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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  n.27 São Paulo dez. 2008

 

Representações e relações entre estudantes no Rio de Janeiro: conversas, piadas e assistência à TV, segundo o grupo étnico autodefinido

 

Representations and relations among students in Rio de Janeiro: talks, jokes and TV audience, according the self-defined ethnic group

 

Representaciones y relaciones entre estudiantes de Rio de Janeiro: Conversas, chistes y audiencia a la TV, según el grupo étnico autodefinido

 

 

Edson A. de Souza Filho

Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutor em psicologia social pela École des Hautes Études em Sciences Sociales. Endereço para correspondência: Rua Barão de Jaguaribe, 326, apto.101 Cep 22421-000 Rio de Janeiro - RJ Telefone/fax: (021) 3205-4357 E-mail: edsouzafilho@gmail.com

 

 


RESUMO

Nosso objetivo foi observar os temas usados por estudantes para conversarem e se entreterem no ambiente escolar e fora dele. Foi adotada a teoria das representações sociais, segundo a qual os grupos psicossociais são formados através de partilhas de conhecimentos/práticas simbólicas. Os participantes foram estudantes de ensino médio de escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro, que se autodefiniram como negros, brancos e morenos. Usamos um questionário para observar conversas, piadas e assistência à TV. Em conversas e piadas, brancos e morenos apresentaram mais temas sobre sexo; brancos falaram de pessoas e agrediram minorias sociais; e negros conversaram sobre trabalho escolar e evitaram contar piadas. Ademais, os negros mencionaram mais piadas sobre deficiência/incompetência acadêmica, enquanto os brancos e morenos mencionaram as charadas/frases de espírito. Em assistência à TV, brancos preferiram programas de humor e negros se dispersaram. Concluindo, existe continuidade entre conteúdos de conversa, piada e audiência à TV segundo o grupo étnico.

Palavras-chave: representações sociais; cultura.


ABSTRACT

Our objective was to observe themes used by students to talk and to entertain themselves in the school environment and elsewhere. The social representations' theory was adopted, which states that psychosocial groups are formed through the sharing of symbolic knowledges/practices. The participants were secondary level students of public schools in Rio de Janeiro, who had self-defined as Afro-Brazilians, White and Mixed people. We used a questionnaire to observe talks, jokes and TV audience. In talks and jokes, White and Mixed people presented more themes about sex and White people talked about people and told jokes, which are aggressive to minority groups, while Afro-Brazilian people talked about school works and avoided uttering jokes. Besides, Afro-Brazilian people presented more jokes about academic deficiency/incompetence, while the other groups puzzle/play with words. Regarding TV audience, White people preferred humor programs and Afro-Brazilian people dispersed. In conclusion, there is continuity among talks, jokes and TV audience, depending on the ethnic group.

Keywords: social representations; culture.


RESUMEN

Nuestro objetivo fue observar los temas usados por estudiantes para conversar y entretenerse en el ambiente escolar y fuera del mismo. Fue adoptada la teoría de las representaciones sociales según la cual los grupos psicosociales son formados a través de conocimientos/prácticas simbólicas que comparten. Los participantes fueron estudiantes de enseñanza secundaria de escuelas públicas de la ciudad de Rio de Janeiro, que se autodefinieron como negros, blancos y morenos. Usamos un cuestionario para observar conversaciones, chistes y consumo de programas de televisión. En conversaciones y chistes, blancos y morenos presentaron más temas sobre sexo; blancos hablaron de personas y agredieron minorías sociales; y negros, conversaron sobre trabajo escolar y evitaron contar chistes. Además, los negros mencionaron más chistes sobre deficiencia / incompetencia académica, mientras los blancos y morenos adivinanzas/juegos de palabras. En cuanto a audiencia de la televisión, blancos prefirieron los programas de humor y negros se dispersaron. En suma, existe continuidad entre contenidos de conversación, chistes y audiencia de la televisión según el grupo étnico.

Palabras clave:representaciones sociales; cultura.


 

 

Introdução

O principal objetivo deste trabalho foi analisar os conteúdos das interações sociais entre jovens na vida cotidiana, tanto no ambiente escolar quanto fora dele, incluindo conversas, piadas e assistência à TV, segundo o grupo étnico.

Os jovens interagem informalmente em vários ambientes sociais, ocasiões em que se formam laços de amizade e afetividade (Maisonneuve, 1977), assim como de distanciamento e hostilidade. Segundo Maisonneuve e Lamy (1993), o modo como as pessoas vivem suas experiências de interação social é marcado por regulações e modelos, os quais são em parte ocultos e inconscientes, pois "eles nos são impostos por educação e costumes através de uma espécie de impregnação; não se tratam portanto necessariamente de constrangimentos 'exteriores'; e é ao contrário quando eles são sentidos como tais que o sujeito tem mais chance de se libertar deles" (1993, p.16).

