás, se vê a senda que nunca se voltará a pisar.

Caminhante, não há caminho, mas sulcos de escuma ao mar.

Versos criados pelo poeta em situação adversa e que servem de consolo há exatos 82 anos depois de sua morte. A pandemia deixou a todos em suspenso, sem saber, sem fazer, sem poder, sem entender... A Pandemia mostrou que não havia um caminho traçado à frente, a ser seguido, a ser explorado. Exigiu, de certa forma, que se voltasse o olhar à trilha já trilhada e constatasse que aquele caminho já caminhado pouco tinha a oferecer, diante da realidade inusitada que se delineava logo adiante, nesta ação profissional: a Psicopedagogia.

Pichon-Rivière & Quiroga2, ao analisarem situações catastróficas, lembram que a mudança chega como algo inesperado, como uma situação aguda para a qual a comunidade não se encontra preparada. Ao ampliar essas considerações para uma situação pandêmica, pode-se dizer que a chegada da COVID-19 colocou o mundo diante da insegurança, e as fases enfrentadas nessas situações, previstas pela Fenomenologia (período de ameaça, período de impacto, seguido de sentimentos de imobilidade, de violência, de euforia coletiva e luto coletivo, período de organização e retorno ao equilíbrio), podem contribuir para o entendimento do movimento que foi e está sendo feito para encontrar soluções à práxis profissional de forma não presencial.

A comunidade da ABPp, por meio de sua Diretoria Executiva e de seu Conselho Nacional, constituiu uma comissão emergencial, a qual foi oferecendo apoio por meio de perguntas e foi permitindo que se pudesse, a partir das vivências e experiências passadas, personalizar soluções para cada um dos aprendizes, com os quais se havia construído caminhos singulares no atendimento psicopedagógico presencial no espaço da clínica.

Após um ano e meio de caminhada, é possível constatar que as bases que sustentavam o atendimento psicopedagógico presencial foram as mesmas que possibilitaram a criação de novos enquadramentos para uma nova situação.

No caso em pauta, a Epistemologia Convergente3, que constitui um Esquema Conceitual Referencial Operativo (ECRO) em Psicopedagogia, serviu de referência, apontando que o primeiro passo a ser dado para construir um novo caminho seria rever o enquadramento de cada um dos casos, a fim de não suspender, simplesmente, o que havia sido recém-reiniciado. Assim, os vínculos até então estabelecidos não se perderam em brumas pandêmicas, sem caracterizar como desimportantes as construções cognitivas, interacionais e afetivas realizadas no espaço entre o aprendiz e seu psicopedagogo.

É sabido que os vínculos pessoais e profissionais não são vínculos que prendem, senão que promovem; no entanto, não poderiam simplesmente ser abduzidos, como se tudo o que se estabeleceu na caminhada anterior pudesse ser esquecido ou entendido como algo sem serventia. Naquele momento, falava-se de pessoas que se constituíram até ali; de crianças e adolescentes que possuíam aquela referência; de pais e profissionais que estavam se dedicando para que os aprendizes participassem de todo e qualquer processo que os fortalecesse como seres humanos.

Segundo Fernandes (2003)4, o conceito pichoniano de vínculo está atrelado aos conceitos de comunicação e conduta, e também ao conceito de papel que as pessoas desempenham nas suas relações.

O vínculo tem um significado que se refere tanto ao mundo interno quanto ao relacionamento com a sociedade. Ele se situa entre o mundo intra, inter e trans subjetivo, sendo um lugar de ilusão, de desdobramento do imaginário4. (p. 44)

Sendo assim, não era possível simplesmente parar, projetar o susto, negar o que acontecia, deprimir... Era preciso esperar e, ao mesmo tempo, acompanhar a situação da Pandemia e as inseguranças que ela mobilizava na psicopedagoga, nos aprendizes e em suas famílias.

Apresentava-se uma situação autêntica de aprendizagem que não poderia ser enfrentada com uma atitude impulsiva; muito menos podia ser evitada por não se encontrarem alternativas de caminhos a seguir dali para frente.

 

UMA VIVÊNCIA COMO PSICOPEDAGOGA NO ÂMBITO DA CLÍNICA

Presencialmente, houve atendimentos ainda nos dias 17 e 18 de março de 2020, e foi possível ir conversando com alguns aprendizes sobre o ocorrido, lidando com as fantasias que estavam fazendo sobre o Coronavírus e aventando a possibilidade de uma continuidade, de uma outra maneira, que seria conversada com os pais e com eles no decorrer deste período, ainda muito confuso e indiferenciado.

Naquele momento, vivia-se o que, na Epistemologia Convergente3, chama-se indiferenciação, provocada por uma nova situação de aprendizagem, ainda não vivida. Segundo Visca3, os recursos de intervenção psicopedagógica podem incidir tanto em aspectos estruturais relativos à cognição quanto em aspectos energéticos referentes às questões que afetam os sujeitos, sendo possível intervir em qualquer um dos três níveis de vinculação: indiscriminação, dissociação ou integração.

A Epistemologia Convergente faz parte constitutiva do ECRO da psicopedagoga, esquema tal que permitia manter uma certa tranquilidade, reconhecer o inusitado trazido pela Pandemia e proceder a uma análise de suas atitudes, seus medos, seus não saberes e pensamentos, naquele momento, assim como de atitudes das famílias e dos aprendizes.

