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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia n.19 Canoas jun. 2004
ARTIGOS DE PESQUISA
Depressão e contexto de trabalho
Depression and work context
Cláudia Mara Bosetto Cenci1
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI-Campus Erechim/RS)
RESUMO
Este artigo trata da temática da depressão no contexto de trabalho sob a ótica dos trabalhadores bancários e comerciários da cidade de Passo Fundo. Para dar conta desta proposta de investigação foi utilizado no processo de coleta e análise dos dados o referencial teórico-metodológico da Teoria das Representações Sociais sendo realizados dois grupos focais e seis entrevistas individuais. Nesta perspectiva buscou-se compreender qual a relação estabelecida pelos trabalhadores entre trabalho e depressão, assim como quais as estratégias de enfrentamento da depressão utilizadas por eles na tentativa de manter a saúde e o emprego.
Palavras-chave: Depressão, Trabalho, Representações sociais.
ABSTRACT
This article deals with the issue of depression within the work context in the view of bank and trade workers in the city of Passo Fundo. To conduct this investigation, during the process of collecting and analyzing data, the theoretical-methodological reference from the Social Representation Theory was used with two focus groups and six individual interviews. Under this perspective the aim was to understand what was the link established by the workers between work and depression.
Keywords: Depression, Work, Social Representation.
Você já teve este sentimento de estar nadando contra a maré? De não estar correspondendo às exigências da sociedade atual? De não possuir o perfil ideal, seja ele relacionado ao físico, ao pessoal ou ao profissional. Ou uma sensação ruim sem razão aparente? Quando este sentimento é algo temporário as pessoas conseguem lidar com certa naturalidade, mas quando a tristeza e o mal estar se intensificam e tornam-se permanentes as dificuldades aumentam. Lidar com a própria tristeza e/ou com a tristeza do outro não é tarefa fácil. Socialmente há uma expectativa de que as pessoas estejam sempre de bem com a vida, alegre e dispostas para enfrentar os inúmeros obstáculos diários sem desistir, fraquejar ou entristecer.
A indagação sobre a origem da depressão e os estudos relacionados a este tema há muito se fazem presente na literatura especializada. Entretanto, foi nas últimas décadas que o tema ganhou mais espaço nas ciências psicológicas, psiquiátricas e nos meios de comunicação. Percebe-se uma popularização do tema depressão nos últimos anos estampada, principalmente, nos artigos de revistas, jornais, programas de televisão e em inúmeros sites da internet. A depressão é um tema complexo e por essa razão, é abordado por pontos de vista diferenciados, e, suscita grande número de pesquisas e especulações.
No transcorrer da leitura deste artigo o leitor entrará em contato com questões relacionadas a dois fenômenos complexos e instigantes presentes na sociedade contemporânea: a depressão e o mundo do trabalho2. Tais fenômenos pautam hoje discussões nos mais variados contextos sociais, seja nos meios acadêmicos, profissionais, na mídia e, mesmo, no cotidiano das pessoas. O elo de ligação entre trabalho depressão é estudado a partir da teoria das representações sociais, mediante a qual procura-se apresentar como o contexto de trabalho contemporâneo se constitui em um dos fatores produtores de depressão.
Método
Participantes
Os participantes da pesquisa foram trabalhadores bancários e comerciários que estavam trabalhando no período da pesquisa na cidade de Passo Fundo. Quatro trabalhadores bancários de ambos os sexos, com escolaridade variável entre segundo e terceiro graus completos, com idade média de 38 anos. Todos trabalhadores de bancos públicos e privados da referida cidade. Seis trabalhadores comerciários de ambos os sexos, com escolaridade variável entre segundo graus completos e terceiro grau incompleto, com idade média de 31 anos. Todos trabalhando em lojas de confecção, eletro-doméstico e supermercados da cidade de Passo Fundo.
Procedimentos
Para a coleta dos dados foram realizados dois grupos focais3 e seis entrevistas individuais4. Depois de realizados os grupos focais e as entrevistas individuais ambos foram transcritos e analisados a partir da orientação metodológica usada na teoria das representações sociais e inspirado nos Mapas de Associação de Idéias sugeridos por Spink e Lima (1999).
Segundo Jovchelovitch (1998, p.22), a Teoria das Representações Sociais (TRS) nasceu no final da década de 1950, em um estudo conduzido por Serge Moscovici sobre a psicanálise na França. A autora refere que as fontes que orientaram Moscovici na construção da TRS foram as seguintes: a) Durkheim, na sociologia, e Lévy-Bhrul, na antropologia: b) Freud, na psicanálise e c) Piaget (e Vygotsky), na psicologia do desenvolvimento das estruturas cognitivas. Para Moscovici (1978) as representações sociais como “[...] fenômenos específicos que estão relacionados com o modo particular de compreender e de se comunicar - um modo que cria tanto a realidade como o senso comum”. E, na tentativa de entender como as representações intervêm na atividade cognitiva do sujeito, tanto em nível individual como no coletivo, por palavras, idéias, imagens, entre outras.
A técnica dos Mapas de Associação de Idéias envolve os seguintes passos segundo Spink e Lima (1999, p.108): a) utiliza-se um processador de dados, tipo Word for Windows, e digita-se toda a entrevista; b) constrói-se uma tabela com um número de colunas correspondente às categorias a serem utilizadas; c) utilizam-se as funções cortar e colar para transferir o conteúdo do texto para as colunas, respeitando a seqüência do diálogo. Obtém-se, como resultado, um efeito escada.
