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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.33 Canoas dez. 2010
ARTIGOS DE PESQUISA
A Bela e a Fera: uma análise psicológica da personagem Bela
The Beauty and the Beast: a psychological analysis of Belle's character
Luísa Puricelli PiresI; Tatiana Helena José FacchinII
I Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
RESUMO
Pensando no instigante sucesso do desenho animado "A Bela e a Fera", da Walt Disney, que teve grande repercussão mundial na época em que fora exibido, este artigo propõe-se a compreender o desenvolvimento psicológico da personagem Bela. Para tanto, algumas cenas do filme foram escolhidas para análise, com o aporte teórico de Sigmund Freud, tendo-se observado, com isso, a transformação ocorrida na vida psicossexual de Bela ao passar do Narcisismo para o Complexo de Édipo e a resolução deste. Foi entrelaçada a seguir, com a colaboração do entendimento de Marie-Louise Von Franz, a aquisição do Feminino por parte da personagem com a importância dos contos de fadas na construção da personalidade das crianças, que, a partir destes, vivenciam de forma lúdica os conflitos inerentes ao desenvolvimento psíquico, facilitando sua elaboração e aumentando sua capacidade de simbolização.
Palavras-chave: A Bela e a Fera, Desenvolvimento psíquico, Contos de fadas.
ABSTRACT
Thinking about the amazing success of the cartoon with great impact worldwide "The Beauty and the Beast", Walt Disney, this article aimed to understand the psychological development of the character Belle. To this end, some parts of the movie were chosen and analysed, based in the theory of Sigmund Freud, providing an understanding about Belle's psychosexual life, when she overcame Narcissism and Oedipus Complex. Then it was contextualized, throw Marie-Louise Von Franz, the female's acquisition of the character along the importance of fairy tales in the construction of children's personality, that experience in playful way conflicts of the psychological development, leading to a elaboration and empowering its symbolization capacity.
Keywords: The Beauty and the Beast, Psychological development, Fairy tales.
Introdução
A história "A Bela e a Fera" tem como origem o mito Eros e Psique, sendo esta última publicada no século II d.C., em "Metamorfose de Lucio", também conhecida como "O asno de ouro". Tendo estudado ambas histórias e comparado-as, suprimimos essa relação no atual artigo na expectativa de tornar melhor o entendimento do leitor ao comentarmos apenas aspectos referentes ao filme (Tatar, 2004).
Enfocamos o conto de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, na sua versão como desenho animado, imortalizada nas telas em 1991 pela Walt Disney. Este alcançou índices jamais imaginados para um desenho até a época de seu lançamento, incluindo a indicação ao Oscar de melhor filme e diversas versões para o teatro. Esta animação deslumbra pessoas de todas as idades, não apenas pela história em si, mas por todo o enredo que a cerca, revelando conflitos naturais do desenvolvimento humano (Beaumont, 1756/2008).
A personagem Bela, nosso foco de estudo, fascinou os telespectadores, pois, além de romper com os paradigmas de submissão da mulher e seu suposto desinteresse pelo conhecimento e pela cultura, mostrava-se uma mulher feminina e doce. Identificamos ainda no filme as mensagens de amizade, na relação dos funcionários do castelo com Bela e Fera, e de amor verdadeiro, no qual a beleza interior predomina em detrimento da aparência física.
Por meio de estímulos visuais e auditivos, o filme projeta mensagens ao espectador, através da passagem de conteúdos marginais, de forma que este obtém significados providos por ele mesmo ao imaginar e associar conteúdos reais e fantasiados a partir da comunicação inconsciente que se estabelece nesse encontro tela-atenção. É aí que as pessoas se sentirão mais ou menos incomodadas, comovidas, irritadas, enfim, onde são despertados sentimentos que, muitas vezes, não são passíveis de controle.