Todo novo ou situação nova traz uma inquietação que gera indiscriminação, confusão e indiferenciação, tanto do ponto de vista cognitivo como afetivo. Para intervir numa situação dessas, é preciso tempo, espaço de silêncio para pensar, alternativas a ser escolhidas, a fim de se construir caminhos, que só podem ser construídos por aqueles que estão diante do problema; portanto, o papel psicopedagógico não era esperar qualquer determinação de autoridade, indicando o que fazer e como fazer. Os aprendizes e a psicopedagoga teriam de arregaçar as mangas e tomar decisões. Passada uma semana, foi sendo feito contato com cada família e cada aprendiz que compartilhava o espaço de aprendizagem.

Falava-se da incerteza, mas também da vontade de descobrir juntos o que fazer. Alguns pais pediram um tempo; outros, estavam aflitos para não interromper; alguns, estavam com vontade de experimentar, de tentar. Então, assim foi.

Essas conversas levaram à instituição de dois tipos de ação:

a) um programa de acompanhamento em Psicopedagogia por meio virtual dos aprendizes, durante a quarentena, com objetivo de alimentar a vinculação afetiva com a tarefa de aprender que já acontecia, no espaço de trabalho (Síntese - Centro de Estudos da Aprendizagem), dando continuidade aos atendimentos psicopedagógicos já iniciados no ano ou anos anteriores;

b) e uma experiência de atendimento em Psicopedagogia por meio virtual, a pedido dos pais e a partir de consenso entre os aprendizes e a psicopedagoga, a qual foi, posteriormente, denominada pela ABPp como Assistência Psicopedagógica.

Ao receber os primeiros questionamentos da ABPp, as perguntas elencadas foram respondidas, mas a ação iniciada não foi modificada. Ao chegarem as orientações sobre a assistência psicopedagógica, os registros foram organizados, mas sem modificar os nomes apontados, dados aos atendimentos, já escolhidos nessa relação entre psicopedagoga e clientes. Seguem, pois, características de cada um deles, com a intenção de contribuir para pensar os atendimentos (assistências) em Psicopedagogia no espaço virtual como uma possível prática na Psicopedagogia.

1) Acompanhamento Psicopedagógico

Era destinado às crianças que, pela idade ou condição individual, estavam mais confusas, sem muito entender o que acontecia. Elas precisavam de uma intervenção que propiciasse um tempo de experimentação, sem desligá-las do que estava ocorrendo, pois acabavam de retomar em fevereiro e março de 2020. Foi combinado um pequeno tempo para conversa virtual, para contar as novidades, além de pensar sobre as vivências diferentes dentro da família e, posteriormente, também na escola.

Seguem alguns motivadores dessa forma de acompanhamento.

a) Enquadramento

Para Visca3, é o estabelecimento de uma organização que possibilita o isolamento da realidade do contexto vivido (acompanhamento psicopedagógico), ao mesmo tempo em que se integra ao mesmo. Para isso, são estabelecidas constantes de tempo, de espaço, de forma de trabalho, de honorários, de tal forma que o aprendiz possa ter clareza que, naquele horário, nessa nova forma de ação, receberá um link para entrar na sala virtual, onde acontecerá o trabalho, por exemplo.

[...] damos à palavra enquadramento seu significado mais amplo: encerrar em um marco. Para isso, tomam-se alguns elementos, tais como: tempo, lugar, frequência, duração, caixa de trabalho.

Para conhecer a realidade, é necessário conjugar dois critérios: isolá-la do contexto e integrá-la ao mesmo. Enquanto o primeiro permite conhecer, de forma predominante, seu funcionamento íntimo; o segundo facilita o conhecimento da influência do contexto3. (p. 23)

O novo enquadramento para essa modalidade foi realizado com sete crianças, com idade entre 6 e 10 anos. Foram realizados por meio de diferentes recursos: telefone, mensagem de áudio ou ligação de vídeo, por WhatsApp ou Skype. Conforme os recursos que cada família e a psicopedagoga tinham naquele momento, havia uma adaptação.

Foi combinado com os pais e as crianças: que o tempo mínimo seria entre 15 e 20 minutos, podendo ser ajustado conforme as necessidades de cada aprendiz; que a chamada para o atendimento seria realizada pela psicopedagoga; que o conteúdo do trabalho, a princípio, seria oferecer um espaço para que o aprendiz pudesse ir se situando no novo cenário, sendo conversas a respeito do cotidiano e das preocupações que apresentassem, assim como a proposta de uma atividade lúdica, tal qual adivinhas, jogos com palavras e outros que eles pudessem sugerir. A proposta, nesse momento, era fazer uma intervenção visando à saída do estado de confusão. Ao conversar, aprendiz e psicopedagoga poderiam ir discriminando os elementos envolvidos e, aos poucos, sair da indiscriminação inicial.

Naquele momento, não havia plena consciência das escolhas do ponto de vista teórico; porém, ao organizar esse relato, a psicopedagoga percebeu o quanto tem a teoria arraigada em si, o que permitiu sua coerência. Uma citação sua, certamente, norteou sua posição diante de tão perturbadora novidade:

O ser que aprende é entendido, na Psicopedagogia, como alguém que é capaz de conhecer o mundo e a si próprio; portanto, é um ser cognoscente, um conhecedor que, ao aprender, mobiliza suas ansiedades diante de situações novas, de aprendizagem, e também se movimenta em direção ao objeto de aprendizagem5. (p. 14)

Essa novidade precisaria ser conhecida em processo de relação e diante da situação, pois não se tratava de trabalhar com as dificuldades de aprendizagem, nem de ressaltar as facilidades para aprender conteúdos, mas se tratava de compreender uma situação inesperada; posteriormente, seria possível se ocupar de outros aspectos do processo de aprender.

