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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.30 no.69 São Paulo jan./abr. 2021

https://doi.org/10.38034/nps.v30i69.617 

FRONTEIRAS

 

O terapeuta como produtor de conhecimentos: contribuições da perspectiva construcionista social*

 

The therapist as a knowledge producer: social constructionist's contributions

 

El terapeuta como productor de conocimiento: aportes desde la perspectiva del construccionismo social

 

 

Emerson F. RaseraiI; Carla Guanaes-LorenziII

IDoutor em Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia/MG, Brasil. E-mail: emersonrasera@gmail.com
IIDoutora em Psicologia, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto/SP, Brasil. E-mail: carlaguanaes@usp.br

 

 


RESUMO

Na sociedade brasileira, a comunicação das aprendizagens cotidianas dos(as) terapeutas tem sido negligenciada, mantendo-os(as) na posição de consumidores(as) de conhecimentos e relegando a segundo plano o aspecto criativo e reflexivo de sua prática. Visando estimular os(as) terapeutas a assumirem sua responsabilidade de partilhar seus conhecimentos produzidos a partir da clínica, este ensaio busca promover uma reflexão sobre o processo de produção do conhecimento em uma perspectiva construcionista social. Inicialmente, são analisadas as contribuições construcionistas para as práticas de produção de conhecimento, explicitando sua definição de ciência, do objetivo da pesquisa, dos métodos de coleta e análise. A partir dessas contribuições, revê-se o processo de redação de um caso clínico, desde a seleção do caso, passando pela apresentação do seu desenvolvimento, até os cuidados éticos. Esperamos que essas reflexões permitam a produção de novas inteligibilidades sobre o fazer terapêutico a partir das falas e dos olhares dos(as) terapeutas e seus(suas) clientes.

Palavras-chave: Construcionismo social; Ciência; Prática clínica.


ABSTRACT

In Brazil, the communication of the daily knowledge produced by therapists has been neglected, keeping them in the position of a simple knowledge consumer and leaving to a second plan the creative and reflexive feature of his/her practice. Aiming to stimulate therapists to assume their responsibility on sharing knowledge produced in their clinical practice, this essay aims to reflect on the construction of scientific knowledge based on a social constructionist approach. Initially, the contributions of this perspective to the practices of knowledge production are analyzed, explaining its definition of science, of the research objective, of the methods of data collection and analysis. Based on these contributions, the process of writing a clinical case is reviewed, from the selection of the case, through the presentation of its development, to ethical care. We hope that these reflections will allow the production of new intelligibilities about the therapeutic practice based on the speeches and views of the therapists and their clients.

Keywords: Social constructionist; Science; Clinical practice.


RESUMEN

En la sociedad brasileña se ha descuidado la comunicación del aprendizaje diario de los terapeutas, manteniéndolos en la posición de consumidores de conocimiento y relegando a un segundo plano el aspecto creativo y reflexivo de su práctica. Con el objetivo de incentivar a los terapeutas a asumir su responsabilidad de compartir sus conocimientos producidos desde la clínica, este ensayo busca promover una reflexión sobre el proceso de producción del conocimiento desde una perspectiva social construccionista. Inicialmente, se analizan las contribuciones construccionistas a las prácticas de producción de conocimiento, explicando su definición de ciencia, sobre los objetivos de la investigación, los métodos de recolección y análisis. A partir de estos aportes, se revisa el proceso de redacción de un caso clínico, desde la selección del caso, pasando por la presentación de su desarrollo, hasta la atención ética. Esperamos que estas reflexiones permitan la producción de nuevas inteligibilidades sobre la acción terapéutica a partir de los discursos y las formas de mirar la práctica de los terapeutas y de sus clientes.

Palabras-clave: Construccionismo social; Ciencia; Práctica clínica.


 

 

INTRODUÇÃO

Ao longo da história das terapias, a prática clínica tem se constituído como um importante contexto de geração de conhecimentos, sustentando e legitimando determinadas técnicas de intervenção e modos de atuação profissional. Contudo, o conhecimento advindo das práticas psicoterápicas cotidianas nem sempre é comunicado de modo a garantir sua legitimidade como conhecimento válido e confiável, o que se deve, entre outras coisas, ao desconhecimento dos(as) terapeutas acerca do debate contemporâneo sobre como se dá a construção do conhecimento científico, incluindo seus modos de produção, estrutura e retórica.