Categoria de trabalhadores bancários e comerciários
As duas categorias enfocadas no estudo pertencem ao ramo de prestação de serviços, estando, portanto, em constante contato com chefia, colegas de trabalho e público. Contudo, possuem particularidades que permitem diferenciá-las: os bancários lutam pela manutenção do seu lugar de trabalhadores em um mercado de trabalho extremamente competitivo e marcado por constantes perdas; os comerciários também lutam, porém para legitimar seu espaço de trabalho, que ainda não é percebido por esses trabalhadores como profissão.
Uma pesquisa realizada pelo Senac (1996) acerca dos trabalhadores do comércio procurou responder à seguinte pergunta: “Quem é o comerciário gaúcho”?5 Segundo a pesquisa, a categoria dos comerciários é composta por 55,3% de trabalhadoras mulheres e 44,7% de trabalhadores homens, cuja idade média fica em torno dos 29 anos. O tempo de serviço médio desses trabalhadores é de oito anos. Quanto à escolaridade, os trabalhadores, na sua maioria, possuem o ensino médio completo. No que diz respeito à formação profissional dos comerciários gaúchos, a pesquisa apontou que eles manifestaram não estarem realizados nem quanto à função que realizam (62,8%), nem quanto à profissão que possuem (64,2%).
Também no ano de 1996 foi realizada uma pesquisa nacional pelo Datafolha sobre o perfil do trabalhador bancário e seu trabalho. Segundo o estudo: predomina na categoria o sexo masculino, (59%); o bancário tem, em média, 32 anos; o tempo de serviço médio desses trabalhadores é de 11 anos. Quanto à escolaridade, 66% possuem curso superior; e no que diz respeito à avaliação do seu trabalho e da categoria, consideram que seu trabalho é feito em equipe, é muito competitivo e oferece oportunidades de crescimento; entre os que não gostam da carreira (27%), a intenção é ser profissional liberal ou abrir negócio próprio.
Aspectos referentes à depressão e trabalho
Os aspectos da saúde e da doença estão claramente presentes no contexto de trabalho contemporâneo. Tais aspectos permeiam a vida dos trabalhadores que muitas vezes adoecem orgânica e psiquicamente no exercício diário das suas atividades laborais. Contudo, sabe-se que o trabalho possui um papel importante na vida do indivíduo e dessa atividade depende não só o sustento do trabalhador, mas a ela está também associado um significado que diz respeito a função e reconhecimento social. A manutenção do trabalho se constitui em forma de legitimação social enquanto sujeito. Sua atividade laborativa lhe confere reconhecimento e um lugar no mundo do trabalho. Para se manter nesse lugar o trabalhador cria estratégias defensivas. Ele depara-se com um ambiente sentido como hostil e muitas vezes gerador de doença.
Universalmente a depressão é explicitada sob o ponto de vista biológico, mas é vivida pelos diferentes indivíduos e suas sociedades sob a perspectiva cultural. Na cultura popular brasileira, segundo Barreto (1993, p.13s), ela é descrita como “uma perturbação da vida que atinge os ‘nervos’ de um indivíduo. Esta perturbação vai da tristeza profunda à fúria espetacular. Nesta perspectiva, além de um distúrbio orgânico, ela pode ser expressão de uma inadaptação social ou um apelo de socorro”.
A depressão pode ocorrer em diferentes momentos do ciclo de vida. Couto (1998) chama a atenção de pais e professores para a questão da depressão infantil. Ela é uma doença ignorada, difícil de diagnosticar e chega até a matar. Segundo essa autora, a depressão infantil é muitas vezes negligenciada pelos pais e mal diagnosticada pelos médicos, sendo confundida com fobia escolar ou com deficiência mental. Ainda Couto (1998) destaca que no levantamento feito pela OMS, 1,9% das crianças e 4,7% dos adolescentes sofre da doença em todo o mundo. Estudos desenvolvidos em Madri, na Espanha, calculam que cerca de 10%das crianças madrilenhas sofrem de depressão grave ou distimia. Estudos norte-americanos revelam que cerca de 3% das crianças até 12 anos e 8% dos adolescentes têm depressão. Wielenska (1997) também concorda que a depressão em crianças e adolescentes precisa ser identificada e tratada de maneira abrangente e por um período de tempo relativamente longo; acredita que se trata de um transtorno psiquiátrico mais comum do que pais, educadores e até mesmo profissionais de saúde geralmente imaginam. Na vida adulta e velhice a depressão também se manifesta. Neto (2000) chama a atenção para o crescimento rápido do número de pessoas acima de 65 anos de idade, a chamada terceira idade, que vem crescendo rapidamente na população. No Brasil havia cerca de 10 milhões em 1990; esse número chega a 15 milhões no ano 2000 e alcançará 34 milhões em 2025. Entre as principais doenças mentais que atingem os idosos está a depressão. É uma doença freqüente em todas as fases da vida, estimando-se que cerca de 15% dos idosos apresentem alguns sintomas depressivos e cerca de 2% tenham depressão grave. Esses números são ainda maiores entre os idosos internados em asilos ou hospitais.