Embora os pais soubessem que se trabalharia com o tempo diminuído, tinham claro que o espaço reservado para seus filhos seria de 60 minutos. Assim, havia uma flexibilidade, a fim de atender as surpresas que pudessem aparecer.

Outro combinado foi que o enquadramento poderia sofrer ajustes, caso fosse necessário, e que esse acompanhamento não seria cobrado. Juntos, estavam buscando uma alternativa de trabalho, a qual poderia ou não se transformar em atendimento psicopedagógico; apenas nos casos em que isso acontecesse, o tempo seria ampliado e o atendimento seria remunerado de acordo com os valores já combinados quando do atendimento presencial.

Durante o percurso, foi-se entendendo a necessidade de fazer outros combinados, os quais não seria possível prever antes de as coisas acontecerem. Então, em alguns casos, foram feitos reenquadramentos.

b) Observações que motivaram reenquadramentos

A ação realizada em um espaço virtual pede outro olhar e outros combinados, nem sempre necessários no atendimento presencial. Constatou-se que o espaço virtual entre o espaço do consultório e o espaço da casa trazia aos aprendizes e aos seus pais atitudes que se confundiam entre a formalidade esperada para ir ao consultório e a informalidade da vida, quando se está em um espaço privado. Por exemplo, muitos aprendizes e alguns pais vinham para o atendimento on-line de pijama, realizavam as entrevistas deitados; pais permaneciam no espaço do atendimento e interferiam no diálogo do aprendiz com a psicopedagoga, retirando a autenticidade da expressão de seus filhos e, consequentemente, a dela; alguns pais e mães ensaiavam antes o que poderia acontecer no atendimento, entregavam para a criança os materiais que ela poderia levar e combinavam sobre as histórias que poderia contar; aprendizes que não tinham os pais por perto tinham que organizar o ambiente sozinhos, muitas vezes sem o domínio necessário da tecnologia e de como a imagem chegava para o outro; algumas famílias não conseguiam colocar limites aos seus filhos e estabelecer uma nova rotina nessa nova situação. Então, foram sendo estabelecidos ajustes no enquadramento inicial e, em alguns casos, foi combinado que a família faria a ligação assim que a criança estivesse organizada, a fim de que a sessão virtual não invadisse o espaço familiar.

c) Observações sobre o acompanhamento em Psicopedagogia por meio virtual

Constatou-se que as crianças mais novas, de 6/7 anos, sustentavam uma conversa à distância por, no máximo, 15 minutos, principalmente nos primeiros encontros. Aos poucos, isso era colocado para elas e, para muitas, uma ampliação de tempo tornou-se um objetivo, aparecendo o desejo de mudar de patamar com relação à duração do atendimento: "Hoje, já consegui ficar 17 minutos; na próxima, vou ficar mais tempo".

Já as crianças mais velhas, a partir dos 9 anos, foram conseguindo ampliar o tempo em um ritmo mais rápido e, no segundo semestre, conseguiram um acompanhamento de 30 a 35 minutos.

No primeiro semestre, a aprendizagem era muito mais voltada às questões relacionadas ao afastamento físico, à comunicação à distância ao conhecimento e ao domínio da nova tecnologia. A maioria foi aprendendo a mexer no computador, no tablet e no celular de uma outra forma, diferente daquela conhecida para jogar, por exemplo. Aprenderam onde abre o microfone, onde abre a câmara, onde aumenta o som, como compartilhar a tela, como se utilizam os recursos que uma determinada plataforma oferece e muito mais.

Com isso, também a psicopedagoga aprendia com eles, a respeito de muitas coisas que ainda não sabia sobre as plataformas e os recursos que possuíam. Com muitos deles, logo foi possível falar sobre aprender, facilidades e dificuldades, encontrando recursos pessoais para se trabalhar, e o espaço foi se abrindo para jogos com palavras, desafios lógicos, jogos virtuais, leitura e escrita de histórias, ilustrações, conversas sobre temas da atualidade.

d) Análise do processo de acompanhamento psicopedagógico

Esse andamento possibilitou que: quatro dos sete aprendizes, acompanhados no primeiro semestre, estivessem em condições de participar de um atendimento psicopedagógico (Assistência Psicopedagógica) virtual no segundo semestre; um deles recebeu alta do acompanhamento individual; outro passou para o atendimento psicopedagógico presencial, com outra profissional da Síntese; uma criança de 6 anos não conseguiu fazer avanços e, em entrevista com os pais, foi decidido parar o acompanhamento por estar gerando alto grau de ansiedade e de tensão, tanto para ela quanto para seus pais.

Dos quatro casos que passaram para um atendimento psicopedagógico no segundo semestre, nem todos iniciaram agosto na nova modalidade; porém, gradativamente, foram assumindo seu papel de aprendiz, pensando em projetos e executando-os.

A transformação do atendimento foi acontecendo, o tempo foi se ampliando e, de forma processual, a relação psicopedagoga e aprendiz foi novamente se estabelecendo, e o espaço privado de atendimento foi se construindo. Em somente um dos casos não foi possível estabelecer um espaço privado para o atendimento, pois a configuração da morada exigia que o irmão dividisse o mesmo espaço e horário para as atividades on-line. Então, o uso de fone de ouvido, para ambos, auxiliou em uma relativa privacidade.

Desses casos, surgiram projetos de duração maior, tais como: Contação e escrita de pequenas histórias pessoais; Jogos não virtuais jogados à distância; Pesquisas no espaço virtual sobre temas de interesse; Leitura de histórias infantis e conversas sobre elas; Arte em ladrilhos de papel; Operações com números gigantes; Mágicas; e alguns outros com duração de apenas um ou dois encontros.

