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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.26 no.2 São Paulo jul./dez. 2018

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20180033 

COMUNICAÇÕES BREVES

 

Psicodrama do herói: uma jornada de transformação

 

Herodrama: a journey of transformation

 

Psicodrama del héroe: una jornada de transformación

 

 

Januário Antônio de Freitas JuniorI; Jeferson de Lima CheriegateII

IFilósofo pela Universidade de São Paulo (USP). Psicodramatista socioeducacional pela Animus. Psicodramatista didata pela Potenciar. Instrutor do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP). E-mail: freitasjunior@usp.br
IIEngenheiro de materiais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Administrador de empresas pelo Kensington College of Business (Inglaterra), com MBA pela Fundação Dom Cabral e Pós-MBA pela ISE-IESE Business School (Espanha). E-mail: jefersoncheriegate@gmail.com

 

 


RESUMO

O objetivo desta comunicação breve é analisar e refletir a eficiência da utilização do método psicodramático em conjunto com a jornada do herói, monomito narrado por Joseph Campbell, que está presente em todas as culturas e relata a presença de um herói e seu processo de mudança. Chamamos o resultado dessa união de Psicodrama do herói (PDH). Descrevemos, neste estudo, um trabalho realizado por meio do PDH, no qual os participantes vivenciaram a transformação de um personagem construído pelo próprio grupo.

Palavras-chaves: altruísmo, técnicas de desenvolvimento pessoal, humanismo, psicodrama


ABSTRACT

The purpose of this brief communication is to analyze and reflect upon the efficiency of using the psychodrama method in connection with the hero's journey, a monomyth described by Joseph Campbell, which is present in all cultures and describes a hero and his journey of transformation. We called the result of this union Herodrama (HD). In this study, we describe a workshop executed with HD, in which participants experienced the journey of a character built by the group itself.

Keywords: altruism, personal growth techniques, humanism, psychodrama


RESUMEN

El objetivo de esta breve comunicación es analizar y reflejar la eficiencia de la utilización del método psicodramático en conjunto con la jornada del héroe, monomito descrito por Joseph Campbell, que está presente en todas las culturas y relata la presencia de un héroe y su jornada de transformación. Llamamos el resultado de esa unión de Psicodrama del héroe (PDH). Describimos, en este estudio, un trabajo realizado con PDH, en el cual los participantes vivenciaron la jornada de un personaje construido por el propio grupo.

Palabras clave: altruismo, técnicas de desarrollo personal, humanismo, psicodrama


 

 

INTRODUÇÃO

Unindo o psicodrama, extremamente eficiente para auxiliar no desenvolvimento de grupos pela ação, à jornada do herói, elaborada pela primeira vez por Joseph Campbell no livro O herói de mil faces e única na explicação das fases que envolvem os processos de transformação de consciência, desenvolvemos o Psicodrama do herói (PDH).

Utilizando o PDH, criamos o workshop "Psicodrama do herói: uma jornada de transformação", no qual os participantes vivenciam a trajetória de um protagonista construído pelo próprio grupo, para que todos possam levar consigo aprendizados que os auxiliem em seus próprios processos de mudança, especialmente em seu papel profissional.

 

PSICODRAMA DO HERÓI

O PDH utiliza as fases do psicodrama aplicadas aos estágios de transformação descritos na jornada do herói. Esses estágios são, em sua formulação original, o chamado da aventura, a recusa do chamado, o auxílio sobrenatural, a passagem pelo primeiro limiar, o ventre da baleia, o caminho de provas, o encontro com a deusa, a mulher como tentação, a sintonia com o pai, a apoteose, a bênção última, a recusa do retorno, a fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a passagem pelo limiar do retorno, o senhor dos dois mundos e a liberdade para viver (Campbell, 2007, pp. 40-41). No PDH, esses estágios de transformação são organizados em oito etapas, das quais cada uma delas segue as diretrizes do método psicodramático, ou seja, aquecimento inespecífico, aquecimento específico, dramatização e compartilhamento.

