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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

A histeria no pensamento clínico de Donald W. Winnicott e Masud Khan

 

Hysteria in Donald W. Winnicott and Masud Khan's Clinical Thinking

 

 

Sérgio GomesI, II*; Nelson Ernesto Coelho JúniorI**

ICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
IIUniversidade de São Paulo - USP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho objetiva redescrever a histeria a partir da teoria das relações objetais e da teoria do desenvolvimento emocional em Donald W. Winnicott e Masud Khan. A partir da teoria das relações objetais e do desenvolvimento emocional primitivo, a histeria pode ser compreendida como uma falha no cuidado do bebê no primeiro ano de vida, acrescido de desenvolvimento sexual prematuro, no qual é possível encontrar núcleos psicóticos e esquizoides, que emergem durante a adolescência ou a vida adulta. Propomos o manejo clínico por meio da psicanálise transmatricial, ou seja, tanto por meio da interpretação e da associação livre, quanto por meio da reparação das falhas ambientais precoces vividas na dinâmica mãe-bebê com o recurso da regressão à dependência.

Palavras-chave: Histeria, Complexo edípico, Teoria das relações objetais, Teoria do desenvolvimento emocional, Winnicott, Khan.


ABSTRACT

This paper aims to redescribe hysteria from the theory of object relations and the theory of emotional development in Donald W. Winnicott and Masud Khan. From the theory of object relations and primitive emotional development, hysteria can be understood as a failure in the care of the baby in the first year of life, plus premature sexual development in which psychotic and schizoid symptoms emerge during adolescence or adulthood. From the transmatricial psychoanalysis, we propose the clinical management both through interpretation and free association, as well as through the repair of early environmental failures experienced in the mother-baby dynamics with the use of regression to dependence.

Keywords: Hysteria, Oedipal complex, Theory of object relations, Theory of emotional development, Winnicott, Khan.


 

 

Um bebê que, por razões genéticas, possua uma capacidade
limitada de postergar a satisfação, experimentará a mãe como
excessivamente frustrante; isto aumentará seu ódio em relação
ao objeto de frustração e intensificará a inveja do seio da mãe, o
qual é imaginado como retendo para si o que, de outro modo,
poderia ser disponibilizado ao bebê.

Christopher Bollas, Hysteria

 

Introdução

A história da psicanálise é marcada pelo fenômeno do saber psiquiátrico, pela loucura experimental, pela hipnose e pelo surgimento da histeria no fin-de-siècle como um adoecimento sem lesão anatômica ou regularidade desejada, a qual logo foi incluída na etiologia das neuroses.

Quando vai a Paris, em 1885, e assiste ao curso de Jean Martin Charcot no Salpêtrière, Sigmund Freud adere entusiasticamente ao modelo fisiológico oferecido para demonstrar os fenômenos histéricos, compreendendo que não se tratava de simulação, mas de uma doença funcional com um conjunto de sintomas bastante definidos, e marcado pelo adoecimento físico e psíquico, encenado no teatro do corpo.

A fabricação das crises histéricas nas performances charcotianas, constituía a ação terapêutica do médico por meio da hipnose, fazendo com que tudo fosse controlado pela sugestão. No entanto, pouco a pouco se percebeu que a histeria não tinha correlação com aspectos fisicalistas ou anatômicos, fazendo com que Charcot, em um primeiro momento, e Freud, em momento posterior, formulassem teorias sobre o trauma psíquico para explicar as causas do adoecimento histérico. Para Charcot, o sistema nervoso tinha uma predisposição hereditária provocado por traumas psíquicos que podiam ser reproduzidos sob efeito hipnótico, tais como as paralisias, cegueiras ou qualquer outro tipo de sintoma corporal. Com Freud e Breuer, à medida que se observou que o trauma não tinha causalidade física, foi preciso deixar o paciente narrar sua própria história pessoal para que o médico pudesse localizar a origem desse trauma. Foi assim que as primeiras histórias sobre a vida sexual dos pacientes começaram a emergir no discurso clínico, fazendo com que a histeria fosse associada a um trauma sexual, desempenhando papel preponderante neste tipo de adoecimento psíquico: estava selado o pacto entre a histeria e a sexualidade na história da psicanálise (DIDI-HUBERMAN, 2015; LAPLANCHE; PONTALIS, 1986).

Quando passou a tratar a burguesia vienense, Freud propôs uma outra via para a compreensão dos fenômenos histéricos, deixando a palavra entrar em cena nesse grande palco dos adoecimentos psíquicos. Freud encontrou na sexualidade infantil as origens da neurose, assim como os mecanismos de defesa, a censura e o recalque, além de um modelo clínico para tratamento desses males, com a transferência, a associação livre, a atenção flutuante e a interpretação analítica.

Dado que a histeria constituiu o grande modelo da neurose no final do século XIX e início do século XX, e sobre o qual a psicanálise construiu grande parte da metapsicologia, seria possível pensarmos a histeria fora desse núcleo central? Haveria alguma outra forma de entendermos o adoecimento psíquico fora da sexualidade infantil, da repressão da sexualidade, e das várias manifestações dos mecanismos de defesa?

Foi necessário esperarmos algumas décadas para que o pensamento clínico psicanalítico pudesse observar os adoecimentos psíquicos a partir da teoria das relações objetais. Dentre os autores que se destacam nesse tipo de pensamento, podemos referir as formulações teóricas de Ronald Fairbairn, Michael Balint e Donald W. Winnicott (GURFINKEL, 2017). Todos eles levaram adiante a compreensão do adoecimento psíquico a partir do vínculo estabelecido entre a mãe e o bebê, tendo como referentes as falhas ocorridas no entorno entre o bebê e seu ambiente humano. No entanto, a maior parte desses autores se referiram aos adoecimentos psíquicos mais graves - psicoses, casos limites, pacientes somáticos, etc., em vez de concentrarem sua atenção nas neuroses, como o fizeram Freud e alguns de seus sucessores. Na atualidade, a chamada clínica da neurose é assunto pouco estudado, dado o número de livros e artigos que já se debruçaram sobre o assunto; mas as neuroses, assim como os pacientes histéricos, não sumiram dos consultórios de psicanálise; porém, sua etiologia precisa ser constantemente revista e redescrita sob novas abordagens teórico-clínicas.

Nosso objetivo, no presente trabalho, é analisar a etiologia da histeria sob o ponto de vista da teoria das relações objetais e do desenvolvimento emocional, a partir do pensamento clínico de Donald W. Winnicott. Apesar de o autor não ter se debruçado sobre o assunto, ele deixou uma pesquisa em aberto para revermos os quadros clínicos nosológicos e etiológicos a partir do seu referencial teórico. Partimos da "invenção da histeria" na psicanálise freudiana, para então analisar a sintomatologia da histeria a partir da teoria do desenvolvimento emocional em Winnicott e Masud Khan. Com isso, queremos enfatizar a possibilidade de que o analista contemporâneo possa trabalhar tanto com a reparação das falhas ambientais, quanto com a associação livre e a interpretação, a partir da perspectiva da psicanálise transmatricial, a qual leva em conta os autores pertencentes à matriz freudo-kleiniana e à matriz ferencziana, conforme propõem Figueiredo e Coelho Jr. (2018).

De acordo com estes autores, a perspectiva das matrizes psicanalíticas foi estabelecida nos anos de 1920 e diz respeito ao modo como o analista pode tratar o adoecimento psíquico em termos metapsicológicos e transferenciais e contratransferenciais.