A utilização das intervenções de caráter subjetivo ficou mais no formato interrogativo, como um jeito de contribuir para que o aprendiz fosse se situando num novo espaço e condição, assim como promovendo o pensamento e problematizando as situações que apresentavam potencial para a busca de soluções criativas.

É importante, pois, abordar as intervenções de caráter subjetivo. Além da forma e dos recursos materiais que o psicopedagogo utiliza, há algo que acontece no espaço entre o aprendiz e o seu psicopedagogo. Ou seja, acontece um processo de transformação descrito por Visca3 da seguinte forma:

[...] o processo corretor consiste em um conjunto de operações clínicas por meio do qual se facilitam o aparecimento e a estabilização de condutas. Estas operações se realizam entre um sujeito que acompanha o processo e outro que vivencia ativamente, configurando, ambos, um sistema transformador, um sistema do que está para acontecer3. (p. 115)

Em outras palavras, trata-se de como o psicopedagogo dirige-se ao aprendiz, a fim de ajudá-lo a mobilizar-se, a sair do esquema já conhecido e a encontrar outras possibilidades para criar e solucionar problemas. De certa forma, é um elemento provocador, dirigido por meio da fala ou de intervenções corporais, que desequilibra aquele que aprende e convida-o a buscar outras estratégias, que o reequilibrem diante do novo que está sendo vivido naquele momento.

Visca3 desenvolveu um estudo registrando a forma como ele e sua equipe dirigiam-se aos sujeitos que aprendem, elencando alguns recursos de intervenção. Desses, nos atendimentos citados, foram utilizados com mais frequência a Mudança de Situação e a Mostra. Também foi utilizado o Destaque do Comportamento, descrito pela primeira vez por Barbosa6.

Em junho de 2020, foi feita uma experiência com os atendimentos psicopedagógicos em grupo. Começaram a funcionar quatro grupos (com coordenação de duas psicopedagogas); em agosto, a partir de sua avaliação, continuaram apenas dois grupos; em 2021, apenas um grupo. Os dois grupos de crianças com 6 e 7 anos não continuaram, pois houve dificuldade dos aprendizes em compartilhar um espaço virtual; um dos grupos de crianças maiores foi desfeito porque acabou se tornando uma dupla, e um dos integrantes recebeu alta.

2) Atendimento Psicopedagógico

Em março de 2020, para esse atendimento, foram selecionados apenas três casos: dois que já vinham sendo atendidos há mais tempo e um menino de 8 anos que havia terminado o processo de avaliação.

Sua dificuldade específica de aprendizagem exigia uma intervenção imediata (ainda não aprendera a ler, nem a escrever). Havia feito um vínculo muito positivo com a psicopedagoga e com o que realizaram na avaliação, estando bem motivado para iniciar o trabalho. Além disso, foi combinado que os pais deveriam fazer um processo de reflexão a respeito da educação dos filhos, coordenado por uma das psicólogas da Síntese, para que pudessem assumir um papel adequado à situação, de auxiliares da aprendizagem dos filhos, suavizando as cobranças que, naquele momento, não faziam muito sentido para os seus avanços.

a) Enquadramento

As três famílias estavam conscientes de que seria uma experiência e que era possível alterar o enquadramento sempre que necessário, desde que houvesse consenso, tanto a partir da observação da família, incluindo o aprendiz, como a partir da observação da psicopedagoga.

Foi combinado que a psicopedagoga faria a chamada de vídeo. No entanto, com a mãe do menino de 8 anos foi combinado que ela faria a chamada assim que o ambiente e seu filho já estivessem prontos. Isso porque ainda não tinham a vivência de um atendimento psicopedagógico e precisariam construir mecanismos e organização para essa nova proposta. Outro ponto combinado com todos foi de que o atendimento teria uma duração tal, na qual os aprendizes mostrassem aproveitamento, tendo como limite os 50 minutos de um atendimento presencial.

Para o adolescente, o foco continuaria nos objetivos já estabelecidos, mas com recursos diferenciados, e foi iniciada uma proposta de tempo de 45 minutos; para a menina de 10 anos, foi enviado um material específico, a fim de continuar o projeto de aprender que estava sendo encaminhado por ela, gerando muito entusiasmo. O tempo também seria de 45 minutos; para o menino de 8 anos, o tempo inicial seria por volta de 30 minutos, o qual poderia ser alterado conforme as necessidades.

Ficou combinado que essa seria uma experiência e que haveria nova conversa sobre qualquer mudança. O mesmo enquadramento foi realizado junto aos pais e aos aprendizes. Foram mantidos os honorários para os dois aprendizes que já estavam em atendimento; o enquadramento foi efetuado no caso que iniciaria o processo corretor, como um passo previsto após ao processo de avaliação psicopedagógica, com os mesmos honorários de um atendimento presencial, pois o valor não era determinado pelo tempo de trabalho, e sim pelo que seria construído para realizar o atendimento.

b) Atendimento 1 - Menina criativa que ocupava o silêncio com excesso de palavras e movimentos

A menina de 10 anos, que estava quase em processo de alta, não aceitou a alta nesse período por estar desenvolvendo um projeto de artes plásticas e relaxamento, o qual gostaria de terminar. Seus pais, embora desejassem aproveitar a interrupção provocada pela pandemia para acelerar a alta, tiveram de repensar e, durante o primeiro semestre, ela continuou recebendo o atendimento psicopedagógico na modalidade virtual.

