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versão impressa ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008
ARTIGOS
O ethos homérico, a cultura da vergonha e a cultura da culpa1
The homeric ethos, the shame culture and the guilt culture
Lucas Mello Carvalho RibeiroI; Ariana LuceroII; Eduardo Dias GontijoIII
Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
O presente ensaio tem como objetivo apresentar o ethos que subjaz às duas grandes narrativas homéricas, no intuito de caracterizar o povo grego tal como descrito por Homero, tanto na Ilíada quanto na Odisséia, como uma Cultura da Vergonha em oposição a uma Cultura da Culpa, terminologia cunhada por Ruth Benedict e apropriada por E. R. Dodds em sua análise do mundo helênico. Pretende-se, ainda, mostrar que mesmo definida essencialmente como uma cultura da vergonha, a coletividade narrada por Homero, principalmente na Odisséia, deixa antever as condições de possibilidade para o estabelecimento de uma cultura da culpa, que irá concretizar-se nos períodos posteriores da Antigüidade helênica.
Palavras-chave: Homero; Grécia homérica; Ethos homérico; Cultura da vergonha; Cultura da culpa.
ABSTRACT
The present essay intends to bring out the ethos that lies beneath the two great Homeric narratives, in order to characterize the Greek people, as described in the Iliad and in the Odyssey, as a Shame Culture in opposition to the Guilt Culture, terminology coined by Ruth Benedict and adopted by E. R. Dodds in his analysis of the Hellenic world. It also aims to show that, though defined essentially as a shame culture, the collectivity referred to by Homer, mainly in the Odyssey, allows to foresee the conditions of possibility for the establishment of a guilt culture, that will come to existence in ulterior periods of Greek antiquity.
Keywords: Homer; Homeric Greece; Homeric ethos; Shame culture; Guilt culture.
Introdução: Homero e a importância de sua obra
Qualquer tentativa de traçar sequer um esboço de uma biografia de Homero não poderia passar de um exercício especulativo. Existem, de fato, muitas histórias sobre sua vida, todas, porém, de caráter lendário. É discussão corrente entre os historiadores e estudiosos do mundo antigo em geral, se sob a denominação de Homero se escondem um, dois ou uma multidão de poetas-cantores (aedos). O busto de Homero, datado da época romana e hoje conservado no museu de Munique, mostra um homem cego, barbudo, cabeludo e de expressão altiva. Esse busto, contudo, não corresponde a um retrato, mas sim à imaginação dos antigos, que relacionavam a cegueira ao poder de adivinhação à capacidade de antever o futuro2 , bem como acreditavam “que a memória de um homem era mais extraordinária quando ele se encontrava desprovido de visão” (Vidal-Naquet, 2002, p. 13).
Tarefa bem mais realística e exeqüível, no entanto, é destacar a importância de sua obra. Homero é alcunhado por muitos de “o mestre de todos os gregos”, e não é preciso muito para estender sua influência para além dos limites da Hélade até a Contemporaneidade.
As repercussões do texto homérico fizeram-se sentir fortemente no âmbito do pensamento formal (filosofia, literatura, pedagogia etc), assim como na própria linguagem rotineira. O título de sua segunda epopéia, por exemplo, tornou-se substantivo de uso comum na fala cotidiana: “as últimas férias de verão foram uma verdadeira odisséia!”. O nome Homero, por sua vez, tornou-se um adjetivo sinônimo de grandioso, épico, retumbante; também de uso corrente: “ontem à noite, tomei um porre homérico”.