Utilizando o entendimento de Dieckmann (1986, p.14) sobre o conto de fadas ser similar ao sonho, uma vez que nos contos "acontecem coisas extraordinárias – impossíveis para o pensamento racional – e aí existem monstros, bruxas, fadas e mágicos ou animais falantes", facilitando a intimidade com o conteúdo latente da história, lembramos a mais instigante contribuição de Freud.
"A interpretação dos Sonhos" (Freud, 1900/1980) marcou a virada do século e uma reviravolta no entendimento das questões inconscientes dos seres humanos, influenciando nosso pensamento até a atualidade. Trabalhando aspectos como condensação e deslocamento nos sonhos, ele evidenciou a estruturação do psiquismo e a formação dos sintomas, bem como a ideia de conflito intrapsíquico.
O sonho é uma formação inconsciente que busca revelar e reorganizar algum aspecto da vida infantil e cotidiana. No momento do sono, o consciente deixa de agir tão fortemente sobre o ego, permitindo uma passagem de conteúdos até então inimagináveis na vida de vigília. Há um acerto entre as instâncias psíquicas (uma oferece roupagens inofensivas, facilitando à outra aparecer em cena) que promove o devido disfarce daquilo que invariavelmente é uma realização de desejo infantil sexual. Ora, se uma ideia inconsciente aparece no sonho de forma demasiadamente explícita, gera angústia e logo damos conta de acordar, redirecionar o sonho ou esquecê-lo ao despertar (Freud, 1900/1980).
Da mesma forma, ocorre esse movimento psíquico quando se assiste a um filme. Ele passa a ser constituído por aquilo que lembramos dele, pela maneira como o fazemos, as cenas escolhidas, as personagens a que damos maior atenção e a forma como o recontamos a outros e a nós mesmos em nossa mente aquela história que muitas vezes nem se sabe por que nos emocionou ou intrigou tanto.
E, assim, como os sonhos, os contos de fadas ajudam a elaborar uma situação de conflito, tornando possível ao sujeito analisar as representações feitas anteriormente. Essa possibilidade de fantasiar, montar histórias e imaginar vidas diferentes é ainda mais imprescindível na infância, já que o desenvolvimento do psiquismo depende dessa mobilidade construída pelo pensar.
Através dos contos de fadas, portanto, a criança media a relação entre os mundos interno e externo, desenvolve a linguagem por meio do simbolismo e pode se experimentar em diferentes papéis no contexto familiar por meio da identificação com os vários personagens do conto (Radino, 2003).
Os contos falam por meio de metáforas, nas quais histórias assustadoras podem não ser ameaçadoras; representam situações e símbolos das vivências das pessoas que os ouvem ou assistem e estas estão diretamente implicadas no processo de entender e repassar essas histórias (Alves & Emmel, 2008; Rosa, 2008).
Aqui, nós também somos contadoras de uma história e de um entendimento, permitimo-nos uma licença poética, se é que assim podemos chamar, e convidando o leitor a trilhar esse caminho de sonhos e contos de fadas. Tendo sido primeiramente analisado em separado, através da seleção de oito cenas e categorização das mesmas à luz da teoria psicanalítica, agora, neste artigo, está proposto um entendimento mais dinâmico. Partindo do resumo do filme analisado, a seguir trabalhamos a questão do Narcisismo e do Complexo de Édipo. Depois reunimos considerações acerca das relações entre as personagens de um conto e de um sonho, das mudanças cotidianas da vida real e sua relação com a história da Bela e a Fera, bem como a vivência dos contos de fadas na vida das crianças como um lugar de simbologia direta à teoria psicanalítica freudiana.
A Bela e a Fera de Walt Disney
Em um povoado da antiga França havia uma linda moça chamada Bela, filha de um inventor desacreditado da região. A garota era conhecida por ser a mais bonita da cidade e por isso cortejada por Gaston, que ela esnobou, negando seu pedido de casamento.
Durante uma mostra de inventos, o pai da moça se perdeu quando se deslocava para o local da feira. Perseguido por lobos, ele encontrou um castelo escuro e feio, adentrando o recinto para salvar-se. Fera, o dono do castelo, ao perceber o intruso, ficou irado e o tornou seu prisioneiro.