Seu projeto envolvia três elementos: desenho por meio de repetição de padrões, sem planejamento inicial, em ladrilhos de papel 9 cm x 9 cm; uso de aquarela para manchar o papel e busca de imagens entre as manchas; relaxamento por meio da audição de músicas selecionadas para esse fim. Seu trabalho estava gerando imagens que seriam selecionadas para uma exposição física, a qual aconteceria em um Café da cidade. Inicialmente, sua produção era muito criativa, mas realizada de forma bastante afobada, sem preocupação com acabamento. Aos poucos, foi sendo trabalhada a importância do acabamento e da respiração durante o fazer. Infelizmente, antes de concluir o processo, por uma questão da dinâmica familiar, ela teve seu projeto interrompido pelos pais. Foi feito um fechamento, e uma de suas obras foi colocada em uma exposição virtual no Instagram da Síntese. Quase um ano depois, no dia 19 de julho de 2021, três de suas obras foram incluídas na exposição física do referido Café, com sua autorização e a de seus pais.

c) Atendimento 2 - Adolescente que não quis parar o atendimento presencial

Por muito tempo, ele havia resistido ao atendimento psicopedagógico. Chegava arrastando os pés, mexendo no celular e fazendo caras e caretas, mas com uma atitude obediente: "Faço porque vocês querem". Quando retornou ao atendimento, em fevereiro de 2020, trouxe algumas demandas; principalmente, queria entender o para quê e o porquê do atendimento, e estava conversando com a psicopedagoga sobre isso.

Ao se utilizar o instrumento de avaliação idealizado por Pichon-Rivière7, o Cone Invertido, constatou-se que ele acabava de dar sinais de pertencimento ao atendimento psicopedagógico. Aquilo que antes era entendido como mera filiação transformava-se em sentimento de pertença, embora ainda com conotação negativa e com uma postura mais crítica, a qual superava o comportamento de aceitação aparente e encaminhava-se para um fazer parte.

Retornou com o desejo de se apropriar do trabalho. Entrou em um Projeto de Jogo de Baralho e, por meio dele, foram-se utilizando metáforas para ele ir compreendendo seu jeito de funcionar para aprender. Eram, basicamente, dois jogos: Crapô (Crapette) e Mexe-mexe. Ficava sempre mais animado quando ganhava e resistia um pouco para aprender jogos que não conhecia; porém, quando aprendia e podia desenvolver estratégias, não queria parar. A pandemia chegou exatamente em um desses momentos, e ele, junto com seus pais, preferiu continuar on-line. A mudança do meio onde acontecia o atendimento quase não foi percebida; aprendiz e psicopedagoga conversavam bastante sobre os jogos que estavam jogando e escolhiam outras atividades para o meio virtual. Trabalharam com Stop, com desafios matemáticos de Malba Tahan, com desafios do livro Ensinar a pensar, de Raths8, com músicas, bandas e filmes. Seu amadurecimento foi visível e, em outubro de 2020, veio o seu pedido de alta. Foram discutidos: seus avanços; sua caminhada para assumir a si mesmo como autor de seus pensamentos; sua capacidade de criar estratégias de organização para se tornar mais independente do querer e do fazer de sua mãe; sua capacidade de argumentar quando queria que o outro entendesse seu ponto de vista; sua atitude diante da vida, fazendo e justificando suas escolhas. Assim, o adolescente recebeu alta do atendimento psicopedagógico, com uma nova percepção de si, já que também conseguiu passar de ano por mérito próprio, sem precisar do aval do Conselho de Classe.

d) Atendimento 3 - Da avaliação presencial para o atendimento virtual

Um aprendiz de 8 anos, recém-avaliado, com quadro grave de dificuldade específica de aprendizagem da linguagem escrita, cujo início do atendimento psicopedagógico estava marcado para dia 24 de março de 2020, estava bastante ansioso para iniciar o processo. Embora fosse uma novidade, pela motivação dele, foi decidido arriscar o atendimento virtual, desde seu início. Esse foi o caso escolhido para um relato completo, durante um ano e meio de atendimento virtual, como segue.

3) Relato de Um Caso

Com o aprendiz de 8 anos, foi realizada a avaliação psicopedagógica num enfoque sistêmico, presencial; após a devolutiva aos pais e à escola, o atendimento ficou marcado para o dia 24 de março de 2020. Com a notícia da Pandemia e a necessidade de isolamento social, não seria possível dar início como previsto. Pensando na motivação dele, na possibilidade de iniciar o trabalho com suas grandes dificuldades de aprendizagem de leitura e escrita e de comportamento diante das tarefas escolares e não escolares, ponderou-se sobre a possibilidade de tentar iniciar um atendimento via Internet tanto para os pais, com a terapeuta familiar, quanto para o aprendiz no atendimento psicopedagógico.

O relato do atendimento psicopedagógico do dia 24/03 ao dia 16/04 diz respeito a sete encontros com o aprendiz e um encontro com a mãe, para reenquadramento, e já fora encaminhado para a ABPp, ao Grupo Emergencial Coronavírus. Esse relato e a continuidade do trabalho, que adentrou 2021, são apresentados a seguir.

Os encontros foram mediados pela linguagem, e a maioria das atividades foram propostas por ele.