Com efeito, as duas grandes narrativas homéricas fundaram a literatura ocidental, e os quatrocentos anos referentes aos acontecimentos por elas narrados acabaram por se constituir como um período histórico: a Grécia Homérica (século XII a.C. século VIII a.C.)3. Tal delimitação histórica, longe de ser fortuita, reflete com justiça o monopólio intelectual da Ilíada e da Odisséia durante um longo período da Antigüidade Helênica, fato denunciado nos escritos dos primeiros filósofos gregos, que de uma maneira ou de outra tiveram que se haver com ele. Assim, vemos Platão, feroz crítico dos poetas, dizer que era opinião difundida no seu tempo ter sido Homero o educador de toda a Grécia, e em sua célebre República diálogo consagrado à construção dos fundamentos sobre os quais deveria se erguer a pólis ideal , lemos Sócrates porta-voz de Platão atentar seu interlocutor para tal:
Assim pois, Glauco, quando te deparares com panegiristas de Homero, afirmando que este poeta efetuou a educação da Grécia e que, para administrar negócios humanos ou ensinar o seu manejo, é justo tomá-lo em mão, estudá-lo e viver regulando por ele toda a existência, deves por certo saudá-los e acolhê-los amigavelmente, como homens que são tão virtuosos quanto possível, e concederlhes que Homero é o príncipe da poesia e o primeiro dos poetas trágicos, mas saber outrossim que, em matéria de poesia, não se devem admitir na cidade senão os hinos em honra dos deuses e os elogios às pessoas de bem (Platão, 1965, p. 336).
Tendo exposto sucintamente a importância da obra homérica, não só para a Antigüidade Grega mas para a cultura ocidental em geral, destacaremos por ora o ethos que dela depreende-se, uma vez que podemos depurar das epopéias de Homero, dentre vários outros aspectos da vida humana, uma primeira teoria sobre a conduta dos homens (cf. Lledó, 1988, p. 17), ou seja, indícios daquilo que posteriormente determinará o campo da moralidade.
O ethos homérico
Antes de embarcarmos nas veredas do ethos homérico propriamente dito, acreditamos ser de extrema relevância fazermos uma delimitação semântica do termo ethos desde suas origens gregas, no intuito de precisarmos o uso que dele faremos no decorrer deste texto4.
O vocábulo ethos é uma transliteração dos dois termos gregos ethos (ηθoζ com eta inicial) e ethos (εθoζ com épsilon inicial). Essas duas grafias de ethos existentes no grego dão origem a duas acepções distintas dessa palavra. O ethos grafado com eta (η) inicial designa a morada do homem e do animal (zóon) em geral. Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor (morada), é a raiz semântica que origina a significação do ethos como costume, estilo de vida e ação. Por sua vez, o ethos com épsilon (ε) inicial refere-se ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos, um comportamento que ocorre freqüentemente, mas não sempre, tampouco em decorrência de uma necessidade natural. O ethos expressa, nesse caso, uma constância no agir contraposta ao impulso do desejo, denotando uma orientação habitual para agir de certa maneira. Ele se desdobra, assim, como espaço da formação do hábito, entendido como disposição permanente para agir de acordo com os imperativos de realização do bem, tornando-se lugar privilegiado de inscrição da praxis humana.
Isso posto, destacamos que quando aludirmos aqui ao ethos homérico operaremos uma condensação dos dois sentidos originais dessa palavra: iremos nos referir tanto aos costumes, estilos de vida e ação da coletividade homérica, quanto aos atos que lhe são habituais. Com efeito, a transcrição latina de ethos mos já agrupa essas duas acepções.
Feita essa preliminar semântica do termo ethos, passemos à sua análise no escopo do mundo homérico. Não há, em Homero, uma teoria da ética propriamente dita, no sentido de que seus poemas não apresentam uma doutrina sistemática que pretenda, conscientemente, refletir sobre os valores subjacentes à conduta dos heróis. Contudo, está presente de forma nítida nos personagens que habitam o mundo de Homero uma organização prática, uma sociedade dinâmica na qual antevemos um ethos (ainda que não haja reflexão sistemática sobre o mesmo), isto é, um modo de ser, um espírito que anima uma coletividade, algo que é característico e predominante nas atitudes de um povo, e que marca suas realizações.
Mas qual seria, afinal, o ethos homérico? O ethos homérico é essencialmente um ethos da ação: somos o que fazemos.
Este fazer, que é condição fundamental para se definir o sentido de um comportamento, não emerge, entretanto, em acordo ou em contraste com um conjunto de normas ou imperativos. No mundo homérico, não existem códigos morais ou instituições que regulem a ação humana. O espaço social no qual os heróis homéricos expressam sua virtude (areté)5 é, na verdade, um complexo sistema proclamador de seus fracassos e de suas façanhas. Destarte, o ethos não nasce de um exercício reflexivo, de um pensamento que interpreta e avalia a experiência, mas se concretiza nas realizações, obras e atividades dos homens.
