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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.51 São Paulo jul./dez. 2020

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2020i51p127-131 

COMPARTILHANDO

 

Mas ele tem laudo! Implicações do decreto 10.502/2020 no desmonte das políticas públicas para a educação inclusiva

 

 

Laurinda Ramalho de AlmeidaI; Mitsuko Aparecida Makino AntunesII; Luciana de Oliveira Rocha MagalhãesIII; Ruzia Chaouchar dos SantosIV

IPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; laurinda@pucsp.br
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; miantunes@pucsp.br
IIIPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; lucianam11@hotmail.com
IVPontifícia Universidade Católica de São Paulo - São Paulo - SP - Brasil; ruziachauchar@hotmail.com

 

 

A memória, que até agora se demora atrás das
sombras incertas, toma impulso e deslancha.
[...] Claro, aqui também ficam alguns espaços em
branco que não posso preencher. (Ítalo Calvino,
O caminho de San Giovanni 2000, p.74)

Este Compartilhando foi produzido de modo "compartilhado" por quatro autoras. À guisa do debate provocado pelo Decreto 10.520/2020, Laurinda Ramalho de Almeida nos contou, informalmente, um episódio ocorrido há seis décadas. Assim, consideramos que valeria a pena "compartilhar" com nossos leitores esse relato; como complemento, um pequeno texto sobre a história desse processo foi inserido após a narrativa. A estes seguem-se dois outros textos, de natureza analítica, que enfocam a educação inclusiva e as políticas públicas em geral, dentro das quais se situa a questão específica da inclusão educacional. Salienta-se, ainda, que cada um dos textos expressam as ideias de cada uma das autoras e são de sua responsabilidade.

Agosto de 1960. Nesse mês, começava minha carreira no Magistério, como professora primária efetiva (hoje professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental). Em uma escola do município de São Paulo, fui recebida pela diretora, que logo foi dizendo:

Temos aqui uma classe para Deficientes Mentais1, e a professora dessa classe ficou doente e teve que tirar licença. A Secretaria de Educação (do Estado, pois a escola pertencia à rede Estadual de Ensino) não tem nenhuma professora especializada em Educação Especial para mandar. Vai demorar uns 15 dias para arrumar, então pensei que como você não tem ligação com nenhuma classe, porque a classe que determinei para você, um 3º. ano, já está com substituta, pensei que você podia ficar com a classe dos deficientes.

Eu: Mas eu não sei o que fazer com eles!

Diretora: Não tem importância. Tem alguns que não usam nem o verbal. Eu passo o material que temos e você vai se ajeitando. Você não está fazendo curso de Pedagogia?

Agora, dois longos parêntesis:

A) Terminei o Curso de Aperfeiçoamento em Instituto de Educação, no interior de São Paulo em 1959 e a legislação previa que, aquele que alcançasse a maior média ao final do curso, ganhava uma Cadeira Prêmio, isto é, um cargo efetivo em Grupo Escolar (para os anos iniciais do Ensino Fundamental, hoje). A legislação previa também que professores que ingressassem na Universidade de São Paulo - USP - poderiam solicitar comissionamento, isto é, ficariam dispensados de dar aula para frequentar o curso, sem prejuízo dos vencimentos. Consegui Cadeira Prêmio e ingressar na USP, mas o início na Rede Estadual de Ensino só aconteceu em agosto de 1960, quando pude solicitar o afastamento das aulas (e o deferimento só aconteceu no final do 2º semestre).

B) Com a preocupação de não entrar na USP, informei-me sobre outras possibilidades de estudo, e estas se apresentaram como cursos de especialização: para "deficientes visuais, deficientes surdos e deficientes mentais". Cheguei a prestar prova para trabalhar com "deficientes visuais" no Instituto Caetano de Campos, na praça da República. Como ingressei em Pedagogia, não fiz o curso, mas, dois anos depois, trabalhei como voluntária, por um curto período, na Fundação para o Livro do Cego no Brasil, quando tive a oportunidade de conhecer sua fundadora, Dorina Nowill.

