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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia vol.52 no.2 Canoas jul./dez. 2019

 

ARTIGO TEÓRICO - PROMOÇÃO DA SAÚDE

 

Violência contra a mulher no meio rural brasileiro: uma revisão integrativa

 

Violence against women in Brazilian rural areas: an integrative review

 

 

Andressa Veras de Carvalho1

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de uma revisão integrativa da literatura sobre o fenômeno da violência contra a mulher em contextos rurais no Brasil. Realizou-se busca na Biblioteca Virtual em Saúde (Psicologia) que resultou em 66 artigos, dentre os quais foram selecionados 10 para o estudo. No geral, os artigos são recentes, de enfoque qualitativo, com uma diversidade de participantes, entre gestores, profissionais de saúde e mulheres. Os principais achados sugerem diferentes compreensões em torno da violência contra a mulher e características comuns dos contextos rurais como agravantes, como a dificuldade de acesso aos serviços. Como estratégias de enfrentamento, foram mencionadas: rede intersetorial e Estratégia Saúde da Família, grupos de mulheres, rede social de apoio e participação política. A carência de estudos demanda a necessidade de realização de novas pesquisas a fim de compreender melhor a dinâmica da violência em contextos rurais e implementar ações que assegurem o bem-estar e a dignidade das mulheres.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; Contextos rurais brasileiros; Revisão integrativa.


ABSTRACT

This study is a integrative literature review about the phenomenon of violence against women in rural areas in Brazil. We surveyed the data base of the Virtual Library in Health (Psychology), resulting in 66 articles, among which 10 were selected for the study. Overall, the articles are recent, qualitative, with a diversity of participants, among managers, health professionals and women. The main findings suggest different understandings about violence against women and common characteristics of rural contexts as aggravating factors, such as the difficulty of access to services. As coping strategies, the following were mentioned: intersectoral network and Family Health Strategy, women's groups, social support network and political participation. The lack of studies demands the need for new research to better understand the dynamics of violence in rural areas and to implement actions that ensure the well-being and dignity of women.

Keywords: Violence against women; Brazilian Rural areas; Integrative review.


 

 

Introdução

A violência contra a mulher é um fenômeno social complexo, persistente, atravessado por múltiplas dimensões, sejam elas sociais, culturais, simbólicas, psicológicas, entre outras. Esse tipo de violência se manifesta como uma relação de submissão ou de poder, acarretando consequências tais como medo, isolamento, dependência e intimidação. Geralmente, as agressões sofridas decorrem de conflitos interpessoais, revestido de um caráter moral que contribui para a sua invisibilidade. Assim, o fenômeno da violência contra a mulher requer uma análise das múltiplas determinações socioculturais que o envolvem e das condições materiais das vítimas e dos agressores (Scott, Rodrigues & Saraiva, 2010; Bandeira, 2014).

Somente em 1993, na Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, que a violência contra a mulher foi reconhecida ao ser tipificada como uma violação dos direitos humanos. Esse avanço é fruto de esforços para que esse tipo de violação dos direitos, que geralmente ocorre na esfera privada, possa ser ampla e publicamente reconhecido, a fim de possibilitar a compreensão sobre esse aspecto da dominação masculina que até então não se visualizava. Recentemente, vem crescendo, no meio acadêmico, na mídia, na esfera pública e entre movimentos sociais, o interesse em investigar e discutir o tema da violência contra a mulher no Brasil. Entretanto, os contextos urbanos têm sido privilegiados nas investigações em detrimento dos contextos rurais (Scott et al., 2010).

As mulheres são uma parte expressiva da população que vive no meio rural, chegando a quase 15 milhões de acordo com os últimos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2015). Leite, Dimenstein, Dantas, Macedo e Freitas (2016) afirmam que, embora as mulheres representem um importante papel na produção agrícola, isso não é reconhecido enquanto tal, mascarando, assim, suas funções na produção como se fosse uma extensão das suas atividades domésticas. O movimento de reconhecer as mulheres como trabalhadoras rurais é bem recente e ainda é muito marcado por tensões que fazem emergir as vulnerabilidades as quais elas se encontram submetidas no meio rural.