Nesse artigo temos como objetivo geral promover uma reflexão sobre o processo de produção do conhecimento científico a partir de uma perspectiva construcionista social, visando estimular os(as) terapeutas a comunicarem suas práticas clínicas de modo a garantir visibilidade e legitimidade ao conhecimento produzido nesse contexto. Fundamentados numa epistemologia construcionista social em ciência, buscamos: (a) promover um diálogo entre o pensamento moderno e a proposta construcionista social, a fim de refletir sobre suas diferenças e implicações na concepção de ciência e prática de pesquisa; (b) discutir as noções de método, objetividade e rigor que orientam a ciência moderna, redimensionando essas mesmas noções a partir de uma perspectiva construcionista social; (c) refletir sobre a ciência como empreendimento retórico, ressaltando o caráter construído do conhecimento científico e o papel do pesquisador na construção da realidade; (d) oferecer dicas práticas para a construção de um relato de caso, envolvendo a identificação de casos clínicos a serem estudados, a formulação de uma questão, aspectos a serem explorados e a reflexão sobre aspectos éticos.

 

CONSTRUCIONISMO SOCIAL E PESQUISA: UM NOVO OLHAR SOBRE A CIÊNCIA

O discurso construcionista social surge, no contexto das ciências humanas, como uma alternativa às formas empiricistas de se conceber a ciência e os processos de produção de conhecimento. Baseado em concepções críticas às noções de objetividade, verdade e racionalidade, ele rompe com preceitos das teorias modernas, abrindo possibilidades para novas reflexões no campo científico e para perspectivas normalmente descritas como pós-modernas (Guanaes, 2006; Rasera & Japur, 2005).

Coerentemente com as propostas pós-modernas, o referencial construcionista social caracteriza-se pela ênfase dada aos processos pelos quais as pessoas descrevem e explicam a si mesmas ou ao mundo em que vivem, entendendo que essas descrições resultam da interação entre as pessoas (Gergen, 1997). Nesta perspectiva, entende-se que os significados são construídos discursivamente entre as pessoas, por meio dos processos de troca dialógica.

Segundo Shotter (2000), comum a todas as versões construcionistas sociais é a assunção central de que não é a dinâmica de uma mente individual ou das características localizadas em um mundo externo que deve constituir nosso objeto de investigação, mas sim o contínuo fluxo da atividade comunicativa humana, uma vez que são os processos linguísticos situados nos relacionamentos humanos que possibilitam a produção de conhecimento sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos. É de dentro deste contexto dinâmico e relacional que o que é falado ganha significado. Portanto, ao invés de focalizar o modo como os indivíduos chegam a conhecer os objetos ou a realidade, a proposta construcionista social busca compreender como as pessoas desenvolvem e sustentam determinadas formas de descrição nas conversas das quais participam, e como elas dão, a partir destes modos específicos de fala, sentido ao mundo em que vivem.

É importante ressaltar que a aproximação entre construcionismo social e pesquisa é indicativa de um posicionamento epistemológico particular. Tal como sugerem Spink e Menegon (1999), é o lugar do(a) pesquisador(a) no debate entre realismo e construcionismo social que define sua postura epistemológica.

As perspectivas ditas pós-modernas (entre as quais se situa o discurso construcionista social) geralmente privilegiam o estudo da linguagem e da interação entre as pessoas na compreensão dos processos de construção do significado. Diferenciam-se, assim, das propostas modernas que afirmam a natureza essencial das coisas e buscam revelar, por procedimentos de observação controlada e cuidadosa, a estrutura básica ou a essência dos objetos investigados, a fim de tirar conclusões e estabelecer princípios. Ao contrário, as propostas pós-modernas buscam examinar como o processo de interação proporciona oportunidades para que surjam definições particulares e "como contextos interativos específicos oferecem oportunidades para discursos totalmente diferentes" (McNamee, 1998, p. 229).

Também situando essa mudança epistemológica, Pearce (1996) ressalta a passagem de uma postura objetivista para uma abordagem construcionista social. Para esse autor, enquanto o paradigma moderno sustenta-se sob a ideia da linguagem enquanto representação do mundo, a perspectiva construcionista, num paradigma pós-moderno, aponta para o papel da linguagem na construção do mundo, enfatizando assim seu papel formativo e construtivo.