Fera, na verdade, era um príncipe egoísta que fora amaldiçoado por uma feiticeira. O castigo dirigiu-se a todos em seu castelo, fazendo os empregados viverem como objetos e ele como monstro. O feitiço tinha um tempo e era contado pelo desabrochar de uma rosa encantada. Se ele aprendesse a amar alguém e fosse retribuído na época em que a última pétala caísse, o feitiço estaria desfeito, senão ele estaria condenado a ser fera para sempre.
Sabendo do sumiço do pai, Bela fora levada ao castelo de Fera por seu cavalo Felipe. Preocupada com a saúde do pai, a moça se ofereceu para ficar no lugar dele. Fera concordou com a proposta e o homem, relutantemente, foi mandado de volta à sua moradia.
Os serviçais do castelo sugeriram que Fera deixasse Bela em um quarto, em vez de na masmorra, e que se aproximasse dela; porém, brigas sobre a grosseria dele e a teimosia dela apareceram a partir do convívio dos dois, e Bela tentou fugir. Apenas após ser atacada por uma matilha e salva por Fera eles se aproximaram.
Ao dizer que se preocupava com a saúde do pai, embora se sentisse feliz vivendo no castelo, Bela foi libertada por Fera. De volta à casa, Gaston prendeu Bela e seu pai, enquanto ele e os outros homens da cidade iam a caminho do castelo, a fim de matar Fera. Durante a briga violenta de Gaston e Fera, Bela chegou com seu pai e Felipe, adentrando o castelo sozinha e impedindo que Fera caísse da torre e morresse.
A jovem, desesperada, se debruçou sobre Fera e chorou, declarando seu amor (enquanto a última pétala da rosa caía). Neste momento, o feitiço começou a ser desfeito, com os objetos voltando a ser pessoas e Fera se tornando príncipe. O castelo ficou branco, a chuva cessou e o dia ficou claro. O casal se beijou e em seguida apareceu dançando numa festa no castelo.
O desenvolvimento de Bela: em busca de si mesma
Agora que colocamos nosso entendimento sobre a importância dos contos de fadas e dos filmes e o auxílio destes para a resolução de conflitos intrapsíquicos, bem como um resumo do desenho animado analisado, apresentaremos a teoria que embasa nossa discussão durante todo o processo, de forma dinâmica, criando assim um diálogo com o leitor e levando-o a observar o desenvolvimento psicológico da personagem Bela em três aspectos: narcisismo, passagem do feminino e o Complexo de Édipo.
No início da vida, a mãe exerce as funções de cuidado com o bebê e seu corpo, provendo sua sobrevivência. É ela quem propicia um espaço de fundação do psiquismo ao transmitir na relação com seu filho, além do leite, o desejo de tê-lo, as expectativas sobre ele e a possibilidade de unir-se a ele como um só, até que seja possível diferenciar as suas necessidades.
A genitora, primeiramente, passa a noção de completude, à medida que está ligada a seu bebê de forma simbiótica, e proporciona a ele sentir-se inteiro, perfeito, voltado a si próprio, sem preocupação com a realidade. Aos poucos, contudo, esse narcisismo constitutivo é abandonado; a mãe já não pode mais estar fundida com o bebê, pois ela tem outras funções a desempenhar no laço familiar e social, e seu filho precisa aprender a relacionar-se com esse mundo também (Freud, 1931/ 1980).
A mãe exerce ainda a função de passagem do feminino, daquilo que falta, mas pode ser buscado em outro, do mistério de ser dois separadamente e ainda estarem ligados. Essa mulher, se tudo correr bem, ouve o seu filho, responde a ele e lhe apresenta o mundo lá fora; ela não está narcísica com a chegada do filho, achando-se, por sua vez, completa, e nem apática, desvalorizando sua posição de mãe; ela atende quando pode e trata de não deixar seu bebê à mercê da dura realidade desde muito cedo, mesmo que para isso precise da ajuda do marido, da babá ou de sua própria mãe, agora avó; a mãe já tem em si a marca da castração e ensina e impõe regras já nos cuidados de sua criança, evidenciando que a função paterna de corte da relação dual mãe-bebê pode estar internalizada na mulher (Paixão, Decker, Fiorenzano & Ribeiro, 2001).