Ora, um ethos que se solidifica por meio dos feitos heróicos traz consigo, como conseqüência lógica, a necessidade de uma coletividade que confira valor às atividades do herói, transformando suas ações às vezes em fracassos retumbantes, outras em feitos ilustres e memoráveis. O herói homérico nunca está sozinho; sobre ele pesa incessantemente o olhar de uma coletividade proclamadora de seu fazer. No mundo narrado por Homero, cada um se vê impelido em suas ações a incorporar o coletivo, forjando uma forma peculiar de individualidade6, imersa na comunidade da qual é parte indissociável. De fato, o herói e os demais personagens homéricos não aparecem como sujeitos psicológicos, mas como integrantes de um socius demarcado (são gregos ou troianos, por exemplo).
Visto que o valor das ações protagonizadas tanto na Ilíada quanto na Odisséia é dado pela coletividade, faz-se imperativo, por ora, explicitarmos quais são os valores e as virtudes que orientam o crivo da coletividade homérica. Para levarmos a cabo tal tarefa com alguma consistência, necessitamos antes fazer uma pequena digressão, no intuito de estabelecer certa diferenciação contextual entre a Ilíada e a Odisséia.
Não são poucos os problemas e as polêmicas que envolvem a “questão homérica”. A escassez de dados históricos sobre os escritos homéricos torna extremamente difícil o trabalho de datá-los precisamente, sendo os próprios poemas a principal fonte para tal. Optamos, aqui, por acompanhar o eminente helenista alemão Werner Jaeger, que em sua extraordinária Paideia, afirma categoricamente: “do ponto de vista histórico, a Ilíada é um poema muito mais antigo. A Odisséia reflete um estágio muito posterior da história da cultura” (Jaeger, 1979, p. 34)7. A essa separação cronológica corresponde uma distinção de âmbitos, que por sua vez modelará diferentes valores coletivos, diferentes ethos.
A Ilíada se desenrola no espaço que separa as embarcações gregas das muralhas de Tróia, tendo como horizonte a situação de guerra. As virtudes do herói (aristói) são, portanto, as virtudes do guerreiro. Os heróis da Ilíada são quase todos guerreiros, e como tais devem se mostrar fortes, combatentes, corajosos e sagazes perante aqueles que os observam em suas batalhas, derrotas e conquistas. Já o espaço narrativo da Odisséia é incomparavelmente mais extenso, e tem como horizonte o retorno de seu grande protagonista Ulisses (Odisseu) à cidade, representando intuitivamente a vida na paz. A Odisséia, ao retratar a existência do herói após a guerra, suas viagens e sua vida doméstica, substitui a excelência (areté) guerreira por outras virtudes, a saber, virtudes aristocráticas relacionadas à linguagem, às “aladas palavras” que permitirão uma nova forma de sociabilidade: a pólis. O herói da Odisséia é aquele que, para cada ocasião, encontra a palavra certa8. Esse virtuosismo da palavra possibilitará romper o obscuro horizonte da guerra e será, justamente por intermédio da palavra (logos), que se fundará a vida racional, a vida política.
É sob esse cenário do ethos homérico (tanto da Ilíada como da Odisséia), acima construído, que analisaremos agora o mundo homérico segundo as categorias de cultura da vergonha e cultura da culpa, formuladas pela antropóloga cultural Ruth Benedict (2002) e empregadas pelo helenista E. R. Dodds (2002) em seu estudo sobre os Gregos e o Irracional.
Culturas da vergonha versus culturas da culpa
Ruth Benedict, em seu livro O crisântemo e a espada, no qual faz uma detalhada e consistente análise dos padrões de cultura da sociedade japonesa, ao descrever o ethos japonês, seus imperativos morais e o “dilema da virtude” na sociedade em questão, identifica o Japão como uma cultura da vergonha. Mas o que caracterizaria tal cultura? A antropóloga relata que se impõe para o povo japonês uma forte identificação entre ponderação e dignidade, o que pressupõe a vigilância implacável dos atos individuais por uma alteridade/ coletividade sempre disposta a julgar. Citamos Benedict: “a dignidade se cultiva, dizem eles [os japoneses], por causa da sociedade” (2002, p. 118). Dessa maneira, são sanções externas que ratificam a honra e a dignidade individuais.