Para a matriz freudo-kleiniana, o texto de base se refere a Inibição, sintoma e angústia (FREUD 1926/1996), enquanto a matriz ferencziana está sustentada nos textos dos anos 1920, mas principalmente os textos de 1930 de Sándor Férenczi, incluindo o Diário clínico (1927-1932/1990). Para a primeira matriz, o que sustentaria a problemática dos adoecimentos psíquicos eram as experiências de angústia e as formas ativas de seu psiquismo se defender, daí, portanto, é necessário analisarmos as formas de constituição da angústia bem como seus mecanismos de defesa acionados a partir dela. As defesas são bem-sucedidas no tocante à vivência da angústia, uma vez que estamos falando de pacientes que conseguiram chegar até o drama edípico e constituíram uma unidade psíquica e um ego relativamente forte no enfrentamento dos conflitos psíquicos ou, dito de outro modo, as angústias podem ser pensadas como fenômenos da vida agitada pelas pulsões, pelos afetos e pelas impressões sensoriais.

Na segunda matriz, o que a sustenta não são as angústias; pelo contrário, são as chamadas agonias impensáveis decorrentes de traumatismos precoces, experiências de ruptura que produzem aniquilação do ego e do self, e consequentemente a impossibilidade de o psiquismo acionar as defesas e as resistências diante do traumático. O termo "agonias impensáveis" é referido a Winnicott no qual o autor defende a ideia de que essas vivências traumáticas antecipam a experiência de morte e a não existência. Não se trata de uma morte real, mas de uma morte fenomênica ou, em outras palavras, a morte antecipada ou um estado de suspensão e congelamento diante das ameaças e invasões do ego e do self (FIGUEIREDO; COELHO JR., 2018).

 

A "invenção" da histeria

Derivada da palavra grega "hystera", para os gregos antigos a palavra "histeria" era sinônimo de matriz ou útero. Era considerada uma doença orgânica, cuja origem estava referida ao útero e, portanto, era um tipo de adoecimento que só acometia as mulheres. Ao longo da história, elas foram condenadas a padecer de uma doença em suas várias manifestações (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Na Idade Média, a abordagem médica da histeria foi abandonada e a palavra caiu em desuso. Era uma época em que se acreditava no encantamento do mundo, e tudo o que fugia à razão e à compreensão médico-científica era dotado de significados mágicos. Nesse período, uma personagem se sobressai como o grande significante dos medos grupais: a bruxa. Ela foi acusada de todos os males para os quais não se tinha compreensão: das poções curandeiras às manifestações corporais, das telepatias às possessões demoníacas. Tudo foi motivo para uma caçada àquelas mulheres sob essas acusações.

Com efeito, quando os monges alemães Heinrich Kramer e James Sprenger (1486/2016) publicaram Malleus maleficarum (O martelo das feiticeiras), a crença em bruxas estava disseminada na população. Trata-se de um manual dedicado à prática da inquisição de mulheres possuídas pelo demônio e cujo comportamento fugia à compreensão e à razão. Esse demônio era completamente enganador, capaz de simular os mais diversos tipos de doenças e entrar no corpo das mulheres para possuí-las. Os monges alemães definiam como heréticas todas as pessoas que desacreditassem em bruxaria. Havia, inclusive, um roteiro bem definido para reconhecer uma bruxa, a qual, mesmo sendo ré confessa, não escapava dos suplícios determinados pela Igreja antes de serem queimadas na fogueira. Quase cem anos depois, o médico francês Jean Wier (1885) escreveu o tratado Histoires, disputes et discours des illusions et impostures des diables (Histórias, disputas e discursos das ilusões e imposturas dos diabos), afirmando que nem todas as mulheres que se comportavam como bruxas eram possuídas. Algumas delas poderiam ser doentes mentais e deveriam ser examinadas pelos médicos antes de serem condenadas à fogueira, sob a acusação de bruxaria. Os teólogos viram nele a marca do demônio e por pouco o autor não conseguia evitar as perseguições, se não graças a proteções da nobreza. Durante aproximadamente dois séculos, a caça às bruxas fez inúmeras vítimas, apesar da opinião contrária dos médicos, constituindo-se num erro para aquela época (COSTA, 1994; ROUDINESCO; PLON, 1998).

Foi necessário esperarmos a história da medicina psiquiátrica e da psicanálise se encontrarem para definir todos os fenômenos considerados fantásticos como pertencentes a um tipo de adoecimento psíquico: a histeria. Com o advento da histeria e o enclausuramento de inúmeras mulheres no Salpêtrière, a crença em bruxas fora substituída por outra.

De acordo com Didi-Huberman (2015), o hospital Salpêtrière, em Paris, foi uma espécie de inferno feminino, uma cidade dolorosa que encarcerou mais de quatro mil mulheres consideradas incuráveis ou loucas de acordo com o conhecimento médico vitoriano. Foi lá que muitas mulheres viveram um pesadelo sem igual na belle époque, na segunda metade do século XIX, cuja iconografia deixada de legado para a posteridade não deixou mentir o que aconteceu naquele hospital. Este era conhecido como "a meca do encarceramento", um dos maiores asilos da França, contendo 4383 mulheres internas no ano de 1873. Lá viviam mulheres devassas, convulsivas, criminosas, portadoras de doenças venéreas, grávidas, indigentes, velhas, vadias, mendigas, caducas, epilépticas, aleijadas, disformes, incorrigíveis e loucas. Era o grande centro de óbitos femininos, com 254 mortes no ano de 1862 e com um índice de cura de apenas 9,72%, dentre as quais, contabilizavam-se causas físicas - que iam desde pancadas e ferimentos, decorrentes ou não do tratamento - a causas morais.

Atrás dessas muralhas vive, fervilha e se arrasta, ao mesmo tempo, toda uma população especial: pessoas idosas, mulheres pobres, repousantes que esperam a morte nos bancos, dementes que berram seu furor ou choram sua tristeza no pátio das agitadas ou na solidão das celas (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 35)1.

Nesta época, a histeria ainda não tinha chegado ao pátio dos massacres nem se tornado a estrela principal no palco do Salpêtrière. Foi apenas quando um conhecido médico desceu aos infernos dos lugares mais recônditos daquele hospital que a histeria passou a se tornar mais conhecida no meio médico-psiquiátrico. A partir da pesquisa no acompanhamento de aproximadamente cinco mil mulheres consideradas histéricas, Charcot (1882) publicou Physiologie pathologique: sur les divers états nerveux déterminés par l'hypnotisation chez les hystériques (Fisiologia patológica: sobre as diversas condições nervosas determinadas pela hipnose nas histéricas), no qual defendia o uso científico da hipnose para os fenômenos histéricos, a doença que dominava o cenário médico e psiquiátrico naquele momento. Como neurologista e professor de anatomia e patologia da Faculdade de Medicina de Paris, Charcot não queria tratar nem curar aquelas mulheres, ele só queria demonstrar, pelo método científico, como a hipnose era capaz de reproduzir aqueles sintomas, vendo o Salpêtrière como um museu para um arqueólogo: "um museu patológico vivo, com seu acervo antigo e seu novo acervo" (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 37). Foi assim que ele inscreveu a histeria no quadro das perturbações fisiológicas do sistema nervoso, marcando não só a história da medicina como também a história da psiquiatria, da loucura e da psicanálise.