Ibañez (2001) discute tais diferenças epistemológicas destacando quatro aspectos que considera como "mitos" da modernidade e que funcionam como críticas ao discurso construcionista social: (a) o mito do conhecimento como representação correta da realidade; (b) o mito do objeto como elemento constitutivo do mundo; (c) o mito da realidade como entidade independente de nós; e (d) o mito da verdade como critério decisório. Em contraposição a essas noções, ele sintetiza a epistemologia construcionista social a partir das seguintes assunções:

• a realidade não dita os modos pelos quais deve ser descrita, pois é uma construção social. As descrições sobre a realidade estão pautadas por normas e convenções, que as sustentam e legitimam como versões possíveis do mundo;

• o objeto não existe de modo independente do conhecimento construído a seu respeito. O que consideramos como objetos naturais são objetivações que resultam de um conjunto de práticas e de um jogo de convenções sociais;

• a possibilidade de neutralidade do(a) pesquisador(a) na produção do conhecimento é uma ficção. Rompendo com a dicotomia sujeito-objeto, o construcionismo afirma o caráter construído do sujeito, do objeto e do conhecimento. A realidade é sempre vista como "realidade para nós", considerando as possibilidades sociais e normativas que orientam a construção dos sentidos;

• a verdade não tem um caráter absoluto e transcendente; como construção, ela é sempre relativa a circunstâncias e contextos sócio-históricos particulares.

Em termos práticos, assumir tais proposições nos leva à redefinição de ciência, de seus objetivos e métodos. É o que nos favorece a descrição de Shotter (2000) que, explicitando a distinção entre os fundamentos de uma epistemologista realista e construcionista social em ciência, nos diz sinteticamente daquilo que essa última se nega a fazer: propiciar representações acuradas de uma realidade subjacente; conceber o conhecimento como um sistema estático de formas e estruturas; assumir que os processos psicológicos consistem em processos cognitivos já existentes nos indivíduos; conceber a linguagem como um código pré-estruturado, ligando eventos interiores a eventos exteriores na vida social; separar a fala do contexto conversacional; e propiciar a noção de uma visão única e verdadeira, ou clamar por uma voz privilegiada na explicação dos processos humanos.

No contexto brasileiro, essa discussão tem sido bem apresentada por Spink (1999), que desenvolve propostas teórico-metodológicas alternativas às perspectivas tradicionais em pesquisa qualitativa. Como apontam Spink e Menegon (1999), em uma perspectiva construcionista social, as descrições de "realidade" são vistas como construções sócio-históricas, estando entrelaçadas às práticas discursivas em que são construídas. Isso leva à ressignificação da relação sujeito-objeto, rompendo com o dualismo que tradicionalmente atravessa essa questão. Sujeito e objeto são construídos num jogo dialógico e dialético. Na relação com o objeto de seu estudo, o(a) pesquisador(a) o constrói e é construído(a) por ele de determinados modos.

Essa visão leva à redefinição do próprio entendimento de ciência, vista tradicionalmente como um conjunto particular de métodos objetivos e técnicas de apreensão da "realidade" ou "verdade". Numa perspectiva construcionista social, entende-se que, por meio de seus métodos de investigação, a própria ciência produz descrições do mundo, versões possíveis da realidade que se propõe a investigar. Portanto, a ciência é também entendida como uma prática discursiva, regulada por processos sociais e por convenções normativas que orientam sua construção de sentidos sobre o mundo. A ciência, assim como outros gêneros de linguagem, também obedece a determinadas regras linguísticas e a certa organização retórica, que lhe garantem legitimidade como conhecimento verdadeiro e confiável.

Partindo dessas noções, Spink e Lima (1999) redimensionam os critérios tradicionais das pesquisas realistas, tais como objetividade e rigor. Como o construcionismo questiona a noção do conhecimento como representação do real, assumindo a importância da interpretação e o papel ativo do(a) pesquisador(a) na produção do conhecimento científico, o rigor, tradicionalmente associado às noções de replicabilidade, generalidade e fidedignidade, passa a ser visto como a "possibilidade de explicitar os passos de análise e da interpretação de modo a propiciar o diálogo" (p. 102), e a objetividade passa a ser descrita como um processo intersubjetivo.

Além destas noções, Spink e Menegon (1999) apontam três características importantes das pesquisas qualitativas de cunho construcionista: (a) a indexicabilidade - que se refere à situacionalidade da produção de sentido (o sentido muda de acordo com as variações no contexto); (b) a inconclusividade - que se refere à complexidade dos fenômenos sociais e à impossibilidade de se controlar todas as variáveis que interferem em sua produção; e (c) a reflexividade - que se refere à aceitação da interpretação e à explicitação dos efeitos da presença do(a) pesquisador(a) nos resultados da pesquisa. Aqui, a "subjetividade" do(a) pesquisador(a) é considerada, constituindo um recurso fundamental no processo de produção de conhecimento.