 

A JORNADA DO HERÓI

Joseph Campbell buscava "uma espécie de teoria do campo unificado das energias igualmente prodigiosas dos domínios interiores, as personificações do que nós chamamos 'os deuses'" (Cousineau, 2003, pp. 15-16). Por meio do estudo dos mitos, Campbell (2007) encontrou esse fio condutor que permeia as histórias da humanidade na jornada do herói: "Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes" (p. 36).

Essa transformação, de acordo com Campbell (2007), se desenrola assim: o mundo do herói é abalado por algo, momento em que ele é compelido à mudança. Ainda que recuse esse convite, realiza a travessia para um novo mundo por meio de algum tipo de auxílio que recebe. Para encarar essa passagem, confronta seus medos. A travessia pelo limiar é um momento de renascimento. Chegando ao novo mundo, o protagonista enfrenta batalhas em que encontra aliados e inimigos. Conforme amadurece, pode contemplar a existência sem os olhos infantis de outrora. Ainda assim, será tentado a voltar a períodos anteriores. Conseguindo avançar, o herói finalmente se torna pai de si mesmo e, em seguida, compreende que os antigos pares de opostos, bom e mau, belo e feio, são expressões de uma única realidade. Então, ele recebe sua recompensa.

Agora transformado, o herói precisa acertar as contas com seu antigo mundo. Ele pode recusar esse retorno. Ou, se for difícil regressar, precisará fugir ou ser resgatado de volta para sua antiga realidade. Adaptando-se ao mundo em que vivia, o protagonista se torna pleno. Essa é a jornada do herói, narração do caminho de transformações externas e também internas porque "intrinsicamente, trata-se de uma expansão da consciência" (Campbell, 2007, p. 242).

 

PSICODRAMA DO HERÓI: UMA JORNADA DE TRANSFORMAÇÃO

No workshop "Psicodrama do herói: uma jornada de transformação", para auxiliar na construção e na compreensão desse percurso, utilizamos objetos intermediários. Segundo Drummond e Souza (2008), esse instrumento pode funcionar como aquecimento no psicodrama. Para Novaes (2017, p. 20), esse recurso auxilia os grupos na construção de "seus próprios planos, envolvendo as pessoas de forma bem-humorada e criativa com o processo de aprendizagem e as comprometendo com os resultados". Finalmente, segundo Vacheret (2015, pp. 81-82), o grupo exprime-se metaforicamente quando seu imaginário é mobilizado por meio de "processos que favorecem o acesso à simbolização", como o uso de objetos mediadores. Descreveremos, agora, nosso workshop realizado no dia 10 de novembro de 2018, em São Paulo.

Participaram desse trabalho (nomes fictícios): Juliana, administradora de Recursos Humanos; Maria, executiva; Henrique, empreendedor e professor; Vitória, coordenadora pedagógica e contadora de histórias; Natália, filósofa e professora; Gabriela, administradora de Recursos Humanos; Ana Laura, empreendedora; e Caíque, executivo. Os participantes tinham o objetivo de desenvolver seus papéis profissionais, muito embora o conhecimento desse processo seja útil para qualquer área da vida.

Etapa 1: Começamos o chamado para a aventura levantando as expectativas dos participantes. Depois, pedimos que escolhessem objetos que simbolizassem a transformação e compartilhassem em duplas. Quando todos haviam falado também em grupo, requisitamos que posicionassem seus objetos num lugar do palco: eles permaneceriam ali até o final do dia. Em seguida, exibimos um vídeo com uma protagonista retratada em um mundo cotidiano que estava em xeque. Depois, pedimos a todos que caminhassem, enquanto construíam um personagem que também estivesse vivendo uma rotina da qual precisasse sair. Após a integração dessas criações e da escolha sociométrica, o grupo selecionou um protagonista e sua história: Paula tinha um bom emprego numa grande cidade, mas não estava feliz com sua rotina.

Instruímos Natália, selecionada pelo grupo para representar a protagonista na primeira fase de sua jornada, a pensar em que momento houve uma espécie de chamado para que Paula mudasse sua vida. A cena escolhida foi quando conheceu um homem por quem se interessou bastante e que a convidou, depois, para viajar ao interior de Minas Gerais. Orientamos Natália a encontrar três personagens sempre presentes nessa fase da Jornada: um que luta para que a protagonista adie sua decisão, outro que luta para que ela negue e um terceiro que briga para que ela aceite o chamado. Paula precisou confrontar esses papéis e fazer uma escolha, que foi aceitar o chamado. Depois, realizamos o compartilhamento e explicamos pedagogicamente o chamado para aventura e qual sua relação com o desenvolvimento do papel profissional.

