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Revista Brasileira de Psicodrama
versão On-line ISSN 2318-0498
Rev. bras. psicodrama vol.26 no.1 São Paulo jan./jun. 2018
https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180002
ARTIGOS DE REFLEXÃO
Tempo, espaço, realidade e cosmos: clínica ampliada e sofrimento psíquico
Time, space, reality and cosmos: expanded clinic and psychic suffering
Tiempo, espacio, realidad y cosmos: clínica ampliada y sufrimiento psíquico
Ana Paula de FreitasI; Érico Douglas VieiraII
IPsicóloga. Psicodramatista-Didata-Supervisora. Professora no Centro Universitário do Triângulo (Unitri) e na Casa das Cenas/FEBRAP em Uberlândia/MG. E-mail: apfreitas691@gmail.com
IIPsicólogo. Psicodramatista. Doutor em Psicologia. Professor da UFG na Regional Jataí. E-mail: ericopsi@yahoo.com.br
RESUMO
O presente artigo procura aproximar os termos Clínica Ampliada e Psicodrama, com base nos quatro universais morenianos - tempo, espaço, realidade e cosmos -, com o objetivo de analisar a atuação clínica do psicólogo na contemporaneidade. De certo modo, pode-se dizer que o Psicodrama, como uma teoria de caráter psicossocial, já "expande" o fazer clínico, pois parte do grupo o microcosmos das relações humanas como a menor unidade de intervenção, trazendo em sua gênese uma concepção da condição humana inserido nas coletividades. O diálogo com pensadores que explicam a contemporaneidade enriquece e atualiza os saberes socionômicos.
Palavras-chave: clínica ampliada, psicodrama, contemporaneidade
ABSTRACT
The article approximates the terms Extended Clinic and Psychodrama, based on the four universals - time, space, reality and cosmos -, aiming at analyzing the clinical performance of the psychologist in the contemporary world. In a way, it can be said that Psychodrama, as a psychosocial theory, can "expand" the clinical practice, once it analyses the microcosms of human relations as the smallest intervention unity, bringing in its genesis a conception of the human condition inserted in the collectivities. The dialogue with thinkers who explain contemporaneity enriches and updates the socionomic knowledge.
Keywords: extended clinic, psychodrama, contemporaneity
RESUMEN
Este artículo pretende acercar los términos Clínica Ampliada y Psicodrama, a partir de los cuatro universales morenianos - tiempo, espacio, realidad y cosmos - con el fin de analizar la actuación clínica del psicólogo en la contemporaneidad. En cierto modo, se puede decir que el Psicodrama, como una teoría de carácter psicosocial, ya "expande" el trabajo clínico, porque surge del grupo el microcosmos de las relaciones humanas como la unidad más pequeña de la intervención, trayendo en su génesis una concepción humana insertada en las colectividades. El diálogo con pensadores que explican la contemporaneidad enriquece y actualiza los saberes socionómicos.
Palabras clave: clínica ampliada, psicodrama, contemporaneidad
1. INTRODUÇÃO
O sofrimento psíquico pode ser compreendido pela perspectiva de uma intrincada rede que sustenta o acontecimento/fenômeno psicopatológico. Essa rede é constituída por família, profissionais, instituições, lugares públicos urbanos, tudo isso entrelaçado na intersubjetividade do sujeito em sofrimento mental com seu ambiente sociocultural.
A clínica ampliada emerge como perspectiva que sustenta essa concepção do sofrimento em função do contexto social. Uma importante premissa desse referencial é desenvolver a capacidade de cuidar das pessoas, não só para combater as doenças, mas para se transformar, de forma que a doença, mesmo sendo um limite, não as impeça de viver outras diferentes dimensões em sua vida (Brasil, Ministério da Saúde, 2004). A clínica ampliada visa à autonomia do sujeito e deveria permear a prática de todos os profissionais da saúde.