No primeiro encontro, psicopedagoga e aprendiz conversaram sobre Coronavírus e as possibilidades encontradas para que pudessem trabalhar juntos, objetivando uma maior e melhor aprendizagem daquilo que ele ainda precisava aperfeiçoar. Quando perguntado sobre por onde começar, ele respondeu que podiam desenhar um carro; ele fazia lá na casa dele e ela na sua. Assim foi feito. Ele desenhou um caminhão. Os resultados foram mostrados, a psicopedagoga perguntou a ele para onde esse caminhão ia, ele foi contando e ela registrando. O caminhão estava levando álcool gel e papel para se limpar a mão e ninguém pegar Coronavírus (o desenho foi mandado por WhatsApp, para ser arquivado). Ao convite para elaborar uma história desse caminhão, ele disse que iria contar a história de um menino que queria sair de casa e passear com o cachorro. Ao final dos 30 minutos, ele ainda não havia terminado a história e deixou para continuar no encontro seguinte.

No encontro seguinte, ao término da história, ele propôs trabalhar com dobradura, ensinando a fazer uma lancha. Além da lancha e de um barco, foi realizada a brincadeira do Come-come, de dobradura, e ele escreveu coisas para o momento de falar o número e escolher a cor (já nesse encontro, venceu a barreira da escrita, à qual vinha se negando em casa e na escola). Foi um encontro dinâmico. Com o barco de papel, brincaram de "Lá vai o barquinho carregadinho de...". Nessa brincadeira, um diz: "Lá vai meu barquinho carregadinho de pi" (por exemplo), e o outro diz uma palavra começada por pi: "pipoca".

Nos encontros, a psicopedagoga seguiu aguardando a iniciativa dele, embora sempre trouxesse algo que pudesse colocá-lo em movimento, caso ele não tivesse nenhuma proposta.

No encontro seguinte, ela trouxe miniaturas, e ele trouxe massinha. Então, ele contou uma história a partir de duas miniaturas e, em vez de ilustrar a história, fez uma pequena maquete de massinha. O produto foi fotografado e enviado por mensagem no WhatsApp. Ela pediu que desse um nome para a história e escrevesse ali no papel que servia de base para a maquete, e ele fez de conta que escreveu. Quando pediu para ver, ele riu e confessou que não havia escrito. Então, seguiu-se uma conversa sobre isso: quando não desejasse escrever, podia falar que ela escreveria para ficar registrado, e não iam esquecer (intervenção chamada de Informação3). Então, ele falou o nome da história para ela escrever, e começou aí uma brincadeira de soletrar que durou vários encontros. Ela dizia: "Como escrevo tal palavra?", e ele ia dizendo as letras; também ela soletrava as letras das suas palavras para ele escrever.

No encontro seguinte, trouxe os dados de contar história que tinha ganho. Organizava os dados, mostrava a ordem e contava a história.

No oitavo encontro, houve uma conversa com a mãe, a qual fez o seguinte relato: "O fulano já mostra resultados do trabalho; está começando a se posicionar sobre as suas dificuldades e a contar sobre descobertas que está fazendo para falar e escrever"; além de repetir a fala dele: "Mãe, quando tem uma palavra muito difícil, eu repito para ficar mais fácil". Ainda contou que ele já estava conversando mais com os pais; vinha animado para o atendimento psicopedagógico; porém, nas aulas da escola, não apresentava o mesmo entusiasmo, nem o entendimento, dizendo que gostava da aula de Inglês, porque ninguém entendia a professora.

Também a psicopedagoga havia percebido melhora, principalmente no que dizia respeito a pensar a palavra a ser escrita. Ainda resistia a escrever, mas estava feliz por conseguir pensar a palavra na brincadeira de soletração. Falava palavras bem difíceis para ela soletrar, registrando sua soletração; depois, ela registrava a dele. Estava organizando melhor o pensamento para contar histórias; suas histórias traziam conteúdos subjetivos, nos quais simbolizava os medos referentes ao momento de quarentena e isolamento social.

Com esse aprendiz, parece que este formato, virtual, surtiu efeito.

Ao final de abril, início de maio, foi possível compreender o que se passava com ele a partir das histórias que contava e ela escrevia. Ela percebia que a não necessidade de escrever, naquele momento, ajudava-o organizar seu pensamento e sua expressão oral. Trabalhava com a linguagem de forma lúdica e, com a mediação, ia encontrando as palavras de que precisava. Contava o assunto em partes, a partir das perguntas, e ela ia organizando; lia para ele, para ver se concordava; muitas vezes, ele dizia que não era bem aquilo, e ela arrumava. No final de todos os ajustes, ele ficava orgulhoso de ter conseguido pensar uma história. Seguem alguns exemplos.

Era uma vez um menino que queria passear na rua. Então, se arrumou todo para passear com o cachorro na rua. Esqueceu que era tempo de Coronavírus e esqueceu a máscara em casa. A mãe ficou maluquinha, e ele voltou correndo para casa para pegar a máscara. A mãe não deixou que ele voltasse. Ele esqueceu que tinha um jardim na casa dele e que era um bom espaço para brincar com o cachorro. Então, o menino passeou com o cachorro dentro do jardim, e o cachorro aproveitou para fazer pipi. Ele gostou muito de brincar com os galhos e jogar bolinha para ele. O cachorro ficou tão cansado que pediu para entrar e tomar um pouco de água, e o menino aproveitou para chamar os amigos para brincar junto. E a mamãe lembrou o menino que, em tempo de Coronavírus, cada um na sua casa. Então, o menino pediu o telefone para mãe e conversou com os amigos por mensagem. Ele teve uma ideia e começou a ler um livro para não ficar com tédio. Era uma Bíblia, para saber como foi a primeira letra que foi inventada. Assim os amigos, cada um em sua casa, foram aprendendo a história da escrita... o alfabeto.

Essa história simboliza muitas novidades da quarentena, seus medinhos, suas vontades e suas questões com a escrita. Embora constatasse que o conteúdo de sua história trazia questões afetivas, ela deixou que ele resolvesse esses temas no nível simbólico da contação de histórias. Deixá-lo contar, sem necessariamente perguntar sobre, já é uma forma de intervenção no atendimento em Psicopedagogia, denominada Vivência do Conflito6.