Em 1886, Freud, então um jovem médico, retorna da França após uma temporada com seu mestre. Encontra em Joseph Breuer, um amigo e também mentor, passando a se utilizar do tratamento hipnótico no adoecimento psíquico da sintomatologia histérica; porém, eles aprenderam logo que o método hipnótico não era tão eficiente em diluir os sintomas daquelas pacientes, fazendo com que passassem a remontar não à história da sua doença, mas também à pré-história psíquica dos sintomas, a fim de poder localizar o evento que provocou o trauma e consequentemente eliminá-lo. No final do século XIX, foi Freud quem estabeleceu uma clínica das neuroses e foi a histeria quem lhe forneceu grande parte de sua clientela, direcionando seus estudos e publicações.

Em 1892, já era possível antever a influência de Breuer nos estudos de Freud até a publicação, no ano seguinte, dos famosos Estudos sobre a histeria (FREUD; BREUER, 1893-1895/1996). Mas é a comunicação preliminar que inaugura os estudos pré-psicanalíticos bem como o relato dos primeiros casos clínicos apresentados por Breuer e Freud. Nesses textos, o que observamos é a tentativa de dois médicos buscarem, por meio da palavra, o santo graal para o fenômeno da histeria.

Freud e Breuer trouxeram a público, o tratamento de cinco mulheres: Srta. Anna O; Sra. Emmy von N.; Miss Lucy; Katharina e Srta. Elisabeth von R. Todas elas tinham queixas e sintomatologias histéricas díspares: profusão de comunicação linguística, cefaleia, perturbações da visão, paresias de parte da musculatura do corpo, tonturas, vertigens, cegueira, anestesias de partes do corpo, sensação de sufocamento, mudez, gagueira, convulsões, fobias, perda da memória, recurso à fantasia e à teatralidade, entre outros sintomas (FREUD; BREUER, 1893-1895/1996). Mas o que chamou a atenção em todos, era a relação que os médicos encontraram com a sexualidade e o conflito oriundo desta repressão da sexualidade, além da impossibilidade de realização dos desejos e sua consequente repressão.

Com essas mulheres Freud e Breuer vão descobrir os mecanismos de defesa, especificamente o recalcamento e a censura, constituindo a trama sexual infantil e edipiana no epicentro do adoecimento psíquico da histeria. Antes do abandono dos casos por parte de Breuer, eles ainda irão descobrir que, para tratá-las, deveriam ficar mais em reserva e deixá-las falar livremente, descobrindo o método catártico, a ab-reação, e por fim o método associativo. Nascia a terapêutica para o tratamento da neurose histérica e um conjunto de teorias que foram expostas em palestras e publicações até o final do século XIX (FREUD, 1996a; 1996b; 1996c; 1996d; 1996e; 1996f; 1996g; 1996h)2.

Com efeito, conforme afirma Costa (1994), o fenômeno da bruxaria foi a prova da superstição do imaginário social da época, que levou milhares de mulheres às suplicias da ignorância, do desconhecimento, do recalque e da realidade sexual do inconsciente, uma vez que toda época produz crenças sobre a natureza do bem e do mal, do sujeito e do mundo. Na transição do século XIX para o século XX, o diagnóstico médico-psiquiátrico sobre o adoecimento psíquico histérico emergiu nos consultórios, chamando a atenção para as diversas manifestações no teatro do corpo de homens e mulheres, fazendo com que, sem a crença em bruxaria e feitiçaria, não havia mulheres que se sentissem, agissem, se comportassem, se reconhecessem e fossem reconhecidas como bruxas ou feiticeiras.

Na última década do século XIX, no hospital Salpêtrière e a partir dos casos clínicos atendidos por Charcot, Freud e Breuer, se constituirá prova mais do que definitiva de que a histeria existia e fora incluída no rol dos adoecimentos psíquicos neuróticos e com etiologia bastante definida. Isto produziu um novo olhar sobre a feminilidade e a sexualidade feminina, na medida em que os sofrimentos psíquicos das burguesas ricas da sociedade vienense puderam encontrar um lugar de escuta e de sigilo médico absoluto, diferente das misérias mentais mostradas em aulas públicas por Charcot, no Salpêtrière.

Portanto, a histeria foi uma doença que emergiu na transição entre dois séculos, fazendo com que o corpo dos europeus estremecesse diante da rebelião sexual em curso, apontando o seu desejo diante de uma sexualidade ameaçada, reprimida e recalcada, e para a qual a psicanálise precisava transformar os desejos inconscientes em desejos conscientes.

Se é verdade que toda época produz a sua crença, talvez seja possível redescrever a etiologia da histeria sob outro ponto de vista, sem os alicerces da bruxa, da feiticeira, do demônio ou da repressão da sexualidade e do conflito edípico, ainda que possamos mantê-la incluída na classificação dos distúrbios psíquicos da psicanálise. Vejamos, a partir de então, qual seria a contribuição da teoria das relações objetais e do desenvolvimento emocional primitivo para o fenômeno da histeria.

 

A histeria e o desenvolvimento emocional primitivo

A certa altura do seu livro póstumo, Natureza humana, Winnicott (1990a, p. 33) estabelece os critérios para analisar a saúde e os distúrbios psíquicos a partir da interação entre a psique e o soma. Para o autor, as doenças que acometem o corpo são compreendidas a partir de cinco características: doenças hereditárias (que podem ser evidenciadas após o parto ou ao longo da vida); doenças congênitas (aquelas que podem ser ocasionadas por problemas durante o parto); deficiências oriundas da desnutrição ou excreção; doenças provocadas por acidentes; infecções e outras que ainda não foram compreendidas (câncer ou determinadas doenças infecciosas). Na parte dedicada à psique, ele enfatiza que essas doenças podem ser provocadas por distúrbios no desenvolvimento emocional, classificando-as entre neurose e psicose.

As psicoses, diz o autor, são doenças provocadas no primeiro ano de vida, antes de a criança se tornar uma pessoa total. As neuroses, por outro lado, são distúrbios que começam a partir do momento em que a criança passa a se constituir como uma unidade e no interior das relações interpessoais, por volta dos 2 a 5 anos de idade, com um self, um mundo interno e um Eu em oposição ao Não-Eu. Na mesma obra ele mostra, por meio de um quadro esquemático, que os estados clínicos ocorridos na neurose são defesas contra ansiedades, fobias, histerias de conversão, neurose obsessiva, entre outras, surgidas a partir da vida instintiva. E afirma: "acabaremos por descobrir que precisamos desenvolver uma nova classificação, e quando chegarmos ao final, não ficaremos satisfeitos" (WINNICOTT, 1990a, p. 35), acrescentando a seguinte nota de rodapé (nota de revisão): "esboçar uma retomada da classificação sob nova forma: dependência + família e provisão ambiental (social); enfrentar/não enfrentar" (WINNICOTT, 1990a, p. 35)3.

Ora, o autor aqui está se referindo ao período em que a criança está vivendo uma relação bipessoal durante a fase da dependência absoluta. Compreendemos que os distúrbios referentes a pessoas totais não podem acometer a criança unicamente no período entre 2 e 5 anos de idade, uma vez que a fase de dependência absoluta precisa ser levada em consideração. Quaisquer que sejam as formas de classificação de adoecimento neurótico, o autor não estava satisfeito com o que propunha, e se contradiz em vários outros momentos de sua obra. Enfatiza, por exemplo, que o desenvolvimento psíquico saudável só é possível por meio de um ambiente que acolha as necessidades do bebê, e que o seu trabalho se assemelha ao de Freud quando objetiva trazer para o consciente o desejo inconsciente reprimido, cujo trabalho é feito por meio da análise da neurose de transferência. Diz o autor:

abusar da neurose de transferência seria como seduzir sexualmente uma criança pequena, pois esta não está em condições de fazer verdadeiras escolhas de objeto, não estando livre de um alto grau de subjetividade em suas percepções (WINNICOTT, 1990a, p. 79, grifo nosso).