Além de ser atravessado pelas marcas do modelo capitalista de produção agrícola que historicamente tem espoliado os povos do campo, o cotidiano das mulheres rurais é marcado pela sobrecarga de trabalho, exploração, discriminação e as múltiplas faces da violência que agem em suas vidas e se inscrevem em seus corpos. Deste modo, ao analisar a violência contra a mulher em contextos rurais faz-se necessário compreender tais contextos em sua complexidade (Daron, 2009). Ademais, a violência é um aspecto da dinâmica de vida das mulheres rurais que expressa inúmeras iniquidades sociais, especialmente no tocante à ausência de redes de apoio social e à insuficiência ou mesmo ausência de políticas públicas de proteção e prevenção da violência contra a mulher (Leite et al., 2016).

A violência contra a mulher também é uma causa de sofrimento psíquico e que, em muitos casos, as mulheres não reconhecem determinados atos como sendo uma situação de violência, pois já se encontram naturalizados no meio rural. Esse tipo de violência tem como pano de fundo as assimetrias de poder no âmbito familiar, assentado em um modelo de sociedade patriarcal hierárquico. Assim, é imprescindível conhecer as especificidades do meio rural e como este se organiza em torno de uma construção sociocultural que define as relações entre homens e mulheres para que se possa compreender as dimensões da violência a contra a mulher e seus desdobramentos (Leite et al., 2017).

Embora desde a década de 1990 inúmeros países tenham assumido o compromisso de criar normas, marcos legais e políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres (Meza, 2016), constata-se, segundo Ballara (2004), que os serviços de atendimento implementados têm sido insuficientes e predominantemente localizados nos grandes centros e cidades maiores, apresentando, assim, um viés urbano. Ademais, as políticas implementadas têm se traduzido em ações normativas e não têm contemplado ou mesmo reconhecido as demandas e necessidades de mulheres de diferentes grupos étnicos e camponeses, desconsiderando, assim, as particularidades de cada local e as relações de gênero presentes em cada contexto (Ballara, 2004).

Essa problemática também tem ocupado um espaço reduzido tanto no campo de pesquisas sobre o contexto rural quanto nos estudos sobre violência contra a mulher. Geralmente, os trabalhos na seara do gênero em contextos rurais têm se voltado para a questão fundiária, produção e reprodução, relações de trabalho, família, lutas e participação política, gerando uma lacuna quando se trata da questão da violência contra as mulheres rurais, embora seja importante destacar que, recentemente, esse assunto tem se tornado uma importante pauta dos movimentos de mulheres trabalhadoras do campo (Scott et al., 2010; Costa, 2012).

É necessário e urgente investir em reflexões acerca do fenômeno da violência contra as mulheres em contextos rurais, considerando a carência de ações de intervenção e de políticas públicas. Como já exposto, o cotidiano em que vivem as mulheres rurais são complexos e marcados por adversidades que tendem a agravar as situações de violência (Bueno & Lopes, 2018; Costa, 2012). Posto isso, o presente estudo tem como objetivo realizar uma revisão integrativa da literatura nacional sobre o fenômeno da violência contra a mulher em contextos rurais brasileiros.

 

Método

Realizou-se uma revisão integrativa da literatura sobre a violência contra a mulher no meio rural brasileiro, a partir do levantamento de produções científicas nacionais publicadas até o ano de 2018. A base de dados consultada foi a Biblioteca Virtual em Saúde-Psicologia (BVS-Psi), que abrange outras bases de dados, tais como a Scientific Electronic Library Online (SciELO), a Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e INDEXPsi Periódicos. A busca foi realizada em dezembro de 2018, a partir dos seguintes descritores e operadores booleanos (violência contra a mulher OR violência contra mulheres OR violência de gênero) AND (rural), resultando no total de 66 artigos, dentre os quais foram excluídos 17 estudos duplicados. Em seguida, após a leitura dos resumos, foram excluídos 33 artigos que não se enquadravam no escopo de análise.

