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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.35-36 Canoas dez. 2011
ARTIGOS DE PESQUISA
Da substituição à alternância: a legislação em saúde mental e a rede de serviços na cidade de Porto Alegre
From replacement to changeover: the legislation on mental health and the service network in the city of Porto Alegre
Karla Gomes NunesI,II,III; Neuza M. de F. GuareschiI,II
I Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
II Núcleo E-Politics – Estudos em políticas e tecnologias contemporâneas de subjetivação
III CNPq
RESUMO
Analisa-se a articulação entre a proposição de políticas públicas de saúde mental e as estratégias para a reorientação do modelo assistencial em saúde mental a partir dos movimentos pela Reforma Psiquiátrica brasileira. Parte-se da perspectiva genealógica de Michel Foucault, o que implica descrever as rupturas e continuidades entre a atual legislação de saúde mental e a implementação de estabelecimentos por ela preconizados. A primeira parte do estudo baseia-se em pesquisa bibliográfica e documental, enquanto a segunda fundamenta-se em um levantamento dos serviços de saúde mental existentes na cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. O alinhamento entre os dados referentes aos serviços implementados na cidade e as propostas inscritas nos documentos oficiais possibilita observar que, em ambos os casos, o discurso pela criação de uma rede de serviços substitutiva aos manicômios é recoberto pelo estabelecimento de alternativas à internação e não por sua superação.
Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, Políticas públicas, Serviços de saúde mental.
ABSTRACT
It is analyzed the articulation of propositions of public mental health policies and the strategies to the re-orientation of the care model on mental health that started in the movements for the Brazilian Psychiatric Reform. The work is based on Foucault's genealogical perspective which implies the description of the ruptures and continuities between the current legislation on public health and the implementation of establishments envisaged by the law. The first part of this study is based on bibliographical and documental research, while the second one is founded on a survey on the mental health services existing in the city of Porto Alegre, capital of Rio Grande do Sul. The alignment of the data referring to the services implemented in the city and the proposals enshrined in the official documents renders possible the observation that, in both cases, the discourse for the creation of a network of services to replace asylums is masked by the establishment of alternatives to internment rather than its overcoming.
Keywords: Psychiatric reform, Public policies, Mental health services.
Introdução
No Brasil, o movimento pela reforma sanitária reacende um processo de reivindicações em que se articulam a luta pela redemocratização do país e reorientação da assistência à saúde. Desse modo, tal movimento insere em uma mesma agenda de discussões as noções de saúde, direito do cidadão e democracia, aliado à busca pela participação da população nas proposições políticas e no processo de implementação das ações em saúde e controle dos recursos públicos (Escorel, 2008). Esse contexto foi fundamental para a formação das condições de possibilidade para a emergência do movimento pela Reforma Psiquiátrica brasileira (Nunes, 2009).
O movimento pela Reforma Psiquiátrica demarca as lutas pela ruptura com o modelo assistencial baseado nas grandes estruturas manicomiais e com o saber-poder psiquiátrico como o ordenador do espaço e das relações que se estabelecem em torno dos processos de saúde e adoecimento psíquico (Torre & Amarante, 2001). As reivindicações abarcam ainda a necessidade de garantir os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais1 (Rinaldi & Bursztyn, 2008) e de criar diferentes serviços de assistência em saúde mental, tais como: Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), leitos psiquiátricos em hospitais gerais, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), Centros de Convivência e Cultura, ambulatórios e ações de saúde mental desenvolvidas nas Unidades Básicas de Saúde (Brasil, 2004a).
A partir da década de 1990, é institutionalizado o movimento de mudança da assistência psiquiátrica e o Ministério da Saúde assume a regulação dessa área da saúde pública que se convencionou chamar de Saúde Mental. Nesse contexto, a expressão Saúde Mental refere-se a um campo político e de formulação teórica, mas também a um campo de tensionamento (Nunes, 2009), no qual diferentes sujeitos, como trabalhadores, militantes, usuários, familiares, pesquisadores e gestores participam da construção de sentidos sobre os processos de saúde/doença psíquica e sobre as estratégias terapêuticas. A ampliação do número de sujeitos implicados com a luta pela reorientação do sistema assistencial suscita a emergência de um campo de forças, no qual também se colocam os diferentes interesses relacionados à manutenção da forma tradicional de cuidado em Psiquiatria (Rinaldi & Bursztyn, 2008). Não se pode negar, por exemplo, que a luta pela substituição das grandes estruturas asilares por serviços de atendimento em saúde mental, abertos e territorializados, encontra oposição entre aqueles que reivindicam a permanência dos hospitais psiquiátricos e a manutenção da doença mental sob os cuidados médicos. Entre os militantes pela permanência do antigo sistema, encontram-se integrantes da corporação médica, representantes da indústria farmacêutica, produtores de insumos e prestadores de serviços na área de saúde, dos quais se destacam os proprietários de unidades hospitalares e sua maior representante: a Federação Brasileira de Hospitais (Rosa & Feitosa, 2008).
Os conflitos decorrentes dessa dissonância de interesses produzem, na maior parte das vezes, discursos antagônicos, os quais, ao circularem pelo tecido social, interpelam a população a assumir determinadas posições. É possível observar, como consequência, uma polarização das falas e o posicionamento de sujeitos como defensores da ampliação dos leitos psiquiátricos (como a solução para diferentes problemas sociais, entre eles as "drogas") ou como militantes por uma sociedade sem manicômios (Amarante, 2008). Essa tensão se faz presente na constituição das redes assistenciais nos planos locais, como, por exemplo, em Porto Alegre.