Com efeito, uma criança seduzida na primeira infância, dificilmente teria condições de aceitar a confiança no analista quando adulta, uma vez que na análise do neurótico,

o analista deve suportar ideias e sentimentos (amor, ódio, ambivalência, etc.) e para compreender esses processos, deve demonstrar por meio de uma expressão adequada através da linguagem (a interpretação daquilo que o paciente está justamente em condições de admitir conscientemente) (WINNICOTT, 1990a, p. 80, grifo nosso).

A ideia do autor é trabalhar com interpretações que "'embalem o paciente com palavras", produzam "'sensação de bem-estar' e 'segurança física', ou dito de outro modo, "o analista embala o paciente fisicamente no passado, ou seja, na época em que havia necessidade de estar no colo, quando o amor significava adaptação e cuidados físicos" (WINNICOTT, 1990a, p. 80, grifo nosso).

Notem que a compreensão da interpretação do manejo clínico dos estados neuróticos é, para Winnicott, completamente diferente da forma como defende a psicanálise freudiana. Não se trata mais de transformar o inconsciente em consciente, de interpretar a sexualidade infantil e trazê-la para a atualidade, ou ainda traduzir as imagens oníricas em metáforas simbólicas com as quais o paciente possa se identificar. O trabalho com pacientes neuróticos, para Winnicott, além da associação livre e da interpretação, é fazer "regressão à dependência", ou seja, pôr o paciente no colo através de palavras, fornecer-lhe a sensação de bem-estar e segurança física e embalá-lo como se ele fosse um bebê, na época quando a palavra amor tinha um outro significado - ao invés do apaixonamento, adaptação e cuidados físicos.

Essa afirmação pode ser exemplificada em suas correspondências. Em uma carta para Robert F. Rodman, seu biógrafo, datada de 10 de janeiro de 1969, Winnicott se refere à técnica psicanalítica, afirmando a importância do diagnóstico4 para o tratamento de pacientes neuróticos, psicóticos ou limítrofes (borderline), mas divergindo sobre a natureza dos sintomas em pacientes sintomatologicamente "puros":

A diferença é que o neurótico, se é que existe algo como um indivíduo puramente neurótico, é não apenas capaz de lidar com uma análise em termos de verbalização, mas também que ele ou ela se fia em todas as coisas que estão sendo trabalhadas na análise em um caso limítrofe, a maior parte das quais é pré-verbal (WINNICOTT, 1990b, p. 157, grifo nosso).

Ou seja, no que compete ao seu trabalho, ele jamais pensou em tratar um caso de neurose pela psicanálise freudiana, uma vez que não acreditava que existisse um sujeito que fosse "puramente neurótico", como é o caso da histeria, da neurose obsessiva ou das compulsões, mas que trouxesse no curso de uma análise vivências primitivas durante a fase da dependência absoluta as quais precisavam ser manejadas pelo analista de modo semelhante aos casos mais graves, para além (ou aquém) da verbalização e da interpretação. Foi o que ficou evidente no caso da psicanalista Margaret Little tratada por Winnicott durante anos. Primeiro, ele precisou trabalhar a sintomatologia borderline através da regressão a fases anteriores ao que foi vivido durante a fase edípica, embalando-a no divã, segurando-lhe as mãos ao longo de toda a sessão, ou aumentando o tempo da sessão de uma hora e meia para até três horas de duração, além de preparar uma ala hospitalar que pudesse recebê-la e protegê-la dela mesma durante suas férias. Após oito anos tratando esse quadro clínico, ele pôde propor, anos mais tarde, uma análise do que a própria Margaret Little chamou de "pessoa total", referindo-se à sua fase edípica, mas sempre tendo em mente que os núcleos psicóticos e esquizoides estavam lá presentes na paciente.

Em outro momento da sua obra, Winnicott afirma que ao tratar de algumas depressões reativas, como no caso dos pacientes histéricos, não é incomum que encontremos eventualmente aspectos psicóticos à medida que a análise progride (WINNICOTT, 1983b), principalmente durante a adolescência. Quando a histeria emerge na adolescência, há sempre um núcleo psicótico oculto, que traz problemas que nunca se manifestam claramente como doença psicótica, mas como depressões, oscilações maníaco-depressivas, euforia, personalidades tipo falso self e alguns grupos de distúrbios esquizoides (WINNICOTT, 1983b)5.

Winnicott nunca se deteve atentamente à etiologia da histeria6, mas trouxe algumas contribuições, ao ressaltar as falhas do cuidado ambiental no que se refere à produção das ansiedades. A relação mãe-bebê não deriva de experiências instintivas ou da relação objetal que emerge dessas experiências. As ansiedades são anteriores às experiências instintivas, podendo, na maioria das vezes, ocorrer ao mesmo tempo, paralelamente a elas e misturando-se a elas (WINNICOTT, 1978). Isto diz respeito ao modo como o ambiente humano segura o bebê (holds a baby). As ansiedades são oriundas, portanto, de falhas no cuidado (holding) e no manejo (handling) do bebê, ao não fornecer apoio vivo e contínuo como parte de uma maternagem suficientemente boa. Para o autor, há certos tipos de ansiedades que ocorrem nos primórdios da infância e são impedidos por um cuidado ambiental deficitário, muitas vezes por conta da ansiedade materna ou algum outro distúrbio psíquico, "descritos pela palavra loucura, se encontrados no adulto" (WINNICOTT, 1978, p. 207).

As falhas no cuidado produzem o estado de não integração de determinadas vivências por parte do bebê durante os primeiros meses de vida, mas não são falhas no cuidado suficientes para produzir agonias impensáveis ou mortes fenomênicas, típicas dos distúrbios psíquicos graves7. Poderíamos dizer que são traumas cumulativos que são vividos ao logo do primeiro ano de vida do bebê, e que prosseguem até chegar às relações triádicas, com pessoas totais. Ou seja, são pequenas fendas que vão se constituindo durante os cuidados maternos ao longo do desenvolvimento da criança, desde a infância até a adolescência. A mãe falha no seu papel de escudo protetor, de ego auxiliar e de cuidados em atender as necessidades do infante, e são justamente essas microfissuras, essas fendas que vão se acumulando na superfície do cuidado e que não irão provocar um trauma pontual, com cisões no núcleo do Eu ou do self, mas sim ao longo de todo o desenvolvimento da criança (KHAN, 1977b).

Para Winnicott (1978), esses traumas cumulativos vão produzir três tipos de ansiedades: a) a não integração; b) a falta de relacionamento de psique e soma e c) um centro de gravidade da consciência dos cuidados transferidos do indivíduo para a técnica do cuidado. Se é suficientemente boa, a técnica de cuidado materno neutraliza as perseguições externas e impede o surgimento de sentimentos de desintegração e a perda do contato entre a psique e o soma. É aqui que Winnicott insere a sua contribuição sobre a histeria, afirmando que o termo neurose cobre mais ou menos a mesma área.