Para a seleção final dos artigos, foram aplicados os seguintes critérios de inclusão: ser artigo científico e estar relacionado ao tema investigado; estar disponível integralmente; ter sido realizado no Brasil. Os critérios de exclusão foram: outros tipos de publicações (tese, dissertação, livro, resenhas); texto não disponível na íntegra; estudos realizados fora do país. A partir da aplicação dos critérios mencionados, restaram 10 artigos, que constituíram a amostra final do estudo. Tais artigos foram lidos integralmente e sistematizados de acordo com as seguintes informações: o ano e o periódico de publicação, região do país, aspectos metodológicos, objetivos e principais achados. As etapas do processo de seleção dos artigos podem ser vistas na Figura 1

 

 

Resultados

De uma forma geral, os estudos estão distribuídos entre os anos de 2012 e 2018, sendo a maior parte (n=8) publicada nos últimos 4 anos, conforme exposto na Figura 2. Com relação aos periódicos, verifica-se uma predominância da área de Enfermagem, com um total de 6 artigos, distribuídos pelas seguintes revistas: Revista Gaúcha de Enfermagem (n=2), Revista da Escola de Enfermagem da USP (n=2), Escola Anna Nery Revista de Enfermagem (n=1), Revista Brasileira de Enfermagem (n=1). Os demais artigos foram publicados em revistas de caráter interdisciplinar, a saber: Saúde e Sociedade (n=1), Ciência e Saúde Coletiva (n=1), Ambiente e Estado (n=1) e Estudos Feministas (n=1).

 

 

Cabe destacar que houve uma concentração dos estudos no Rio Grande do Sul (n=9), e apenas um estudo realizado em outra localidade, a saber, Pernambuco. Além disso, cabe mencionar que é frequente a presença de Marta Cocco da Costa na autoria dos estudos (n=8), professora do curso de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), localizada no RS, o que pode explicar o número alto de estudos realizados neste estado e também sugere que a problemática da violência contra a mulher rural tem sido um objeto de estudo da pesquisadora.

Com relação aos aspectos metodológicos, todos os artigos são de natureza empírica, dentre os quais, a grande maioria utilizou a abordagem qualitativa (n=9). Sobre o desenho metodológico, seis estudos podem ser caracterizados como exploratório-descritivo (Hirt et al., 2017; Costa, Silva, Soares, Borth & Honnef, 2017; Costa, Lopes & Soares, 2015a; Costa & Lopes, 2012; Costa, Lopes & Soares, 2015b; Scott, Nascimento, Cordeiro & Nanes, 2016), três estudos como descritivos (Arboit, Costa, Silva, Colomé, & Prestes, 2018; Borth, Costa, Silva, Fontana & Arboit, 2018; Costa, Lopes & Soares, 2014) e um estudo como epidemiológico, ecológico e descritivo (Bueno & Lopes, 2018).

No que diz respeito à caracterização da amostra, os estudos variaram entre 12 e 56 participantes, sendo que em dois deles a população analisada foi composta por mulheres residentes de áreas rurais (Scott et al., 2016; Hirt et al., 2017), em quatro artigos houve a participação de grupos de profissionais da saúde, entre eles Agentes Comunitários de Saúde, Enfermeiro, Médico e Psicólogo (Costa et al., 2017; Costa et al., 2015b; Costa & Lopes, 2012; Costa et al., 2014; Borth et al., 2018), em um artigo houve a participação específica de ACS (Arboit et al., 2018) e em outro estudo, de gestores e gestoras municipais de saúde (Costa et al., 2015a). Houve ainda um artigo em que a pesquisa foi realizada a partir da análise de boletins de ocorrência e inquéritos policiais a respeito de denúncias de feminicídios na zona rural (Bueno & Lopes, 2018).