É nesse cenário que se inscreve esse artigo, cuja análise decorre de uma pesquisa documental sobre as políticas públicas de saúde mental que emergem após a década de 1990, as quais propõem a criação e reorientação de serviços e preconizam práticas de cuidado voltadas para as pessoas portadoras de transtornos mentais. Articula-se a discussão das proposições políticas à constituição de um panorama sobre os serviços de saúde mental existentes na cidade de Porto Alegre. Objetiva-se colocar em debate os encontros e as descontinuidades entre as estratégias propostas para a reorientação da assistência no plano nacional e o modo como a assistência se territorializa no plano local. Ao se aproximar da perspectiva genealógica de Michel Foucault (2005)2 e das contribuições desse autor para o campo da Psicologia Social (Zambenedetti & Silva 2011), este estudo não pretende ser conclusivo, nem mesmo proceder a uma análise totalizante sobre o que existe na cidade selecionada para a pesquisa. Da mesma maneira, não se trata de comparar o texto da Lei com uma experiência concreta. Trata-se, tão somente, de problematizar a história do presente e o que é produzido hoje no campo da saúde mental.
Método
Para desenvolver os objetivos propostos, o percurso de pesquisa divide-se em duas partes3. A primeira é desenvolvida por meio de revisão teórica da temática abordada, seguida de pesquisa documental, com o objetivo de identificar leis, portarias, decretos e documentos que formam a atual legislação em saúde mental brasileira. Tal abordagem foi escolhida pelo entendimento de que os documentos podem ser vistos como superfícies de inscrição dos acontecimentos (Foucault, 2005). Nesse sentido, a pesquisa documental permite a formação de um corpus discursivo a partir do qual se podem analisar as dispersões e heterogeneidades das políticas públicas de saúde mental, rompendo-se com as noções de unificação e evolução na conformação das mesmas.
Após a busca e identificação dos documentos na página virtual do Ministério da Saúde, seguiu-se um exame preliminar a partir do qual se optou por analisar os documentos produzidos entre 1990 e 2005. Tal período foi escolhido por duas razões. Primeiramente porque, nesse período, as movimentações pela reforma psiquiátrica conseguem permear o cenário legislativo e pautar suas reivindicações, o que resulta em uma ampliação das proposições de políticas públicas voltadas para a reorientação do sistema de saúde mental (Rinaldi & Bursztyn, 2008). Em segundo lugar, esse intervalo também compreende um momento de regulamentação dos serviços criados no calor dos movimentos de reforma e de abertura de diversos estabelecimentos preconizados pelas Portarias Ministeriais formuladas a partir da década de 1990.
Nesse curto período, a emergência de modos de cuidado em saúde mental, ofertados em serviços abertos e territorizalizados, produz um deslocamento em relação à história das práticas psiquiátricas no país. Portanto, trata-se de indagar esses momentos de tensão da história, dando visibilidade ao novo, ao que pode acontecer, mas sem perder de vista as recorrências e as continuidades de velhas práticas que, volta e meia, como novas, buscam se apresentar.
Na primeira fase do estudo, selecionaram-se 13 documentos, os quais tratam da criação de serviços ou programas (como os CAPS, os SRTs, e o Programa de Volta para Casa) e estabelecem as condições para a existência dos mesmos. Os documentos também versam sobre a regulamentação dos hospitais psiquiátricos e das modalidades de internação em Psiquiatria. Agrega-se ainda, a declaração da adesão do Brasil ao dia Mundial da Saúde Mental, por se tratar de um marco no plano político e cultural brasileiro. Nesse sentido, os documentos utilizados para a elaboração deste estudo foram: (1) Leis Federais (Lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001 e Lei nº 10.708 de 31 de julho de 2003); (2) a Lei Estadual do Estado do Rio Grande do Sul nº 9.716, de 7 de agosto de 1992; (3) Portarias (Portaria SNAS nº 189, 19 de novembro de 1991, Portaria SAS/MS n° 224, de 29 de janeiro de 1992, Portaria GM nº 1.720, de 4 de outubro de 1994, Portaria GM nº 106, de 11 de fevereiro de 2000, Portaria GM nº 1.220, de 7 de novembro de 2000, Portaria GM nº 175, de 7 de fevereiro de 2001, Portaria GM nº 251, de 31 de janeiro de 2002, Portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, Portaria GM Nº 2.197, de 14 de outubro de 2004); e (4) o documento intitulado Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil (Brasília, 2005).