Termino os parêntesis e volto aos fatos. Com a ingenuidade e disposição para ajudar, próprias da juventude, concordei com a Diretora. E vieram as recomendações:

A sala dos retardados mentais fica fora da escola (atrás do prédio principal). Os pais levam os alunos até sua sala, por isso chegue antes do horário. Sabe, alguns são perigosos, não convém que fiquem no pátio com os normais, porque pode dar confusão. Os pais reclamam. É melhor ficar na sala mesmo. É bom revistar quando eles chegam, porque podem trazer objetos que machuquem eles mesmos ou os outros. Alguns são agressivos.

Muitas informações em um dia só, mas tentei retê-las. Meu grupo de alunos, a partir daquele dia, era marcado por uma "qualidade" - deficiência ou debilidade mental, o que o impedia de contato com os "normais". Era um grupo heterogêneo, que no meu leigo entendimento, apresentava diferentes formas de "retardo". Alguns não se comunicavam, nem comigo, nem com os colegas. Outros mexiam nos materiais que me foram cedidos pela diretora. Usei intencionalmente "mexiam", porque como não sabia trabalhar com eles, colocava-os à disposição dos alunos para manuseá-los.

Cansada de ficar na "sala dos especiais", certo dia perguntei: Quem conhece o pátio da escola? Manifestação? Nenhuma. Paulo (vou chamá-lo assim) então se manifestou: A gente pode passear no recreio (para ele, pátio era sinônimo de recreio, onde os demais tomavam seu lanche, o que era vedado ao meu grupo). Percebendo minha relutância, continuou: Eu ajudo a professora para não deixar ninguém fugir. Fomos. Em nosso passeio, Paulo me contava coisas, falava o nome das plantas e flores (o pátio era muito bem cuidado), corria atrás de quem queria ir para longe do grupo.

Tirando o fato da reprimenda que levei da diretora, na frente dos alunos e dos funcionários, quando foi avisada pelas funcionárias sobre o que eu fizera (veio pessoalmente chamar-me atenção), o passeio foi muito proveitoso. Deu-me a chance de falar-lhe sobre Paulo: o lugar dele é na classe regular! Não há porque ficar na classe especial! A diretora: Mas ele tem laudo!

À época, na Secretaria Estadual de Educação havia o Serviço de Higiene Mental, no qual as crianças eram atendidas e recebiam um laudo, o que as encaminhava ou não, para classes especiais. Não tenho clareza sobre quais critérios os professores utilizavam para enviar as crianças para serem "laudadas". Mas o fato é que recebiam um laudo, que podia encaminhá-las para longe de todos os "regulares". Uma ressalva: a diretora não era mal-intencionada, ela recebia os protocolos e os atendia, diligentemente. Não via porque não atender o que os técnicos (não sei qual era sua formação) do Serviço de Higiene Mental lhe informavam.

Mas a afirmação "forte e grossa": Mas ele tem laudo! deu-me a arma para defender Paulo. No curso de pedagogia eu tinha uma colega muito bem relacionada em diferentes meios e recorri a ela (tornou-se minha amiga e devo a ela muitos acertos): Preciso de um laudo! A mãe não tem condições de recorrer. Gilda informou-me que na Prefeitura também havia um serviço de atendimento aos alunos, e que conhecia a responsável pelo mesmo que, por sinal, questionava o tipo de avaliação que se fazia, via testes. Com sua intermediação, Paulo foi atendido e recebeu uma Declaração que estava apto para cursar classes regulares. Agora, era esperar a reação da diretora. A princípio, rejeitou a declaração porque não vinha de órgão competente. Depois, aceitou o argumento de que a mãe podia apresentá-la em outros departamentos e não convinha um confronto. Aceitou também a proposta de o colocar em classe regular para vamos ver o que vai dar.

Chegou a professora com a especialização requerida e fui encaminhada para "minha classe". Esta tinha sido designada a mim, segundo descobri mais tarde, por ser considerada a "pior classe da escola, só de repetentes" (detalhe: eu era professora iniciante, nunca tinha dado aula, e era recém-chegada do interior. Mas esta e é outra história).

No final do ano saiu meu comissionamento e fiquei à disposição da USP para fazer o curso de Pedagogia. Fui despedir-me da diretora e procurei o professor da sala regular na qual ficara Paulo, para saber dele.

- O Paulo? Está até me ajudando. Ele é um pouco demorado para entender, mas quando entende, tem um jeito muito especial para explicar para quem não entende.