No caso das interações sociais em ambiente escolar, elas ocorrem em espaços sociais, simultaneamente, constrangedores e intensos, forçando a necessidade de escolhas mais focalizadas de interação, que permitem a emergência de possíveis laços de amizade e afeto, assim como de adoção de formas de convivência social em ambientes plurais. Parte desses laços tenderá a se formar a partir de afinidades, no sentido elementar de escolhas recíprocas baseadas em aproximações em termos socioculturais, entre outros tipos de intercâmbio. Boa parte da investigação existente a respeito das escolhas mútuas nas redes de interação na situação escolar limitou-se ao critério interpessoal, estudado a partir de sociogramas, por exemplo (Ovejero, 1988), fazendo abstração de outras dimensões de indivíduos e grupos. Assim, contrariamente a certo senso comum, os indivíduos e grupos não se limitam a "tentar se acomodar a outrem e aceitar quem quer que seja ou esteja mais próximo", assim como ser "amável e amigo daqueles que o destino colocou ao seu lado", como vizinhos e colegas (Moreno, 1934, apud Maisonneuve e Lamy, 1993, p. 97). Apesar disso, é bom saber que alguns estudos de psicologia social da educação evidenciaram que as relações de amizade mais íntimas e mutuamente escolhidas são mais importantes para o desenvolvimento do aluno do que outras formas de interação entre pares como a popularidade, trazendo benefícios afetivos, cognitivos e sociais para o aluno, mesmo quando ele tem apenas uma amizade íntima recíproca na escola, às vezes fora da sua sala de aula (Maxwell, 1992, p. 201), cabendo aos professores e às escolas promoverem o seu aperfeiçoamento em relações baseadas em sexo, capacidade, etnia ou qualquer outra forma de afinidade e aproximação possíveis.

Procurando superar essas dificuldades, as interações escolares têm sido estudadas a partir de outras abordagens, inclusive das representações sociais (Gilly, 1989). Assim, o fenômeno das representações sociais seria próprio das situações urbanas onde os grupos sociais procuram construir conhecimentos/práticas informais mais específicos para lidar com assuntos, indivíduos e grupos, sob o impacto de saberes especializados como os utilizados por profissionais ou aqueles que defendem idéias de direitos humanos e de minorias sociais, mais visíveis e influentes nos ambientes das cidades. Na escola pública no Brasil, existe o princípio republicano de oferecer um ambiente universal, laico e gratuito, deixando de lado a questão das diferenças socioculturais, sobretudo daquelas de grupos minoritários étnicos. Contudo, consideramos que a autodenominação étnica é uma condição de produção simbólica importante que, em interação com o assunto da comunicação informal em suas várias formas, produz uma diferenciação em termos de conteúdo de representações sociais (Moscovici, 1961/1976). Supomos que os grupos étnicos em contato na sociedade há alguns séculos apresentam padrões diversos para tratar de vários assuntos em termos de interação informal construídos ao longo de uma história, tanto intragrupal quanto intergrupal. A proposta inicial de Moscovici (ibid.) foi no sentido de existência de diferenciação intergrupal na produção de conhecimentos do senso comum a respeito de assuntos ao mesmo tempo: 1) envolventes para indivíduos/ grupos; 2) acessíveis em termos de conhecimento objetivo sobre os mesmos; e 3) condicionados desigualmente pela posição do sujeito na estrutura cristalizada da sociedade, em termos de poder e meios. Tal conhecimento seria fruto de dinâmica psicossocial complexa intragrupal, incluindo seleção e descontextualização de aspectos do assunto; atribuição de sentido; adoção de linguagem e uso prático do mesmo, entre outros.

Existem poucos estudos sobre as interações étnicas em ambientes públicos. Podemos dizer que, entre os ambientes mais privados e os públicos da vida social, existe uma área de intercâmbio mediada por representações socioculturais ancoradas na história de longo prazo dos grupos sociais. Ou seja, haveria a tendência de os indivíduos transferiremos critérios/representações socioculturais provenientes dos grupos com os quais mantêm laços mais permanentes para fora dos mesmos, tendendo a prejudicar os elos baseados em escolhas mais livres pessoais ou interpessoais. No caso dos grupos que se consideram como mais legítimos e valorizados socialmente, essa tendência de transferência de critérios de representação social ao longo dos contextos freqüentados seria mais comum, indo do privado para o público e vice-versa, sem problemas ou obstáculos. Supomos que os grupos no Brasil que detêm tais tendências psicossociais seriam os brancos/cristãos, os quais esperariam encontrar quase o mesmo grau de adesão dos demais grupos sociais a essas representações, como se elas fossem gerais, universais e comuns, com implicações sociais consideráveis. Nesse sentido, alguns autores há longa data já afirmavam a existência de padrões idealizados de interação social no Brasil, tal como a interpretação de Buarque de Holanda (1936/1984) a respeito do "homem cordial", em torno da crença de que é possível manter trocas interculturais íntimas e permeadas por um sentimento de fraternidade, sendo algo de origem católica e européia segundo o mesmo autor.

Entretanto, poucos estudos foram feitos no país para averiguar as bases psicossociais dessas crenças. Podemos supor que o grupo que mais conseguisse se auto-representar como praticando/pensando a respeito desses conteúdos de cordialidade social tenderia a bloquear qualquer argumento que duvidasse do mesmo, tendo em vista tratar-se de um conteúdo aparentemente incompatível com conflitos interpessoais e intergrupais de qualquer natureza. Ou seja, supomos que os grupos psicossociais étnicos que têm menos consciência de diferenças dos seus padrões de representação de interação social focalizem mais aspectos da vida privada, pois eles sinalizam a intenção de manter certa intimidade e partilha de sentimentos com os demais, entre outras pretensões sociais. É como se eles circulassem sem fronteiras entre os grupos, o que não é possível ou sequer buscado por todos os indivíduos/grupos. Em conseqüência, tendo em vista a dificuldade histórica e política de realizar tais objetivos interacionais, haveria a tendência de crescimento constante de tensão interpessoal/intergrupal, gerando necessidade quase simultânea de alívio através de piadas e outras formas de comunicação social.