A segunda fase da pesquisa parte da caracterização do município de Porto Alegre, seguida do processo de identificação dos serviços de saúde mental existentes na capital. O período de levantamento dos dados abarcou os meses de julho a agosto de 2011, sendo revisado e atualizado em agosto de 2012. Nesse processo, realizaram-se consultas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), base de dados virtual do Ministério da Saúde. Nessa base, a procura referia-se aos serviços especializados em saúde mental com as seguintes características: Serviços de Atenção Psicossocial – SUS e não SUS. Dos 36 estabelecimentos identificados, foram selecionados aqueles preconizados pelas Portarias referidas anteriormente, quais sejam: CAPS (em suas diferentes modalidades), Hospital Especializado em Psiquiatria, Hospital Geral, Centros de saúde e Serviço Residencial Terapêutico. Prosseguiu-se com a procura de informações sobre os serviços que compõe a rede de saúde mental do município no Guia de serviços de saúde mental do RS, disponível no sítio do Sindicato dos Psicólogos do Rio Grande do Sul (http://www.sipergs.org.br/guia.pdf.). Seguiu-se a busca nos sítios da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (respectivamente, http://www2.portoalegre.rs.gov.br/sms/default.php?p_secao=844 e http://www.saude.rs.gov.br). O processo de consulta incluiu as páginas virtuais das instituições cadastradas no CNES, como o Grupo Hospitalar Conceição (http://www.ghc.com.br), o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (http://www.hcpa.ufrgs.br) e o Hospital Mãe de Deus (http://www.maededeus.com.br.). Após esses procedimentos, prosseguiu-se com a busca por informações com servidores da Seção de Saúde Mental do RS, Secretaria de Saúde de Porto Alegre e trabalhadores do GHC. Os contatos foram realizados por e-mail e por telefone, com o objetivo de identificar os serviços existentes na rede de saúde mental do munícipio que, por ventura, não figurassem nas páginas virtuais das entidades citadas.
Poder-se-ia argumentar que tais procedimentos de coleta de dados são frágeis. Com efeito, as limitações são reconhecidas, pois, como apontado, poucas instituições disponibilizam, de modo acessível e atualizado, as informações referentes aos estabelecimentos que mantêm. Por outro lado, levou-se em consideração que as estratégias de pesquisa utilizadas são facilmente passíveis de serem replicadas, possibilitando a atualização e ampliação do estudo ao longo do tempo e a constituição de séries históricas, ao que se credita sua relevância4. As seções seguintes se encarregam de apresentar e discutir os resultados deste estudo.
Primeira parte: legislação em saúde mental e a reorientação da assistência na agenda política
O movimento social pela reforma psiquiátrica mobilizou diferentes sujeitos com a luta pela garantia dos direitos dos internos em hospitais psiquiátricos, pela extinção dos manicômios e pela criação de outras formas de assistência. O lema Por uma sociedade sem manicômios emergiu a partir do II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, realizado na cidade de Bauru, em 1987, o qual alcançou grande repercussão, interpelando sujeitos e produzindo ações no plano das instituições, no âmbito político e também jurídico (Amarante, 1995; Yasui, 2010).
Nessa perspectiva, as portarias e leis estudadas no presente artigo inscreveram no cenário legislativo os primeiros passos para uma mudança na assistência psiquiátrica brasileira, a qual passa a se orientar por princípios que diferem da reforma dos hospitais e da abertura de ambulatórios, como ocorreu nas décadas de 1970 e 1980 (Van Stralen, 2001). Todavia, a legislação contemporânea não reflete um consenso, mas um campo de contínuos conflitos, o qual pode ser observado na lentidão para proposição e aprovação de leis que alterem a organização da assistência psiquiátrica e a gestão dos recursos públicos nessa área. Há uma defasagem de muitos anos entre as primeiras mobilizações, que se formaram no final da década de 1970 (Amarante, 1995), e a aprovação de proposições políticas alinhadas com o movimento de reforma.
Será, portanto, após um considerável período que, em 1991, o Secretário Nacional de Assistência à Saúde e presidente do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social aprovará os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS). No mesmo ato, inclui as oficinas terapêuticas e os atendimentos em grupos como práticas de cuidado, por meio da Portaria/SNAS nº 189 de 19 de novembro de 1991. Esse documento, ao prever as fontes de recursos para o funcionamento das novas instituições, cria as condições para emergência de uma política pública que só pode ser reconhecida (e ter possibilidade de implementação) quando há uma previsão clara de recursos.
De modo complementar à Portaria 189, a Portaria SAS/MS n° 224, de 29 de janeiro de 1992, descreve as diretrizes para a organização e o funcionamento dos diferentes serviços que são enunciados como aqueles que integrarão a rede de saúde mental (Brasil, 2004a). Os documentos dão mostras de que as estratégias adotadas pelo Ministério da Saúde para a reorientação da assistência em Psiquiatria seguem os rumos traçados na construção do Sistema Único de Saúde (SUS), criado a partir da Constituição Federal de 1988 e da Lei 8.080, de 19 de Setembro de 1990.
Nesse sentido, os serviços propostos para a saúde mental alinham-se à lógica da descentralização e organização da assistência em diferentes níveis de complexidade. A Portaria 224 enfatiza o desenvolvimento de ações de saúde mental nas unidades básicas de saúde, centros de saúde e ambulatórios, os quais constituem os serviços primários da rede de saúde mental. Quanto aos secundários e especializados, situam-se os CAPS, NAPS e Hospitais-dia. Os leitos psiquiátricos em hospitais gerais e hospitais especializados em Psiquiatria são descritos como o nível terciário de assistência. A mesma Portaria preconiza a presença de equipes multiprofissionais nos serviços de saúde mental, incluindo auxiliares e técnicos de enfermagem, agentes de saúde, médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos ou outros profissionais de formação superior. A definição do número de trabalhadores e a composição da equipe dependem do tipo de serviço criado e do número de pacientes atendidos. Nota-se que, junto ao tratamento farmacológico, incluíram-se, nas tabelas de procedimentos de saúde do SUS, os atendimentos individuais (consultas, psicoterapias, entre outros), os atendimentos em grupos (operativos, de orientação, terapêuticos, atividades socioterápicas, atividades de sala de espera, atividades educativas em saúde), as visitas domiciliares e as atividades comunitárias (Brasil, 2004a).