Pois bem, a antropóloga americana afirma ser de grande valia, nos estudos de diferentes culturas, a distinção entre aquelas que enfatizam sobremaneira a vergonha e aquelas que enfatizam predominantemente a culpa. As verdadeiras culturas da vergonha seriam aquelas que salientam os imperativos externos para garantir a boa conduta, ao passo que as verdadeiras culturas de culpa (Benedict coloca como exemplo a cultura dos Estados Unidos) assegurariam a retidão do comportamento pela interiorização de uma idéia de pecado, ou de alguma falta moral equivalente. A vergonha se configuraria, então, como reação à crítica dos demais, para vivenciá-la seria necessária a presença ou ao menos a suposição de uma platéia; platéia que não somente assiste, mas julga, avalia. Por outro lado, na culpa todo o acento recai sobre a interiorização de uma consciência moral, e nesse sentido, ela prescinde da crítica alheia para ser experimentada, bastando para isso que determinado ato não esteja em sintonia com a imagem que alguém faz de si próprio, daí o sentimento de culpa ser aliviado por meio da confissão da falta moral, expediente ineficaz, e por conseguinte, ausente nas culturas de vergonha. Acrescentamos, ainda, que somente a intenção, somente o desejo de realização de um ato moralmente recriminável (em relação aos valores do sujeito que o intenta) já basta para despertar a culpa, enquanto a vergonha requer não só a execução do ato (recriminável aos olhos de toda a coletividade promulgadora dos valores individuais), mas que este seja presenciado por outrem para ser experimentada pelo indivíduo faltoso.
O mundo homérico como cultura da vergonha
Apesar da distinção entre culturas da vergonha e culturas da culpa e suas respectivas caracterizações terem sido estabelecidas em um âmbito distante daquele que aqui nos ocupa, acreditamos ser ela, acompanhando Dodds, um valioso instrumento de análise do mundo grego antigo; em nosso caso, do mundo homérico mais especificamente.
Vimos anteriormente que o ethos homérico, um ethos da ação, se fundamenta em uma coletividade que confere valor às atividades humanas. Ou seja, a boa conduta (o feito heróico) se dirige para e é sancionado por um olhar e um crivo externos ao indivíduo. Nas palavras de Dodds:
O sumo bem do homem homérico não é a fruição de uma consciência tranqüila, mas sim a fruição de timé (estima pública). (...) A mais potente força moral que conhece não é o medo de deus, mas o respeito à opinião pública, aidôs (Dodds, 2002, p. 26)9.
Ora, é precisamente essa ênfase na opinião pública como sancionadora dos atos individuais, no caso de Homero dos atos heróicos, que caracteriza aquilo que há pouco definimos como cultura da vergonha, em oposição a uma cultura da culpa.
Por ora, para ilustrarmos nossa argumentação, faremos uso da noção de ate (ατη), muito bem definida e pormenorizada por Dodds, em seu já mencionado estudo acerca da relação dos gregos com o irracional. A ate surge, no contexto do ethos homérico, como resposta ao conflito entre impulsos individuais e uma constante pressão de adaptação social10, referente à necessidade de estima pública, característica de uma cultura fundamentada na vergonha. No mundo homérico, qualquer evento que exponha um homem ao desprezo perante outro é vivido como insustentável. Daí a emergência da ate como maneira de projetar sobre um poder externo (deuses) os disruptivos sentimentos de vergonha, que em decorrência de um eventual fracasso, acometeriam o herói homérico. Seguindo Dodds, podemos definir a ate como um estado mental no qual se dá um bloqueio temporário, uma confusão no estado normal de consciência; estado esse comumente atribuído a uma intervenção externa e demoníaca (daimon). Dodds propõe ainda o termo “intervenção psíquica” para referir-se a esse fenômeno, que ocorreria por meio de uma transposição dos acontecimentos do interior do sujeito para o mundo externo, em uma verdadeira objetivação de forças pulsionais. A ate era geralmente atribuída a Zeus (seu principal articulador), à moira (representante do destino), às Erínias (ministras da vingança), ou ainda à ação desses agentes em conjunto (sobredeterminação). Recorrendo à ate, os protagonistas de Homero podiam admitir o erro, uma falta moral, com alguma serenidade, na medida em que se desresponsabilizavam por um ato desonroso (fracasso), de outro modo motivo de enorme e aflitiva vergonha. Façamos uso de uma passagem da Ilíada, na qual Agamêmnon se desculpa perante Aquiles:
Freqüentemente inculpavam-me os fortes argivos; contudo,
culpa não tenho nenhuma, senão, tão somente, Zeus grande,
a fatal Moira e as Erínias que vogam nas trevas espessas.