A psicopedagoga considerou interessante descrever um dos encontros para mostrar como nasciam as histórias.

Exatamente às 17h, ele a chamou, e iniciaram sua conversa em seguida aos cumprimentos.

P - O que fez de bom?

M - Tarefa da escola, pintura.

Enquanto vai dizendo, envia os emojis que expressam emoções, disponíveis na plataforma na qual trabalhavam.

P - Está me enviando estes emojis por ter pensado em fazer algo com eles? O que pensou?

M - (bocejando) Dormi não!

P - Diz que está cansado, é isso?

M - Vou escolher algo.

Ele levanta-se para pegar o material que utilizaria nesse encontro e traz um lego.

M - Demora muito para fazer uma coisa.

P - Você vai seguir um modelo ou inventar?

M - Inventar.

P - Pode ter um tempo de montagem:10 minutos. Até 17h15, o que acha? É um bom tempo?

M - Tá (olhando no relógio do computador). Fiz um minicarro, da marca tal.

P - Quem vai ser o motorista desse carro?

M - Tem que achar.

P - Não dá para montar?

M - Não, ele fica muito grande.

P - Então, se não achar o motorista no meio de tanto lego, não precisa; você imagina e conta quem é esse motorista.

Ele vai colocando as rodas e diz que fará algo muito diferente. Um carro de três rodas: duas altas e uma pequena.

M - Vai ser um carro bem colorido. Se tivesse mais tempo, eu ia fazer mais coisas.

P - Você ainda tem dois minutos; é bastante tempo, e dá para contar duas vezes até 60.

Após o tempo, ela pede que ele feche a caixa.

P - Me conte... Esse carro indo por uma estrada e chegando num lugar muito bonito...

M - Primeiro, tenho que pensar.

Ela vai fazendo perguntas e, com as respostas dele, escreve e vai o colocando a par, para conferir se ela tinha compreendido e escrito como ele queria. Após alguns ajustes, a história ficou como segue.

O carro está indo para praia. Meu pai está dirigindo, e a família toda está indo. São mil quilômetros e uma hora e meia de viagem. Vamos para tal praia. Compramos uma casa lá, e as pessoas deixaram coisas na casa: uma TV estragada, cama... Mas tem coisas que precisam arrumar. Vou encontrar meu avô e minha avó, pois eles estão lá por causa do Coronavírus.

Ela percebe que ele ainda não conseguia inventar uma história; por isso, utilizava-se da experiência vivida para contá-la. Ainda necessitava das perguntas de quem mediava para ir construindo seu relato. No entanto, o importante é que o sono passou, que ele se empolgou e ficou alegre ao compreender que, durante os 30 minutos, ele foi muito produtivo: conseguiu inventar um carro de três rodas e criar uma história para ele.

No mês de maio de 2020, após o projeto de contar histórias a partir de desenhos, de miniaturas, de montagens com lego, ele começou uma fase de brincar com palavras: eles colocavam no chat as letras embaralhadas de uma palavra e tinham que descobrir o maior número de palavras que conseguiam formar com aquelas letras; tinham de mandar uma figura e descobrir o nome do filme; mandar charadas para descobrir e colocar a resposta com emojis. Continuaram com brincadeiras de rimas, as quais, de certa forma, lidavam com as questões que envolviam o nível alfabético de aquisição da escrita, ao mesmo tempo em que lidavam com as questões ligadas ao pensamento, à sequenciação de ideias e outros. Eles trabalharam muito com a descoberta de elementos escondidos em imagens, ilusão de ótica, palavras misturadas e caça-palavras; com leitura de histórias, montagem de histórias no programa Power Point, desenhos com recursos encontrados nos programas com os quais ele tinha contato por meio do computador.

O pai foi envolvido num programa de leitura; paulatinamente, a mãe foi sendo retirada da organização do cotidiano de tarefas escolares, visando uma autonomia maior dele, então com 9 anos. Em outubro, ele começou a apresentar sinais de cansaço e a envolver-se com os jogos eletrônicos. Perdia-se nos horários e atrasava muito para os encontros. Foi feita orientação aos pais para organizar o tempo de trabalho e o tempo de diversão, a fim de que ele pudesse conhecer os jogos que seus amigos estavam jogando, mas também pudesse se organizar com seus compromissos na família e na escola.

O menino terminou 2020 mais animado, tentando introduzir no trabalho psicopedagógico alguns jogos eletrônicos, principalmente os que envolviam o raciocínio lógico-matemático. Foi feito o encerramento em dezembro de 2020, e o retorno combinado para 2021, depois do Carnaval. No momento, foi ele quem lembrou os pais de seu compromisso com o atendimento psicopedagógico.

Passou de ano, com decisão numa reunião proposta pela escola, na qual estiveram: a coordenadora pedagógica, a professora, os pais e a psicopedagoga. A escola, apesar de perceber seu avanço na leitura, seu entusiasmo pelas aulas presenciais e, principalmente, pela aula de Artes, ainda percebe que ele foge da leitura e vem apresentando questões comportamentais quando se dá conta que se aproxima a cobrança a respeito de algo que não fez.