As Portarias 189 e 224 são acontecimentos que sinalizam modificações em relação ao tradicional modelo psiquiátrico. Isso pode ser visibilizado pela inscrição nos textos oficiais de atividades que se vinculam aos discursos que valorizam a fala do público atendido, a interação entre usuários e técnicos, a realização de trabalhos artesanais e as atividades fora dos muros institucionais. No que se refere à intervenção química, dirigida ao corpo, ela permanece prescrita nas portarias citadas como uma das formas de tratamento. Porém, a farmacologia é inscrita em um cenário maior de ações terapêuticas, no qual são incluídas as oficinas e os passeios. Na medida em que essas práticas são enunciadas, pode-se inferir a existência de movimentos que têm como efeitos a produção de outros sentidos sobre a "loucura" e sua objetivação como doença mental, desestabilizando a consistente associação entre loucura e exclusão social.
Situa-se, na esteira desses deslocamentos, a adesão do Brasil à celebração do dia 10 de outubro – Dia Mundial da Saúde Mental –, declarada pela Portaria GM nº 1.720, de 4 de outubro de 1994. Esse ato provoca descontinuidade na história brasileira, a partir de quando a doença mental foi constituída como um acontecimento que legitimava a interdição dos direitos civis de muitos indivíduos e a reclusão dos mesmos como forma de tratamento. A emergência de discursos pautados pela afi rmação da saúde e não pelo registro da doença e de sua reclusão ocorre mediante certas modificações produzidas no ordenamento legal, como a permeabilidade das demandas sociais nas esferas de governo e o direito ao tratamento em saúde mental em liberdade.
A esse respeito, cita-se o estado do Rio Grande do Sul, que, em 1992, aprova a Lei nº 9.716, de 7 de agosto de 1992, determinando a "substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de atenção integral em saúde mental" (Brasil, 2004a, p. 63). A lei gaúcha surge alinhada às Portarias 189 e 224, um momento que poderia ser considerado favorável para a emergência de ações comprometidas com a reforma psiquiátrica no estado. Contudo, ao menos em Porto Alegre, o que foi proposto não foi alcançado em sua totalidade, assumindo o documento o efeito de uma marca simbólica, que produziu outros sentidos sobre a forma como o cuidado em saúde mental pode ser realizado, mas não a ruptura com as instituições de internação. No caso brasileiro, a ruptura com o modelo tradicional de tratamento em psiquiatria se relaciona, ao menos em parte, com o descompasso entre os movimentos sociais, as proposições políticas e seu processo de implementação (Gerschman, 1995).
Como observado no caso do Rio Grande do Sul, a produção da legislação nacional implicou a redistribuição de responsabilidades entre as esferas de Governo e comprometeu, especialmente, os municípios com a abertura de serviços, os quais contariam com recursos próprios, dos estados e da União (Nunes, 2009). Nesse processo de descentralização da assistência, os municípios são dispostos como um dos meios para reverter o modelo assistencial, de modo que o plano local começa a ser entendido como estratégico para a criação de formas de cuidado dentro do território existencial dos sujeitos que necessitam de atendimento. A noção de território no campo da saúde diz respeito ao conjunto de lugares onde os sujeitos vivem e estabelecem suas relações, suas trocas afetivas e seus laços com a cidade e com as pessoas (Brasil, 2004b).
Esse conceito perpassa a formulação da Portaria GM nº 106, de 11 de fevereiro de 2000, que dispõe sobre os Serviços Residenciais Terapêuticos, situando-os como uma das medidas para a superação dos manicômios. O documento prevê a construção de espaços híbridos, constituídos como serviços de saúde mental, mas com aspectos comuns a uma moradia.
Ainda no ano 2000, a Portaria GM nº 1.220, de 7 de novembro, insere os SRTs nas tabelas orçamentárias do SUS e demarca a finalidade desses serviços: a reabilitação psicossocial. Para tanto, os SRTs devem dispor de "atividades de autocuidado, atividades da vida diária, frequência a atendimento em serviço ambulatorial, gestão domiciliar, alfabetização, lazer e trabalhos assistidos, na perspectiva de reintegração social" (Brasil, 2004a, p. 110). Agrega-se a necessidade de vinculação a uma equipe de saúde especializada em saúde mental, que conte com um médico e com profissionais de nível médio, com capacitação para a reabilitação psicossocial.
A análise dos materiais selecionados mostra que não há linearidade nas proposições que determinam a criação de novos serviços, direcionam recursos para esse fim ou regulamentam as instituições existentes. Esse fato é observado na demora em ser aprovada a Lei Federal 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Apresentada ao Congresso pelo Deputado Paulo Delgado (PT/MG) em 1989, foi alvo de debates e disputas durante anos, sofrendo profundas alterações. A versão final apresenta distanciamento das propostas iniciais, mas ratifica dois pontos basilares: 1) a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais; 2) a reorientação do modelo assistencial em saúde mental (Brasil, 2004a). No que se refere ao primeiro ponto, nota-se que a garantia dos direitos parece se configurar especialmente pela regulamentação da internação psiquiátrica e pelo estabelecimento de uma normatização para as internações involuntárias e compulsórias. O segundo ponto reafirma as práticas de cuidado previstas pelas Portarias citadas.
