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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.35-36 Canoas dez. 2011
RESENHA
Bion e uma mudança de paradigma na psicanálise
Vera Lucia Linhares Dias; Aline Groff Vivian
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas-RS
No trajeto do livro escrito de forma clara e profunda pelo psicanalista Arnaldo Chuster e seus colaboradores, estudiosos de Bion, Julio César Conte, Julio Walz, Magda Barbieri Walz, Susana Beck, Jorge Castro, Cesar Antunes, Aline Kloeckner e Cristina Kuhn Fracasso encontramos um convite para pensar de forma diferente os fundamentos da psicanálise. Já na introdução, os autores apresentam como problema principal a proposta de suspender temporariamente a forma atual de conceber a cultura psicanalítica. A partir da leitura do texto nos deparamos com o desafio de transitar do clássico estatuto teórico do objeto simples para o do objeto complexo, com ênfase na complexidade que há em torno do princípio da incerteza na psicanálise. A proposta de mudança de paradigma, trazida pelo objeto psicanalítico, confere ao pensamento de Bion a potência de um legado decisivo para um psicanalista encontrar-se em sintonia com o pensamento contemporâneo.
A noção de objeto psicanalítico e suas consequências emergiram mais claramente depois da formulação da Teoria do Pensar (1962), e no texto Aprendendo com a Experiência (1962) e seus desdobramentos teóricos e práticos são discutidos ao longo de todo o livro. Todos os analistas que seguiram a mudança proposta por Bion, adotaram a complexidade de uma direção não determinada, não hermenêutica, não linear, espectral que gerou uma ampliação dos princípios específicos do trabalho analítico. Isso se deu a partir do uso da capacidade negativa, ou a suspensão da memória, do desejo e da necessidade de compreensão, que os fez escutar e falar com seus pacientes de forma diferente. Ao mesmo tempo, esses psicanalistas observaram um aumento da ansiedade em sua prática clínica, sentimentos persecutórios e solidão que são alguns dos elementos ligados a um método que atende ao vértice da complexidade.
Com o método de Bion, a máxima socrática "saber que não sabe", alcançou uma expressão prática renovada e contundente. O analista passou a dispensar qualquer necessidade de registrar o material para uso como memória, para isto passou a sentir um aumento da realidade dos fenômenos a serem interpretados: os objetos psicanalíticos. Também houve um aumento de singularidade de cada experiência e da própria relação com a psicanálise, diminuindo o desacordo acidental em relação ao setting e aumentando a comunicação dos assuntos trazidos para a sessão, que pode ficar mais viva e mais criativa. Por parte dos analisando também ocorrem novas percepções, tais como a de que a análise está dentro das pessoas como habilidade humana em potencial, de forma que o próprio paciente se interessa mais pelo processo analítico e pelo conhecimento de sua mente.
Chuster refere que o trabalho do analista não pode ser descrito simplesmente pela interpretação. É necessário valorizar o potencial da experiência emocional no encontro analítico, a livre imaginação do analista, as transformações que decorrem de um constante trânsito de um estado mental para outro – da posição esquizo-paranoide para a posição depressiva. O autor acentua o fato que, se o paciente adquire uma forma mais verdadeira de conhecer a si mesmo aumentará com isto a sua liberdade, maturidade e ganho de autonomia. Assim, a maior ênfase do autor e colaboradores é propor aos psicanalistas que pensem com as incertezas e complexidades, colocando em prática a psicanálise de maneira diferente da clássica.
O primeiro capítulo do livro trata da teoria dos grupos à luz da complexidade, de maneira a conseguirmos entender a passagem do pré-humano para o humano. É possível clarear as ideias de Bion acerca da dinâmica dos campos grupais. Além disso, fica claro o impulso dos conceitos Kleinianos sobre o funcionamento mental, em que se percebe que, a partir da oscilação entre as posições esquizo-paranoide e depressiva, são estabelecidas as diferenças entre os grupos de suposto básico e os grupos de trabalho. O autor indaga como Bion antecedeu com o seu modelo de funcionamento grupal, a aplicação de recentes descobertas arqueológicas que podem ser resumidas pela descrição dos vestígios do grupo pré-humano, grupo nômade das savanas africanas que se organizava com os padrões descritos pelos supostos básicos de Bion. O grupo humano é dentro desta perspectiva uma transição a partir destes vestígios até o grupo de trabalho, isto é de produção, pactos sociais e cultura. Então um dos elementos fundamentais da teoria de Bion consiste em entender a passagem do pré-humano para humano, esforço que continua sendo feito o tempo todo na história, a partir das cicatrizes legadas de milhares de anos. Esta passagem vai ficar geneticamente gravada no conceito de pré-concepção.