A ambivalência de sentimentos pelo objeto de amor nos adultos seria um resquício dessa etapa do desenvolvimento psíquico, pois a mãe representa tanto a cuidadora como aquela que joga o filho ao mundo. Especialmente em mulheres, cuja troca de objeto é necessária durante o Complexo de Édipo (discutido adiante), esse abandono da experiência simbiótica com a mãe é particularmente complicado (Freud, 1931/1980).
Quando esta etapa inicial, pois, não pode ser desvencilhada do corpo do próprio sujeito e da satisfação que provém desse estado simbiótico com a mãe, a libido1 se redirecionaria para o Eu, interessando-se cada vez menos pelos objetos externos, modificando assim a realidade a seu bel prazer e, caso se estenda além do período desejável e/ou com demasiada intensidade, configurando as patologias narcisistas e psicóticas (Lagache, 1959).
A mãe de Bela não aparece no conto, mostrando-nos, talvez, que o foco do filme realmente seja o conflito edípico. De qualquer forma, arriscamo-nos a falar sobre esses aspectos pré-edípicos da personagem por constituírem um ponto do desenvolvimento psíquico que acompanha o ser humano sempre, não estando, portanto, separado da passagem pelo Édipo.
O narcisismo está simbolizado nos comportamentos de Bela no início da história, quando ela deseja uma realidade tão distante da sua, nega pretendentes por achá-los inferiores a ela ou tem sua beleza física reverenciada.
Bela canta em uma das primeiras cenas do filme dizendo que desejava mais do que a vida do interior e parecia estar vivendo em um mundo isolado, pois quando passeava no vilarejo estava voltada ao seu livro de contos de fadas e nem percebia o alvoroço que causava nos moradores da cidade, os quais admiravam sua beleza.
Pensando no mito de Narciso, fica clara esta paixão por si mesmo e sua aparência física como algo vivido por todos os seres humanos. Ainda que Narciso tivesse Eco amando-o, devido à sua arrogância, nenhuma mulher "parecia bastar à sua vaidade" (Franchini & Seganfredo, 2004). O jovem, então, ao deparar-se com sua imagem sob a água de um rio, liberou todas as pulsões sexuais sobre si e definhou até a morte esperando pelo retorno daquele amor.
Para Bettelheim (1980), o palácio da Fera representa as fantasias narcisistas típica de crianças. O castelo negro e vazio, por sua vez, é um "símbolo feminino impessoal, [...] corresponde a um aspecto específico da imagem materna", referente à relação intrauterina (Franz, 1985, p.74).
De forma geral, a maneira como Fera e seus subordinados conquistaram sua donzela foi realizando suas vontades, alimentando o comportamento narcísico desta, como se realizassem a primeira função materna. Nesse ponto, Fera ganha de Gaston, pois ao perceber o interesse da moça por livros, dá a ela uma biblioteca inteira, ao passo que o segundo despreza totalmente esse hábito de Bela.
Interessante pensar que Gaston também interpreta uma personagem narcisista, enciumada e egoísta, levado à vingança pelo ego ferido de ter sido rejeitado pela mulher escolhida. E Fera representava inicialmente um outro modelo de narcisismo, conquanto negou ajuda à velha senhora e com isso provocou a punição da transformação.
De toda forma, o mito de Narciso mencionado anteriormente reflete bem o que pode acontecer com quem não transfere sua energia do Eu ao mundo exterior, assim como para Bela só seria exequível conquistar seus sonhos quando se libertasse do Narcisismo e do Complexo de Édipo e colocasse seu desejo como algo passível de realização na realidade, amando outra pessoa, outro homem. E ela se esforçará para isso no decorrer da história.