O enquadre da Psicologia Clínica vem se transformando na direção de um afastamento progressivo das influências iniciais do modelo médico, que trazia para o campo a ênfase na compreensão e no tratamento da doença. Para se diferenciar do modelo médico, a prática clínica psicológica objetiva vincula-se à demanda do sujeito integral, em vez de desenvolver um foco na patologia (Moreira, Romagnoli & Neves, 2007). Além disso, o fazer clínico tradicional representava um sistema mais voltado para o indivíduo (Lo Bianco, Bastos, Nunes & Silva, 1994). Por muito tempo, a Psicologia Clínica esteve associada a um modelo no qual o profissional liberal atendia em seu consultório privado, aplicando teorias importadas, com alto custo, e englobando uma parcela restrita da população. Há, recentemente, uma mudança de enquadre da Psicologia Clínica. Os psicólogos clínicos rejeitam a expectativa social de uma função adaptativa e normatizada e posicionam-se na direção da escuta do que foi interditado no social que se manifesta no sofrimento (Vieira & Boris, 2012). Com a saída da clínica privada, o contexto social é uma dimensão que ganha cada vez mais espaço.
A prática clínica psicológica esteve durante muito tempo atrelada a noções higienistas como curar, remediar e tratar doenças, distante das questões políticas e sociais. A psicologia, como ciência humana, surgiu no mesmo mote das ciências naturais que pretendiam conhecer e controlar a natureza: controlar e intervir na realidade humana e social. O objetivo inicial da Psicologia era a intervenção com pessoas que não se enquadravam no projeto cartesiano do homem racional da Modernidade. Assim, acreditamos ter surgido e se perpetuado uma clínica neoliberal que tratava das mazelas individuais e que pode ter servido como suporte para o modelo individualista que manteria a lógica do capital em detrimento do humano (Moreira et al, 2007). No entanto, o que se percebe mais recentemente é que os psicólogos se interessam cada vez mais pelas ideias da clínica ampliada. Os profissionais são solicitados a responder às novas formas de subjetivação, além de a presença deles ser crescentemente mais constante em locais como sistema público de saúde, sistema de assistência social, comunidades, sistema carcerário, escolas e creches, entre outros. A mudança nos contextos, nos tipos de públicos e nas ênfases pede a criação de novas intervenções e conceitos para acompanhar essas transformações. Existe um consenso crescente de que a Psicologia brasileira deve transcender a mera aplicação de teorias importadas e inventar novas formas de intervenção que sejam comprometidas socialmente (Vieira & Boris, 2012).
Neste artigo, procura-se refletir sobre a necessidade de ampliação do espaço clínico como condição de manejo das diferentes formas de sofrimento psicossocial presentes no mundo contemporâneo. Esse itinerário reflexivo será fundamentado no arcabouço teórico-metodológico do Psicodrama. Podemos entender que o Psicodrama em sua origem traz uma concepção de clínica ampliada. As primeiras experimentações teatrais de Moreno no início do século XX se deram com movimentos sociais com pessoas marginalizadas - crianças, prostitutas, loucos - facilitando os fluxos coletivos criativos. Moreno contestava a subjetividade hegemônica da época como ordens sociais aprisionadoras e os modelos científicos vistos como estruturas rígidas e restritivas da expressão de fluxos criativos (Zamboni, Oliveira, Canal, Barros & Cordeiro, 2014).
Em sintonia com o pensamento moreniano, as reflexões do presente estudo pautaram-se na ideia de subjetividade fundamentada nas relações, afetada pelos encontros, pelas relações de poder e atravessada pelas práticas culturais (Hunning & Guareschi, 2005). O foco seria a subjetividade imersa nas práticas institucionais, permeadas pelas tensões e pelas lutas das relações de poder, num campo sociocultural que produz determinados tipos de sujeitos. As reflexões de uma clínica ampliada, suscitadas pela escuta do sofrimento direcionada para contextos e grupos sociais diversos, colocam em xeque uma ideia de sujeito universal, homogêneo e a-histórico, bem como a ideia de uma subjetividade circunscrita a uma clausura individual-familiar (Silva & Carvalhaes, 2016).
Primeiramente, serão descritos os quatro universais do sistema filosófico de Moreno, o criador do Psicodrama, que podem servir de suporte à clínica ampliada. Nesse item, serão descritos alguns tipos de sofrimento psicológico fomentados pela ordem vigente na contemporaneidade. Finalmente, serão trazidas algumas propostas da clínica ampliada e do Psicodrama para lidar com os desafios da contemporaneidade.