Nesse sentido, outros resultados de pesquisa indicaram que há situações históricas em que, entre as representações de si e dos outros, predominam as dimensões grupais sobre as individuais (Tajfel, 1978). Ou seja, algumas dimensões simbólicas ou reais dos grupos tenderiam a se tornar salientes nas interações sociais, como as raciais ou socioculturais. Ademais, os grupos minoritários étnicos mais ativos tenderiam a manter seus critérios de representação social, desde que possível, o que seria permitido a partir de delimitação de fronteiras interindividuais e intergrupais durante as interações sociais (Moscovici e Paicheler, 1981) para fomentar autonomia, diferenciação e espaço próprio, este último mais costumeiramente se manifestando no ambiente interno do sujeito individual ou mesmo em termos do seu próprio corpo. Assim, ao lado da sobrevivência sociocultural dos grupos sem que houvesse uma norma de diferenciação intergrupal preconizada por parte dos grupos dominantes, mas antes de tudo certa tendência de diluição cultural, a sociedade brasileira seria marcada por longa dominação monocultural, com menor liberdade e estímulo à expressão grupal e individual fora desse padrão.

No Brasil, foi certamente a imensidão do seu território que permitiu a sobrevivência de muitos grupos étnicos e culturais minoritários, permanecendo muitas vezes sem internalizar os valores, as normas e as representações sociais dos grupos dominantes (Bastide, 1967). Se houve alguma aprendizagem dos grupos de descendentes de europeus a partir de influência social, de negros e índios, ela não foi suficiente para modificá-los substancialmente, sobretudo em função dos benefícios de fazer parte de um grupo sociocultural dominante. Seria assim um bom motivo de pesquisa saber se houve sobrevivência/transformação da herança sociocultural em relação aos grupos sociais mais influentes na sociedade, sobretudo por parte dos negros, que conseguiram sobreviver, inclusive nos espaços urbanos mais dinâmicos do país.

Tal efeito da influência dos grupos dominantes parece ter sido mais pronunciada na expressão verbal no espaço público, declinando para as formas mais desligadas dessa linguagem, como a música e a dança. Sabemos que ao longo do século XX a expressão musical de grupos menos valorizados na sociedade emergiu no espaço público. Contudo, no dia-a-dia, a piada e o humor poderiam ser considerados formas populares de manifestação, historicamente com menos envolvimento de grupos socioculturais índios e afro-brasileiros, sobre os quais não se dispõe de registros acessíveis. Nesse sentido, seria preciso retomar como se deu a emergência simbólica de grupos socioculturais não brancos no espaço público. Sabemos que a raça foi uma das formas de diferenciação intergrupal étnica adotada em várias áreas do mundo como um marcador social para favorecer/desfavorecer indivíduos e grupos, sobretudo em situações em que não está consolidada a ideologia e prática do mérito individual. Segundo Lévi-Strauss (1970), o termo raça só veio a se tornar mais saliente no século XIX. Até então os grupos sociais eram frequentemente classificados a partir da equação "ser ou não ser cristão". De modo que a raça apareceu, historicamente, num contexto de competição interindividual durante o processo de intensa urbanização, em que os grupos perdiam suas posições no campo, procurando critérios de autovalorização em ambientes com certa desintegração social.

Portanto, a própria autodenominação étnica/racial tornou-se um objeto de pesquisa. Em estudo sobre representações étnico-raciais nos EUA ao longo da história, Philogène (1999) demonstrou a importância da autodenominação dos grupos negros, os quais obtiveram maior aprovação ao trocarem, a partir de ação social pública do próprio grupo, a categoria "Black" por "African-american". Nesse sentido, a sociedade brasileira tem presenciado uma verdadeira luta cultural entre o fenômeno do branqueamento e de afirmação da identidade negra (Munanga, 1999), a qual tem aumentado a freqüência nos últimos censos do IBGE, se compararmos à primeira pesquisa por domicílio de 1976, quando se solicitou que os informantes se autodenominassem em termos étnico-raciais. Obviamente que a menor expressão de identidade negra em situação pública é típica de ambientes com correlação de forças que desencorajam, tanto quanto exigem formas de autocompensação, que visam a sobrevivência individual e social em contextos desfavoráveis. A miscigenação sociocultural e biológica do negro seria uma das alternativas existentes. Segundo essa tendência histórica, o processo de inclusão possível dar-se-ia, mais uma vez, com o desaparecimento dos padrões dos grupos minoritários ao invés de torná-los mais reconhecidos. Aparentemente, a inclusão pretendida seria mais centrada em efeitos materiais/externos do racismo sem discutir ou negociar outros conteúdos socioculturais, deixando os marcadores raciais praticamente intactos e mantendo assim as desigualdades étnicas, tornando-se de novo alvo de disputas entre grupos.