Para Lafer et al (2000), a depressão constitui-se num problema de saúde pública da maior importância, visto que traz um grau significativo de sofrimento a seus portadores, além de estar associada a uma alta taxa de suicídio. Lima (1999), baseado numa pesquisa realizada na Suécia, a qual mostrou que até a idade de setenta anos a probabilidade cumulativa de um primeiro episódio de depressão é de 27% para homens e de 45% para mulheres, alerta que a depressão é um dos mais sérios problemas de saúde pública no mundo. Outra questão fundamental referente à saúde é salientada por Sawaia (1995, p. 157), a qual ressalta que não basta a ampliação do enfoque biológico, que abrange a questão do psicológico e social, como variável para superar a dicotomia mente-corpo instalada por Descartes. Faz-se necessário entender que a “saúde é uma questão eminentemente sócio-histórica e, portanto, ética, pois é um processo da ordem da convivência social e da convivência pessoal”).
O trabalho é considerado como o elemento instituidor da condição humana em seus aspectos sociais e simbólicos (Brant & Melo, 2001). Ele constitui-se tanto como possibilidade de saúde quanto de adoecimento e se faz necessário estar atento para o contexto onde ele hoje é desenvolvido. Alevato (1999) leva adiante uma importante reflexão sobre as mudanças no mundo do trabalho e suas conseqüências para o homem. As mudanças nesse contexto são intensas e o cenário apresentado para o trabalhador não é apenas produzido, mas induzido pelo mercado de soluções mágicas, que resolvem tudo rapidamente e sem muito esforço, como, por exemplo, o controle remoto, a comida congelada e o telefone com memória.
Os avanços tecnológicos fazem parte do contexto de mudanças do mundo atual e incide sobre a crescente fragmentação do trabalho executado pelos trabalhadores. Leite (1994) destaca que os avanços tecnológicos ocorrem de maneira intensa e que os trabalhadores, apesar de se manterem inseridos no processo de produção, vão se desqualificando aos poucos, ficando mais vulneráveis ao desemprego. Seligmann-Silva (1994) acrescenta que, no atual contexto tecnológico, há uma maior cisão entre a concepção do trabalho e sua execução, com o que o trabalho torna-se fragmentado e repetitivo. Dejours (1992) entende que essa fragmentação das atividades do trabalhador em seu ambiente de trabalho pode trazer prejuízos a sua vida psíquica, visto que, com o desenvolvimento repetitivo das suas atividades, o trabalhador fica desprovido de atividade intelectual para a realização do mesmo. Essa relação desarmoniosa entre a organização racional do trabalho e a estrutura da personalidade pode gerar insatisfação e, por conseqüência, sofrimento mental.
O trabalhador, quando doente psiquicamente, enfrenta dificuldades na busca de benefício, o que ficou evidenciado em pesquisa realizada por Brêda e Augusto (2001) no litoral sul de Maceió. As autoras buscaram compreender o cuidado prestado em saúde aos portadores de transtornos psíquicos na atenção básica em saúde, tendo observado que ele tem sido medicalizado, hospitalar e fragmentado. Os transtornos destacados pela equipe de pesquisadores foram alcoolismo, depressão e tentativas de suicídios.
O contexto social e sua dinâmica de funcionamento referente às questões relacionadas à depressão também são abordados por Birman (2000), o qual constata que o autocentramento do sujeito atingiu limiares impressionantes. Vivemos numa cultura do espetáculo na qual o eu se transforma numa majestade permanente e é exigida do indivíduo uma infinita performance, estabelecendo-se uma confusão entre o ser e o parecer. Dessa forma, o que caracteriza o autocentramento da subjetividade na cultura do narcisismo é justamente o excesso de exterioridade, ou seja, uma valorização social exacerbada da aparência idealizada do indivíduo. Ao mesmo tempo em que há um autocentramento no indivíduo, como refere Birman (2000), observa-se também um certo esvaziamento interior, pois a exposição é somente da aparência e das imagens externas, não do subjetivo, das vivências emocionais e interiores do indivíduo. O centramento está na imagem vendida acerca do sujeito vencedor, forte, bonito e potente sexualmente, e não em questões referentes à subjetividade, aos sentimentos interiores, como, por exemplo, o amor e o medo. Esses existem somente em relação à conquista das virtudes da imagem ou em relação ao temor da sua perda.
O indivíduo que se encontra deprimido não consegue dar conta de tantas pressões vivenciadas mediante metas, compromissos e prazos; a depressão reduz o seu rendimento no trabalho. Por conseguinte, o comportamento desse trabalhador torna-se indesejado e, com freqüência, ele é colocado na lista dos dispensáveis. Ele passa a fazer parte das pessoas que não conseguem dar conta das exigências impostas pela dinâmica do trabalho tal qual organizada atualmente.
A depressão sob a ótica dos trabalhadores bancários e comerciários
A palavra depressão tornou-se parte do vocabulário das pessoas independentemente do seu nível sócio-econômico-cultural. Ela não causa maiores estranhamentos, pois é associada facilmente a sentimentos de tristeza e desânimo, possuindo assim um caráter de normalidade. Também, não é incomum ouvir comentários das pessoas relacionados a sentimentos de não estarem correspondendo às exigências da sociedade atual, de não possuírem o perfil ideal, seja ele relacionado ao aspecto físico, pessoal ou profissional.