Na Tabela 1, sintetizamos algumas distinções entre as epistemologias realistas e construcionistas sociais, e implicações para a prática científica.

 

 

Essas reflexões da epistemologia construcionista social sobre a prática de pesquisa traduzem o momento de reconfiguração que as ciências humanas e sociais têm vivenciado nos últimos anos, a partir da proposição de outras possibilidades de construção de conhecimento e de abordagens metodológicas alternativas.

 

PRODUZINDO CONHECIMENTOS NA PRÁTICA CLÍNICA

O cotidiano da prática terapêutica é fonte de inúmeras aprendizagens que, muitas vezes, não são partilhadas na comunidade acadêmica e profissional. A perspectiva construcionista sobre a produção do conhecimento, tal como apresentamos anteriormente, busca promover a criação de novas inteligibilidades e a incorporação democrática de diferentes vozes no processo de produção de conhecimento. Neste artigo, defendemos que o(a) terapeuta deve ser uma dessas novas vozes e que sua vivência possa ser valorizada em seus próprios termos, por meio da divulgação de relatos clínicos que preservem a complexidade do fenômeno estudado e facilitem sua utilização por outros(as) terapeutas.

Os casos clínicos consistem em uma forma privilegiada e tradicional de diálogo sobre o conhecimento produzido na clínica. Buscando traduzir as discussões teórico-metodológicas apresentadas em apontamentos sobre a prática de redação de um artigo de um caso clínico numa perspectiva construcionista social, oferecemos, a seguir, um conjunto de passos que poderão ser úteis para aqueles(as) terapeutas interessados(as) nesta empreitada, porém pouco acostumados(as) a ela.

Passo 1 - Seleção do caso a ser estudado. Um passo inicial importante na redação de um estudo de caso é a identificação do caso clínico que pode proporcionar um bom relato. Refletindo sobre os casos por ele(a) atendidos, o(a) terapeuta pode se fazer algumas questões úteis neste processo de seleção: Trata-se de um caso típico ou é um caso "fora do padrão"? O que ele tem de marcante que merece uma atenção maior? Quais foram as aprendizagens do(a) terapeuta desse caso? O que os(as) outros(as) terapeutas podem aprender com este relato? Como o(a) terapeuta imagina uma história a ser contada sobre este caso? Quais seriam seus momentos mais importantes? Ela teria um evento central promotor de mudança significativa? Como a história terminaria? A retomada das anotações sobre o caso e a seleção de trechos marcantes das mesmas facilitarão este processo e auxiliará na redação do relato propriamente dito.

Passo 2 - Revisão da literatura sobre o assunto. A releitura de textos conhecidos ajuda no processo de reflexão sobre o caso, bem como facilita a busca por novas referências bibliográficas que busquem responder às indagações que surgem neste processo. A tarefa de revisão é otimizada quando são feitos breves resumos dos textos e selecionados aqueles trechos mais significativos que poderão vir a ser utilizados na redação de um artigo. Esse material pode ser organizado em fichas, contendo as referências completas, a paginação das citações literais relevantes, comentários gerais e reflexões do(a) autor(a)/terapeuta. Durante a realização dos passos 1 e 2, a narrativa a ser desenvolvida no relato do caso vai se tornando mais clara.

Passo 3 - A escolha da revista. A escolha da revista na qual se pretende publicar o trabalho é uma parte do processo de diálogo com os(as) autores(as)/leitores(as) desejados(as). Nesta coconstrução dialógica, o texto do(a) autor(a) deve se adaptar às exigências apresentadas pela revista. As instruções aos autores indicam o formato (número de páginas, margens, tamanho da letra etc.) de artigo aceito por ela. A conversa promovida pelo relato de caso deve estar delimitada pelas condições propostas pela revista.

Passo 4 - O início da redação do artigo: a apresentação da literatura. Considerando os motivos que levaram à escolha do caso selecionado, e o objetivo do artigo, este se inicia com a apresentação dos(as) outros(as) autores(as) com quem se quer dialogar. Nas palavras de Shotter (1993), na redação de um texto, são explicitadas as conexões que se constroem no diálogo com os(as) "amigos(as) textuais" - os(as) autores(as) de preferência, que auxiliam a dar forma ou sentido às ideias, impressões e explicações de observações da prática cotidiana. Assim, no que comumente se entende como a introdução de um artigo, há uma breve apresentação da opinião desses(as) autores(as) sobre o que se quer discutir, bem como algumas reflexões iniciais. Usualmente, há algumas citações de tais autores(as). Estas podem seguir diferentes normas de redação1.