Uma cegueira feroz me ensejaram tais deuses no peito,
ao qual me fez no conselho, Pelida privar do alto prêmio.
Como pudera eu reagir? São os deuses que tudo dispõem.
A culpa é filha de Zeus, deusa excelsa que os homens conturba,
nume funesto de pés muito leves, que terra não roça,
ao caminhar, mas passeia sobre a cabeça dos homens,
ocasionando tropeços. Até seres mais altos enleia (Homero, 2002, p. 293).
Vemos com clareza, nos versos acima, Agamêmnon externalizar, objetivar uma culpa que lhe era atribuída (culpa essa que deve ser entendida como responsabilidade por um ato) aos articuladores da ate (Zeus, a moira e as Erínias, respectivamente). Com efeito, o herói de Homero nunca age por vontade própria, ele desconhece a intencionalidade; suas ações ora são determinadas por seu destino, ora atravessadas por alguma intervenção externa, o que torna bem mais fácil para ele admitir um erro e pagar por seu ato, em suma, lidar com a vergonha.
Percebemos, igualmente, que o herói homérico imputa culpa (responsabilidade) aos deuses, mas não a interioriza; ele não experimenta um sentimento de culpa vinculado a uma consciência moral. De fato, a ate não é posta no caminho do herói como uma punição por atos irrefletidos ou faltas anteriores. Ela é a própria irreflexão, e como tal, justifica os eventuais fracassos e deslizes de conduta do herói, não envolvendo, de modo algum, uma idéia de culpa no sentido moral.
O homem homérico não possuía um conceito unificado de alma ou personalidade11 (ele não possui interioridade), bem como buscava explicar seu caráter e sua conduta exclusivamente em termos racionais12. Logo, todos seus impulsos não racionais lhes eram alheios, e conseqüentemente, atribuídos a uma origem externa, o que virtualmente impossibilita a interiorização de uma noção de erro ou falta moral. Ora, sabemos muito bem que sem a interiorização de uma idéia de falta, isto é, sem a existência de uma consciência moral internalizada, não há espaço algum para a experiência da culpa.
Não obstante, propomos, em seguida, delinear alguns aspectos da cultura homérica (uma cultura da vergonha), que permitirão ulteriormente (na Grécia Arcaica) o estabelecimento de uma cultura da culpa13.
O mundo homérico e as condições de possibilidade para o surgimento da culpa
Não é possível afirmar que houve uma ruptura histórica entre a Grécia Homérica e a Era Arcaica. Na verdade, a transição daquela (uma cultura da vergonha) para esta (uma cultura da culpa) se deu de modo muito sutil, e foi caracterizada muito mais por uma diferença de reações emocionais frente aos acontecimentos do que por uma mudança radical nas crenças e no pensamento do homem grego. Assim, veremos que muitos elementos que aparecem em Homero se repetem nas narrativas arcaicas todavia vistos sob um diferente enfoque.
Para demonstrarmos como as narrativas homéricas esboçam uma espécie de prelúdio para o nascimento da culpa no período arcaico (séc. VIII a.C. séc. VI a.C.), faz-se mister primeiramente delimitarmos como tal sentimento se apresentava no período em questão14.