Para ele, é normal o bebê sentir ansiedade mediante as vivências que terá com o ambiente humano, sobretudo se há falhas na técnica de cuidado. A dor e a ansiedade surgem em função do fracasso ambiental materno. A consequência para o bebê é a necessidade de ele constantemente testar o ambiente, a capacidade de sentir ansiedade e sentir alívio temporário sempre que a ansiedade for sentida e desaparecer. Trata-se da "análise da loucura da neurose", e não da psicose, ocorrida durante a primeira infância do paciente, como ele afirmará:

A análise do histérico (terminologia popular) é a análise da loucura que é temida mas que não é atingida sem o fornecimento de um novo exemplo de cuidado materno; um cuidado materno, na análise, melhor do que aquele fornecido no início da infância do paciente. Mas, por favor, notem bem que a análise pode e deve chegar à loucura, apesar de o diagnóstico permanecer sendo neurose e não psicose (WINNICOTT, 1978, p. 209).

Assim, o ambiente falha por não fornecer holding e handling suficientemente bons ao bebê, e este precisa ter a sensação proprioceptiva em torno da sua membrana limitante, a pele, por meio das mãos humanas. Logo, diz Winnicott, "na histeria, pode existir uma situação em que a pele não está incluída na personalidade, tornando-se até mesmo destituída de sangue e de sentido para o paciente" (WINNICOTT, 1990a, p. 143). Ou seja, houve algo durante o desenvolvimento emocional que fez com que o paciente, quando era um bebê, nem vivesse agonias impensáveis, nem tivesse totalmente as suas necessidades proprioceptivas acolhidas pela mãe, uma vez que a pele é de extrema importância ao ser estimulada para o desenvolvimento saudável do bebê. A mãe falha inconscientemente ao manejar (handling) o corpo do bebê8.

Ela precisa tocar o corpo e a pele do bebê quando lhe dá banho, amamenta, limpa e também brinca, produzindo nele o sentido de habitar o próprio corpo - alojamento da psique no soma. No capítulo dedicado à ansiedade hipocondríaca em Natureza humana, Winnicott (1990a) retoma as referências à membrana limitante, com um interior e um exterior, usadas para se referir à constituição do self do bebê, e com suas preocupações com o que ocorre no mundo externo e principalmente no mundo interno em termos de psique-soma. Diz o psicanalista inglês que é justamente neste momento que a doença é idêntica à dúvida sobre si próprio, um estado de equilíbrio entre as forças que operam entre o "bem" e o "mal". Não nos esqueçamos que durante um período da vida, o bebê tem de lidar com poderosas forças com as quais tem de se haver durante o período marcado como concernimento (concern) ou posição depressiva, nas quais o bebê testa a capacidade de usar a mãe como um objeto, lidando com objetos bons e maus, até alcançar a culpa e a reparação. Tudo isso diz respeito ao indivíduo saudável e sua capacidade de viver a culpa, a única culpa verdadeira numa relação bipessoal.

A saúde do corpo é traduzida em termos de fantasias e seus fenômenos são sentidos em termos corporais, ou seja, durante o momento em que o bebê é embalado pelo ambiente humano, alimentado, limpo, no momento em que há momentos lúdicos e no qual ocorre a integração de todas essas experiências por meio da elaboração imaginativa das funções e elementos somáticos. Para Winnicott, no estudo da histeria de conversão, também deveríamos levar em consideração a mistura original que o bebê faz entre as vivências do seu próprio corpo e os sentimentos e ideias a respeito desse corpo (WINNICOTT, 1990a).

As mãos da mãe devem estar vivas nesse momento e são imprescindíveis para o desenvolvimento da psique no corpo do bebê. Estamos chamando a atenção de que o toque (handling) produz não só o alojamento da psique no corpo, como também vivifica uma sexualidade integrada no corpo do bebê, conforme apontaram Lejarraga (2015) e Elise (2019).

Para Lejarraga, o trabalho analítico não pode ser reduzido unicamente à emergência de fantasias sexuais e à interpretação do recalcado, pois as fantasias sexuais infantis não constituem a totalidade do universo imaginativo da criança, negligenciando o vínculo inicial entre a mãe e o bebê. O setting, segundo Lejarraga, é aquele que pode reproduzir as condições ambientais primitivas que fizeram com que as falhas ambientais acontecessem na história subjetiva do bebê, permitindo que o paciente possa regredir e retomar seu processo do desenvolvimento emocional. Portanto, é possível pensar que na história do paciente histérico, possa ter havido falhas ambientais muito precoces que não ameaçaram a integridade do self do bebê, não viveram traumas psíquicos graves, nem foram atravessados pelos conflitos vividos unicamente durante a travessia do complexo edípico. Para Elise, a marca do cuidado implica uma erotização do corpo da criança que pode ser vivida como uma dança entre a mãe e o bebê cujas falhas no cuidado podem se referir muito bem a falhas no curso do desenvolvimento sexual do bebê. Esta mesma dança erótica pode muito bem ser vivida entre o paciente e o analista, mas notem que esta dança diz respeito ao modo como o analista vivifica o cuidado por meio da sua presença empática com seu paciente.

Sendo assim, questionamo-nos: quais falhas do ambiente acometeram o paciente histérico? Para responder a esta pergunta, iremos buscar nas teses de Masud Khan um complemento à etiologia da histeria em Winnicott, a partir da teoria do desenvolvimento emocional primitivo.

 

A histeria no pensamento clínico de Masud Khan

Masud Khan foi analisando de Winnicott e desenvolveu parte das suas ideias a partir do legado teórico do seu mestre inglês. Para ele a histeria corresponde às falhas do ambiente humano nos primeiros anos de vida, acrescido de um desenvolvimento sexual precoce, cujos afetos e angústias vividos nesse período do desenvolvimento se originam, mais uma vez, devido a uma falta do holding materno, ameaçando a coesão do eu-corpo (body-ego), e que são intensificados pela exploração dos aparelhos sexuais da criança. É por esta razão, afirma o autor, que há dissociação estabelecida entre a experiência sexual e o uso criativo das capacidades do Eu (ego-capacities) (KHAN, 1989).

Segundo o autor, não se trata de abuso sexual, no sentido ferencziano do termo, ou seja, uma intenção consciente do ambiente humano que tem a tarefa de cuidar do bebê, acrescido de um descrédito no discurso da criança. Trata-se de formas inconscientes de se relacionar com o bebê por meio de falhas do cuidado que vão marcar as sintomatologias histéricas no sujeito adulto. Enquanto Freud via em suas teorias sobre o trauma uma sedução real ou fantasias de abuso, Khan defende a existência de um trauma real na etiologia da histeria, mas não de natureza sexual, mas devido ao fracasso dos cuidados ambientais, nos quais o ambiente foi incapaz de prover as necessidades do eu (ego-needs) da criança, produzindo um falso-self. A constituição do falso-self só ocorre na presença das falhas ambientais, quando a criança não é acolhida em suas necessidades ou é invadida pelo desejo da mãe, produzindo pequenos traumas no interior do self do bebê. Por outro lado, há uma tentativa de a criança se curar deste traumatismo através da exploração sexual das experiências do eu-corpo (body-ego) que vai ser revivido quando chegar na puberdade e na vida adulta, e cujo objetivo analítico será restaurar, por meio tanto de associações livres, quanto da regressão à dependência, as falhas das relações objetais primitivas vividas no primeiro ano de vida. Os motivos pelos quais há rancor (grudge), mágoa, frustração, desconfiança e, consequentemente, um ato agressivo por parte do histérico, deve-se a uma memória corporal de que o objeto de cuidado ambiental não foi suficientemente bom e não atendeu às necessidades do eu (ego-needs), pois como tão bem lembrou seu mentor, "amar é relacionar-se objetalmente. Trata-se de algo que pode desenvolver-se em comer e em ideias de incorporar aquilo que é valorizado" (WINNICOTT, 1994c, p. 130). Aqui, Winnicott se refere às fantasias de incorporação do objeto vivido pelo bebê durante a sua alimentação.