Um modo inicial de conhecer as interações reais e imaginadas entre grupos étnicos na escola seria através das conversas e trocas cotidianas, entre as quais incluiríamos as piadas e as formas de comunicação similares. Entre os jovens, supomos existir certa liberação de expressão de conteúdos amorosos/sexuais, assim como afirmação do indivíduo, ainda que apareçam junto a conteúdos de busca de controle individual, na forma de "fofoca" - aparentemente anódina (Baumeister et al., 2004) -, e sobre sexo, através de pornografia ou transgressão. O conteúdo da comunicação almejada determinaria largamente a linguagem adotada pelo grupo, mas supomos existir certa continuidade entre conversas e piadas. Como se sabe, alguns dos fatos marcantes na cultura ocidental têm sido a repressão sexual e a busca de controle social do indivíduo, sobre os quais os grupos étnicos apresentam posições diferenciadas. Nesse sentido, é bom lembrarmos que o livro Mal-estar na Civilização, de Freud (1997), foi bastante explícito ao enunciar que o modo de encaminhamento das culturas ocidentais foi no sentido de reprimir a sexualidade e a libido. Em seguida, autores como Adorno et al. (1950), propuseram que a personalidade social seria fruto de um processo, simultaneamente, psíquico e histórico cultural. Segundo os mesmos autores, a falta de oportunidades, reais ou imaginárias, de manter interações democráticas, inclusive de poder manifestar hostilidade em relação a autoridades, geraria a chamada síndrome da personalidade autoritária, levando à canalização de agressão não dirigida à autoridade para personagens sem poder ou menos valor social, tal como é a situação de minorias sociais na sociedade. No espaço deste trabalho, seria preciso, antes de tudo, um mapeamento intercultural, o que permitiria a constituição de uma base empírica importante. Ou seja, a expressão através de conversas e piadas poderia nos indicar pistas de como são elaborados os conteúdos psicossociais relativos a essas interações e conflitos sociais, a partir da comparação de grupos étnicos, evitando, de certa maneira, a tendência de comportamentos de polidez social ou de encobrimento dos conflitos intergrupais, etc.

No que toca à piada e ao humor, podem remontar a um passado, sobretudo europeu (Saliba, 2002). Tratar-se-iam de formas públicas ou semipúblicas de expressão de conteúdos sobre indivíduos e grupos considerados não comunicáveis por algum tipo de ética e moralidade, tradicional ou atual, como a dos direitos humanos. No caso da piada, banida em alguns meios sociais mais preocupados com a hostilidade e desmoralização de minorias, ainda permanece sendo bastante difundida de modo acrítico, fazendo-nos supor que seja um dos mecanismos usados pela sociedade para manter padrões socioculturais. Um estudo psicossocial recente a respeito do humor comunicado por piadas e formas expressivas similares foi o de Billig (2005). O autor critica corajosamente a positividade do humor, tal como vários autores têm alegado, afirmando que o assunto tem sido menos tratado teórica e empiricamente como instrumento de manutenção e controle social, o que mereceria mais atenção por parte dos pesquisadores.

Existem muitos trabalhos que realçam o papel isolado dos meios de comunicação de massa para a formação de representações sociais, como se o fenômeno fosse de muito mais responsabilidade dos poderosos, apesar da influência da concepção de construção social de conhecimentos. Mas, se a mídia é poderosa, muitas vezes se esquece de lembrar que ela é parcialmente construída pela audiência. Acreditamos haver certa continuidade entre representações e linguagens usadas pelos públicos e aquilo que os veículos lhes oferecem, em termos de informação/entretenimento. Seria necessário observar os protagonistas aparentemente sem poder, que são co-construtores do fenômeno e processo. Uma rápida observação da programação de TV, humorística e de desenhos animados, indica que a hostilidade a minorias sociais (incluindo ao indivíduo), permanece explícita e sem maiores reações senão de aprovação por parte da sociedade, fortalecendo certas tendências antigas.

Enfim, é preciso dizer que houve uma mudança psicopolítica importante nos últimos tempos, que tendeu a se consolidar gradualmente: o racismo explícito tendeu a declinar em muitas sociedades, dando lugar a formas mais sutis de discriminação e preconceito étnicos intergrupais (Pettigrew e Meertens, 1995), mais relacionados aos padrões socioculturais de interação social dos grupos e obrigando a adoção de uma abordagem mais indireta a respeito desses fenômenos. Nesse sentido, uma pesquisa importante feita a partir da teoria das representações sociais para o aprofundamento da questão das interações étnicas foi o trabalho de Moscovici e Perez (1997). Tratava-se de averiguar a conexão entre representações sociais de um grupo étnico minoritário e concepções/representações da sociedade. Três modelos de sociedade foram apresentados aos participantes de vários pontos da Europa: um em que só existe um tipo de etnia, outro em que existe uma etnia dominante e várias minoritárias e, enfim, uma sociedade em que todas as etnias são minoritárias. Em geral, os que preferiram o primeiro e segundo tipos de sociedade tenderam a discriminar negativamente o cigano, independentemente da posição social que este ocupasse: de músico, pedinte ou cigano em geral. Nesse sentido, nossa suposição é que os grupos dominantes étnicos numa sociedade em que parte importante insistem em ignorar/não reconhecer a existência de diferenças socioculturais positivas entre os grupos étnicos minoritários, eles se aproximariam mais do primeiro e segundo modelos de sociedade, que conduz a uma não diferenciação intercultural em detrimento de minorias étnicas e a uma dominação de uma sobre as demais, prejudicando o amadurecimento das relações sociais no país.

 

Método

Os participantes foram estudantes de ensino médio de escolas públicas de diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro, os quais se autodefiniram em termos étnicos como brancos (B) (n= 71), morenos (M) (n= 119) e negros (N) (n= 42). Aplicamos um questionário para obter um repertório de conversas, piadas e programas de TV que assistiam, com as seguintes perguntas abertas: 1) O que você gosta de conversar com colegas na escola?; 2) O que você gosta de conversar com amigos (as) fora da escola?; 3) Você se lembra de alguma piada? Conte, indicando em que situação ouviu pela primeira vez. Conte quantas você puder; 4) Você costuma assistir programas de televisão (de humor e/ou desenho animado, por exemplo)? Quais são? Tente explicar por que gosta de cada um deles. Ademais, foram solicitadas informações sobre sexo, idade, definição étnica-racial a ser escolhida de uma lista contendo as seguintes alternativas: branca, negra, morena ou outra; religião; escolaridade/profissão do pai/mãe; entre outras. A coleta se deu de modo coletivo, em sala de aula, mediante acordo com as direções dos estabelecimentos e professores e alunos que aceitaram participar.