Esse discurso, apesar de comum, é freqüentemente desconsiderado nas relações que se estabelecem entre as pessoas. Isso corre pela dificuldade de aceitação da própria tristeza ou da tristeza do outro por parte das pessoas. Socialmente não há lugar para queixosos e perdedores. Trata-se de uma representação que é compartilhada socialmente dentro e fora do âmbito do trabalho. Essa representação fica evidente em contextos onde o trabalho é moldado por uma organização altamente racionalizada, no qual prima-se pela eficiência e pela produtividade. Em casos como o trabalho bancário e comerciário o sofrimento psíquico pode não aparecer explicitamente, mas isso não significa que ele não exista. Para os trabalhadores de tais esferas, o sofrimento expresso na depressão possui uma origem a qual está pautada basicamente no individualismo, na doença e no estresse.
O individualismo: “vai depender da pessoa”6
O individualismo, segundo Dejours (1994, p.59), tem sua origem nos tempos modernos e “é tipicamente uma formação que pertence ao imaginário social e que contribui para lhe dar as formas contemporâneas”. Seria a postura defensiva última de um longo processo no qual os trabalhadores se mostram ativos frente às pressões patogênicas do trabalho. O autor afirma que a tese do individualismo tem as seguintes características: a) é uma explicação para a evolução social e a crise das relações sociais de trabalho e, até mesmo, para as relações sociais em geral; b) é naturalizado, ora sendo considerado como relevante dentro de uma lógica imanente à evolução das sociedades, ora como enraizado no biológico; c) é uma versão específica e atualizada da velha causalidade do destino; d) é um clichê que tem a particularidade de conseguir a adesão de pessoas pertencentes a todas as camadas sociais, profissionais e aos dois sexos; e) é alterado e dotado de um conjunto de imagens, do qual a publicidade, a arte e a literatura se nutrem abundantemente.
Alguns trabalhadores entrevistados acreditam que a depressão está ligada a questões pessoais e que depende exclusivamente da pessoa conseguir superá-la. Essa forma individualista de entender a depressão está presente na seguinte fala: Acho que não é qualquer um que entra em depressão. Acho que a pessoa tem uma predisposição ou orgânica ou psicológica. [...] Um pouco pode ser do físico, orgânico e um pouco da falta de estrutura, [...] uma estrutura emocional, afetiva, familiar (trabalhadora bancária P4).
A fala dessa trabalhadora reproduz, portanto, o sistema de explicação individualista e biologicista da depressão divulgado na mídia, visto que não há o reconhecimento da influência de aspectos sociais como sendo também responsáveis pela produção dos sintomas depressivos, ou seja, só se aponta a responsabilidade individual. Observam-se algumas das características do individualismo citadas por Dejours (1994) nas verbalizações dos trabalhadores entrevistados, que constroem sua representação social da depressão focando seu discurso na questão individual, no biológico. Assim, o indivíduo é entendido como único responsável pelo adoecimento, como se fosse imune as influências sociais no contexto em que está imerso, as quais não são lembradas, nem contempladas quando se fala na pessoa com sintomas depressivos. E a publicidade, a arte e a literatura, como afirma Dejours (1994), nutrem-se abundantemente desse imaginário social e reproduzem-no em suas matérias, formando, assim, um círculo vicioso de informações reprodutoras da visão individualizada e descontextualizada da questão da depressão.
A argumentação individualista está presente na fala da trabalhadora bancária P4 ao explicar que a causa da depressão é mais física, orgânica, que psicológica, de modo que dependerá da força de vontade da pessoa sair da depressão: A pessoa, aparentemente, tem tudo para ser feliz e de repente tem aquela tristeza, e aqueles medos que vêm de dentro. Porque é uma causa mais física do que psicológica, porque de repente ela tem uma queda no organismo dela que faz com que ela não consiga enxergar tudo o que ela tem de bom.
Ao ser solicitado a essa trabalhadora que explicasse melhor sua afirmação pois, se ela entendia que a depressão era orgânica, como dependeria da força de vontade da pessoa para sair da depressão, obteve-se como resposta uma comparação de uma pessoa depressiva com uma com gripe, ou seja, ambas doenças orgânicas. Ela argumentou desta maneira: Mas olha só, se você tiver uma gripe, você não vai à farmácia e toma remédio? Se tu tá sentindo que a tua gripe está te derrubando, mas amanhã tenho um compromisso não posso faltar, vou fazer este chá, vou tomar para ir. A gripe seria orgânica, mas o teu psicológico te segurou porque tu tinhas que ir. Agora, de repente, tu vai pensar assim: “Eu tô com gripe, eu vou deitar aqui e não vou ir. Amanhã meu compromisso que se exploda!” Aí você se entrega porque tu não teve um outro motivo para te segurar fora (da depressão/gripe). Ainda na mesma linha, a trabalhadora argumenta dizendo que a força interior da pessoa é capaz de superar tudo. Tu não vê as pessoas que tem câncer: Por que umas morrem e algumas conseguem se curar? É porque a pessoa está predisposta a lutar e vencer.