Na vida adulta, diz Khan, o histérico vai vivenciar uma ansiedade/angústia relacionada à sua sexualidade, empregando os aparelhos sexuais do eu-corpo (body-ego) ao invés de modos saudáveis da sua afetividade e das funções do eu (ego-functions). Por isso, o histérico é um sujeito que vive incessantemente um rancor perpétuo, pois algo foi mantido fora do seu alcance, não reconhecendo em si mesmo os seus desejos. Ele vai hipersexualizar a transferência e exige que algo restaure, na sua corporeidade, as necessidades do eu que ficaram perdidas, mas inscritas em sua corporeidade através dos registros do psique-soma e da memória corporal.

O que era uma incapacidade do eu-emergente (emergent ego) na experiência infantil, que não recebeu os cuidados adequados do ambiente humano, na vida adulta, ela foi projetada e experimentada como uma recusa dos outros em reconhecer seus desejos (wishes) (em grande parte sexuais) e satisfazê-los. Todo histérico, homem ou mulher, acredita devotadamente que se seus anseios e desejos sexuais fossem gratificados, sua doença estaria curada. Eles atribuem sua incapacidade de atingir essa gratificação a qualquer parceiro, devido à impossibilidade de eles os aceitarem totalmente e os amar (KHAN, 1989, p. 52, acréscimos nossos).

O que nos chama a atenção é o uso que Masud Khan faz da palavra "desejos" (wishes) e não "necessidades" (needs), uma vez que a criança, no primeiro ano de vida, ainda não tem condições de ter "desejos", mas sim necessidades que são acolhidas ou não pelo ambiente humano. Ora, para o autor, isto tem a ver com as primeiras experiências de cuidado, uma vez que o objeto de gratificação do bebê não facilitou totalmente o seu desenvolvimento, nem acolheu suas necessidades como deveria. As necessidades corporais (body-needs) foram acolhidas, mas as necessidades do eu (ego-needs) não foram reconhecidas nem facilitadas pelo ambiente, restando um rancor (grudge) primitivo que será projetado, no futuro, nas relações que desenvolverá com um outro sujeito adulto, uma vez que esse novo sujeito não conseguirá distinguir os desejos do isso (id-wishes) e as necessidades do eu (ego-needs)9. Segundo Khan, o sistema de desejos pode ser abordado pelos processos intrapsíquicos (deslocamento, projeção, recalcamento), enquanto as necessidades do eu exigem o apoio dos cuidados ambientais para que sejam realizadas.

A histeria é um distúrbio psíquico que só vai encontrar sua formação sintomática entre a puberdade e a adolescência. Só na puberdade é que os desejos sexuais começam a fazer parte do repertório do sujeito histérico, mas eles são incapazes de descobrir a sexualidade genital como algo novo que oferece alguma possibilidade de experienciar o eu-corpo (body-ego), uma vez que houve uma fuga para a sexualidade genital prematura para enfrentar a imaturidade do eu. Esta sexualidade igualmente imatura está sobrecarregada de impulsos e fantasias. Ele vive como se fosse vítima das forças instintivas (instinctual forces) e preconceitos morais (moral prejudices), sentidos como se não fossem sua criação. Daí, portanto, os histéricos permanecerem passivos, esperando alguém para "agir" e realizar suas fantasias sexuais recalcadas e suas funções egoicas (ego-functions) (KHAN, 1989).

Enfim, a histeria para Masud Khan não é uma doença no sentido de um distúrbio psíquico grave, mas uma técnica que consiste em permanecer ausente de si, em branco, cujos sintomas consistem em substituições - o desenvolvimento emocional primitivo pelo desenvolvimento sexual precoce pela integração do eu, e o medo da rendição psíquica pelo funcionamento psíquico criativo ou uma afetividade empobrecida. Isto se refere, no entender de Masud Khan, à dificuldade de fazer uso, pelo histérico, do processo analítico com vistas ao conhecimento de si e à personalização. A criança logo cedo vai tomar conhecimento do humor subjetivo da mãe, que é posto no lugar da função de cuidados, fazendo com que ela sexualize de modo regressivo uma relação objetal parcial (gratificação pelo seio e seus substitutos) para recusar esta emotividade da mãe. Trata-se de uma relação de muita proximidade, invasiva, impedindo a criança de enfrentá-la. É esta ameaça de invasão do ambiente humano que desencadeará uma busca infinita por um objeto para se relacionar e que seja fonte de excitação, por um lado, e sua recusa em obter desta relação sua própria gratificação, por outro. "O mundo do histérico é um cemitério de recusa" (KHAN, 1989, p. 59)10.

O histérico tem a capacidade de criar, manifestar e explorar os seus sintomas, impedindo-se de utilizar o funcionamento mental psíquico para se relacionar afetivamente com um outro objeto. "O histérico obriga o ambiente a agir sobre ele, ou para ele, mas não se torna acessível à mutualidade de um diálogo psíquico e a uma partilha (KHAN, 1989, p. 57). Ele inevitavelmente vive uma vida de rancor, queixas e mágoas, incapaz de satisfazer e se gratificar com as relações que tece ao longo da vida, porque acredita que o seu objeto de amor interpreta mal seus gestos como expressão de seus desejos e desejos sexuais, ao invés de uma linguagem que comunica a expressão do que é vivido no seu corpo, simbólico e real, quando necessitava de cuidado e proteção - funções maternas e paternas. Esse tipo de falha dos cuidados do ambiente é o que predispõe o histérico a ser tão promissor quanto recalcitrante, exigindo do analista sua capacidade de acolher seu pedido, suas necessidades e seu desejo, ao mesmo tempo que se dispõe a dar e reparar o que foi vivido na primeira infância como falha do ambiente.

 

Considerações Finais

Ao longo deste trabalho vimos como a histeria atravessou a história da medicina, psiquiatria e psicanálise, construindo um saber sobre o desejo do sujeito em sofrimento. Muito desse sofrimento se deveu à racionalidade naturalista, que via nos comportamentos de mulheres da Idade Média o significante da bruxaria e, no final do século XIX, a representação da repressão de uma sexualidade. Freud, ao constituir sua clínica, se deparou com a sexualidade infantil, os desejos incestuosos e parricidas durante o conflito edípico, os mecanismos de defesa e a técnica psicanalítica para tratar do sujeito neurótico.

Winnicott, por seu turno, com a teoria do desenvolvimento emocional, viu nas falhas do cuidado do ambiente com o bebê a etiologia da maior parte dos distúrbios psíquicos graves, apesar de ter dado pouca importância ao distúrbio psíquico neurótico. Afirmou também que acreditava que o distúrbio psiconeurótico se assemelhava às concepções freudianas, mas encontrou nas ansiedades, no conflito primitivo entre o amor e o ódio e, por fim, na ambivalência da relação mãe-bebê, uma etiologia da histeria.