Os dados foram analisados em termos de conteúdo temático (Bardin, 1994). Alguns participantes que não se autodefiniram étnico-racialmente não foram incluídos na análise, os quais foram em número inferior em relação aos demais. Em seguida, formamos tabelas de freqüência e percentagem de temas e aplicamos testes de qui-quadrado, de modo a comparar os grupos étnico-raciais de modo mais seguro. Abaixo apresentamos os conteúdos temáticos encontrados e as respectivas ilustrações, as quais estão acompanhadas por sexo (masculino=m; feminino=f), idade e grupo étnico-racial.

O que gosta de conversar na escola e fora dela: Sexo/pornografia: "assuntos do momento como sexo" (m, 18, B); "Garotos bonitos" (f, 17, B); "Sobre as posições do Kamasutra" (m, 20, M). Humor/besteira em geral: "(...) tombos, qq coisa que nos faça rir" (f, 18, B); "tipos físicos engraçados" (f, 19, M); "algo de engraçado que aconteceu na ida ao colégio" (f, 17, N); "meus micos" (f,16, N). Falar de pessoas: "o que eu mais gosto de conversar com meus amigos é sobre uma figura muito engraçada, o Garboso, da minha escola" (m, 16, B); "Sobre a vida dos outros" (f, 16, N); "Sobre fofocas" (m, 17, M). Festa/baile: "festas" (f, 14, B); "Gosto de conversar sobre baile funk" (f, 15, N); "Sair à noite" (m, 19, M). Trabalho escolar: "sobre métodos de ensino dos professores" (f, 19, M); "gosto de conversar sobre matérias escolares" (f, 19, N); "sobre concursos para escolas" (f, 15, N); "Só converso sobre coisas da escola" (f, 15,B). Tema geral: "Qualquer assunto é bem vindo" (f, 16, B); "sobre o que acontece comigo no meu dia a dia" (f, 19, N). Problema social: "Assuntos como criminalidade" (f, 18, B); "Conversamos mesmo sobre o tráfico" (m, 17, N); "Sobre racismo" (f, 23, M). Amor/namoro/ambiente sócio-afetivo: "sobre os meus relacionamentos" (f, 17, B); "amizades" (f, 15, N); "sobre paz, amor e alegria, pois isso sim faz a diferença" (m, 18, N); "Sobre namoro" (m, 16, B). Futebol/esporte: "skate" (m, 16, B); "no tempo disponível futebol" (m, 17, N). Lazer/Compra/consumo: "roupas que estão na moda" (f, 20, M); "Sobre passeios e praia" (f, 15, N); "Sobre moda" (f, 16,B). Música/lazer contemplativo: "Sobre tv" (f, 17, B); "Costumo falar sobre novelas que assisto" (f, 18,N); "Música; qual a mais bonita ou a mais dançante" (f, 15, N). Religião/família: "familiares" (f, 17, M); "minha vida familiar" (f, 18, N); "religião" (f, 19, N); "Sobre tudo, com ênfase na família" (f, 16, B); "Uma das conversas é de Jesus" (f, 22, B). Profissão/futuro: "Possibilidade de conseguir tal emprego" (f, 18, N); "Planos para o futuro" (f, 21, M).

É preciso dizer que as piadas veicularam múltiplos temas que aparecem nas frases usadas como ilustração para não fragmentar a mensagem. Contudo, para efeito da análise temática utilizamos como critério o(s) tema(s) dominante(s) da piada.

Conteúdos temáticos de piadas lembradas: Sexo/transgressão: "O pinto e a pinta foram almoçar. Quem pagou a conta? O pinto?! Não, a pinta, pois o pinto estava duro" (m, 16, B); "O filho pergunta a seu pai o que é o clitóris. O pai responde: Filho você deveria ter me perguntado ontem à noite, pois eu estava com a resposta na ponta da língua" (f, 24, M). Agressão às minorias sociais: "Você sabe qual é o carro preferido das loiras? - BMW, porque é o único que ela consegue soletrar" (M, 14, B); "Uma prostituta morreu. No caixão o joelho esquerdo falou para direito: enfim juntos" (f, 16, M); "Um certo dia abriram um leilão para gays que era muito movimentado. Mas havia um grande problema: quando o leiloeiro gritava quem dá mais, todos levantavam a mão" (f, 18, B); "A mulher grávida de cor clara dá a luz e a de cor escura (negra) dá curto circuito" (f, 19, M). Deficiência/incompetência acadêmica: "Um moço deu carona para (...) só que com uma condição: que eles não abrissem a boca para não falar bobagens. Quando chegaram ao destino final, (...) falaram: cheguemos, nem demoremos e nem erremos" (m, 16, N); "Mãe estou lhe escrevendo duas cartas; uma dentro da outra, assim se uma não chegar a outra chega" (f, 45, N). Charadas/frases de espírito: "O que tem 40 cabeças e não pensa? Caixa de fósforo" (m, 19, B); "Uma piada suja e pesada: O elefante caiu na lama" (m, 16, N); "O que é o que é ? Corre deitado e cai em pé ? Chuva" (f, 18, M); "Tinha um homem indo para o cinema com um saco de cimento nas costas. Qual é o nome do filme? Não sei, estava em reforma (o cinema)" (f, 19, N); "Qual é o animal que come com o rabo? Todos, porque eles não podem tirar o rabo para comer" (m, 17, M).