Nesse cenário, em seguida à Lei 10.216, a Portaria GM nº 251, de 31 de janeiro de 2002, estabelece as diretrizes e normas para as internações psiquiátricas realizadas pelo SUS, define o serviço de saúde de base territorial como a porta de entrada da internação e institui a articulação entre esses dois espaços como necessária. Além disso, o documento proíbe a existência de espaços restritivos, como celas fortes, e garante o sigilo das correspondências nos casos de internação psiquiátrica.
A regulamentação da internação psiquiátrica dá continuidade às internações voluntárias e mantém as involuntárias e compulsórias. Além de assegurar a permanência dessas práticas, integra-as à rede de saúde mental contemporânea. Com efeito, os discursos que reivindicavam os serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos são recobertos pela emergência de discursos e ações orientados pela organização de uma rede composta por serviços alternativos. A diferença parece insignificante, mas formaliza-se uma ordem de coexistência, em que diferentes serviços são constituídos como legítimos para ofertar cuidados em saúde mental. Parece distinguir-se desse plano de continuidades, a Lei Federal nº 10.708, de 31 de julho de 2003, que institui o Programa De volta para Casa e o auxílio reabilitação psicossocial para egressos de internações psiquiátricas superiores a dois anos de duração.
Em meio às rupturas e permanências, os CAPS passam por um processo de regulamentação pela Portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, que os classifica como CAPSI, II, III, de acordo com o porte do serviço, a complexidade da assistência e a abrangência populacional. A Portaria 336 ainda diferencia os CAPS em relação ao público atendido. Desse modo, são constituídos os CAPS álcool e outras drogas (CAPSad) e o CAPS infantil (CAPSi), que se agregam aos CAPS destinados aos "pacientes com transtornos mentais severos e persistentes" (Brasil, 2004a). Isso imprime certas mudanças nas atividades oferecidas por essas instituições. Para os CAPSi, por exemplo, são inseridas atividades pedagógicas em conjunto com atividades terapêuticas e há importante ênfase no trabalho intersetorial, com o envolvimento da comunidade, do sistema escolar, do poder judiciário e dos setores de assistência social, com a finalidade de promover a integração social e familiar das crianças e/ou adolescentes atendidos (Brasil, 2004a).
A regulamentação dos CAPSad é seguida pela Portaria nº 2.197/GM, de 14 de outubro de 2004, a qual cria o Programa de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Trata-se de articular as ações de cuidado entre as três esferas do Governo e, da mesma maneira, entre os três níveis de assistência. Desse modo, as práticas de promoção da saúde, prevenção de agravos e tratamento, relacionadas aos casos de uso abusivo de álcool e outras drogas, tornam-se competência das Unidades Básicas, dos CAPS e também da atenção terciária.
Em relação à infância e adolescência, em 2005, o Ministério da Saúde publicou o documento Caminhos para uma política de saúde mental infanto-juvenil, formulado em decorrência da criação de Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-juvenil no ano anterior. O documento apresenta um histórico das práticas de cuidado para essa clientela e define os princípios e diretrizes que deverão nortear a formulação de políticas e criação de serviços. Os princípios que nele estão colocados – acolhimento universal, encaminhamento implicado, construção permanente da rede, território, intersetorialidade na ação do cuidado – são coerentes com aqueles que estruturam o SUS e os demais serviços de saúde mental (Brasil, 2005). Essa inciativa, não substitui a necessária proposição de uma política pública de atenção em saúde mental voltada para o público infanto-juvenil, apesar de indicar o início das discussões a esse respeito.
Segunda parte: Porto Alegre e a rede de serviços de saúde mental
Em 2011, população total da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, foi estimada em 1.414.104 habitantes, os quais estão distribuídos em uma área de 496,8 km², resultando em uma densidade demográfica de 2.846 habitantes por km², conforme dados da Fundação de Economia e Estatísticas do RS (http://fee.tche.br). Por ser capital do estado, concentra 13,17% da população total do RS e grande parte dos serviços de saúde, atendendo moradores da capital e de outras regiões. Poder-se-ia dizer que a cidade reúne os critérios necessários para ter os serviços previstos pela política de saúde mental, posterior à década de 1990, tendo em vista seu contingente populacional, a posição de referência para o estado e ainda a existência de grandes hospitais especializados em psiquiatria, com pacientes com histórico de longas internações.
A cidade segue a tendência apontada pelo Ministério da Saúde, formando uma base territorial de assistência por meio de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e ambulatórios especializados. Desses serviços, oito contam com equipes de saúde mental, com atendimento infanto-juvenil e para os adultos. Agrega-se à rede básica municipal 12 postos do Serviço de Saúde Comunitária, com 39 equipes que atuam na Zona Norte de Porto Alegre, do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), organização do Governo Federal que oferece desde a assistência primária à terciária (http://www.ghc.com.br). De modo geral, as UBS são responsáveis pelo primeiro atendimento em saúde mental e pelo encaminhamento para os serviços especializados, quando necessário (Brasil, 2004b).
Em Porto Alegre, a organização dos serviços de saúde mental segue a diferenciação para atendimento de crianças e adolescentes, adultos e usuários de álcool e outras drogas. No caso da infância e adolescência, além dos atendimentos realizados pelas equipes de saúde mental, existem os ambulatórios do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV), Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e Centro de Saúde Santa Marta. O direcionamento para cada serviço depende do local de moradia da criança ou adolescente, pois o atendimento à demanda orienta-se pela lógica da regionalização.