O ato de iniciar a escrita de um artigo estimula um diálogo interno e este, por sua vez, facilita aquele. À medida que se escreve o que se pretende, novas reflexões podem surgir e enriquecer a análise inicial. Essas reflexões permeiam todo o processo de redação de um artigo. É neste sentido que um texto é sempre um diálogo escrito entre o(a) autor(a) e outros(as) autores(as) ou leitores(as). Dessa forma, a redação do texto antecipa as necessidades e curiosidades dos(as) leitores(as), bem como responde às principais críticas que eles apontariam.

Passo 5 - Apresentação do objetivo do artigo. O(a) autor(a) deve descrever a motivação pessoal para a redação deste caso, explicitando o tema principal a ser discutido no artigo. Aquelas reflexões do passo 1 devem agora ser explicitadas para o(a) leitor(a). Ele(a) deve entender com clareza qual o objetivo do(a) autor(a) ao redigir este relato, qual a sua questão norteadora. Em especial, deve se tentar responder à seguinte questão: O foco está na peculiaridade da história do(a) cliente, em alguma forma de intervenção proposta pelo(a) terapeuta, ou em alguma solução inventada na relação entre ambos(as)? Usualmente, o objetivo de um caso clínico se refere a tentativas de explicitação de intervenções do(a) terapeuta que auxiliaram na construção discursiva da mudança; a análise de sentidos de problema e self construídos no contexto clínico etc. É importante observar que o objetivo do artigo é diferente do objetivo do atendimento clínico. O objetivo do atendimento e as queixas que o motivaram devem ser apresentados depois.

Passo 6 - Situar brevemente o contexto, os(as) participantes e a duração do atendimento. O relato deve conter uma descrição sobre o local do atendimento (especialmente, se o atendimento foi realizado em alguma instituição), bem como os(as) clientes - em termos de idade aproximada, sexo, lugar na família (quando for atendimento em terapia familiar) e motivos para a busca de atendimento. Esta descrição deve proporcionar ao(à) leitor(a) uma imagem de quem são os(as) clientes, contudo, não deverá permitir que os(as) participantes sejam identificados(as). Por vezes, serão necessárias algumas omissões ou substituições de informações de identificação, visando preservar o anonimato dos(as) clientes. Uma descrição do(a) terapeuta também se faz necessária. Além da descrição do contexto e dos(as) participantes, deve ser feita uma apresentação sucinta do modelo de atendimento que inspira as ações do(a) terapeuta e características gerais do atendimento deste caso (número de sessões, duração, sessões conjuntas e/ou de partes da família etc.).

Passo 7 - Apresentação do desenvolvimento do caso. Durante a realização do passo 1, foi possível imaginar uma narrativa sobre o caso selecionado. Esta narrativa deve ser apresentada, buscando apontar todos aqueles aspectos necessários para alcançar o objetivo proposto anteriormente (ver passo 5). A apresentação do desenvolvimento pode conter pequenos trechos das anotações sobre o caso e algumas falas significativas aí existentes, sejam do(a) terapeuta ou dos(as) clientes (ver passo 1). A seleção destes trechos deve sempre respeitar o objetivo do relato, consistindo em uma forma de ilustrar o ponto de vista e a reflexão desejados(as) pelo(a) autor(a).

Passo 8 - Explicitação dos conceitos teóricos que auxiliaram na compreensão do caso. A narrativa sobre o caso deve vir acompanhada das análises do(a) autor(a). Essas podem aparecer durante a própria apresentação do desenvolvimento do caso, ou vir logo após a mesma. Essas análises consistem nos questionamentos que o(a) terapeuta/autor(a) teve durante seu atendimento do caso, bem como depois, ao refletir sobre o mesmo. Esses questionamentos devem promover um diálogo com as explicações apresentadas pela literatura, ou seja, as interpretações e os conceitos teóricos que apontam um entendimento sobre a situação e os eventos ocorridos. Da mesma forma, o(a) terapeuta/autor(a) pode resgatar suas experiências clínicas anteriores, enriquecendo o diálogo entre a teoria e a prática relatada. O grau de reflexividade é um dos aspectos mais significativos da qualidade de um relato de caso.