Em busca do Outro
A neurose, tendo como fixação principal a fase fálica, em que ocorre o Complexo de Édipo, pode mostrar-nos aspectos muito parecidos como estes que apontamos agora, e por ser realmente muito dinâmico esse desenvolvimento, não poderíamos designar fases específicas sem perder a riqueza do caso.
A ideia de Freud (1924/1980) sobre o Complexo de Édipo é a de que ocorreria o despertar dos desejos sexuais da criança, sendo as afeições de uma menina direcionadas para seu pai e as de um menino para sua mãe. Desse modo, surgiriam sentimentos de rivalidade para com o genitor do mesmo sexo, os quais poderiam vir a facilitar o desejo de morte deste. O complexo de Édipo, entretanto, seria um acontecimento inerente à vida mental e organizador da barreira de recalque que leva à criação do superego.
Bettelheim (1980) afirma ser o conto "A Bela e a Fera" o que mais clarifica para as crianças que a ligação edípica com os genitores é natural, desejável e acarreta em consequências muito positivas, desde que durante o processo de amadurecimento seja transferido do pai para o ser amado, e, na sequência, se transforme.
Podemos pensar que Bela está fortemente ligada a seu pai, não havendo no desenho uma figura materna que lhe pudesse prover um estado de competição pelo amor desse homem e, a partir desta, ser-lhe um modelo de identificação feminina. Em consequência dessa forte relação, toda a presença masculina que não a do pai causa-lhe medo ou nojo.
Na cena em que Gaston vai pedir a mão de Bela em casamento, o repúdio à sexualidade genital pode ser observada. O rapaz adentra a casa da moça e tira as botas, ficando com os pés descalços enquanto descreve sua visão do que seria o casamento deles e tentando beijá-la, ao que ela atira as botas dele para fora da casa, depois de fazê-lo cair em uma poça de lama. Frequentemente, atribui-se ao pé um significado fálico e ao sapato sua contrapartida feminina, símbolo da fecundidade em vários costumes ligados à colheita e ao casamento (Lexikon, 1997). Com isso, percebe-se todo o trâmite por detrás de algo aparentemente inocente e o pavor da menina perante esse comportamento do pretendente de incitar-lhe ao sexo.
Com Fera o processo foi diferente, mas no início sua figura animalesca causou medo e repulsa em Bela da mesma maneira. Esse animal que escondia o verdadeiro homem representava tanto as "forças simbólicas sobrenaturais, divinas e cósmicas, como também os poderes do inconsciente e do instinto" (Lexikon, 1997, p.20). Levando mais em conta a parte instintiva, pensemos na sexualidade como parte das necessidades primárias do ser humano como forma de perpetuação da espécie e, portanto, materializada na transfiguração da aparência do príncipe como Fera.
E mais, suas vestimentas cor de vermelho e marrom aludem ao amor, à paixão fervorosa e ao erótico (Lexikon, 1997). Por isso, quando, ao se verem pela primeira vez, Fera ergue-se de maneira similar ao órgão genital masculino, imponente, Bela sente medo, pois ele é a representação exata do significado de sexualidade genital, ainda impossível de ser enfrentada por ela naquele momento.
Nessa mesma cena da jovem propondo ficar no lugar do pai, Bettelheim (1980) acredita que Bela se une à Fera por amor e preocupação a seu pai, sendo as intenções da moça apenas as de ter uma relação assexuada com o animal. Neste momento o pai também deseja manter a simbiose com a menina, pedindo a ela que não fique em seu lugar e implorando à Fera que "poupe" sua filha. Fera, porém, defende o rompimento do Complexo dizendo: "Não tem mais nada com ela".
Em contrapartida, podemos ver Bela com muita força e determinação. Ela monta seu próprio cavalo, algo incomum para a sociedade da época e ainda, sendo cavalo, para Franz (1985, p.286), "força vital completamente inconsciente e espontânea", podemos pensar nesse duplo que se estabelece nas personagens de buscar a evolução. Afinal, o cavalo levou-a tanto até seu pai quanto à Fera, quando foi salvar cada um deles, no começo e no final do filme, respectivamente.