Com relação aos instrumentos de coleta de dados, a maior parte (n=8) utilizou a técnica da entrevista, sendo que cinco deles utilizaram exclusivamente esta técnica (Costa et al., 2017; Costa et al., 2015a; Arboit et al., 2018; Costa & Lopes, 2012; Borth et al., 2018; Costa et al., 2015b). Os demais estudos utilizaram outras técnicas além da entrevista, a saber: técnicas projetivas (Hirt et al., 2017), grupo focal (Arboit et al., 2018) e grupo de discussão (Scott et al., 2016). Um artigo não mencionou os procedimentos utilizados (Costa et al., 2014).

Sobre a análise dos dados, a maior parte dos artigos (n=7) utilizaram a Análise de Conteúdo de Bardin/Minayo (Hirt et al., 2017; Costa et al., 2017; Costa et al., 2015a; Arboit et al., 2018; Borth et al., 2018; Costa et al., 2015b; Costa & Lopes, 2012). No estudo de Costa et al. (2014) a partir da teoria das Representações Sociais, com uso do software EVOC. Dois artigos não mencionaram os procedimentos analíticos (Bueno & Lopes, 2018; Scott et al., 2016).

Com relação aos objetivos dos estudos, verificou-se que em sua maioria traziam elementos relacionados às compreensões acerca da violência contra a mulher no meio rural e suas dimensões e especificidades, bem como discutiam práticas, ações e estratégias voltadas para o enfrentamento da situação de violência contra as mulheres rurais. A síntese com os objetivos e os principais resultados dos estudos pode ser visualizada na Tabela 1.

 

 

Discussão

A partir da presente revisão, ressalta-se a baixa incidência de investigações voltadas para a compreensão do fenômeno da violência contra a mulher em contextos rurais e suas singularidades. Tal fato reafirma a negligência dos estudos sobre a violência contra a mulher no meio rural, conforme já apontado anteriormente (Costa, 2012; Scott et al., 2010), além de contribuir para reforçar a invisibilidade que tem marcado as situações de violência sofridas por essas mulheres, como fica evidenciado em alguns dos estudos selecionados nesta revisão (Costa & Lopes, 2012; Scott et al., 2016; Costa, Lopes, & Soares, 2015a; Bueno & Lopes, 2018). Todavia, é válido destacar, embora tímido, o crescimento do número de estudos nos últimos 4 anos, o que pode indicar uma crescente preocupação dos pesquisadores em investigar esse fenômeno, a fim de lhe conferir visibilidade.

Também podemos destacar a quase unanimidade de estudos de enfoque qualitativo, o que pode estar relacionado ao fato de os artigos se circunscreverem a regiões específicas do país, além de utilizarem pequenas amostras. Isso demonstra a preocupação dos pesquisadores em compreender o fenômeno da violência nas realidades investigadas, a partir das especificidades regionais, e não necessariamente em realizar levantamentos generalizáveis, com dados de viés quantitativo. Porém, ressalva-se que esses dados como, por exemplo, notificações de casos de violência e condições sociodemográficas e econômicas das mulheres, também podem ser importantes para subsidiar a implementação de políticas públicas.

Também se menciona que, dentre os estudos que trazem a abordagem da pesquisa, houve a pertinência do tipo exploratório-descritivo, o que pode indicar a carência de estudos teóricos acerca da violência contra as mulheres rurais, uma vez que, de acordo com Gil (2008), pesquisas do tipo exploratórias são desenvolvidas a fim de estabelecer uma aproximação maior com o campo investigado, sendo especialmente realizada quando o objeto de estudo é pouco explorado, e as pesquisas do tipo descritivas visam descrever características acerca de determinada população ou fenômeno.