A trabalhadora acredita que, se a pessoa tiver uma gripe (orgânica), a solução é o remédio disponível na prateleira da farmácia, que também poderá ser usado para a depressão (orgânica). Contudo, o que faz a pessoa ir à farmácia em busca do medicamento é a cobrança pessoal frente ao compromisso social e externo ao indivíduo; essa força de vontade pessoal seria o que a manteria a salvo da depressão. A trabalhadora traz no seu discurso elementos da cultura do individualismo, pois sua argumentação baseia-se numa responsabilidade individual em dar-se conta, em buscar ajuda e em vencer, por si, a depressão. Nessa concepção, pode-se observar que há uma representação irreal, idealizada do poder do indivíduo sobre sua própria dificuldade, mas pode o depressivo dar conta da depressão somente resgatando a sua força interior? E as contingências sociais presentes no seu cotidiano não deveriam ser contempladas? Se fossem contemplados elementos sociais e individuais, talvez o discurso argumentativo fosse menos ideal e a responsabilidade não recairia somente no indivíduo, mas seria contextualizada. A trabalhadora mencionou a influência e a exigência do contexto social para qualquer tomada de decisão individual, contudo tem dificuldade de fazer uma leitura desse social.
A doença: “a depressão para mim é quando ela já é uma doença”7
Os trabalhadores entendem que só se pode considerar o que uma pessoa sente como depressão quando esses sentimentos se caracterizam como doença, na qual há necessidade de intervenção medicamentosa. Essa compreensão remete à questão da legitimação da doença, que tem de ser comprovada, diagnosticada, caso contrário poderá trazer dúvidas com relação à pessoa estar sofrendo de fato. Quando se fala em doenças com componentes psíquicos, em depressão, pode-se falar em diagnóstico, mas esse apenas fica no imaginário das pessoas, no entendimento subjetivo, pois não é possível visualizá-lo. A depressão constitui-se, dessa forma, num sentimento vivenciado cotidianamente pelas pessoas, porém difícil de explicar por quem sente e também difícil de entender por quem escuta as queixas, justamente por este seu caráter de invisibilidade.
A dificuldade de entendimento da depressão e de sua aceitação social pode ser proveniente desse caráter de invisibilidade, assim como ocorre nas doenças do psiquismo. Acioli (2000) relata que, em todos os tempos e lugares, a doença mental despertou sentimentos de estranheza e que, diante dela, as diferentes sociedades assumiram posições opostas, ora negando a sua realidade, ora defendendo a existência de uma enorme distância entre o reconhecido como doente e o considerado normal. A doença mental é uma manifestação humana particular, indiscutivelmente relacionada com a experiência social onde se manifesta. Ela reflete, sobretudo, dificuldades nas relações com o espaço circundante. Segundo Acioli (2000), estima-se que mais de um bilhão e quinhentos milhões de pessoas em todo o mundo padeçam hoje de algum distúrbio mental ou de comportamento.
Essa representação da depressão como doença fica explícita na fala da trabalhadora bancária P4: Depressão é quando a pessoa está doente mesmo de saúde, que ela se entrega, que ela não tem mais motivo, deita, chora, não levanta. Isso é que eu entendo como depressão. [...] É quando a pessoa entregou os pontos. É quando ela não tem mais força para lutar, quando ela ficou naquela tristeza profunda, que ela deita na cama, só quer dormir. A depressão para mim é quando ela é uma doença. [...] Aquele tipo de coisa assim que uma psicóloga não ajudaria, precisaria um psiquiatra para dar uma medicação para levantar.
Para Del Porto (1999, p.2), o termo “depressão”, entendido como doença, tem sido classificado de várias formas, dependendo do contexto histórico, do ponto de vista adotado pelos diferentes autores e da preferência dos mesmos. Entre os quadros mencionados na literatura atual relacionados à depressão (DSM-IV, CID-10), encontram-se: “transtorno depressivo maior, melancolia, distimia, depressão integrante do transtorno bipolar tipo I e II, depressão como parte da ciclotimia [...]”.
Na fala desses trabalhadores, fica claro que, para o reconhecimento do adoecimento, tem de haver a presença da medicação. Qual seria a razão disso? Barreto (1993) explica que a medicação possui um valor cultural, pois ela valida o estar-doente, legitima o direito à depressão. Através do tratamento farmacológico, há um reconhecimento cultural de que depressão é uma “doença”. Brêda e Augusto (2001) também confirmam que a conduta dos profissionais da saúde no atendimento aos portadores de transtornos psíquicos na atenção básica de saúde tem sido de medicalização e hospitalização, denotando numa visão fragmentada do processo.
Pode-se observar, através das afirmações de Barreto (1993) e Brêda e Augusto (2001), que a legitimação da doença através da medicação é uma representação que perpassa a esfera do senso comum. Ela está presente também na forma de condução dos cuidados prestados em saúde por profissionais que passaram pelas universidades, pelo conhecimento científico. O que estaria demonstrando esse comportamento?
Pode-se pensar que tanto os profissionais da saúde como os trabalhadores necessitam dessa legitimação da doença. Por um lado, há os trabalhadores que necessitam de um lugar para ancorar suas queixas e, por outro, há os profissionais da saúde, da esfera científica, que necessitam dar uma resposta à queixa e o fazem oferecendo este lugar através da medicação, legitimando, assim, o sofrimento. Quando essa ancoragem acontece, há a legitimação da doença e, conseqüentemente, a aceitação social da mesma, ou seja, aceita-se que depressivo não é louco, vagabundo ou fraco de caráter, mas doente. A legitimação dá-se mediante a comprovação médica e a prescrição de remédio.
Observou-se, pela fala dos trabalhadores, que há uma prática de busca de ajuda especializada somente quando a pessoa está visivelmente doente e que eles detêm um conhecimento acerca do longo período de tratamento e da falta de perspectiva de cura definitiva para a depressão. Além disso, têm consciência de que essa realidade é desgastante para os familiares no convívio diário com a pessoa depressiva. Juntamente com as reflexões sobre a questão da depressão, os trabalhadores comerciários e bancários levantaram a questão da morte proveniente da depressão, pois conhecem casos de pessoas que, por causa da depressão, deram fim à própria vida.