Nesse jogo de aproximação e afastamento, Bela, logo no início de sua estada no castelo, tentou fugir e fora atacada por um bando de lobos, dos quais tentou defender-se, superando seus medos e tomando a iniciativa. Fera chega ao seu encontro, entretanto luta com os animais e a salva, mas fica machucado. Em seguida nesta cena, ela faz menção de subir no cavalo e deixá-lo ali, mas resolve ajudar Fera. Ela parece entender ser necessário abrir mão de alguns interesses narcísicos para tornar realidade um amor, agora podendo ajudá-lo e aceitando seu desejo, já que Fera não lhe parece mais um bicho repugnante, mas uma possibilidade de relação com um homem que não seu pai.
Após esse episódio, o vínculo dos dois começa a ter um novo sentido. Fera, com a ajuda dos funcionários do castelo, também amaldiçoados, propõe à Bela um encontro. Eles passeiam pelo jardim e lá brincam com a neve, a qual simboliza "castidade e a intangibilidade virginal" (Lexikon, 1997, p.144), o que nos incita pensar que neste momento Bela ainda está desabrochando para a sexualidade. A seguir, Fera lhe faz uma surpresa, dando-lhe de presente uma biblioteca gigantesca que tem em seu castelo – única peça iluminada e colorida da casa, em contraste com o restante sombrio e amaldiçoado.
No momento em que Bela e Fera se encontram na sala, com a lareira acesa, a fim de ler um dos livros da biblioteca, os objetos falantes ali presentes dizem "estamos vendo alguma coisa acontecer". Zip, a xícara-criança, não entende e pergunta o que acontecera, recebendo como resposta de sua mãe: "Psiu! Eu lhe conto quando crescer!" e eles se retiraram.
Avaliando o significado de fogo dado por Lexikon (1997) de ser algo "sagrado, purificador e regenerador; meio de renascimento em uma esfera mais elevada" entendemos haver um entrelace das duas personagens em prol de uma superação dos medos de ambas e uma aproximação física, podendo significar o ato sexual propriamente dito.
Neste mesmo dia, Bela e Fera tiveram um jantar em que ambos se arrumam em seus quartos, tornando-se atraentes um para o outro. Após dançarem, Fera perguntou à Bela se ela estava feliz no castelo e esta disse que sim, porém pediu para saber notícias de seu pai. Para facilitar seu contato, Fera lhe deu um espelho mágico no qual ela poderia ver o pai. Sabendo que o mesmo estava perdido e doente, procurando pelo castelo, Fera permitiu que Bela fosse ao encontro do seu genitor, mesmo sabendo que poderia perder todas as chances de desfazer o seu feitiço.
A vida no castelo seria para a personagem feminina do conto uma ida ao inconsciente, e a ponte feita entre este e o consciente é simbolizada pela sua volta passageira até o pai doente (Dieckmann, 1986). O espelho, entretanto, é o elo entre Bela e Fera, e a faz retornar ao ser amado quando os moradores da vila e Gaston vão invadir o castelo.
Motivo de redenção e transformação
Fera representa de forma significativa as manifestações do inconsciente de Bela, tornando mais fácil, por ser feio e rude, o distanciamento físico entre eles e deixando-a, assim, livre para negar sua sexualidade e manter suas pulsões sexuais voltadas para o pai durante o período inicial do conto, que delineamos como a saída do narcisismo para a entrada no Complexo de Édipo.
Franz (1980) ressalta que, nos contos de fadas, sempre uma personagem sofre com uma maldição e comporta-se de um modo destrutivo e negativo, sendo, então, a tarefa do herói salvar a pessoa enfeitiçada. Desse modo é a junção das várias personagens que constitui um psiquismo completo com consciente e inconsciente, ego, id e superego, assim como no sonho. Fera seria, pois, uma parte negada da própria Bela.