2. OS QUATRO PRINCÍPIOS UNIVERSAIS SOCIONÔMICOS E SUA INTERFACE COM A CONTEMPORANEIDADE
Os quatro princípios universais - tempo, espaço, realidade e cosmos - descritos por Moreno (1975) são fatores potentes para ampliar a atuação e a compreensão da prática clínica na contemporaneidade. Seu objetivo sempre foi um espaço terapêutico que utilizasse a vida como modelo e, portanto, integrou esses quatro elementos na ação psicoterápica (Fox, 2002).
Na literatura psicodramática, podemos perceber que Moreno era ambicioso em seu projeto socionômico: "Um procedimento verdadeiramente terapêutico deve ter por objetivo a espécie humana" (Moreno, 1992, p. 117). Nessa afirmação, ele rompe com a ideia de um procedimento terapêutico que tenha como meta "normalizar" ou "adaptar" o indivíduo em sofrimento. Qualquer transformação se daria em consequência da reorganização inter-relacional entre o indivíduo e o agrupamento. Esses quatro universais permitem, portanto, refletir sobre o sofrimento psíquico no contexto da clínica ampliada.
Consideremos a dimensão do tempo. O momento vivido da terapia, o aqui e agora fenomenológico, é constituinte do processo psicoterapêutico. O jogo de papéis só se dá num tempo vivido, e esse tempo é o agora. Mesmo diante da necessidade de retornar ao passado - para mapear bloqueios da espontaneidade - ou de pular para um tempo futuro, para planejar ou sonhar, é no presente que o fenômeno será significado e/ou ressignificado e rematrizado no sentido psicodramático.
Na contemporaneidade, a vivência da temporalidade encontra-se alterada. Há um constante processo de aceleração, de forma que todos são pressionados a acompanhar a velocidade dos acontecimentos, da profusão de informações. As novas imagens e informações exigem constantes reavaliações e reposicionamentos (Contro, 2004). Esse excesso de estímulos sobrecarrega a todos com informações desnecessárias, confundindo a busca de satisfação das reais necessidades de cada um. Selecionar o que é importante se torna uma difícil tarefa.
Outra questão que tem a ver com a aceleração do tempo é a dificuldade de esperar as gratificações ou as situações prazerosas. Se em épocas anteriores as intervenções clínicas tinham que lidar com pessoas reprimidas e impedidas de sentirem prazer, deparamo-nos atualmente com o imperativo de ter que ter prazer o tempo todo (Khel, 2011). Talvez hoje possamos ajudar a autorizar os sujeitos a desobedecerem ao imperativo do gozo, ou seja, de que é impossível ter prazer e gratificações o tempo todo. A opressiva sensação de estar perdendo oportunidades de satisfação nos deixa dispersos e fragmentados. Como antídoto, poderíamos perseguir uma melhor delimitação pessoal, selecionando gratificações e renunciando a alguns estímulos.
Portanto, a dimensão do tempo, desenvolvida pela metodologia moreniana, pode contribuir para lidarmos a partir de experiências psicodramáticas com o excesso de estímulos e com o imperativo do prazer, por exemplo. Como entende Blatner (1997), o Psicodrama integra o uso da imaginação, da ação, da expressão verbal e da autorreflexão. Dessa forma, pode ser um dispositivo que contribua para refletir sobre as imposições da cultura do desnecessário.
Na dimensão cósmica, a fisiologia e a biologia são secundárias. "O que importa é a expansão do homem em relação às necessidades e às fantasias que ele tem a respeito de si mesmo. Ele se torna o senhor da anatomia e da fisiologia, em vez de servo" (Fox, 2002, p. 43). Nesse aspecto, o pensamento moreniano é vanguardista e se coaduna com paradigmas contemporâneos para pensar a condição humana. O homem pode exercer a criatividade infinita do cosmos e, em especial, no palco psicodramático por meio da realidade suplementar. Se o homem "inventava" o cosmos por meio das religiões e das mitologias, hoje "os caminhos do futuro estão totalmente abertos à especulação ... Até mesmo a diferença entre sexos pode não ser fixa, podendo ser transitória" (Fox, 2002, p. 42). Essa observação remete à importante e atual discussão de gênero. Para citar um exemplo, Preciado (2015) propõe a destruição das nomenclaturas de gênero, considerando que a cultura transcende até mesmo a fisiologia. A chamada Natureza Humana não mais seria a ordem que sujeita corpos uns aos outros num modo determinista e reducionista.