Para o atendimento especializado secundário, existem na cidade três5 CAPSi, como exibe a Tabela 1.
No que se refere às atividades desenvolvidas e à equipe multiprofissional, tanto o CAPSi Casa Harmonia quanto o CIAPS parecem seguir o que propõe a legislação analisada. A mesma inferência, no entanto, não pode ser feita em relação ao CAPSi do GHC pela inexistência de informações disponíveis na página da instituição. Quanto ao HCPA, as informações disponíveis não são suficientes para serem avaliadas quanto aos critérios elencados.
Na capital gaúcha, a internação psiquiátrica faz parte das opções de tratamento para crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais e/ou usuários de álcool e outras drogas. No caso do HCPA, a hospitalização ocorre em enfermarias infanto-juvenis comuns, junto aos pacientes com diferentes agravos à saúde. Ocorre exceção quando se trata de adolescentes maiores de 16 anos, usuários de drogas, os quais são internados em ala fechada junto aos adultos, conforme dados da entidade (//www.hcpa.ufrsg.br). O Hospital Psiquiátrico São Pedro, por sua vez, dispõe de 20 leitos, divididos igualmente entre crianças e adolescentes (//www.saude.rs.gov.br/wsa/portal/index.jsp?menu=organograma&cod=3031).
No que tange às práticas de cuidado destinadas aos adultos, existem os serviços de base territorial, como as UBS e as equipes de saúde mental, conforme mencionado. O município conta igualmente com dois ambulatórios especializados próprios, o Centro de Saúde Modelo e o Centro de Referência em Saúde do trabalhador. Ambos funcionam em horário comercial e em dias úteis. No primeiro, as atividades desenvolvidas abrangem acupuntura, homeopatia, cardiologia, saúde mental (psicologia, psiquiatria e neurologia) e Serviço de Atendimento Odontológico para Pacientes Especiais (SAOPE). O segundo oferece acolhimento individual, medicina do trabalho, fisioterapia, psicologia, serviço social, terapia ocupacional, grupo de ginástica chinesa, grupo de reflexão sobre o trabalho, grupo de organofosforados6, grupo de convivência, grupo de terapia ocupacional e atividades de vigilância em saúde.
Com o levantamento de dados, foram identificados sete CAPS destinados aos adultos, dos quais três são do município. As Tabelas 2 e 3 apresentam a caracterização dos CAPS existentes na cidade.
No período de realização desta pesquisa, o município dispunha de um CAPSIIIad, inaugurado em agosto de 2011. Entretanto, inexistem CAPSIII para o atendimento de indivíduos cujo transtorno mental não está relacionado ao uso de substâncias psicoativas. Essa inexistência busca ser sanada por meio de duas emergências em saúde mental municipais com funcionamento contínuo. Esse serviço dispõe de profissionais da psicologia e serviço social durante o período diurno. Entretanto, essas ofertas não se traduzem em uma forma de assistência integral, pois os trabalhadores das emergências encontram dificuldades para a construção de ações articuladas com os demais serviços, devido, por exemplo, à grande demanda. Isso faz com que os atendimentos emergenciais sejam, muitas vezes, um caminho para as internações em hospitais psiquiátricos ou, mesmo, em hospitais gerais com leitos ou alas psiquiátricas.
Nesse contexto, a Tabela 4 apresenta um sintético mapa das internações em Psiquiatria na cidade e a quantidade de leitos existentes. Buscou-se visibilizar, especialmente, os leitos financiados pelo SUS, que se encontram tanto em hospitais públicos quanto em instituições privadas7.
A permanência dos leitos públicos e, especialmente, privados com aporte de recursos públicos parece indicar que a regulação de leitos (e sua extinção progressiva) não avançou conforme previa a legislação analisada, de modo especial a Lei Estadual do Rio Grande do Sul. A regulação e a diminuição de leitos parece ter se restringido aos serviços públicos, o que não quer dizer que não haja recursos públicos financiando leitos privados ou mesmo que as famílias não estejam comprometendo seus rendimentos com essa finalidade, no caso das internações privadas.
No que tange às internações, a clientela atendida é, em grande parte, descrita como usuária de álcool e outras drogas. O uso e abuso dessas substâncias são constituídos como os principais geradores de demanda de atendimento em forma de internação. Além de uma demanda real de atendimento com a qual se deparam os trabalhadores, há uma demanda social pela abertura de leitos para usuários de álcool e outras drogas, especialmente usuários de crack, e pelo investimento em ações que acabam por alocar recursos públicos em empresas privadas, como ocorre com alguns municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre, que destinam verbas do SUS para o pagamento de vagas em Comunidades Terapêuticas.
Ainda como parte dos serviços de saúde mental, a cidade de Porto Alegre dispõe de três Serviços Residenciais Terapêuticos, dois municipais e um estadual. Entre esses, o Morada São Pedro se destaca por ter sido criado em uma época de grande movimentação pela Reforma Psiquiátrica no estado, tornando-se a casa de muitos egressos do manicômio. Entretanto, a alternância de governos criou uma série de entraves para a continuidade da proposta, o que resulta em um plano de urbanização e saneamento inacabados, permanecendo sua área sem pavimentação e sem canalização da rede de esgoto.