A trabalhadora do comércio P1 adverte que a depressão é uma doença na qual coisas horríveis como a morte podem vir a acontecer, como expressa nesta fala: Eu sei de casos de pessoas que chegaram a cometer uma loucura, de se matar por causa da depressão. Eu sei de pessoas que já fizeram isso. O trabalhador bancário P2, na realização do grupo focal, levantou a questão de doenças graves que podem ocorrer com eles, as quais podem ser confundidas com a depressão e que também podem matar, como ocorreu com sua colega de trabalho: No começo a gente achava que ela estava com depressão, porque ela estava muito mole, muito para baixo, só que foi câncer daí. Ela conversava com a gente, a gente tentava animar ela e a gente via que ela não conseguia se erguer, [...] parece que perdeu as forças, que tirou a energia dela e que ficou fazendo só aquilo ali e cada dia piorando. Agora, como acontece isso aí são vários fatores.
Na fala da trabalhadora comerciária está presente a crença de que a depressão, sendo caracterizada como doença, pode levar a pessoa à morte, que ela concebe como morte física. Também o trabalhador bancário parece estar falando em depressão, mas era câncer, que também poderá levar à morte física. Entretanto, pode-se pensar em tantas outras mortes anteriores a esta: morte do tempo, da energia, da alegria, do convívio social, da saúde, do trabalho e tantas outras mortes invisíveis, como aqueles elementos que a trabalhadora vinha demonstrando. Contudo, seu sofrimento só foi reconhecido quando a doença foi diagnosticada. Esse adoecimento está inscrito na subjetividade de cada trabalhador, mas só é visto quando é visivelmente incapacitante. A morte da saúde pode trazer consigo isolamento do convívio social, do contexto de produção, discriminação e desconfiança, especialmente se for morte de saúde psíquica.
Para os trabalhadores bancários e comerciários entrevistados, a depressão obtém reconhecimento social somente quando há evidência de doença incapacitante validada pelo médico psiquiatra e pela medicação. E a saúde tem espaço nesse contexto? Poderia ser diferente? Brant e Melo (2001, p.61) chamam a atenção para a promoção da saúde e trabalho como um espaço urgente de visualização da saúde e do exercício da cidadania, através de um planejamento coletivo e do resgate do sujeito. Com esse compromisso poderão ser desenvolvidos valores de vida, democracia, saúde, eqüidade e solidariedade. Nessa perspectiva, a promoção de saúde e trabalho, segundo estes autores, pode se afirmar como uma política de saúde capaz de “estabelecer um laço entre a epidemiologia e a saúde pública e de buscar uma ação recíproca entre sujeito e um universo social perpassado por contradições” .
O estresse: “eu vejo que depressão é um acúmulo de estresse e algumas outras coisas” 8
Nas discussões realizadas nos grupos focais, os trabalhadores questionaram-se a respeito do seu conhecimento sobre estresse e depressão, querendo saber se o que sentem na realização do seu trabalho seria só estresse ou já seria depressão. O trabalhador do comércio P5 disse o seguinte: Uma coisa é que no nosso caso, como vendedor, a gente pode achar que é estresse, tô estressado, mas na verdade se consultasse (um médico) muita gente poderia ter a depressão. Essas dúvidas são respondidas apenas parcialmente pela esfera científica, pois não há um consenso na definição de estresse. Goleman (1997, p.21) relata que uma tentativa de definir o estresse foi realizada no início de 1986 numa conferência em Tucson, no Arizona, com a participação de psicólogos, imunologistas e médicos, mas não obteve êxito. Contudo, os profissionais concordaram que “o estresse não é o que acontece a alguém – essas forças exteriores são fatores de estresse – mas como uma pessoas reage ao que acontece”. Ainda segundo Goleman (1997), anteriormente a essa compreensão, acreditava-se que o estresse seria uma força universal que agia sobre o indivíduo passivo, que todas as pessoas reagiriam mais ou menos da mesma forma a rupturas e que, provavelmente, causaria danos à saúde.
Pode-se observar que essa nova maneira de ver o estresse, na medida em que contempla a subjetividade do indivíduo, também traz consigo as marcas do individualismo. Gentil (1996) acredita que uma noção básica na constituição da subjetividade nas sociedades contemporâneas tem sido a de “indivíduo”. Embora desvelada como categoria histórica e socialmente construída, permanece como fundamento implícito do senso comum e de muitas elaborações filosóficas e científicas. A categoria “indivíduo” faz parte do imaginário social contemporâneo, tornando-se substrato básico na construção social da subjetividade, nos processos de socialização e de formação de identidade. Segundo o autor, a ideologia individualista valoriza o “indivíduo”, vendo-o como um ser autônomo e negligencia ou subordina a totalidade social. O “indivíduo” é apenas mais um valor, pois as pessoas estão imersas na cultura capitalista, na qual vão sofrendo o processo de socialização, constroem sua identidade e onde encontram a reafirmação cotidiana dos valores.