Na maioria dos outros estágios, após o grupo escolher qual participante representaria Paula naquela fase, realizamos o seguinte processo: a exibição de um vídeo curto que ilustrou a etapa em questão, a dramatização de uma cena na qual o protagonista precisou lidar com os egos auxiliares relevantes daquele estágio, o compartilhamento e a explicação sobre a etapa vivenciada e sua relação com o desenvolvimento do papel profissional.

Etapa 2: Gabriela foi a escolhida para representar Paula nessa etapa, na qual a protagonista precisaria confrontar o guardião do limiar. Na cena, a representação desse personagem foi o pai de Paula. Houve uma conversa entre eles, em que ela precisou enfrentálo para seguir adiante. Durante essa e em outras dramatizações, utilizamos bastante a técnica do duplo, perguntando à plateia como a personagem se sentia, o que pensava e assim por diante. Também fizemos a inversão de papéis da protagonista com o outro significativo para ela em vários momentos.

Etapa 3: Maria foi a escolhida para o caminho de provas. Pedimos aos outros integrantes que refletissem sobre quais obstáculos e aliados Paula encontraria ao desembarcar em seu novo mundo, no interior de Minas. Surgiram, por exemplo, escassez e brigas com o namorado como obstáculos e conhecer outras pessoas e vivenciar novas oportunidades como aliados. Na dramatização, Maria precisou interagir de algum modo com cada um desses papéis. Quando criamos essa atividade para nosso primeiro workshop, a chamamos de "caminho das almas".

Etapa 4: Para a provação suprema, Juliana foi a escolhida. A dramatização foi um confronto entre Paula e seu namorado. No compartilhamento, o grupo manifestou sua surpresa em ver como a personagem estava decidida e segura. De fato, nessa fase o herói se torna ele mesmo o pai.

Etapa 5: Na apoteose, separamos os participantes em dois subgrupos e pedimos a eles que refletissem sobre o que Paula havia aprendido até ali, desde o início da jornada. Em seguida, entregamos folhas sulfite a todos os integrantes e pedimos que cada um anotasse, de um dos lados da folha, quais foram esses ganhos. Após o compartilhamento, explicamos ao grupo que nesse momento ocorre algo muito importante com o protagonista: ele terá que lidar com o mundo que deixou para trás. Para ilustrar esse ponto, falamos sobre o mito da caverna, de Platão, que conta a história de habitantes que nasceram numa caverna e desde sempre viveram acorrentados, olhando para a parede desse lugar. Tudo o que haviam visto durante toda sua vida foram sombras bruxuleantes projetadas nessa parede, de modo que acreditavam que eram tudo o que existia. Um desses habitantes se libertou e, ao sair da caverna, ficou admirado com a verdadeira realidade das coisas. Precisou voltar, pois tinha que contar aos outros habitantes da caverna sobre o novo mundo que havia encontrado.

Etapa 6: Trabalhamos, então, o limiar do retorno, incentivando o grupo a criar um cenário no qual Paula fosse impulsionada a voltar para onde vivia. Ela regressaria por conta do desejo de finalizar um livro sobre si mesma. Realmente, a história do herói só fica escrita por completo quando ele acerta as contas com seu antigo mundo.

Etapa 7: Para interpretar Paula no retorno à sociedade, Caíque foi o escolhido. A cena se passava na casa do pai dela: quando chegou, Paula foi bem recebida por sua irmã. Já seu pai a tratou friamente. Perguntamos aos outros participantes se alguém gostaria de interpretar a protagonista naquela hora. Maria veio ao palco e deu uma solução integradora, na qual a heroína do grupo acolhia seu pai. Essa resposta foi aceita por todos, também por Caíque - quando retornou ao papel de Paula, ele, do seu modo, fez dessa também sua resposta.