Pontua-se como positiva a escolha de diferentes atores como participantes nos estudos, desde as próprias mulheres que vivem em contextos rurais, importante para a compreensão da dinâmica desse fenômeno, até profissionais de saúde e da rede de enfrentamento às situações de violência contra a mulher, e mesmo os gestores municipais, possibilitando, assim, conhecer como esses diferentes sujeitos compreendem as nuances da violência contra a mulher e quais as implicações para suas práticas cotidianas. Entretanto, ressalta-se a importância da realização de mais estudos com as próprias mulheres que vivem em contexto rurais, a fim de melhor compreender seu cotidiano e os elementos que o compõem, no intuito de identificar os principais fatores de risco e de proteção acerca do fenômeno da violência contra a mulher, até mesmo para subsidiar as práticas dos profissionais.

Com relação aos principais achados dos estudos, analisou-se a partir de dois grandes eixos: a) compreensão acerca do fenômeno da violência contra a mulher em contextos rurais; e b) estratégias e ações de enfrentamento à violência contra a mulher em contextos rurais, que serão discutidos a seguir.

Compreensões acerca da violência contra a mulher em contextos rurais

Os principais achados dos estudos selecionados trazem diferentes compreensões acerca do fenômeno da violência contra a mulher no meio rural de acordo com os participantes da pesquisa. Em dois artigos em que participaram gestores e alguns profissionais da área da saúde, a exceção dos ACS (Costa et al., 2014; Costa et al., 2015a; Costa, Lopes, & Soares, 2015b), para a maioria dos entrevistados, as assimetrias de poder entre homens e mulheres são explicadas pelas diferenças físicas, sexuais e biológicas, justificando, assim, a natureza da sujeição feminina e naturalizando as violências sofridas pelas mulheres. Os gestores e profissionais da saúde entrevistados parecem não reconhecer as dimensões histórica, social e simbólica da violência contra a mulher, tampouco as especificidades locais e culturais que atravessam o cotidiano de mulheres que vivem em contextos rurais.

Deste modo, a naturalização da violência acaba sendo reproduzida nas práticas profissionais, acarretando em desresponsabilização técnica e social, o que dificulta a busca das mulheres por ajuda nos serviços de saúde. Outrossim, os achados dos estudos também revelam que o não reconhecimento da violência contra a mulher em contextos rurais acarreta sua ausência das ações de planejamento e gestão em saúde e a inexistência de agendas locais direcionadas ao enfrentamento dessa problemática (Costa et al., 2014; Costa et al., 2015a; Costa et al., 2015b).

Já nos estudos em que houve participação dos ACS (Costa et al., 2015b; Costa et al., 2014; Arboit et al., 2018), estes foram apontados como mais sensíveis às situações de violência em relação a gestores e demais profissionais, escapando às representações simplistas e tradicionais das relações de gênero, sendo capazes de visualizar outros elementos do cotidiano das mulheres rurais. Isso pode estar relacionado à proximidade dos ACS com o cotidiano local, o que favorece uma melhor visualização da problemática da violência e também uma maior responsabilização pelas demandas das comunidades rurais. Em razão disso, os ACS têm sido considerados agentes privilegiados na identificação das situações de violência contra a mulher.

Nos dois estudos realizados com mulheres (Hirt et al., 2017; Scott et al., 2016), estas relacionavam a violência a atos físicos, como agressões corporais e estupro, e tinham dificuldade em reconhecer outras formas de violência no cotidiano, assumindo determinados comportamentos como naturais da vida conjugal ou própria da dinâmica de vida. No estudo de Hirt et al. (2017), ao mesmo tempo em que refletiam sobre a violência como um fenômeno distante e extremo, também relatavam situações de violência presente em suas relações, como não ter o direito de questionar. No estudo de Scott et al. (2016), as mulheres relacionaram a violência a diversos atos, tais como agressões físicas e verbais, estupros e homicídios, sendo que alguns comportamentos violentos foram assumidos por elas como parte da própria constituição das relações conjugais.