Passo 9 - Justificativa da utilização dos conceitos teóricos selecionados. A explicitação dos conceitos utilizados (passo 8) deve sempre ser muito bem justificada. Assim, a utilização de um conceito deve trazer uma breve descrição do mesmo e o(a) autor(a) deve se reassegurar de sua correta utilização. Esse procedimento auxilia tanto a melhor compreensão do argumento do(a) autor(a), como o questionamento do próprio conceito, promovendo uma expansão dos horizontes de entendimento sobre o mesmo.

Passo 10 - Indicação das implicações teóricas e práticas das reflexões apresentadas. Tendo concluído a descrição analítica do caso, é útil apontar as implicações deste relato para a prática clínica, ou seja, as formas pelas quais o relato apresentado pode modificar a prática de outros(as) terapeutas, convidando a novos entendimentos e posturas em relação ao tema trabalhado no artigo. Quando possível, a indicação dos desafios teóricos trazidos pelo relato e a necessidade, ou mesmo proposição, de uma redescrição das contribuições teóricas apresentadas durante a introdução do artigo (ver passo 4) pode valorizá-lo.

Passo 11 - Redação das referências bibliográficas e do resumo do artigo. A redação das referências e do resumo deve seguir as orientações oferecidas pela revista na qual o relato será publicado. No Brasil, nas revistas da área psicológica, frequentemente são utilizadas as normas da ABNT ou da APA para citação e referência. Elas podem ser encontradas na própria seção de "orientação/instrução aos autores" das revistas, bem como em livros (APA, 2006), ou sites (ver nota 2).

Passo 12 - Revisão do artigo. Após a conclusão da redação do relato de caso, pode ser muito útil que outros(as) terapeutas próximos(as) do(a) autor(a) leiam o relato, buscando oferecer sugestões de mudança que possam aprimorar o mesmo, solucionando problemas de clareza e precisão do argumento exposto. Finalmente, o artigo deve ser revisto pelo(a) próprio(a) autor(a), buscando identificar qualquer erro presente, seja gramatical, ortográfico, de digitação ou outros.

Passo 13 - Cuidados éticos na redação de um relato de caso. Durante todo o texto, o anonimato e o respeito à imagem dos(as) clientes devem ser buscados. É importante que o(a) autor(a) obtenha a autorização dos(as) clientes para a publicação do relato, se certifique de todas as exigências éticas estabelecidas pelo seu código de ética profissional, bem como as orientações e demandas éticas da revista na qual submeterá o artigo para publicação. Contudo, estes cuidados não são suficientes para sustentar uma "ética dialógica", tal como proposta pelos(as) autores(as) construcionistas (Spink, 2000). O(a) terapeuta deve também pensar nas implicações de publicação deste relato para os(as) clientes. Como os(as) clientes se sentirão ao lerem o relato? Qual o impacto que isto pode ter em suas relações? Qual o equilíbrio entre o ganho da comunidade de terapeutas ao ler este relato e o possível risco vivido pelos(as) clientes após a sua publicação? Dessa forma, assumindo uma postura colaborativa com os(as) clientes, é interessante que eles(as) sejam consultados(as) quanto ao seu desejo de conhecer o material produzido e participar da edição desse material.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos apresentar algumas contribuições construcionistas para a transformação das práticas de produção de conhecimento. Comprometidos com esta empreitada, não nos restringimos a descrever as discussões epistemológicas próprias para aqueles(as) já habituados(as) com o fazer científico, mas oferecemos algumas orientações práticas para aqueles(as) que nem sempre estão incluídos(as) neste contexto. Esta dupla tarefa presente no artigo é uma tentativa de democratização da construção do conhecimento, visando à produção de novas inteligibilidades sobre o fazer terapêutico a partir das falas e dos olhares dos(as) terapeutas e seus(suas) clientes. Trata-se de um convite que esperamos seja aceito por vários(as) terapeutas.

 

REFERÊNCIAS

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* Publicamos esse texto há anos, na revista Nova Perspectiva Sistêmica, atendendo a pedidos de colegas terapeutas interessados(as) em produzirem conhecimento sobre suas práticas clínicas e também em auxiliarem os(as) alunos(as) na redação de seus trabalhos de conclusão de curso, em suas formações como terapeutas familiares. Agora, a pedido dos editores da revista NPS, revisitamos este material, avaliado por nossos pares como um recurso útil para terapeutas interessados(as) em escrever sobre sua prática clínica, contribuindo com o desenvolvimento do campo da terapia familiar.
1 As normas para redação das citações e referências bibliográficas podem ser encontradas em diferentes livros e manuais. Uma fonte acessível para consulta pode ser encontrada em https://www.ip.usp.br/site/biblioteca/manuais-de-normalizacao/.

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