Resgatar essa memória que "se demorava atrás das sombras incertas" ajudou-me a purgar minha culpa por aceitar viver a exclusão de algumas crianças de um meio que lhes favoreceria o desenvolvimento. Talvez algumas precisassem, mesmo, de um atendimento além daquele do meio escolar. Não tenho elementos para julgar. Mas a lembrança de Paulo reforçou-me a convicção de que se aprende - e se transforma - no convívio com o outro e de que, quando o professor, como o fez a professora que o recebeu na classe regular, respeita o ritmo de aprendizagem do aluno e aceita seus limites e possibilidades, promove o crescimento dele e dos demais alunos. E o seu também.

Laurinda Ramalho de Almeida

 

Alguns comentários sobre o depoimento de Laurinda Ramalho de Almeida

Esse relato retrata não apenas uma experiência vivida por uma jovem professora que chegava em seu primeiro dia de trabalho como docente premiada com um cargo efetivo na Rede de Ensino Estadual de São Paulo; ele mostra como as crianças com deficiência (ou não) eram acolhidas pela escola naquele tempo, tempo que perdurou por muitos anos...

As primeiras experiências de escolarização de crianças com deficiência2 especialmente aquelas com deficiência intelectual, remontam as décadas de 1920 e 1930. Na década de 1920, Ulysses Pernambucano cria a Escola para Anormaes d'intelligencia, no Recife e, mais tarde, sob a liderança de Helena Antipoff, é fundada a Sociedade Pestallozzi, em Belo Horizonte. Essas duas experiências forma pioneiras no Brasil, como o foi a Casa dei Bambini, fundada por Montessori, na primeira década do século XX, em Roma. É importante destacar que essas experiências revestem-se de um pioneirismo que precisa ser interpretado para além de um presenteísmo muito comum nas análises que tendem a apontá-las como a base para uma educação segregada. Ao contrário, essas instituições foram criadas para oferecer a essas crianças a possibilidade de escolarização. Em geral, tais crianças viviam internadas em hospícios, vivendo em meio a adultos com "transtornos mentais" ou, o que era mais comum, reclusas em suas próprias casas. Montessori, Pernambucano e Antipoff, entre outros, partiam do princípio de que tais crianças poderiam e deveriam ser sujeitos da educação. Tratava-se de substituir o hospício ou os "quartinhos" pela escola, fornecendo-lhes condições para que pudessem aprender e se desenvolver.

Entretanto, poucas décadas depois, essa concepção vai cedendo lugar à ideia de uma educação especial, segregada e terminal. Esse processo, baseado na patologização e na medicalização produziu a estigmatização, o preconceito e a ruptura com a concepção que via nessas crianças sujeitos de aprendizagem e de desenvolvimento. Perdia-se a dimensão educativa e reduzia-se o educando à condição de paciente. A psicologia, pela via da psicometria, por seu turno, contribuiu muito para esse processo, desenvolvendo formas de psicodiagnóstico, a partir principalmente da crença na mensuração da inteligência como instrumento capaz aferi-la como algo estático e indicativo de prognóstico para a possibilidade ou não de escolarização efetiva. Estavam dadas as condições para que contingentes enormes de crianças recebessem um diagnóstico (diga-se, de passagem, já naquela época questionáveis), que levava a um prognóstico e a um tratamento: a escola especial segregada. Por fim, essas crianças, eram condenadas a realizar a profecia de sua incapacidade, ficando à margem das possibilidades de aprendizagem, de desenvolvimento integral, de direitos!

Na década de 19703 aparecem algumas críticas, que vão se ampliando e aprofundando a análise das condições de segregação impostas àqueles diagnosticados como tendo algum tipo de deficiência.

Na década de 19904, eclode um movimento mundial pela inclusão de educandos com deficiência em escolas e, especialmente, em classes regulares, e, no Brasil, país signatário desses manifestos, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN, de 1996, assume a educação inclusiva; nas duas décadas seguintes, muito foi feito nesse perspectiva, com políticas públicas comprometidas não só com os educandos com deficiência, transtornos do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, mas também para todos aqueles que fossem sujeitos de exclusão.

Mas, o tempo passa e chegamos em 2020...

Mitsuko Aparecida Makino Antunes

 

E à propósito do decreto5 10.502, de 2020...