Programas de TV que costuma assistir: Não gosta/não assiste TV: "Nenhum" (m, 21, N). Entrevista: "Jô Soares (...)" (f, 15, N). Humor (tradicional/novas linguagens): "A praça é nossa e Zorra total" (f, 21, N); "gosto do casseta e planeta porque brincam com a realidade como forma de alerta à população" (f, 17, M); "piores clipes do mundo descontrai para esquecer os problemas da vida" (m, 16, B). Desenho animado: "Gosto muito de desenho animado como Tom e Jerry" (f, 16, B); ""o fantástico mundo de bob porque ele imagina coisas que não existem e muito menos poderia fazer" (f, 18, N). Infantil/Jovem cultural/educativo: "Gosto de ver o sítio do pica pau amarelo, porque é um bom programa" (f, 21, M); "planeta Xuxa porque só vão cantores bons" (f, 18, N). Novela/Comédia da vida privada: "Os normais porque eles são simplesmente normais" (f, 18, M); "malhação - fala sobre assuntos da minha idade" (f, 16, M). Erótico/pornográfico: "Noite afora. Porque fala sobre sexo e posições picantes" (m, 20, M). Programa de auditório: "O programa do ratinho porque tem de tudo" (f, 35, B).

 

Resultados

Abaixo apresentamos os principais resultados na forma de tabelas de frequência e percentagem e nível de significância obtida no teste qui-quadrado.

Em relação ao que conversam na escola, os participantes apresentaram diferenciação intergrupal (Tabela 1). Os três grupos aproximaram-se em temas sobre música/lazer contemplativo. Os brancos e morenos manifestaram mais temas sobre sexo/pornografia, assim como se destacaram, ainda que em menor medida, em temas sobre profissão/futuro. Brancos e negros partilharam o tema do futebol/ esporte. Mais especificamente, observamos: entre os brancos, falar de pessoas; os negros, trabalho escolar, amor/namoro/uniãoe humor/besteira em geral; os morenos, tema geral.

 

 

Em relação ao que se conversa fora da escola, não verificamos diferenças estatísticas significativas entre os grupos. Contudo, a comparação entre os contextos de interação entre colegas de sala de aula e amigos fora da escola para cada grupo, separadamente, indicou que os negros conversavam em sala de aula mais sobre humor/besteira em gerale trabalho escolar, enquanto com amigos/as profissão/futuro, compra/consumo, festa/bailee religião/família(X2= 28,821; gl= 13; p< 0,0069). Já brancos e morenos não apresentaram diferenças entre as situações fora e dentro da escola, podendo-se inferir a maior "familiaridade" do ambiente escolar para os mesmos, em contraste com a relativa "estranheza" para os negros.

Sobre os conteúdos das piadas relatadas, encontramos alguma diferenciação (Tabela 2). As tendências mais importantes foram sexo/transgressão(morenos e, em menor medida, brancos), agressão às minorias sociais(brancos e, proporcionalmente menos, morenos), deficiência/incompetência acadêmica(negros), charadas/frase de espírito (brancos e morenos) e não sabe/não responde (negros).

 

 

Observamos diferenciação em relação aos programas de TV que costumavam assistir (Tabela 3). Assim, os brancos indicaram mais programas de humor(tradicional, outras linguagens), os morenos, desenho animadoe os negros se dispersaram entre vários tipos, com certa preferência por infantil/jovem cultural/educativo, entrevista e programa de auditório, este último também entre morenos.

 

 

Enfim, se compararmos os temas relativamente mais freqüentes, observados nas diferentes situações, verificaremos que a situação-conversa (Tabela 1) sobre sexo/pornografia(brancos e morenos) e falar de pessoas(brancos) ocorreu paralelamente à situação-piada (Tabela 2) de sexo/transgressão(morenos e brancos) e agressão às minorias(brancos) e à situação-TV (Tabela 3) de programas de humor(brancos) e desenho animado(morenos). Já para os negros, a situação de conversa sobre trabalho escolare amor/namoro/uniãoocorreu paralelamente à situação de piada de deficiência/incompetência acadêmicae não sabe/não respondee a programa de TV de tipo infantil/jovem cultural/educativo e entrevista.

 

Discussão

A pesquisa que realizamos permitiu-nos explicitar diferenciações pronunciadas de expectativas de interações sociais no ambiente escolar entre grupos étnicos. Se um dos pressupostos da interação social é a partilha de conteúdos pelo menos para iniciar uma conversa, podemos dizer que elas precisariam ser mais incentivadas nas escolas e nas salas de aula levando em conta as diferenciações étnicas aqui relatadas. Tais atividades de conversa e discussão não poderiam implicar tanto perda de liberdade quanto prejuízo das partes envolvidas em termos de respeito a representações, valores, normas sociais, etc., sob pena de serem geradoras de desconfiança mútua, senão de tensões a serem mais trabalhadas.