Inicialmente, as personagens não lidam muito com o problema da maldição, mas, sim, com o método de redenção (Franz, 1980). Primeiramente, Fera adapta-se ao cortejo narcisista – conquistar Bela satisfazendo todos seus desejos – a fim de desfazer o feitiço, seu objetivo maior até o momento.
Comparando um ser humano neurótico com uma pessoa enfeitiçada, percebe-se que ambos podem apresentar, durante um período, um comportamento destoante e destrutivo para consigo e para com os outros, estando à mercê desta maldição, sentindo-se sem forças para lutar contra ela.
Os temas maldição e motivos de redenção em contos de fadas cooperam com o processo de cura ao gerarem representações de processos instintivos da psique comuns a todos e por isso são bastante frequentes. A redenção é o marco de passagem da personagem de uma história, assim como os humanos têm a menstruação como um ponto de transição da menina para a mulher. Neste momento, o amaldiçoado terá concluído sua transformação, só possível se seu interesse estiver voltado para desmanchar o verdadeiro motivo do seu suplício (Franz, 1980).
O castelo negro e vazio, conforme Lexikon (1997, p.48) "pode ser também símbolo de perda e de desesperança" e este é o estado inicial do casal, pois ao propor a troca, Bela percebe que ficará prisioneira para sempre, perderá seu pai e seus sonhos pré-edípicos, e Fera encontra-se sem forças para vencer sua maldição e encontrar o amor. O castelo é, portanto, um símbolo do luto realizado por todas as pessoas quando abrem mão da onipotência, da bissexualidade e da imortalidade infantis, e é mais um objeto de transformação, ao final da história, quando as fases do desenvolvimento já se encontram todas transformadas por Bela e Fera.
No instante em que a lágrima de Bela cai no peito de Fera, ao final do filme, a personalidade dele, representada na transfiguração do seu físico, foi totalmente modificada, embora ele estivesse tornando-se mais dócil e generoso no decorrer do relacionamento com a moça. Esse é o motivo de redenção de Fera.
Por outro lado, mesmo a rosa sendo explicitamente o símbolo da maldição do príncipe, podemos entendê-la como uma representação da passagem de Bela pelo narcisismo até a aquisição do feminino. O desabrochar da flor representa, segundo Guénon (1993), a própria manifestação do feminino e a cúpula envolvendo-a evidencia a proteção da virgindade de Bela, dos medos e desejos infantis que prevaleciam em sua vida até aquele momento.
Sendo assim, a rosa simboliza o despertar sexual e a redenção de Bela perante seus conflitos. A queda da última pétala é o ponto de culminação das mudanças sofridas até então, pois caso esta caísse sem a declaração de seu amor por Fera, o feitiço não seria desfeito. De alguma forma, a maldição também é para Bela, já que todos os acontecimentos se dão conforme ela transpõe seu Complexo de Édipo e entende realmente o significado de amar e ser amada.
Pensando, então, nestes aspectos, consideramos as mudanças de vestimenta da moça nos diferentes momentos do filme indícios simbólicos das etapas de seu desenvolvimento psíquico. Inicialmente, usava roupas azul e branca, signo de fidelidade, pureza e perfeição, mas já na cena em que Fera lhe dá de presente a biblioteca de seu castelo e eles sentam-se à lareira, ela usa um vestido rosa, signo do amor e da aceitação do feminino. E na última cena, quando eles dançam no que seria sua festa de casamento, após a dissolução do feitiço, ela usa o seu vestido dourado, signo da "eternidade e da transfiguração", simbolizando, assim, uma dissolução dos conflitos (Lexikon, 1997, p.16).
E viveram tentando para sempre
Segundo Bettelheim (1980, p.347), o conto "A Bela e a Fera' começa com uma visão imatura, propondo que o homem tenha uma existência dualista, como animal e como racional" de forma que Bela, no que seria sua busca inconsciente por Fera, representa partes de uma mesma pessoa e seus conflitos. Desse modo, tanto Bela quanto Fera entra em processo de amadurecimento.