Longa data nos separa desta experiência de inserção de alguns alunos com deficiência na escola regular. Experiência classificatória e medicalizante na medida em que o laudo é que diz o que o aluno ou aluna é ("Ele tem laudo"). Estudantes estigmatizados e com lugar delimitado dentro da escola ("não convém que fiquem no pátio com os normais"). Lugares residuais na educação, mas "não tem importância. Tem alguns que não usam nem o verbal."

Estamos prestes a assistir a um retrocesso a essa situação, com novos atores, novas estratégias mais neoliberalmente cruéis, de uma exclusão não mais branda, mas explícita e com tendência a ser muito mais rápida. Toda a lógica da exclusão justificada pela própria deficiência, da separação pelos tipos de limitação, do afastamento dos alunos "normais" está autorizada e ratificada por esta política. A clássica frase "não estou preparado para isso" é fortalecida diante dos critérios que são estabelecidos (por quem e com que interesse?) para determinar quais alunos não se adaptaram à escola regular e prontamente encaminhá-los para lugares mais "adequados".

O relato parece não ser mais tão longínquo - nos aproximamos dele a cada artigo e inciso da política que se pretende aplicar agora. A efetivação deste decreto nos afasta do reconhecimento histórico de que pessoas com deficiência são parte essencial da história humana e são, eles próprios, sujeitos humanos. Eticamente, a dignidade e a equidade entre os seres implicam a presença e a participação da pessoa com deficiência no movimento existencial de toda a humanidade. Para tanto, as políticas públicas têm que ser consoantes com esta ética e não com a perspectiva dos interesses do capital, historicamente segregadora e capacitista. Ao contrário, a perspectiva inclusiva expressa a necessidade da desconstrução de barreiras para o acesso de todos e todas, com e sem deficiência, permitindo que todo o conjunto da sociedade tenha a possibilidade de desfrutar do patrimônio sociocultural construído pela humanidade.

A sala de aula é um dos espaços privilegiados para que essa convivência emancipatória e esse desfrute igualitário dos saberes aconteça. E é isso que está sendo potencialmente usurpado de um em cada sete brasileiros (mais de 30 milhões de pessoas com deficiência!) com o decreto n°10.502/2020. Quando ele relativiza a sala de aula como o espaço essencial para a socialização, o aprendizado e o desenvolvimento de estudantes com deficiência, mais do que sacrificar esta geração, privando-a de tudo isso, o decreto estrutura e consolida uma lógica privatista de educação especial (não inclusiva) que sangra os cofres públicos em valores até superiores ao que seria gasto com a melhoria da qualidade na educação pública, transferindo este erário para a iniciativa privada, cujo único objetivo será (como já tem sido) o de auferir lucros. E isso se propagandeia sob o argumento da "livre escolha" dos pais.

O decreto n°10.502/2020, portanto, deve ser considerado um retrocesso por muitos motivos, todos eles em prejuízo das pessoas com deficiência, suas famílias e toda a sociedade, ele próprio se colocando como a principal barreira a todo o processo de desenvolvimento da educação especial-inclusiva que vem sendo historicamente engendrada. É uma situação muito grave! Por isso esse debate sobre a efetivação desta política não há que se encerrar jamais; ao contrário, há que se acirrar em cada relato, em cada protesto e na luta por sua não concretização.

Luciana de Oliveira Rocha Magalhães

 

Descortinando as implicações do decreto nº 10.502/2020 à educação inclusiva

A trama narrativa tecida por Laurinda apresenta contornos constitutivos das experiências de encantos e desencantos vividas por uma professora em seus trajetos iniciais no exercício da prática educativa. Seu relato reverbera denúncias preocupantes que nos alertam sobre as complexidades das contradições e dos antagonismos sociais inerentes à sociedade capitalista que se manifestam no recrudescimento do imperativo da produtividade, competitividade, de práticas segregacionistas e de higienização social que se expressam e medeiam o processo de naturalização, individualização e manutenção das desigualdades sociais, econômicas, étnico-raciais e de gênero.