Os estudos supracitados também indicaram algumas características particulares dos contextos rurais como agravantes da situação de violência contra a mulher. São eles: a dificuldade de acesso a serviços, políticas sociais e órgãos de segurança pública ou mesmo a ausência destes; as longas distâncias geográficas; a pouca disponibilidade de transporte e de rede de comunicação que acentua a dependência do companheiro/cônjuge; a discriminação e o preconceito sofridos pelas mulheres ao buscarem atendimento; a desarticulação da rede e a não comunicação entre os diferentes setores públicos; e a subnotificação dos casos de violência contra a mulher nos serviços de saúde (Bueno & Lopes, 2018; Borth et al., 2018; Costa et al., 2017; Scott et al., 2016).

De fato, como apontam Scott et al. (2010), alguns aspectos característicos dos contextos rurais, como por exemplo a questão geográfica, têm limitado a implementação de políticas públicas de combate à violência contra a mulher e tornado mais difícil a resolutividade das ações. A criação de alguns serviços, como as Delegacias da Mulher e casas-abrigo não têm contemplado o cotidiano das mulheres que vivem no campo. São muitos os desafios a sua implementação: escassez de recursos financeiros e humanos, longas distâncias, dificuldade de anonimato, questões políticas locais, entre outros fatores que expõem as mulheres ao sentimento de impotência e invisibilidade. Deste modo, para pensar políticas de combate à violência é necessário conhecer as particularidades dos contextos rurais e, sobretudo, trazer as próprias mulheres do campo para o centro do diálogo para que suas necessidades e demandas sejam ouvidas e compreendidas.

Estratégias e ações de enfrentamento à violência contra a mulher em contextos rurais

A violência contra a mulher é um fenômeno complexo, logo, requer um leque variado de ações e serviços de diferentes setores públicos, como saúde, assistência social, segurança pública e justiça, educação, entre outros. Entre as estratégias de enfrentamento à problemática da violência, aparece com frequência nos estudos a efetivação da rede intersetorial. Os participantes de alguns estudos (Bueno & Lopes, 2018; Borth et al., 2018; Costa et al., 2017; Arboit et al., 2018; Costa & Lopes, 2012) reconhecem a importância da intersetorialidade e da interdisciplinaridade como diretrizes do trabalho institucional que possibilitariam um olhar ampliado e uma intervenção mais eficaz nas situações de violência. De fato, a intersetorialidade, a partir da articulação entre diferentes setores e da coordenação entre ações de prevenção e assistência, e a integralidade, ao considerar as diversas dimensões das relações de gênero, seja psicológica, econômica, social ou cultural, têm sido apontadas como aspectos centrais para enfrentar a complexidade que o problema da violência contra a mulher assume nesses contextos (Ballara, 2004).

Também foi apontado nas publicações (Costa et al., 2017; Arboit et al., 2018) o fortalecimento da Estratégia da Saúde da Família (ESF), dispositivo da Atenção Básica em Saúde, que se configura como um equipamento social privilegiado com possibilidade de chegar de forma mais efetiva às comunidades, permitindo a identificação da situações de violência e seus agravos. A ESF opera como reorientadora do modelo assistencial, vinculando-se ao território, estando mais próxima das demandas das comunidades. Orientada pelo trabalho em equipe, a ESF é vista como um serviço com potencial de enfrentamento às situações de violência contra as mulheres em áreas rurais, possibilitando maior resolutividade aos casos.

Em dois estudos (Costa et al., 2017; Costa & Lopes, 2012), foi citada a construção de ações coletivas, como por exemplo a constituição de grupos de mulheres. Por meio de oficinas socioeducativas realizadas nos grupos as mulheres podem obter informações e orientações sobre os serviços públicos e os meios de denunciar situações de violência. O espaço grupal também pode ser importante à medida que possibilita fortalecer vínculos, reconstruir histórias de vida, trocar experiências com outras mulheres e, assim, construir redes de apoio social. Além disso, os grupos também fomentam iniciativas de produção local e geração de renda, possibilitando auxiliar as mulheres em situação de vulnerabilidade social e favorecendo um aumento no grau de autonomia em relação aos companheiros.