Discussão
Quando alinhadas as proposições políticas formadas a partir da década de 1990 e a rede de saúde mental de Porto Alegre delineada neste estudo, pode-se observar que no município foram empreendidos esforços voltados para a reorientação da assistência por meio da criação de serviços abertos de saúde mental. Contudo, no que se refere às três grandes áreas – infância e juventude, adultos com transtornos mentais e usuários de álcool e outras drogas –, ainda há recorrência significativa da internação como prática de cuidado, o que reforça a ideia da constituição de um sistema pautado por serviços que se alternam, mas que não se substituem, ocorrendo a coexistência de ações que, por vezes, assumem práticas de cuidado antagônicas.
Apesar da existência de serviços para a infância e juventude, são observadas dificuldades no atendimento a esse público no município. Uma das dificuldades pode estar relacionada às diferentes esferas administrativas a que se vinculam os serviços. Os CAPSi, por exemplo, são geridos por três instituições distintas. Isso resulta em diferentes formas de organização das práticas, o que repercute na forma como os cuidados são ofertados à população. No caso do CAPSi do HCPA, por exemplo, a análise dos dados deixa entrever que a assistência é organizada pelas patologias, o que redunda em diferentes turnos e horários de atendimento para cada tipo de público definido pela instituição. Tais aspectos levantam questões sobre a integralidade da assistência, o acesso universal ao atendimento e sobre os modos de vida produzidos a partir da separação da clientela baseada na descrição de distúrbios e sintomas.
Às questões apontadas, agrega-se a dificuldade para construção e articulação de uma rede voltada para o cuidado em saúde mental. Em relação aos serviços destinados à infância e à adolescência, evidenciou-se que os trabalhadores estão vinculados a entidades mantenedoras distintas, o que se traduz em diferentes modos de gestão e em negociações internas igualmente diferentes para obter-se, por exemplo, autorizações para participar de fóruns de formulação de ações intersetoriais. Esses atravessamentos podem fragilizar o processo de pactuação de ações integradas, como preconiza o documento Caminhos para uma política de saúde mental infantojuvenil (2005). A cobertura da assistência mostra-se igualmente como um aspecto em que é necessário investimento, uma vez que parte da população permanece desassistida quando se observa a disposição dos serviços em relação à regionalização realizada na cidade. Ressalta-se também que as dificuldades para o levantamento dos dados dizem respeito ainda aos entraves relacionados ao acesso da população ao atendimento, tendo em vista a fragilidade de constituição de uma rede que precisa ser formada por pontos tão distintos.
Com o estudo, observa-se que a heterogeneidade da gestão dos serviços e, de modo consequente, a gestão das informações geram fragilidades no atendimento ofertado à população, o que também dificulta a reorientação do modelo assistencial em Porto Alegre. Esses aspectos precisam ser pautados em discussões que envolvam os usuários e seus familiares e também os gestores, os trabalhadores, os membros dos conselhos de controle social, os pesquisadores, os estudantes e a população em geral. Torna-se necessário ampliar o debate, pois a potencialidade de uma rede, tecida com pontos frouxos, está em sua permeabilidade e abertura para as mais diversas conexões e reconfigurações.
Considerações finais
A legislação em saúde mental, produzida no intervalo de 1990 a 2005, pode ser pensada como um dos efeitos de uma série de acontecimentos no campo da saúde mental. Observa-se, nesse tempo, a emergência de um movimento social que exerceu grande pressão sobre o Estado com a finalidade de produzir uma modificação na assistência psiquiátrica brasileira e defender os direitos dos portadores de transtornos mentais. Na atualidade, fala-se em campo da saúde mental por se tratar de um acontecimento que está para além de uma simples definição de uma área da saúde.
Inscreve-se também outro efeito dessas movimentações, o processo de implementação das políticas públicas de saúde mental em muitos municípios brasileiros. Conforme dados do Ministério da Saúde, o Brasil alcançou, em 2010, a marca de 1.620 CAPS entre as diferentes modalidades (Brasil, 2010). Tais números sugerem sensível ampliação da cobertura desse tipo de serviço. A especialização dos CAPS, em relação ao seu público, representa o atendimento a uma demanda de muitos trabalhadores que encontravam dificuldades para a realização de atendimentos de crianças e adultos em um mesmo espaço, assim como entre esses e os usuários de álcool e outras drogas. Porém, ao mesmo tempo em que a ampliação e especialização podem ser consideradas como avanços coerentes com os princípios e diretrizes do SUS, entre os quais está a integralidade, por outro lado, surgem novas situações que podem ir na contramão do acesso universal aos serviços de saúde. Isso porque a especialização pode representar o reverso da integralidade e do acesso às práticas de cuidado na medida em que são criadas sucessivas formas de separação dos sujeitos.
Outro impasse atualmente apontado por muitos municípios se refere ao critério populacional mínimo de 20.000 habitantes para a implantação de CAPS. No caso do Rio Grande do Sul, 80% dos municípios têm população inferior a 20.000, o que se traduz em 397 cidades nas quais as Unidades Básicas de saúde são as responsáveis por desenvolver as práticas de cuidado em saúde mental, seja para "pessoas com transtornos severos e persistentes", "para usuários de álcool e outras drogas" ou "para crianças e adolescentes portadores de transtornos mentais". Para o restante do estado, 71 municípios contam com população entre 20.000 e 70.000 habitantes e 19 municípios tem população estimada entre 70.000 e 200.000 habitantes. Em apenas nove cidades o número de habitantes supera a marca de 200.000, conforme as informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (http://www.ibge.gov.br). Nesse sentido, a prevalência de pequenos municípios, em estados como o RS, reforça o funcionamento de antigas instituições como o Hospital Psiquiátrico São Pedro, pois esse estabelecimento ainda é a retaguarda de leitos psiquiátricos para certos municípios do interior do estado.