Antes de Bion, Freud indagou sobre quais objetos do inconsciente concretizam-se nos grupos. Ao contrário de Freud, Bion estava interessado em entender os fenômenos grupais como objetivo primário. Conduziu experiências com grupos, participando deles como terapeuta e planejador de um programa, o que efetivamente não foi a prática de Freud. Além disso, destaca-se a importância do texto Atenção e Interpretação (1970), em que Bion voltou a desenvolver uma teoria sobre grupos, colocando em evidência vértice do místico como sendo elemento que encarna a busca da verdade dentro do grupo. Bion também destacou a ação do pensamento sem pensador, utilizando-se das ideias de Nietzsche. O autor mostrou que na tradição histórica, o contato com a ideia nova muitas vezes é atribuído a um contato com a divindade. Assim, o discurso da "revelação" está de um algum modo sempre presente. A própria psicanálise surge como "revelação". Chuster faz algumas relações intragrupos, com as ideias "geniais ou místicas" e a observação da trajetória das instituições humanas, das vicissitudes do conhecimento e do difícil avanço da sabedoria. Numa sociedade psicanalítica ao perder o viés da complexidade e das verdades transitórias poderia não deixar ninguém mais criando.
No segundo capítulo é abordada a complexidade do fenômeno psicótico e a importância da formação e existência da parte psicótica e não psicótica da personalidade. Os autores destacam que Bion estabeleceu um significativo trajeto na descrição da mente através de um modelo espectral das possibilidades entre a presença de partes psicóticas e não-psicóticas. O modelo espectral se coloca mais contraposição do que como complementaridade ao modelo estrutural usado na psicanálise. Com isto, surge a descrição de fenômenos observados pela perspectiva de ações que substituem pensamentos, apontando para a construção de um novo modelo no funcionamento mental. Para entender toda a ordem de distorções psíquicas, aplica-se o conceito de partes da mente tentando funcionar simultaneamente com óticas distintas, e quando configuradas no modelo espectral ao modelo de uma dobradura constante caracterizando a relação transferencial. Bion, através do desenvolvimento deste modelo, faz uma releitura do mito de Édipo pelo vértice da parte psicótica da personalidade, exteriorizada pelo fenômeno da arrogância dos personagens. Para o autor a questão central da psicanálise é a verdade, colocando a sexualidade como periférica.
Também através do estudo epistemológico, Bion mostra que o ser humano é consequência da pressão dos pensamentos sobre o aparelho para pensar, não ao contrário como se suponha cartesianamente, ou através da lógica linear. Então para pensar não basta querer, é preciso aprender a pensar a partir das experiências. E para aprender é preciso acolher o inesperado, a surpresa do estranho, do novo, do desconhecido. O autor ressalta que o psicanalista diante destes quadros clínicos necessita ter sempre em mente uma flexibilidade das mínimas condições necessárias para realizar o processo analítico, ou seja, colocar em evidência a função psicanalítica da personalidade, avaliando as reais possibilidades do paciente. O referencial a ser usado se altera conforme a intensidade da mesma e, obviamente, da presença maior ou menor da parte não-psicótico na configuração do espectro das possibilidades. O analista observa o paciente, observa a si mesmo e observa o vínculo. Por esta tríplice observação pode alcançar o objeto psicanalítico. E esta observação determina o sucesso do tratamento.
No capítulo três, os autores descrevem que Bion expandiu a ideia sobre o que é a psicanálise fazendo-a o núcleo do seu modelo psicanalítico de funcionamento mental: a preocupação busca uma realização que dê à luz uma concepção (pensamentos em geral). Se a concepção mantém o valor de pré-concepção prossegue gerando novas concepções que podem se transformar em conceitos. Existe um ponto absolutamente polêmico na definição, a ideia de tempo futuro do inconsciente. Esta característica que faz Bion conceber que um inconsciente vai além do inconsciente freudiano, uma espécie de "armazém das possibilidades da espécie humana", "um armazém de pensamentos sem pensador" ou "memória do futuro", uma sombra lançada do futuro que irá nos acolher, onde os seres humanos irão encontrar as soluções para seus problemas.
O objeto primário da pré-concepção seria a princípio o seio, enquanto uma função geradora do psiquismo, não é apenas o objeto fornecido pela mãe, pois por detrás do seio temos os pais sexualmente unidos garantindo a existência do seio. Por trás dos pais temos uma sociedade que garante esta união e, finalmente, uma mente criativa por trás da sociedade buscando soluções para que estes vínculos continuem a preservar a vida da espécie. Há uma espécie de espiral semelhante ao DNA, mostrando o desenvolvimento infinito da pré-concepção, depois de exposto, é sempre uma pré-concepção edípica. Para o autor, o conceito de pré-concepção edípica descreve uma das principais soluções que permitam a passagem do pré-humano para a espécie humana, ou seja, a capacidade para buscar as experiências emocionais, a habilidade para buscar o psiquismo.