Para Bela deixar o pai, precisou, por assim dizer, aceitar este medo ao incesto e tê-lo presente apenas na sua fantasia, até conhecer o homem-animal e descobrir suas verdadeiras reações como mulher. Ela, ao voltar para sua casa a fim de ajudar o pai, constata que seu coração já não pertence mais àquele lugar, e, desta maneira, passa a ter condições de viver um amor não incestuoso com Fera (Corso & Corso, 2006).
Isso é elucidado na cena final, em que Fera se transforma em príncipe e uma luz colorida envolve-os enquanto se beijam. A luz poderia ser comparada à libido que foi transferida a outro objeto de desejo através do rompimento concreto do Complexo, sendo o próprio beijo selador dessa transição, "transmissor de força e doador de vida", aludindo ao erótico, bem como ao sagrado (Lexikon, 1997, p.35).
A chuva presente na cena introduz igualmente a ideia de sexualidade superada, sendo considerada o símbolo de fertilidade da terra e das influências psíquicas dos deuses no mundo dos homens (Lexikon, 1997, p.74). E a transformação de noite – irracional, inconsciente e mortífera – em dia – racional, clareza – quando a maldição de todo o castelo se desfaz e tudo volta a ter cor, faz novamente uma referência à mudança de conceitos dos protagonistas do filme e à tomada de consciência (Lexikon, 1997).
Ao olharmos o filme do ponto de vista social, vemos claramente o impacto que teve na época em que fora lançado. Bela marca, no transcorrer do conto, a ideia de uma princesa que se faz tornar. Destemida e corajosa, ela aceitou seu destino de proteger sua família e enfrentou Fera, discutindo ou descumprindo alguma regra imposta por ele.
Enquanto Branca de Neve e A Bela Adormecida esperam ser salvas por seus respectivos príncipes, é Bela quem salva o seu física e emocionalmente. Primeiramente, na cena com os lobos, em que ele quase morre devido aos machucados providos do combate com os animais, e depois com o rompimento do feitiço, quando declara seu amor. Em contrapartida, podia de fato conhecer o homem pelo qual se apaixonaria mais tarde, desejando uma relação e não um casamento.
O que seria a dissolução do Complexo de Édipo senão o ato de solucionar um feitiço da própria fantasia do sujeito? Daí o imprescindível papel dos contos de fadas na vida das crianças e na vida de todo adulto, o qual se identifica e se recria através dessas personagens marcantes da sua história guardadas dentro de si, fazendo-as voltar à vida toda vez que um novo conflito aparece e precisa ser ressolucionado, ou seja, toda vez que o retorno do recalcado se faz presente.
Não é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares alcançaram na vida mental de nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração de seus contos de fadas favoritos ocupa o lugar das lembranças de sua própria infância; elas transformaram esses contos em lembranças encobridoras. Elementos e situações derivados de contos de fadas podem também ser encontrados em sonhos. Interpretando as passagens em apreço, o paciente produzirá o conto de fadas significativo como associação (Freud, 1913/1980, p.305)
Referências
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Endereço para contato
E-mail: luisa_puricelli@hotmail.com
Recebido em 17/11/2010
Aceito em 04/10/2011
Luísa Puricelli Pires: Psicóloga atuante nas áreas clínica e institucional, Psicanalista em formação no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre.
Tatiana Helena José Facchin: Psicóloga, Mestranda de Psicologia Clínica (PUCRS); Pós-Graduação em Psicossomática pela Associação Sul-Rio-Grandense de Medicina Psicossomática e pela Unisinos. Integrante do Instituto Brasileiro de Psicologia da Saúde (IBPS).
1 A libido ou energia narcísica seria a energia geral dos impulsos, instituída nessa primeira relação objetal – como conceito teórico só trabalhado por Freud (1980) a partir de 1914, podendo ser vista com este importante papel no desenvolvimento sexual do ser humano.