Assim, acreditamos que o ambiente escolar seja vivido de formas diferenciadas de interação informal, sendo relativamente estranho em função de particularidades sócio-históricas e culturais para alguns grupos. Talvez o grupo mais estranho ao ambiente escolar público de ensino médio seja o dos negros, o qual sempre estava em minoria numérica nos vários estabelecimentos públicos que observamos. Tais diferenciações são minimizadas nas informações que costumam circular no espaço público, que tende a favorecer a não diferenciação sociocultural dos grupos minoritários. Mas é bom saber que os autodefinidos como não brancos, incluindo uma proporção maior de negros (pretos) apresentaram maior freqüência de indivíduos "sem religião" que os brancos no censo demográfico de 2000 (Jacob et al., 2003). Segundo uma pesquisa intercultural sobre desenvolvimento moral, os "sem religião" tenderiam a mostrar mais julgamentos morais pós-convencionais (Urbina et al., 1998), em que o indivíduo seria capaz de internalizar a regra não porque ela é a adotada/partilhada por uma autoridade, personagem poderoso ou maioria numérica ou dominante, mas porque a mesma teria sido examinada individualmente e considerada como válida (Kholberg, 1963). Para os temas levantados em nossa pesquisa junto aos estudantes para conversar a questão do indivíduo, por exemplo, a maneira de os brancos e mesmo morenos tratarem girou em terno de uma busca de normas e desvios, que traduziriam uma forte preocupação com o controle individual e as convenções sociais. Consideramos que a mesma ideologia da busca de intimidade e sentimentos partilhados estaria sendo visada com essa ênfase no controle do indivíduo. É que eles partilham de uma norma social que considera a família (DaMatta, 1985) e outras entidades coletivas como estando acima dos indivíduos em termos de prioridade social, levando a uma desconfiança/dúvida permanente com relação ao indivíduo (Arendt, 1963/2004) que busca a autonomia, diferenciação e espaço próprio, mesmo que interno, desconfiança só eliminada quando fica garantida a partilha ou aceitação das regras sociais por parte de todos, implicando processos de tiranias de "transparência social". Poderíamos interpretar a recusa de contar piadas no ambiente escolar, apresentada de modo tão acentuado por estudantes negros, como uma forma de propor outras normas sociais, ainda que de uma maneira discreta.

Em termos de conteúdo temático de piadas, a estranheza dos negros no ambiente escolar público resultou, entre outras formas de troca possíveis, na adoção pelos mesmos do humor/besteira, correspondendo possivelmente a expectativas antecipadas dos grupos. Poderíamos nos perguntar se não existiria entre os participantes negros uma expectativa de um comportamento menos ou não "inteligente" no ambiente educacional, como se fosse uma antecipação de uma agressão intergrupal ou intragrupal (Lewin, 1948). Assim, mesmo não apreciando a piada de modo tão extenso quanto os brancos, alguns estudantes negros participavam dessas atividades de brincadeira através do humor/besteira, que poderíamos em alguns casos considerar como similar à "palhaçada" em que alguém que conta piada "vive" o próprio personagem ridicularizado, o que se aproximaria da tendência de auto-agressão encontrada entre os judeus através do humor (Scliar et al., 2002).

Apesar disso, acreditamos que, no caso dos negros, a escola é considerada a grande oportunidade de instrumentalização, de promoção social. Chegar ao ensino médio parece ser o prenúncio de uma possibilidade de avançar ainda mais na carreira acadêmica. Mas é bom mencionar que o auto-aperfeiçoamento individual na urbanização tem pelo menos dois aspectos: um relacionado à escolarização e apropriação de saberes acadêmicos e, outro, de autoconhecimento, auto-regulação sociocultural e possível emancipação e controle existencial de destino. Historicamente, apenas o primeiro conjunto de auto-aperfeiçoamentos está se realizando nas sociedades, deixando de lado, por exemplo, a questão da moralidade. Nesse sentido, em estudo de história antropológica da sociedade depois da escravatura, Moritz-Schwarcz (1987) mostrou, por meio de estudo empírico amplo da imprensa brasileira, que os negros foram objeto de campanha de desmoralização, no sentido de ressaltar suas possíveis incapacidades para o trabalho em face dos migrantes europeus. Ora, no ambiente escolar, detectamos um jogo de "adivinhação/charada" que permite certa fantasia/exibição de uso de capacidade intelectual, mais apresentado em nossa pesquisa por estudantes brancos, possivelmente destinada a reforçar uma pretensa superioridade dos mesmos para a atividade acadêmica. Em contraste, encontramos entre os negros a tendência de conteúdos de piada relacionados à incapacidade acadêmica de outros e/ou certa intolerância e possível insegurança quanto aos seus próprios resultados nesse campo. Pode-se dizer que os grupos estejam se preparando para a competição social a partir desses conteúdos selecionados e recriados de modo diferenciados pelos grupos. Aqui é bom lembrar o estudo realizado por Cantrill (1941) sobre agressão de brancos contra negros do sul dos EUA, que aumentava nos locais onde havia tendência de equiparação socioeconômica intergrupal e uma tácita aprovação da agressão por parte de autoridades da justiça.