Em junho de 2021, houve uma reunião com a escola, e foram combinadas algumas ações que a professora passará a adotar com ele, em sala de aula, visando a lidar com a ansiedade diante do não saber e do não fazer da forma como os outros fazem, assim como com os medos que decorrem dessa ansiedade e são a causa atual das atitudes que tem apresentado. Foi diminuída a frequência do atendimento psicopedagógico, a fim de que seus pais realizassem mais um período de acompanhamento e reflexão sobre educação de filhos, agora em um novo momento: com um filho que aprendeu a lidar com os eletrônicos, que aprendeu a ler e a escrever, mas não atingiu a fluência esperada pelos pais, pela escola e por si mesmo e, por isso, defende-se e opta por realizar mais atividades de arte e artesanato, por jogar on-line, do que se disponibilizar para as atividades de leitura e de escrita.

Ao final, foi utilizado o Cone Invertido, apresentado por Visca3, a fim de avaliar seu desenvolvimento.

Este instrumento conceitual elaborado por Pichon-Rivière [...] serve tanto para avaliar a conduta do paciente (individual ou grupal) como a do psicopedagogo. O cone invertido toma o nome de sua representação gráfica [...] Este instrumento é composto de seis vetores de análise: os da esquerda (pertencimento, cooperação e pertinência) e os da direita (comunicação, aprendizagem e tele), em virtude dos quais é possível medir, em termos dinâmicos, a mudança3. (p. 55)

Por meio dessa forma de análise, após um ano e meio de trabalho em conjunto - família, escola, atendimento aos pais e atendimento psicopedagógico -, constatou-se que ele já pertence ao atendimento psicopedagógico e ao espaço escolar; prefere estar na escola do que fazer atendimento on-line; curte os jogos corporal, eletrônico e físico; sente-se autor de seus desenhos, construções e histórias; no entanto, percebe que aquilo que conseguiu ainda está aquém das exigências do contexto familiar e escolar. Pertence, coopera, mas ainda não atingiu a eficácia esperada por si mesmo e pelos adultos que acompanham seu processo de aprender.

Por outro lado, tem se posicionado em sua comunicação, dizendo o que deseja ou não fazer, sem obedecer simplesmente, sem vontade. Tem dito o que quer e o que não quer, em vez de fugir. Tem ficado mais tempo em pré-tarefa, devido ao aumento de sua capacidade de compreensão do entorno, e também do seu desejo de corresponder ao que os outros esperam dele. Quando consegue dar sentido ao que estão fazendo no atendimento e compreender o seu significado, mergulha na atividade e realiza suas ações com muita alegria. Entra na tarefa e propõe novos projetos; está aprendendo, em seu ritmo, sobre as belezas escondidas nas palavras e na Língua Portuguesa. Desde o início de 2021, já consegue participar de um atendimento de 50 minutos de duração. Ainda não mantém uma distância afetiva ótima entre si mesmo e as tarefas formais que a escola apresenta, pois algumas delas estão além de suas possibilidades de desenvolvimento na área da linguagem, e também se utiliza de condutas defensivas para proteger-se do medo de errar e de não aprender.

O menino de 8 anos, agora com 9, aprendeu a ler e a escrever, investindo, ainda timidamente, no aperfeiçoamento das funções perceptivas, discriminativas, sintáticas e semânticas que estão envolvidas na aprendizagem da Língua Portuguesa na escola.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, com dez aprendizes e suas famílias, houve um início, um fazer, um caminho que ainda não havia sido trilhado em Psicopedagogia; durante o percurso, alguns receberam alta por ter melhorado, outros saíram por necessidades do contexto familiar, e novos aprendizes chegaram.

Assim, esse caminho foi feito ao caminhar, utilizando o ECRO da Epistemologia Convergente, já existente e que sustentou o processo, numa nova paisagem, a qual exigiu aprendizagens da psicopedagoga, como pessoa e profissional, e dos aprendizes e suas famílias. Compartilhar esse período histórico, no qual foi preciso permanecer em afastamento físico, possibilitou encontrar novas formas de proximidade social e relacional para aprender.

 

REFERÊNCIAS

1. Machado A. Caminhante. [acesso 2021 Jul 16]. Disponível em: https://poesiaspreferidas.wordpress.com/2013/09/17/caminhante-antonio-machado/        [ Links ]

2. Pichon-Rivière E, Quiroga AP. Psicologia da vida cotidiana. São Paulo: Martins Fontes; 1998.         [ Links ]

3. Visca J. Clínica psicopedagógica: a Episte-mologia Convergente. Barbosa Barbosa LMS, trad. 2ª ed. São José dos Campos: Pulso; 2010.         [ Links ]

4. Fernandes JW. O processo comunicativo vincular e a psicanálise dos vínculos. In: Fernandes JW, Svartman B, Fernandes B, orgs. Grupos e configurações vinculares. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 41-55.         [ Links ]

5. Barbosa LMS. Introdução. In: Barbosa LMS, org. Intervenção psicopedagógica no espaço da clínica. Curitiba: Ibpex; 2010. p. 13-21.         [ Links ]

6. Barbosa LMS. O projeto de trabalho: uma forma de atuação psicopedagógica. Curitiba: Mont; 1998.         [ Links ]

7. Pichon-Rivière E. Processo grupal. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2005.         [ Links ]

8. Raths LE. Ensinar a pensar. São Paulo: EPU; 1977.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Laura Monte Serrat Barbosa
Rua Mauá 838/1002
Curitiba, PR, Brasil - CEP 80030-200
E-mail: lauramserrat@hotmail.com

Artigo recebido: 16/7/2021
Aprovado: 12/10/2021

 

 

Trabalho realizado na Síntese - Centro de Estudos, Aperfeiçoamento e Desenvolvimento da Aprendizagem, Curitiba, PR, Brasil.
Conflito de interesses: A autora declara não haver.

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