Nessa direção, os mecanismos de desmonte das políticas públicas de educação, forjado ao longo de décadas, que engendrou o século XX e que prevalece nos primeiros anos do século XXI, reflete de diversas maneiras no esvaziamento do papel da educação escolar em criar condições para que os atores/atrizes sociais se apropriem dos conhecimentos sistematizados historicamente pela humanidade, atingindo também outros setores do campo social; entre eles a assistência social, a cultura, a previdência, o meio ambiente e a saúde.

Tal processo, subsumido à dinâmica de privatizações e as leis do mercado estrangeiro, se revela, entre outras formas, na morte simbólica e concreta de crianças que historicamente tendem a não ser reconhecidas no estatuto de sujeito, à medida que são subjugadas à condição do não ser, por meio de modelos classificatórios sustentados no binômio normalidade/anormalidade construído historicamente.

Tendo em vista essas considerações, salienta-se que a análise hegemônica sobre as dificuldades no percurso de escolarização por via dessa perspectiva dicotômica, ancoram-se em explicações científicas do darwinismo social, do determinismo social, da teoria da carência cultural engendradas aos preceitos do movimento de higienização social, que permanecem alicerçando os princípios classificatórios, normatizadores e de controle social que operam em diferentes dimensões da vida social, cultural, econômica e subjetiva, com vistas ao ajustamento e adaptação do sujeito ao status quo.

Diante disso, pode-se elucidar que tais elementos classificatórios e segregacionistas que envolvem o âmbito da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, se enreda mediante instrumentos que agem no exercício da subalternização, inferiorização, anulação e, consequentemente, na aniquilação do Outro inscrito sob a ótica da incapacidade, do moralismo e/ou periculosidade como destoante dos padrões de rendimento acadêmico instituídos na educação escolar burguesa.

Como consequência, ao longo das últimas décadas no cenário brasileiro, observa-se a tendência do endereçamento de crianças identificadas com problemas no processo de transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental aos Serviços de Saúde Mental. Tal movimento evidencia aspectos de intersecção entre os campos da Educação e da Saúde Mental, que revelam elementos dos processos de medicalização e patologização dos fenômenos de ordem eminentemente social.

Essas proposições assinaladas oferecem aspectos que reforçam a explicação de que na fase de barbarização do capitalismo os elementos coercitivos, segregacionistas e racistas tendem a se sobressair, tanto por via de leis moralmente regressivas, como por meio da violência policial que opera no campo legal do extermínio, principalmente da população negra periférica.

Com efeito desses mecanismos de exclusão, as informações do Atlas da Violência (IPEA) mostram que somente no ano de 2017, 35.783 jovens de 15 a 29 anos foram assassinados no Brasil, o que representa um índice de 69,9 homicídios para cada 100 mil habitantes, alcançando um recorde na última década. Sob esse aspecto, ao sistematizar o perfil dessas vítimas, tal relatório revela que são homens, negros, jovens de 15 a 19 anos, com até 7 anos de estudos. Os assassinatos correspondem a 59,1% dos óbitos de homens entre a faixa etária de 15 a 19 anos (IPEA, 2019).

Isto posto, as linhas delineadas por Laurinda convocam a continuidade e o fortalecimento de mobilizações coletivas comprometidas com uma educação orientada pela perspectiva emancipatória, que propicia ao sujeito o desenvolvimento das máximas potencialidades humanas, com vistas à transformação da realidade e de si próprio.

Ruzia Chaouchar dos Santos

 

 

1 Todas as denominações utilizadas no texto para designar educandos com deficiência são aquelas utilizadas na época. Optou-se por mantê-las para que o leitor pudesse aproximar-se mais da época em que os fatos ocorreram.
2 No século XIX, no Rio de Janeiro, foi criado o Instituto Imperial dos meninos cegos, em 1854, e o Instituto dos Surdos-mudos, em 1856. Essas foram as primeiras experiências brasileiras com a finalidade de prover escolarização para educandos com deficiência visual e auditiva.
3 Sugere-se a leitura da pesquisa: Schneider, D. W. As classes esquecidas: os alunos excepcionais do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro, diss. mestrado, Antropologia Social, Museu Nacional - UFRJ, 1974.
4 Ver a Declaração Mundial de Educação para todos, que ficou conhecida com Declaração de Jomtien e a Declaração de Salamanca.
5 Brasil. (2020). Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao longo da vida. Diário Oficial da União. Recuperado: 20 out. 2020. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10502.htm

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