Outras formas de enfrentamento às situações de violência foram citadas, como uma forte rede social de apoio. Nesse sentido, a família é citada como um importante elemento dessa rede. Manter vínculos de confiança contribui para facilitar o acesso das mulheres aos serviços de atendimento, além de encoraja-las a denunciar situações de violência. Destacam-se ainda o apoio de vizinhos e de religiosos (as) da comunidade (Costa et al., 2017). Outro estudo (Scott et al., 2016) acrescenta ainda a participação e ação política em movimentos de trabalhadoras rurais e sindicatos rurais como uma importante fonte de apoio para as mulheres que vivenciam situações de violência. Por exemplo, os movimentos sociais de mulheres rurais desempenham importante papel na divulgação da Lei Maria da Penha e na promoção de capacitações acerca do reconhecimento dedireitos e do empoderamento feminino. Conforme demonstram Nobre, Hora, Brito e Parada (2017), é fundamental que a construção de ações de enfrentamento à situação de violência seja coletiva, incluindo o diálogo com as próprias organizações sociais do campo, aproximando-se, deste modo, das múltiplas realidades em que vivem as mulheres rurais.

 

Considerações finais

Esse estudo teve como objetivo realizar uma revisão integrativa da literatura sobre a violência contra a mulher em contextos rurais brasileiros. Conforme exposto, as discussões a esse respeito ainda são incipientes, especialmente quando se pensa a inserção da Psicologia nessa problemática, revelado pela ausência de publicações em periódicos da área. Deve-se destacar, porém, que o número de estudos vem crescendo nos últimos anos, demonstrando possivelmente um aumento de interesse dos pesquisadores em investigar esse fenômeno.

De uma forma geral, os estudos convergiram no sentido de afirmar o anonimato e o contexto de vulnerabilidades sociais em que vivem as mulheres rurais. Os resultados apontaram para as diferentes compreensões da dinâmica da violência entre gestores e alguns profissionais da saúde, que naturalizavam os eventos e suas causas ou culpabilizavam as vítimas, e os Agentes Comunitários de Saúde, que tinham um entendimento da violência mais sensível ao sofrimento das mulheres, explicado pela condição de proximidade em relação às comunidades. De forma a enfrentar essas situações de violência, menciona-se a importância de uma rede intersetorial forte e articulada, o fortalecimento da Estratégia de Saúde da Família, considerando que é o serviço mais próximo das mulheres do campo, a construção de ações coletivas, como os grupos, uma rede social de apoio e a participação política em movimentos sociais rurais.

Cabe destacar que esta revisão apresenta algumas limitações em razão de se tratar de um recorte a partir da utilização de determinados descritores que podem não ter abarcado algumas publicações, além do foco ter sido voltado apenas para as produções nacionais. Também, a busca se limitou a artigos, logo, não foram incluídos outros tipos de documentos, como teses, dissertações e resenhas de livros, por exemplo. Tais limitações, todavia, não invalidam os resultados encontrados nesta revisão e podem indicar para a realização de novas revisões a respeito da temática.

Ressalta-se a importância de novos estudos a respeito da violência contra a mulher no meio rural, dada à insuficiência de produções científicas e à circunscrição dos estudos a localidades específicas, para, deste modo, ampliar a produção de conhecimento que possibilite não apenas compreender tal fenômeno e suas particularidades em contexto rurais, mas, sobretudo, fornecer subsídios para a construção de políticas públicas efetivas e para a ampliação da rede de proteção, com a criação de serviços mais próximos às diversas realidades. Tais ações são necessárias para romper com a barreira da invisibilidade que marca a vida das mulheres rurais e intervir nas situações de violência de forma mais efetiva.

 

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Endereço para correspondência
E-mail
: dressacarvalho7@gmail.com

 

Recebido em: fevereiro de 2019
Aceito em: outubro de 2019

 

 

1 Andressa Veras de Carvalho: Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Piauí. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus Universitário Lagoa Nova. CEP 59078-970 - Natal, RN – Brasil. Telefone: (86) 99563-3081.

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