Contudo, há outra clivagem entre os grupos desse ambiente. É que os negros não partilham tão pronunciadamente a necessidade quase compulsiva de falar sobre sexo e sobre os outros, em termos de vida privada, tal como verificamos entre brancos e morenos. Sabemos que muitos têm migrado para as grandes cidades, em parte um êxodo não buscado. No ambiente das cidades, não só se defrontam com grupos que aí estão vivendo há mais tempo, como têm que lidar com a perda de padrões culturais de origem, que poderia ser resumida em termos de convivência, como passagem de uma sociabilidade comunitária para uma anônima e voltada para a realização do indivíduo. Tais desafios são enfrentados sem a ajuda mútua, tão menos comum nas grandes cidades. Essa sociabilidade comunitária perdida, que foi fonte de bem-estar para os grupos, sustentava-se a partir de um controle social para manutenção de padrões socioculturais em relação aos chamados desviantes, em geral minorias sociais e indivíduos em emancipação. Já na vida urbana atual, boa parte do controle social gira em torno dos comportamentos sexuais/amorosos, havendo, portanto complementaridade entre a atividade de falar sobre sexo e falar dos outros. Nesse quadro sociocultural, contrastou a vivência de negros e brancos/morenos em termos de sexualidade. Poderíamos inferir, através das representações sociais analisadas, que o primeiro grupo apresentou uma postura diante da sexualidade e do indivíduo que se poderia considerar mais descentrada das concepções dos brancos. Isso traz para os negros certo problema suplementar, exigindo discrição; de um lado para evitar a reprovação social de sua conduta individual na vida privada e, de outro, para não participar de modo mais completo dessas atividades de interação. Um sintoma desse fenômeno é o modo diferenciado como os negros comentam a sua vida sexual, no sentido de uma relação mais duradoura, ao passo que os brancos e morenos tenderam ao sexo como uma experiência localizada do sujeito, como se houvesse uma permanente incompletude e insatisfação nessa área, necessitando amiúde de pseudotransgressões e fantasias pouco ou jamais realizadas (Bataille, 1987).

Nesse quadro intercultural, é bom lembrar que, nos dias de hoje, floresceu a indústria de difamação pública e fenômenos similares, tal como a exposição da privacidade através dos chamados "reality shows". Trata-se, entre outras funções, de satisfazer a curiosidade ao mesmo tempo a respeito do comportamento individual, passível de "desvios", e flagrar/assistir cenas de sexo ou intimidade que sugerem a pornografia. Isso porque tornou-se impraticável divertir-se com a agressão às minorias, que tem longa história no Ocidente. Com a consolidação de lutas por direitos humanos, constatamos, historicamente, que novas minorias foram construídas, como neuróticos, feios, drogados, aidéticos, entre outros, que são expostos na publicidade ou programas de TV. Procurando elaborar esses fenômenos, Moreno (1997) estudou a importância da expressão dramática para os grupos humanos lidarem com sua complexidade psicológica inserida em contextos sociais. Destacaríamos sua recuperação da função da catarse do teatro e formas de comunicação social similares para os europeus e ocidentais, sintetizados na tragédia grega e outras produções. Para o mesmo autor, a catarse passou a ser apreciada pelo público porque os personagens "representariam" conflitos psicológicos e sociais vividos na "realidade" pelos espectadores, mas, impossibilitados de resolvê-los, sobretudo em função de conformismo às convenções sociais e outras dificuldades - incluindo o desenvolvimento científico à época -, preferiam enfrentá-los de modo fictício através dos atores, o que lhes trazia um certo alivio de tensão momentâneo, ainda que sem uma real mudança individual/social. Ou seja, segundo o mesmo autor, os conteúdos "vividos" por alguém ofereceriam oportunidade de mais envolvimento psicossocial, possibilitando efeitos diferenciados quanto a uma possível resolução prática e mental dos conflitos se comparados aos assistidos num palco ou tela. Assim, Moreno procurou ir além ao fazer os próprios espectadores comuns viverem, de modo simulado, seus dramas pessoais/sociais através de desempenho de papéis sociais, seus e dos outros, de modo a aumentar, tanto a autoconsciência emocional/existencial quanto aquela dos outros indivíduos/grupos em interação. Ora, a tv brasileira e de países com base sociocultural similar têm preconizado mais o consumo de filmes de agressão e pornografia, em que as minorias sociais, incluindo os grupos étnicos, são alvos prediletos para a hostilidade catártica, como os chamados "bodes-expiatórios", ou seja, indivíduos/grupos que podem servir aos sistemas sociais como aqueles que vão ser responsáveis por problemas não resolvidos por personagens/grupos dominantes existentes ou como objetos de diversão sádicas e masoquistas.

Enfim, os morenos apresentaram mais partilhas com os brancos do que com os negros, indicando que a miscigenação, pelo menos na esfera pública, corresponderia à adoção de conteúdos socioculturais do grupo mais influente. Portanto, a "conscientização" preconizada pelos que pretendem uma afirmação dos negros enquanto grupo no espaço público se choca com as políticas mais difundidas e praticadas, que poderia ser definida como de "inclusão social superficial", sem reconhecimento e profundidade de diferenças, que forçosamente levaria ao questionamento dos padrões socioculturais dos brancos. Ou seja, supomos que parte da conscientização do negro está relacionada ao autoconhecimento social do próprio branco. Assim, a questão da vida social na escola tende a ser mais tratada como de vida privada por parte de alguns grupos no ambiente de escolas públicas que investigamos, sobretudo por parte do grupo que detém a maior legitimidade e reconhecimento social.

Para lidar com essas questões, a teoria das representações sociais oferece algumas alternativas para um trabalho de busca de entrosamento entre grupos étnicos, no sentido de oferecer pistas temáticas de discussão no ambiente escolar para um melhor conhecimento mútuo e possível negociação de formas de convivência, o que diminuiria uma certa desconfiança interpessoal/intergrupal que possa existir. Em seguida, acreditamos que o papel de dinâmicas de grupo poderia ser mais valorizado como instrumento de aperfeiçoamento psicossocial para fortalecer nos jovens formas de auto-afirmação interpessoal/intergrupal, emergência de experiências sociais que facilitem certa descentralização sociocultural em geral.

 

Referências

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