O quarto capítulo intitula-se Uma significativa mudança de paradigma: algumas especialidades e apresenta as concepções de "complexidade", assim como a significação do objeto de psicanálise, com conceituações próprias e específicas de Freud, M. Klein, Bion e Lacan. Para os autores, o problema apresentado por Bion trata das vicissitudes da transição do paradigma do objeto simples para o paradigma do objeto complexo, onde as relações são pautadas pelo princípio da incerteza. Os autores esclarecem um pouco mais o que significa trabalhar com este novo referencial. É apresentado um material clínico ilustrativo.
No quinto capítulo, Chuster descreve detalhes pouco conhecidos acerca da relação de Freud com seus pacientes, bem como seu desenvolvimento teórico e técnicas utilizadas. É apresentado como legado de Freud, que a escuta do analista de seus pacientes deve constituir um saber capaz de responder à singularidade. E a singularidade não pode ser desenvolvida sem se levar em conta a complexidade.
O capítulo seis refere-se ao objeto psicanalítico de Bion, enfocando a importância do "Aprender das Experiências" e faz considerações acerca do fato que as crenças narcísicas prejudicam a capacidade para pensar, aprender da experiência e, daí, para a criação de um ego novo ou singular. Outros destaques são os vínculos; as pré-concepções + realizações = concepções, que à mercê da função alfa, possibilitam a capacidade para pensar. Os autores reafirmam que a teoria do pensar de Bion produziu uma nova mudança de paradigma, com base em questões epistemológicas relativas a uma nova teoria do inconsciente, que nem sempre fica explicitada.
No sétimo capítulo, A mente do analista se organiza para o impossível, a mente é descrita como um campo de funções que permite entender claramente a instabilidade da capacidade analítica frente à uma grande rotatividade de possibilidades contidas na vida do analisando, motivo pelo qual Freud aludiu à psicanálise como sendo uma profissão impossível. Chuster ainda destaca que à medida que uma análise se desenvolve, surge gradualmente uma história inteiramente diferente, enquanto aos nos darmos conta de que existem distintos níveis de pensamentos, em graus diversos de desenvolvimento e sofisticação. Bion os chamou de elementos de psicanálise, a fim de refletir a singularidade de uma forma de trabalhar e não para trabalhar com ela como um modelo generalizado e concreto. Na realidade a grade de Bion está muito próxima de um quadro abstrato. Os autores relatam que as analogias usadas na grade, servem para um melhor entendimento da mente do analista.
No capítulo oito, Chuster ressalta que o objetivo geral do texto Transformações (1965) é entender a questão da transferência de uma forma particular que pode ser resumida pela seguinte frase: "considerando a experiência analítica à luz de uma teoria de transformação é possível ver os problemas do pensamento de uma maneira nova". O autor argumenta que o trabalho do analista pode ir até o ponto em que direciona para a transformação do sujeito nele mesmo, o que só ocorre no âmbito de um tempo totalmente interno.
O penúltimo capítulo descreve a função do psicanalista no campo da psicanálise, pois é tal função que deve estabelecer os limites do campo, assim como suas limitações. Esta função se baseia na premissa ética geral de que o objetivo investigativo primordial da psicanálise possa ajudar o analisando a transformar, de algum modo, a relação com a mente inconsciente. A partir da transformação analítica espera-se que possa haver alguns benefícios. O autor ressalta que Bion compõe uma espécie de portal de entrada (cesura) ao campo analítico delimitando as fontes de onde o analista recebe subsídios para formar a sua linguagem interpretativa. Assim, antes de adotar qualquer modelo psicanalítico, devemos trabalhar com princípios bem estabelecidos e não se deixar levar a um único vértice de observação, apesar de a teoria estar correta, trabalhar com mais de um vértice é fundamental.
No capítulo final, temos que a escolha teórica de Bion se dá através do elemento onírico-poiético, dando importância à imaginação e ao sonhar no trabalho analítico. Essa opção está presente no percurso de sua obra, com uma tendência ao trabalho com princípios, ao invés de modelos, referendando o paradigma da complexidade. Chuster propõe um modelo psicanalítico através do trabalho de Bion e ressalta que a experiência analítica é cada vez mais tornar-se aquilo que se é. Uma conversa simples entre duas pessoas sobre o que está se passando entre elas, tendo como questão de fundo a existência da mente inconsciente, sem uma conclusão apressada, sem crenças, que vai gerando uma sabedoria – uma sabedoria de vida. Sendo assim, a presente obra auxilia estudiosos de Bion e demais interessados em conhecer um pensamento complexo e profundo, em linguagem acessível aos leitores.
Referências
Chuster, A. e cols. (2011). O objetivo psicanalítico: fundamentos de uma mudança de paradigma na psicanálise. Porto Alegre: Ed. do Autor. [ Links ]
Endereço para contato
E-mail: v.linharesdias@gmail.com
Recebido em julho de 2012
Aceito em dezembro de 2012
Vera Lucia Linhares Dias: acadêmica de Psicologia da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas-RS.
Aline Groff Vivian: psicóloga clínica, mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS), doutora em Psicologia (UFRGS) e professora dos Cursos de Psicologia e Medicina da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas-RS.