Assim, a compreensão mais ampliada da doença mental, como uma construção histórica, coletiva, mutável, tem se mostrado de maior valor para pensar as intervenções, que, quando bem planejadas, envolvem, além dos fármacos, o trabalho com o maior número de pessoas do átomo social do indivíduo. A concepção psicodramática contextual demonstra que os sintomas psicopatológicos nem sempre se originam "dentro" do indivíduo, mas representam respostas ou reações às dinâmicas grupais, familiares ou sociais (Contro, 2004). Portanto, as intervenções precisam se dar no mesmo nível onde ocorrem os fenômenos psicopatológicos, ou seja, na teia de relações que envolvem os sujeitos.
Outro contexto a ser considerado é o espaço. O Psicodrama trabalha a dimensão do espaço quando delimita, concretiza a cena representada pelo protagonista. Dado que o trabalho das pessoas que trabalham com a clínica ampliada acontece nos mais diferentes lugares (na casa, na rua, no consultório, na praça etc.) e com os mais diferentes grupos, o espaço em que o sujeito habita e pelo qual ele circula é o cenário em que seu script de vida será coconstruído. A cidade, portanto, emerge como espaço de intervenções clínicas e sociais.
Na atualidade, a cidade é um elemento ativo na constituição da doença mental. Com todas as suas características - aglomerações, desigualdades socioeconômicas, violência -, a cidade adoece e faz adoecer. Bauman (2005) aponta o termo mixofobia (oposto à mixofilia) para se referir à obsessão das pessoas na cidade em demarcar fronteiras. O autor argumenta que quanto mais as pessoas se isolam nas comunidades muradas feitas de homens e mulheres semelhantes a eles mesmos, menos são capazes de lidar com o estrangeiro.
Ao mesmo tempo, é na cidade que se faz presente as possibilidades inventivas e criativas do enfrentamento e da convivência com o sofrimento psíquico, com as "loucuras". A razão é simples: a rede que sustenta o acontecimento psicopatológico já mencionada - cujo "tecido" são as inter-relações entre o trabalho/estudo, as configurações familiares e o suporte social -só pode ser feita, desfeita e refeita nela, na própria cidade.
Isso nos conduz à quarta dimensão: a dimensão da realidade. Esta pode ser simulada no "como se" psicodramático, a fim de que as pessoas (re)aprendam a desenvolver novas técnicas de vida em uma realidade suplementar, no palco psicodramático. Mas, afinal de contas, qual a realidade do cotidiano clínico? E quais sofrimentos os sujeitos têm enfrentado?
Para uma atuação ampliada no trabalho clínico de escuta do sofrimento contemporâneo, emerge cada vez mais uma necessidade de se fazer uma leitura crítica da cultura na qual estamos inseridos e de suas implicações subjetivas e sociais.
Os sofrimentos contemporâneos podem ser melhor visualizados com base nos diagnósticos da cultura feitos por diversos estudiosos de enfoque psicossociológico. A sociedade contemporânea, então, é denominada de Modernidade Líquida (Bauman), Sociedade do Espetáculo (Debord), Cultura do Narcisismo (Lasch), Era do Vazio (Lipovetsky), entre outros. Dessa forma, pode-se tecer itinerários reflexivos sobre diversas manifestações subjetivas e sociais que ocasionam sofrimento psíquico e esvaziamento dos potenciais criativos. A excessiva valorização da imagem, o processo de autocentramento dos sujeitos, a crescente fragilidade dos laços sociais, o medo, a intolerância e o consumismo são processos psicossociológicos que acarretam experiências de sofrimento e sensações de vazio.
É importante mencionar três processos que chamam a atenção de modo particular, pois atravessam de um modo ou de outro a clínica ampliada: o medo, a intolerância e o consumismo.
Há dois tipos de medo. A primeira variação é o medo da violência urbana, crescente e ameaçadora da integridade física. Esta é cada vez mais presente e cotidiana e assustadoramente banal. A violência urbana é constitutiva das subjetividades, e prova disso é a presença do psicólogo nos campos de atuação da saúde e da assistência social e também no chamado controle social de tais instâncias.