Em 15 de março de 1944, ao escrever para o Simpósio sobre Terapia de Choque, realizado na Sociedade Psicanalítica Britânica, ele falou sobre uma das marcas da histeria: a ambivalência. Alguns histéricos esperam que as pessoas expressem ambivalência para com eles - mais uma vez, aqui estão expressos o conflito entre o amor e o ódio vivido na fase da dependência absoluta e na relação mãe-bebê, durante a fase do concernimento (posição depressiva). Outros histéricos, diz o autor, esperam um ataque sexual e talvez tendam a pensar no tratamento de choque, uma vez que as suas "fantasias são sempre piores do que a realidade" (WINNICOTT, 1994d, p. 405).

Não é à toa que uma de suas pacientes, anos depois, viesse a dar de encontro com ambivalência dos seus sentimentos durante a análise e lhe fizesse um pedido: "Quero que você me ajude a descobrir a minha própria maldade". Esta paciente teve um meio ambiente terrível desde o início e foram necessários anos de análise para que ela conhecesse a maldade dentro de si mesma em um meio ambiente saudável e suficientemente bom. O que estava implícito no processo analítico desta paciente era o senso de culpa não integrado nas vivências com o ambiente. Ela não conseguia integrar a ambivalência - amor x ódio, nem conciliar tudo o que chamamos de saudável, e para o psicanalista inglês, "a vida só é possível com base na conciliação" (WINNICOTT, 1994c, p. 131). Winnicott comenta que a paciente preferia se sentir esmagada pela culpa, traída de si própria e ficar doente pelo resto da vida a aceitar a conciliação entre o que viveu com seu ambiente de cuidado, produzindo dificuldades sexuais com todo e qualquer homem que viesse a tentar ter um relacionamento com ela (WINNICOTT, 1994c, p. 131). A histeria, conforme sabemos, tem a marca da ambivalência e da incompletude.

Este é o modo privilegiado das reminiscências freudianas dos histéricos, encontradas na teoria das relações objetais e no desenvolvimento emocional winnicottiano, conforme demonstrou Masud Khan. As lembranças, ou melhor, as memórias corporais que o histérico guarda de sua primeira infância, são lembranças somáticas relativas aos cuidados maternos, mas não servem nem à elaboração psíquica, nem à verbalização unicamente. As interpretações verbais dos analistas, para o histérico, podem ser vividas tanto como ataques quanto como sedução. Há a necessidade de modificarmos o manejo da técnica, sem abrir mão da interpretação e da associação livre e começarmos a possibilitar outras formas de manejo e escuta.

Trata-se, então, de aliarmos a matriz freudo-kleiniana na compreensão e no manejo do sofrimento psíquico à matriz ferencziana (FIGUEIREDO; COELHO JÚNIOR, 2018; FIGUEIREDO, 2018; COELHO JÚNIOR, 2018). A primeira está calcada no modelo da matriz freudo-kleiniana, no atendimento de sujeitos com distúrbios psíquicos neuróticos, a partir do recurso da desativação das defesas mediante o sinal da angústia, e cujo modelo remete-se à associação livre, à atenção flutuante e à interpretação, constituindo a regra de ouro da psicanálise (FIGUEIREDO, 2018). A segunda está calcada não só nos ensinamentos de modificação da técnica de Sándor Ferenczi, mas também nas propostas de manejo clínico encontradas na regressão em Michael Balint e Donald W. Winnicott, acrescido ao uso do analista pelo analisando, acolhimento da agressividade sem revidar e no atendimento das necessidades físicas e emocionais do paciente (COELHO JR., 2018). É possível, com isso, tratar a criança no adulto e reviver no setting as falhas do ambiente, podendo ou não fazer uso da verbalização. Afinal, Winnicott já havia advertido que ele sempre estava disponível para descobrir uma clínica mais viva e em constante mudança ao afirmar que:

Quando falo em regressão e problemas infantis bem iniciais, descubro que as pessoas com facilidade acham que sou incapaz de me ocupar de um caso corriqueiro de análise envolvendo pulsões e o trabalho corriqueiro da situação de transferência, os quais, na verdade, levo em conta o tempo todo, sabendo que não há mérito algum em descobrir coisas novas e esquecer as antigas (WINNICOTT, 1990b, p. 33 - Carta 33 para Hannah Ries).

Nesse sentido, podemos dizer que ele nunca deixou de levar em conta as neuroses e a histeria em sua clínica e, quando o fez, jamais foi totalmente um freudiano clássico no manejo clínico, mas via a possibilidade de encontrar dentro do distúrbio psíquico neurótico, os núcleos de outros distúrbios psíquicos escondidos e tratáveis por meio da regressão à dependência.

 

 

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Artigo recebido em: 23/09/2020
Aprovado para publicação em: 17/06/2021

Endereço para correspondência
Sérgio Gomes
E-mail: sergiogsilva@uol.com.br
Nelson Ernesto Coelho Júnior
E-mail: ncoelho@usp.com

 

 