Na realização do grupo focal, os trabalhadores do comércio, enfatizaram o papel do estresse como um possível desencadeador da depressão. Observaram como estão expostos a um contexto estressante no seu trabalho e que muitas vezes só param quando uma doença é deflagrada. Como referido anteriormente, o trabalhador necessita da legitimação da doença, o que ocorre através da medicação, da hospitalização e da explicação da doença incapacitante. Parece que ele entende o estresse como algo normal do trabalho, ou seja, todos estão estressados, de modo que é permitido “explodir” com colegas ou clientes, mas não é permitido adoecer.
A trabalhadora bancária P4 expressa com clareza essa forma de pensar quando diz o seguinte: Uma coisa é tu sair estressada. Teve um período que eu trabalhava 12 horas por dia direto. Enquanto eu estava ali, eu estava no pique, minha adrenalina estava lá em cima, quando eu saía dali minha vida ficava vazia. Daí um dia eu saí dali e estava caminhando na rua e comecei a chorar sozinha. [...] De repente, eu digo não dá, não deu, manda o cliente que vá passear, que quando der eu ligo. Isso eu acho que é o estresse, que faz tu ficar com adrenalina lá em cima. Claro que pode virar uma depressão, mas não é ainda um estado depressivo, uma depressão. [...] Por exemplo, hoje meu serviço foi terrível, mas, acabou o dia, tu tem que respirar e amanhã tu tá lá de novo. Isso é um estresse muito grande porque às vezes tu chega a ficar desanimada, mas não é depressão.
No âmbito público do mundo do trabalho, as pressões, instabilidades e desafios são constantes; a competitividade está cada vez mais acirrada e o trabalhador força seu organismo e psiquismo ao máximo para dar conta das exigências do mercado de produção. Como diz a trabalhadora bancária, pode trabalhar 12 horas por dia, sentir-se vazia, chorar sozinha, estressar-se, desanimar, definir seu dia de trabalho como “terrível”, mas deve ter força para recomeçar novamente no dia seguinte. Afinal, ainda não está com depressão, está apenas estressada, seu organismo está dando conta da pressão. Cabe perguntar-se: até quando? Até quando o trabalhador agüentará essa pressão sem adoecer cronicamente? E aquele que não corresponder a esse ideal de trabalhador saudável, incansável, perfeito, como ficará? Segundo Habigzang e Cadaviz (2001), os indivíduos que não alcançarem o sucesso exigido pela nossa cultura ficarão suscetíveis a atribuir-se os sintomas da depressão, buscando pertencer a um grupo, num processo de identificação e de troca de algo em comum.
Na realização dos grupos focais, tanto com comerciários como com bancários, foi possível observar que os trabalhadores se identificavam com a fala do colega; eles concordavam com o que falava e acrescentavam idéias, compartilhavam da desesperança, do cansaço e do estresse, se não em si próprios, observam estas manifestações nos colegas de trabalho. O trabalhador comerciário P5 apontou a questão da irritabilidade e do estresse antes de ser deflagrada a depressão. Para ele, no trabalho, o que mais é sentido é uma irritabilidade. [...] O problema maior é a pessoa conseguir saber até onde está indo o estresse dela. Na minha opinião, o pouco que eu entendo disso, a depressão é um estresse avançado, que chega num nível de estresse que você estoura e, como não tem como estourar para fora a agressão, você estoura em sentimento. E aí você vê que a pessoa fica fragilizada [...]. O começo de uma depressão é o estresse, uma irritabilidade.
Outra trabalhadora do comércio, P2, argumenta que o estresse é mais light, mas pode ser o início da depressão. Segundo ela, se estresse é uma coisa mais light, é o início de uma depressão, a pessoa começa a sentir necessidade de algumas coisas, ou começa a se irritar com mais facilidade. Eu acho que é isso, a pessoa fica mais sensível para tudo, às vezes você fala, tem que cuidar muito o que tu fala porque a pessoa se irrita com qualquer coisa e isso é o início de uma depressão. Na seqüência, outra trabalhadora do comércio, P6, acrescenta que a depressão se origina de um acúmulo de estresse e de outros fatores, fatores que acontecem: perda do emprego, do namorado, algumas coisas que vão acontecendo junto e que vão te deixando frágil.
Pode-se observar que muitos dos sintomas citados na lista relacionada ao estresse foram verbalizados pelos trabalhadores, especialmente sintomas emocionais e comportamentais. Contudo, os demais sintomas também estão presentes em diferentes níveis e são vivenciados no desenvolvimento de suas tarefas diárias de trabalho. Os entrevistados acreditam que o estresse pode deflagrar outras doenças além da depressão, como é o caso de câncer. O trabalhador bancário P2 expressou que a depressão pode ser confundida com outras doenças e citou o caso de uma colega de trabalho que tinha câncer, mas que, inicialmente, eles pensaram que fosse depressão. No seu relato também menciona o estresse como um desencadeador do câncer: Daí ela passou por uma separação, ela sofreu bastante e ocasionou isso aí, que dizem que uma situação de muito estresse pode deflagar, se você tem tendência a tumor, a câncer, e acho que realmente foi o que aconteceu.