Um dos aspectos relevantes deste estudo é pôr em evidência que a reorientação da assistência na cidade de Porto Alegre depende, em boa medida, da estruturação de ações de apoio à rede assistencial no interior do estado. Esse é o caso de Betim, cidade localizada na região metropolitana de Belo Horizonte. Nos anos de 2006 e 2007, um estudo realizado sobre a implementação das políticas públicas de saúde mental na referida cidade evidenciou que a criação de uma rede de serviços no munícipio produziu respostas efetivas em relação à oferta de cuidados à população. Como consequência, ocorreu redução radical do número de internações de cidadãos betinenses nos hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte (Nunes, 2009).
Evidencia-se que mesmo que a legislação analisada não tenha rompido definitivamente com a institucionalização das práticas de cuidado, ela institucionaliza diferentes estratégias terapêuticas e novos cenários institucionais, como ocorre nas cidades de Betim e de Porto Alegre. É preciso considerar que a ruptura total e absoluta com qualquer forma de tratamento ou instituição não é o cerne da reivindicação dos militantes pela reforma psiquiátrica brasileira. Até o momento, as reivindicações centramse em uma luta pela ruptura com a institucionalização produzida pela psiquiatria asilada nos manicômios. Por outro lado, será preciso problematizar continuamente não só os encontros e os desencontros entre as proposições políticas e sua efetivação no plano local, mas esse apelo que se faz à institucionalização de certos modos de vida. A estruturação de uma nova rede assistencial tem uma grande importância para a população. Entretanto, a criação de novos serviços, por si só, não assegura uma diferença no estatuto conferido aos portadores de transtornos mentais.
Os resultados aqui apresentados devem ser considerados como o esboço de linhas que formam um mapa, o qual está sujeito a ficar obsoleto e desatualizado, frente à emergência de novas políticas públicas, novas linhas de financiamento e novos equipamentos de saúde. A transitoriedade desse estudo aponta a necessidade de outras pesquisas sobre a rede de saúde mental de Porto Alegre, inclusive com a utilização de procedimentos de pesquisa que façam o levantamento dos dados nos serviços existentes na cidade e que evidenciem como os diferentes serviços criam estratégias de continência e cuidado para seu público.
Quando alinhadas as primeiras reivindicações do movimento pela Reforma Psiquiátrica, a legislação em saúde mental e a rede que se forma na cidade de Porto Alegre, delineia-se um tempo no qual a luta por uma Sociedade sem manicômios é recoberta pelo estabelecimento de serviços alternativos e complementares à internação, mas não por sua superação.
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Endereço para contato
E-mail: kgnpsico@yahoo.com.br
Recebido em outubro de 2011
Aceito em junho de 2012
Karla Gomes Nunes: Psicóloga, especialista em Temas Filosóficos, mestre em Desenvolvimento Regional, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – PPGPSI/UFRGS, integrante do Núcleo E-Politics – Estudos em políticas e tecnologias contemporâneas de subjetivação, bolsista CNPq.
Neuza M. de F. Guareschi: Professora, pesquisadora e coordenadora do PPGPSI/UFRGS, orientadora e coordenadora do Núcleo E-Politics.
1 Neste trabalho, optou-se por utilizar a expressão "pessoas portadoras de transtornos mentais", conforme inscrito na Lei 10.216, de 06 de abril, de 2001 (Brasil, 2004a). As exceções ficam por conta dos casos em que são citados o público-alvo descrito pelas instituições pesquisadas.
2 Conforme Foucault (2005), a genealogia busca, diferentemente da metafísica ou do método historiográfico tradicional, situar os objetos historicamente, rompendo com as noções de origem, continuidade ou evolução. Trata-se de visibilizar e analisar os desvios, recuos, reviravoltas, situando os fatos históricos como acontecimentos e, em última medida, como relações de forças.
3 Tendo em vista o tipo de pesquisa e os procedimentos de coleta de dados utilizados, este estudo não requer sua submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa.
4 Além disso, o acesso à informação em saúde está relacionado às potencialidades e fragilidades do próprio processo de implementação das políticas públicas de saúde mental no Brasil. Por esse motivo, optou-se por mencionar as dificuldades encontradas para acessar os dados durante o estudo por entender que tais dificuldades podem ser semelhantes ao que vivencia a população em geral em suas buscas por informações sobre os serviços de saúde mental do município.
5 No momento da atualização dos dados, observou-se a inclusão, no sítio da Secretaria Municipal de Saúde, do CAPSi Leste/Nordeste. Entretanto, conforme informação da coordenação de saúde mental do munícipio, o mesmo ainda não está em funcionamento. Por esse motivo, o mesmo não foi incluído na relação dos serviços.
6 Pacientes com sequelas decorrentes da intoxicação por compostos do fósforo.
7 Não foi intenção desta pesquisa inventariar todos os hospitais que oferecem internação particular em Psiquiatria, o que merece ser detidamente analisado em outro estudo.