Etapa 8: Para o último estágio da jornada, o mundo cotidiano, pedimos aos participantes que se subdividissem em três subgrupos: um representaria as pessoas que acolheram Paula em seu retorno; outro, aquelas que não a aceitaram; e, por fim, o terceiro subgrupo representaria a própria Paula. Solicitamos que cada subgrupo criasse uma frase que representasse o que queriam expressar para Paula e, quanto a ela, qual seria a mensagem dela para todos. Quando as frases foram criadas, requisitamos aos participantes de cada subgrupo que as repetissem algumas vezes, como num coro. Logo após, solicitamos ao grupo que criasse uma fala única, de todos. Essa frase foi "o melhor que há em mim saúda o melhor que há em você". Então, pedimos que repetissem a frase algumas vezes, todos juntos: o grupo encontrou seu ritmo e entoou a frase, como num canto. Aquela jornada estava chegando ao fim.

Houve o último compartilhamento: todos estavam muito satisfeitos com o trabalho. Entregamos uma folha para cada participante, com uma imagem das fases da jornada do herói, para se localizarem em sua jornada de transformação atual. Reproduzimos ainda um vídeo de um personagem em seu mundo cotidiano, no final de sua jornada. Finalmente, convidamos a todos a, se quisessem, mudarem a posição de seus objetos intermediários. Houve algumas mudanças que, sutilmente mas com muito significado, compuseram uma imagem circular, demonstrando a integração final do grupo.

 

CONCLUSÃO

Percebemos um grande envolvimento dos participantes ao vivenciarem a jornada de transformação de um personagem construído pelo próprio grupo. Eles também puderam se localizar um pouco melhor em seus próprios processos de mudança nos papéis profissionais, bem como clarear um pouco seus caminhos dali para a frente, nessas transições diversas.

Notamos, igualmente, a eficiência do uso dos objetos intermediários para auxiliar o grupo a se aquecer para o sociodrama, vivenciando o metafórico para que, livremente, pudesse construir cooperativamente o conhecimento que foi associado ao concreto, à prática profissional dos participantes do workshop.

Da mesma forma, apreendemos que a combinação de um engenheiro e de um filósofo na direção desse trabalho funcionou muito bem para a interpretação dos conceitos da jornada do herói: a exatidão da engenharia e a profundidade da filosofia puderam ajudar os participantes a relacionar esses aprendizados a processos de mudança em seus papéis profissionais.

Há muito tempo, o método psicodramático mostra sua eficiência em auxiliar o desenvolvimento de grupos por meio da ação. E a jornada do herói encanta por sua descrição dos estágios de transformação do herói em suas mais de mil faces, seja na de Ulisses na Guerra de Tróia, na peregrinação de Moisés pelo deserto e assim por diante. Percebemos que a vivência dessa trajetória, dessa vez para além de estar escrita em livros ou exibida nos cinemas, mas construída e conquistada pelo grupo no contexto dramático, é um método eficiente para o aprendizado das etapas dessa trajetória.

O que tornou e torna isso possível é que essas diversas mudanças podem ser todas vistas sob uma mesma óptica: a do herói que, ao sair de seu mundo cotidiano, embarca numa realidade desconhecida, povoada de obstáculos, aliados e descobertas. Obtida a vitória, ele é premiado. Depois, pode retornar transformado e auxiliando no desenvolvimento da humanidade. Assim, caminhamos todos nós, heróis de nossas próprias jornadas de transformação, conscientes de nossos diversos papéis, inclusive profissionais.

 

REFERÊNCIAS

Campbell, C. (2007). O herói de mil faces. São Paulo, SP: Pensamento.         [ Links ]

Cousineau, P. (Org.). (2003). A jornada do herói: Joseph Campbell vida e obra. São Paulo, SP: Ágora.         [ Links ]

Drummond, J., & Souza. A. C. (2008). Sociodrama nas organizações. São Paulo, SP: Ágora.

Novaes, M. B. (2017) Aprendizagem organizacional: teoria dos objetos intermediários. São Paulo, SP: Potenciar.         [ Links ]

Vacheret, C. (2015). O grupo, o objeto mediador e o acesso ao pensamento metafórico in A Subjetividade nos grupos e instituições, constituição, mediação e mudança. São Paulo, SP: Chiado Editora.         [ Links ]

 

 

Recebido: 29/11/2018
Aceito: 07/02/2018

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