Com vistas a fundamentarmos nossa argumentação, lançaremos mão, nesse momento, da noção de phthonos (φθoωoζ), tal qual definida por Dodds. O termo phthonos pode ser traduzido como inveja ou ciúme divino, e se refere ao fato dos deuses ressentirem nos humanos qualquer sucesso ou felicidade capazes de elevar sua mortalidade a um status acima do normal o que seria prerrogativa exclusiva dos deuses. O phthonos carrega consigo a idéia de que um excessivo sucesso traz certo perigo para aquele que o usufrui, principalmente se o êxito for alardeado.
Nesse panorama, o sucesso, a felicidade, a glória, resumidamente, as manifestações de triunfo em geral, passam a despertar no homem arcaico ansiosos sentimentos de culpa, que posteriormente, com a moralização do phthonos e a crescente tendência arcaica de transformar o sobrenatural (divindades) em agente de justiça, culminarão no medo de uma vingança dos deuses nemesis.
Pois bem, a restrição da felicidade aos deuses não é novidade do mundo arcaico. Os heróis da Ilíada sabiam muito bem que não encontrariam a felicidade, mas se contentavam com a recompensa advinda da fama. No canto XXIV da Ilíada, diante de seu inimigo Príamo derrotado, Aquiles anuncia: “pois assim os deuses fiaram o destino da pobre humanidade: a vida do homem deve ser triste e eles próprios isentos de cuidado” (Homero apud Dodds, 2002, p. 36). No entanto, essa afirmação de Aquiles não é motivada pela idéia de phthonos, ignorada na Ilíada o que pode ser comprovado pelo desinibido exibicionismo do homem homérico. Não obstante, na Odisséia ela já é levada em conta por exemplo, quando Calipso exclama que os deuses são os seres mais ciumentos do mundo, invejando a felicidade de qualquer mortal, por mais ínfima que essa seja (Homero apud Dodds, 2002, p. 37). De tal forma, podemos vislumbrar em Homero as condições de possibilidade para o surgimento da culpa, a saber: a idéia de um ressentimento dos deuses em relação à felicidade e ao êxito humanos, articulada a posteriori a phthonos.
Mas se o homem homérico já se encontra familiarizado com esses elementos, por que ele não é arrebatado pelos fortes sentimentos de culpa experimentados pelo homem arcaico? Ora, o aparecimento da culpa na Era Arcaica procede fundamentalmente de uma mudança na relação do homem com seus deuses, para a qual Dodds propõe duas vias de explicação, e aqui novamente o acompanharemos.
A primeira alternativa refere-se ao contexto social. O período arcaico, devido principalmente a razões de cunho político-econômico (pequenos estados superpovoados começavam uma luta para sair da condição de miséria deixada pelas invasões dóricas, grande crise econômica do século VII a.C., grandes conflitos políticos do século VI a.C.), se constitui como uma época de extrema insegurança pessoal, o que se refletiu claramente na literatura de então, ocupada em grande medida pelo desamparo humano. Desamparo que teve como correlato religioso um sentimento de hostilidade divina, uma vez que, para o pensamento arcaico, o poder e a sabedoria dos deuses, particularmente Zeus, impedia o homem de se superar e se elevar acima de si mesmo. Essa explicação é muito coerente com a idéia de phthonos, e contribui para entendermos outras mudanças pelas quais alguns conceitos clássicos de Homero passaram na Grécia Arcaica.
Tomaremos aqui o exemplo da ate, por ter sido um conceito já muito trabalhado no presente texto. A ate, como vimos, possui um caráter sobrenatural e representa a existência de um nexo dinâmico e misterioso entre os sentimentos e as ações dos homens. Em Homero, a ate é a justificativa para um ato irracional; por sua vez, no período arcaico, a ate passa a ser sentida como um castigo por uma ação realizada, mas pela qual o homem ainda não se sente responsável, na medida em que ele pode ser punido em lugar de outra pessoa. Aliás, o castigo e a punição divina são novidades da Era Arcaica. Novamente o contexto social ajuda-nos nesse ponto. A vida em sociedade em meio à crise econômica fez emergir um número excessivo de criminosos, o que fazia com que a demanda por justiça se acentuasse. Como não se verificava uma ação imediata dos deuses sobre a sociedade, manter a crença na existência divina dependia de duas possibilidades: ou o pecador seria punido na figura de seus descendentes, ou pagaria sua dívida pessoalmente em outra vida.