Outra variação do medo é o medo do voltar-se para si, de se perceber, se "olhar no espelho", no sentido moreniano do termo. Este é, comumente, o medo que aparece nas diferentes práticas psicoterapêuticas, com os mais variados temas: a ansiedade, a psicose, o abuso de entorpecentes, a finitude. Compreender esse medo, ajudar a significá-lo ou (re)significá-lo têm sido um grande desafio profissional, pois está cada vez mais "diluído", metaforizado, abstrato.
A intolerância é uma segunda característica marcante. Há intolerância à própria dor (de qualquer espécie), ao diferente (corpo diferente, partido diferente, religião diferente), à falta de referências prontas. Não se tolera a própria existência. Não se tolera não saber, ou esperar os acontecimentos - é preciso prevê-los e controlá-los a todo custo. A intolerância tem pressa e tem causado verdadeiros estragos sociais.
Uma terceira característica está de certo modo relacionado à intolerância: o consumismo. Na era da conectividade de informações midiáticas, somos ávidos por ter e saber (o saber como bem de consumo - consumo de informações).
Queremos "tudo ao mesmo tempo agora". Sem perceber, acreditamos na ideia de felicidade e bem-estar vendida em mídias: "consuma e você ficará bem". Com as variações devidas, podemos observar isso em diferentes classes sociais, em diferentes idades e grupos culturais. "Preciso" do game de última geração, do tênis Nike, da pedra de crack. "Preciso" do carro potente, do tratamento estético mais atualizado, assistir à série mais badalada. O modo "precisar-ter-para-ser" tem tomado uma dimensão tão grandiosa, que já se tornou constitutivo de nossas identidades e subjetividades fragmentadas.
A sociedade contemporânea paradoxalmente está atrelada ao consumo. Ao mesmo tempo em que o consumo é necessário para a sobrevivência, seu excesso cada vez mais destrói o planeta. Lidar com as contradições, compreender que algo pode ser bom e ruim, certo e errado, seguro e desafiador, é outro desafio. Essas valorações dicotômicas das realidades promovem em geral os mais variados sectarismos, um passo para a condição da intolerância.
Na contemporaneidade, o consumo é prometido como via de realização pessoal. Não somente mercadorias, mas estilos de vida, novos modelos e atitudes, novas e inebriantes experiências, novas sensações, novas aventuras são oferecidas aos consumidores que precisam ser mantidos em estado permanente de insatisfação, contra qualquer cristalização de hábitos e identidades (Bauman, 1998). Toda e qualquer fixação de compromissos é malvista, o apetite por novas experiências deve ser sempre estimulado. O consumidor modelo precisa se mostrar seduzido pela constante renovação do mercado consumidor e disposto a despir identidades e valores. A passagem de cidadão para consumidor - operada pela sedução do mercado - instala progressivamente o vazio e a angústia. O desafio é posto porque o indivíduo precisa lidar solitariamente com problemas produzidos de maneira sistêmica, conforme aponta Bauman (2007, p. 20): "passa a ser tarefa do indivíduo procurar, encontrar e praticar soluções individuais para problemas socialmente produzidos, assim como tentar tudo isso por meio de ações individuais, solitárias, estando munido de ferramentas e recursos flagrantemente inadequados para essa tarefa". O contexto psicodramático grupal pode representar um socius propício para a reflexão e a vivência desses paradoxos pós-modernos como forma de criação de novas formas de estar no mundo. O Psicodrama pode ser um dispositivo que instaura um espaço de resistências aos poderes vigentes que serializam os sujeitos para serem modelos da sociedade de consumo.
3. RESISTÊNCIAS PSICODRAMÁTICAS
Diante dos sofrimentos presentes na contemporaneidade, interessa-nos refletir sobre as possibilidades de contribuições dos pressupostos da Clínica Ampliada e do Psicodrama para lidar com os impasses produzidos, além da potencial contribuição das quatro dimensões existenciais morenianas já mencionadas.
Esses impasses requerem novos contextos de atuação, novas formas de intervenções e novas conceituações teóricas. A Clínica Ampliada propõe uma escuta do sofrimento para além dos espaços tradicionais confinados do segredo e do privado. Buscam-se também atuações que levam em conta os aspectos sociais e políticos implicados nas intervenções e nas teorias, com problematizações críticas sobre as produções dominantes de subjetividade presentes atualmente.