Alevato (1999) comenta sobre as mudanças no mundo do trabalho e suas conseqüências para o homem dizendo que são intensas e que o cenário apresentado para o trabalhador é produzido e induzido pelo mercado de soluções mágicas e sem muito esforço, como, por exemplo, comida congelada e telefone com memória. Assim também, os trabalhadores expressam o desejo de um controlador externo, “mágico”, que lhes advirta do excesso de estresse. Caso isso acontecesse, eles poderiam “desacelerar” antes que o organismo reclamasse através da doença já em estágio avançado. Esse desejo fica explícito na fala do trabalhador do comércio P5: O problema maior é que a maioria das pessoas vai ver quando está num estágio alto. [...] Só que algumas pessoas estão estressadas há mais tempo ou há menos tempo ou a reação é diferente. Às vezes você está atendendo e um “não” vem e estoura. Em casa também, e, aquilo vai gerando o estresse, só que, como tu está acostumado com aquela rotina, tu consegue amenizar, mas continua no estresse. [...] Tinha que ter um reloginho, quando começasse (riso de todos): amarelo é estresse, vermelho é depressão, e, antes disso, tirar o pé do acelerador.
O que faz o trabalhador manter o pé no acelerador? Pode-se pensar nas pressões sociais, nas pressões do próprio trabalho, como se ele necessitasse de uma autorização desse contexto para a manutenção de sua saúde. Segundo o entrevistado, o sinal amarelo já é estresse suportável, embora não tenha ainda o caráter de cronicidade da doença; já o vermelho seria depressão passível de discriminação; e crônico, como já referido anteriormente, não teria perspectiva de cura.
O desejo expresso pelo trabalhador de ter um indicador externo para detectar o estresse e a depressão expressa a internalização pelo indivíduo do discurso a cerca das soluções mágicas, tão vinculado nos meios de comunicação. Tais discursos veiculados na mídia anunciam soluções rápidas e instantâneas para todo tipo de problema, como, por exemplo, os inúmeros medicamentos para emagrecer rapidamente e sem esforço e daqueles para sair da depressão. Esses anúncios encobrem os efeitos colaterais pouco anunciados, mas sempre presentes.
Considerações finais
A temática da depressão, por si só, é complexa e torna-se mais densa quando se busca entendê-la no ambiente de trabalho. Sabe-se que o país enfrenta dificuldades de toda ordem, seja no âmbito social, econômico ou educacional. Vive-se num contexto competitivo e conflituoso que atinge os trabalhadores, independentemente da área em que atuem. O ambiente de trabalho hoje é um local de competição exigindo dos trabalhadores qualidades técnicas específicas, assim como qualidades inter-relacionais, para que possam competir na manutenção provisória do seu emprego. Além de deverem atender à demanda interna das instituições, os trabalhadores têm de dar conta de uma cobrança social exposta pelos meios de comunicação, os quais impõem o sucesso pessoal e profissional, de modo que as pessoas tendem a se sentir pressionadas e influenciadas na busca da máxima perfeição nas atividades.
Evidencia-se que a definição de depressão divulgada nos meios de comunicação de massa aumenta o conhecimento dos trabalhadores sobre questões relacionadas à depressão contribuindo para diminuir o estigma social da doença mental. Contudo, esse conhecimento adquirido, além de ter seu enfoque na doença, no biológico e na eficiência dos psicofármacos, torna normal a expressão dos sintomas depressivos assim como do uso excessivo de medicamentos para combater a tristeza ameaçadora. Acredita-se que o trabalhador que apresenta sintomas depressivos, ou que já possua um diagnóstico de depressão, não pode ser entendido isoladamente como uma pessoa problemática que poderá ficar bem caso receba uma medicação adequada. Ele não é somente um órgão doente, pois possui subjetividade e vivencia a depressão na sua singularidade. Além disso, ele faz parte de uma família, de uma comunidade, de uma cultura e de um contexto de trabalho que devem ser considerados de maneira efetiva e não apenas de modo complementar na interpretação do seu adoecimento.
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Endereço para correspondência
E-mail: claudiamarab@yahoo.com.br
Recebido em 02/2004
Aceito em 05/2004
1 Cláudia Mara Bosetto Cenci – psicóloga; mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; professora universitária na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI-Campus Erechim/RS)
2 Os resultados apresentados neste artigo foram trabalhados a partir de uma pesquisa desenvolvida pela autora que teve como objetivo investigar a construção da representação social da depressão em duas categorias de trabalhadores do segmento de prestação de serviços da cidade de Passo Fundo – os comerciários e os bancários
3 Os grupos focais, segundo Oliveira e Werba (1998, p.112), oferecem a oportunidade de se estabelecer uma “intensa troca de idéias sobre determinado tópico, num período determinado de tempo, onde os dados são discutidos e aprofundados em conjunto”. Os participantes do grupo focal “influenciam uns aos outros através das respostas às idéias e colocações durante a discussão, estimulados por comentários ou questões que são fornecidas pelo moderador” (Oliveira; Freitas, 1997, p. 5)
4 Segundo Marconi e Lakatos (1996), tem a finalidade de obter informações a respeito de um determinado assunto através de uma conversação de natureza profissional; é um procedimento utilizado na investigação social para a coleta de dados ou para ajudar no diagnóstico ou tratamento de um problema social, visto que o entrevistado proporciona a informação necessária face a face
5 Dados da pesquisa do Senac realizada entre 16 e 30 de setembro de 1996 junto a uma amostra de 1.730 comerciários de 25 municípios gaúchos e com 72 lideranças empresariais, sindicais e de órgãos públicos em 12 municípios onde existem unidades do Sesc e/ou Senac
6 Trabalhadora do comércio P6
7 Trabalhadora bancária P4
8 Trabalhadora do comércio P6