*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Pós-Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pelo Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**Psicanalista. Professor Doutor do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). São Paulo, SP, Brasil.
1A referência do texto é "Charcot, le consolateur" (Charcot, o consolador), de Jules Claretie, publicado em Les Annales politiques et littéraires, XXI, N. 1.056, de 1903, p. 179-180. Conforme a visão do autor, Charcot não era apenas um Rei Sol ou um César, mas um apóstolo, ou seja, aquele que "dominou o seu tempo e o consolou" (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 35).
2Sabemos que a etiologia da histeria e da própria neurose não se esgotam nos textos do final do século XIX na obra de Freud. Uma explanação sobre as descobertas freudianas acerca do adoecimento neurótico foge do escopo deste trabalho. Remetemos o leitor, portanto, a algumas das últimas formulações elaboradas por Freud na compreensão do adoecimento neurótico, no que diz respeito à perda da realidade na neurose e na psicose, a influência do mundo externo nos tipos de desencadeamento na neurose e a própria diferenciação elaborada pelo autor no tocante a esses dois adoecimentos psíquicos (FREUD, 1912/1996; 1924a/2007; 1924b/2007; 1926/1996). Em todas essas formulações, o que fica evidente é a constituição do conflito no desencadeamento das neuroses. Além disso, remetemos o leitor a algumas articulações entre Freud e Winnicott sobre a etiologia dos distúrbios psíquicos neuróticos em Gomes e Coelho Jr. (2020).
3Winnicott (1983c) já havia esboçado uma classificação do adoecimento psíquico, dividindo-o entre neurose e psicose a partir das ideias de Freud. Segundo o autor, Freud se preocupou com três aspectos da doença psiquiátrica: a) o comportamento e a relação do paciente com a realidade externa; b) a formação dos sintomas como uma comunicação inconsciente e c) a etiologia dos distúrbios psíquicos que, segundo o psicanalista inglês, ele havia transformado na ideia do processo de desenvolvimento. Com a continuidade dos estudos psicanalíticos sobre a relação anaclítica, logo se viu que a criança passava por uma fase inicial na qual ela estava fusionada à mãe, seu ambiente humano de cuidados, que tinha como tarefa suprir as necessidades da criança em desenvolvimento. Os distúrbios psíquicos passaram a ser considerados a partir dessa matriz, principalmente no que se refere aos pacientes mais graves. No entanto, adverte Winnicott, no curso da expansão da teoria do desenvolvimento, o analista tornou-se capaz de relacionar os distúrbios da afetividade ao esquema geral da metapsicologia freudiana e da natureza da personalidade. Depois de algumas considerações sobre a etiologia das neuroses e uma certa repetição do jargão psicanalítico freudiano, ele volta a afirmar que "uma histérica pode se revelar uma esquizofrênica subjacente, uma pessoa esquizóide pode vir a ser um membro sadio de um grupo familiar doente, um obsessivo pode se revelar um depressivo" (p. 121). A nosologia dos distúrbios psíquicos requer um conhecimento do desenvolvimento emocional e das distorções do ambiente, e conforme foi dito acima, é possível encontrarmos pacientes neuróticos com sintomas psicóticos ou esquizoides, ou vice-versa, tudo dependerá das vivências do bebê com seu ambiente em termos de dependência. "Uma classificação em termos do ambiente requereria um conhecimento mais apurado do que aquele que existe no presente, tanto quanto sei, dos estágio de dependência. No momento acho válido usar os conceitos que expus em outros estudos da independência se originando da dependência, que por sua vez se origina de dependência dupla. Com dependência dupla quero dizer dependência que não poderia ser na ocasião apreciada mesmo inconscientemente pelo indivíduo, e por isso, não pode ser comunicada ao analista na análise do paciente" (p. 121-122, grifo nosso).
4Winnicott já havia se referido à importância do diagnóstico em outros textos como, por exemplo, O uso da palavra uso. Para ele, nos casos de tratamento muito longo, o paciente acaba fazendo uso do analista por tempo indeterminado. No entanto, adverte sobre a importância do diagnóstico uma vez que "se fôssemos melhores em diagnóstico, pouparíamos a nós mesmos e a nossos pacientes um bocado de tempo e desespero" (WINNICOTT, 1994a, p. 182).
5Essa tese também fora igualmente defendida por Fairbairn (1941) ao propor que a histeria seria uma das defesas de núcleos esquizoides vividos durante a constituição da personalidade durante as relações objetais primárias de todo bebê. De acordo com o autor, a histeria constitui um exemplo claro do emprego da técnica de rejeição especial com relação aos objetos interno e externo em termos de amor e ódio (vivência da ambivalência). Segundo o autor, o medo de perda do objeto primário não diz respeito às vivências de conflito edípicas, pelo contrário, mas às vivências de cisão em termos objetais, nos quais o bebê teme a perda do objeto porque seu amor direcionado ao objeto é mau, constituindo uma atitude libidinal idealizada.
6Quatro anos antes do seu falecimento, em janeiro de 1967, Winnicott fez uma palestra ao Clube 1952, uma sociedade de analistas britânicos que se reuniam informalmente para debater algumas de suas ideias. Ele a denominou de "D. W. W. sobre D. W. W.", na qual afirmou sobre suas contribuições à teoria das neuroses na psicanálise freudiana: "Com referência às psiconeuroses, senti que a teoria de Freud e o seu esquema em desenvolvimento para as coisas, à medida que pude vir gradualmente a aprendê-las, abrangia o tema, e, até onde sei, não fiz contribuição alguma nessa área", centrando seus estudos e aprendizagem psicanalítica na teoria Kleiniana (WINNICOTT, 1994b, p. 438). Então, é preciso compreendermos que Winnicott se apropriou muito mais do ensinamento de Melanie Klein do que do de Sigmund Freud, apesar de ter se afastado dela anos mais tarde e tomado um caminho teórico próprio.
7No texto O desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott (1945/1977) afirma haver três processos básicos pelos quais o bebê vivencia: a integração (em oposição à não integração e a sua diferenciação da desintegração), a personalização (em oposição a despersonalização) e a realização (ou apresentação dos objetos). A integração constitui a vivência de satisfação das necessidades físicas e emocionais do bebê, acolhidas pelo ambiente materno, por meio do holding e do handling suficientemente bons. Por exemplo, quando o bebê vivencia a experiência da fome, do sono ou mesmo da dor, ele experiencia uma vivência de não integração, necessitando que o ambiente lhe forneça os cuidados para que ele integre aquela experiência à sua corporeidade. Quando isso é realizado no tempo e no espaço, o bebê vivencia as experiências de integração e não integração, reunindo a mãe dos estados tranquilos com a mãe dos estados excitados, a mãe ambiente que cuida e fornece os cuidados necessários, com a mãe objeto de que ele faz uso a partir da sua instintualidade. Quando isso foge ao escopo materno, o bebê vivencia a desintegração e a despersonalização, constituído pelas agonias impensáveis e pela etiologia dos distúrbios psíquicos mais graves. A vivência de satisfação e de integração dá ao bebê a experiência de que ele tem um corpo e esse corpo é um corpo vivo; portanto, ele pode alojar a sua psique ao corpo. As vivências de insatisfação e de falhas do ambiente, produzem não só a desintegração como a despersonalização, responsáveis pelos estados agônicos e pelos traumas precoces referidos pela matriz ferencziana dos adoecimentos psíquicos.
8Bollas (2000), em seu livro Hysteria, vai afirmar que o sintoma histérico é originado pela falha materna ao rejeitar o toque (handling) dos genitais do seu bebê, seja ele menino ou menina. O bebê, por sua vez, pede por cuidados, pelo reconhecimento das suas necessidades, mas tudo o que a mãe pode lhe oferecer é a erotização inconsciente do seu corpo, sem tocá-lo. A mãe não integra o corpo físico do bebê, provocando uma dependência de algo que só fará sentido na vida adulta. O sujeito histérico adulto pede por cuidados, mas é incapaz de reconhecê-lo. O analista, por seu turno, tenta recuperar as falhas do cuidado materno por meio do divã, da "contação de histórias" e da regressão à dependência. A "contação de histórias" funciona como um cuidado do corpo do bebê por meio da palavra, ou uma conversação na fronteira do sonho. Não é nosso objetivo discutir, neste trabalho, as teses sobre a etiologia da histeria em Christopher Bollas, o que fugiria ao nosso escopo e demandaria um espaço bem maior do que este. Remetemos, portanto, o leitor às teses do autor para suas próprias conclusões.
9Foi o próprio Winnicott quem distinguiu os desejos inconscientes (id-wishes) das necessidades do eu (ego-needs).
10É digno de nota que Masud Khan teceu vários comentários sobre o papel do analista em termos transferenciais e contratransferenciais no atendimento dos pacientes neuróticos. Eu seu texto Regressão e integração no setting analítico: ensaio clínico sobre os aspectos transferênciais e contratransferenciais desses fenômenos, ele considera a necessidade que o analista possa diferenciar uma análise clássica (matriz freudo-kleiniana) de uma análise não clássica (matriz ferencziana) em termos da sensibilidade, tato e empatia analítica, ao afirmar: "Entendo, pois, por contratransferência, a sensibilidade total e consciente do analista em relação ao paciente; é mais do que um simples rapport intelectual e compreensão. É o que Balint chamou de 'o comportamento do analista na situação psicanalítica ou, como prefiro dizer, a contribuição do analista para a criação e manutenção da situação psicanalítica'" (KHAN, 1977a, p. 170). No caso da paciente do referido texto, o autor enfatizou a necessidade de ele fazer pouca interpretação verbal; pelo contrário, foi necessário que ele estivesse vivo, atento, corporificado e vitalizado, mas não para invadi-la com intervenções, interpretações ou jogos mentais. Às vezes, ele pôde ficar simplesmente em silêncio com sua atenção corporal, seguindo-se meses de regressão a aspectos primitivos da vida da paciente, desde suas recordações da infância até que as experiências mais recentes pudessem adquirir novos sentidos.

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