A formulação do conceito de espontaneidade talvez seja o legado mais importante do Psicodrama. Moreno (1975) argumenta que nossa civilização passou a valorizar mais o conteúdo dos resultados de criações passadas que o momento criativo, com suas incertezas e desamparos, diagnosticando nossa cultura como a civilização da conserva. Como forma de resistência e contestação, elaborou a ideia de espontaneidade, que se refere a um estado de fluidez existencial com níveis de expressão organizados que não são provenientes de determinantes pretéritos. O sujeito pode dar respostas inovadoras a partir de um esforço de recuperação de uma presença atuante e integrante na situação (Naffah Neto, 1997). Essa proposta psicodramática parece ser bastante atual, pois atualmente somos estimulados mais a sermos copiadores do que criadores, dado que somos instados a processar rapidamente a sobrecarga de palavras e imagens disseminadas (Bauman, 1998).
Para Guattari e Rolnik (1993), existem duas formas de se viver a subjetividade: de um lado, numa relação de opressão e alienação, o sujeito vivencia os conteúdos subjetivos tais quais os recebe; e, de outro lado, numa relação de expressão e criação. Essa última forma seria o processo de singularização no qual os sujeitos se reapropriam das subjetividades dominantes, se diferenciam, afirmam outras maneiras de ser. Seriam processos disruptores, de resistência, de diferenciação em relação à subjetividade capitalística que procura classificar, serializar, enquadrar, enfim, produzir subjetividades homogêneas para serem capturadas mais facilmente pela sedução do mercado. Os processos de singularização produzem outras percepções, outras sensibilidades, outras formas de ver o mundo.
A espontaneidade psicodramática aproxima-se dos processos de singularização descritos por Guattari e Rolnik (1993), na medida em que representa também uma via de criação de novas formas de estar no mundo, do ser humano como agente criador, e não como um mero reprodutor. A espontaneidade pode se revestir de um caráter político na medida em que permite também uma resistência ao instituído pelas relações de poder. O agente criador espontâneo seria menos submisso às produções de subjetividade dominantes. O Psicodrama pode ser um sistema teórico-metodológico de subversão e transformação das conservas culturais, dos sistemas subjetivos capitalistas, da indústria do desnecessário, da sociedade de consumo.
Considerando as reflexões acima, a função do psicoterapeuta dar-se-ia numa espécie de contexto híbrido: a complexidade dos saberes contemporâneos é tecida na multiplicidade, na coconstrução, no não dogmatismo. A clínica psicológica tem estado cada vez mais voltada para uma clínica das "intensidades", dos "extremos", das situações-limite. Isso acaba por deflagrar um processo rápido de mutação nas intervenções "psis" tradicionais, aquelas já "cientificamente validadas". É preciso a busca de reflexões abertas à multiplicidade de visões do sofrimento e a procura por referências que privilegiem a diversidade humana.
A inversão de papéis tem seu lugar nesse contexto, pois promove o respeito ao diferente de si. Colocar-se no lugar do outro permite ampliar perspectivas e refletir sobre posicionamentos existenciais distintos. Nada mais atual que a técnica criada por Moreno para balizar o papel do psicoterapeuta.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo procurou aproximar os termos Clínica Ampliada e Psicodrama, com base nos quatro universais morenianos, na intenção de fazer emergir analisadores para se pensar a atuação clínica na contemporaneidade. De certo modo, pode-se dizer que o Psicodrama, como uma teoria de caráter psicossocial, já "expande" o fazer clínico, pois, tomando o grupo, o microcosmos das relações humanas como a menor unidade de intervenção traz em sua gênese uma concepção mais ampliada da condição humana. As dimensões existenciais descritas por Moreno ampliam o fazer clínico em várias direções: para além de relatos verbais intelectualizados, no foco contextual no qual a subjetividade é produzida, na possibilidade de reflexões vivenciais sobre a dimensão da temporalidade, na utilização do espaço como ferramenta teórico-metodológica, na investigação e na experimentação das realidades dramática e social.
O diálogo com pensadores que buscam compreender a contemporaneidade enriquece e atualiza os saberes socionômicos. As pontes teóricas feitas em relação às conceitualizações psicossociais da pós-modernidade contribuem para que o Psicodrama não fique circunscrito ao indivíduo ou ao pequeno grupo, mas que expanda seus horizontes para os dramas objetivos e coletivos.
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Recebido: 29/03/2017
Aceito: 29/06/2018