Nesse momento inicia-se a segunda via de explicação para a transição da cultura da vergonha para a cultura da culpa, a saber a família. A família era a pedra fundamental da estrutura social arcaica; a primeira unidade organizada, o primeiro domínio da lei. Assim como em todas as sociedades indo-européias, ela tinha uma organização patriarcal, sendo que a autoridade dos pais sobre as crianças era ilimitada. Em relação ao pai, o filho tinha deveres, mas não direitos. Enquanto o pai vivesse, ele era um menor perpétuo. Além disso, a família como unidade moral transformava a vida do filho em um prolongamento da vida do pai. O filho herdava a dívida moral do pai, da mesma maneira que herdava sua dívida comercial. Desse modo, a idéia de uma culpa herdada e de uma punição adiada é bastante difundida. Essa crença em uma solidariedade familiar pode ter levado à repressão de muitos desejos hostis dos filhos em relação a seus pais. Dodds chega a especular:
Não parece absurdo (...) concluir que a situação familiar da Grécia antiga, a exemplo da situação familiar nos dias de hoje, tenha feito nascer conflitos infantis cujos ecos deixariam traços no inconsciente das mentes adultas (2002, p. 54).
Mesmo vislumbrando tal hipótese, impõe-se a lição legada por muitos, e oportunamente relembrada por Dodds:
A evolução de uma cultura é por demais complexa para ser explicada sem resíduos por meio de fórmulas, sejam elas econômicas ou psicológicas, engendradas por Marx ou Freud. Devemos resistir à tentação de simplificar o que não é simples (2002, p. 55).
Finalizaremos este trabalho ressaltando algumas das principais características dos deuses arcaicos. Eles podem ser tomados como projeções dos sentimentos ambivalentes e estranhos que um filho experimenta em relação ao seu Pai: Zeus é fonte de bem e de mal em igual medida, mas ele pode se tornar ciumento e capaz de invejar seus filhos, chegando a puni-los de modo inexorável pelo pecado capital da auto-afirmação desmedida (hybris).
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Recebido em: 05.12.2006
Versão revisada recebida em: 05.04.2007
Aprovado em: 07.04.2007
I Aluno de graduação (Universidade Federal de Minas Gerais); Bolsista de Iniciação Científica (CNPq).
II Aluna de graduação (Universidade Federal de Minas Gerais); Bolsista de Iniciação Científica (CNPq).
III Psicanalista; Doutor (United States International University/USIU, Estados Unidos); Professor Associado (Departamento de Psicologia da UFMG); Coordenador do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica.
1 Este trabalho foi realizado no escopo da pesquisa “O sentimento de culpa em Freud: manifestações clínicas e implicações éticas”, coordenada pelo Prof. Dr. Eduardo Dias Gontijo (UFMG) e financiada pelo CNPq (bolsa PIBIC).
2 Como exemplo paradigmático dessa concepção, podemos citar o advinho-cego Tirésias, figura central no mito de Édipo.
3 Destacamos que a datação dos períodos da cultura helênica não é, de modo algum, unânime. Existem, pois, autores que optam por incluir Homero na Grécia Arcaica, suprimindo a distinção aqui posta entre período homérico e arcaico. Na esteira de autores como E. R. Dodds (2002, p. 35) e Marilena Chauí (2000, p. 34), mantemos, não obstante, a referida distinção, correspondente a uma diferenciação de ethos fundamental à nossa argumentação.
4 Seguiremos aqui a exposição de Pe. Henrique C. de Lima Vaz presente no primeiro capítulo (Fenomenologia do Ethos) de seu Escritos de Filosofia II: ética e cultura. Remetemos, portanto, o leitor à fonte original (Vaz, 1988, p. 11-16).
5 É válido ressaltarmos que não se trata, para Homero e para os gregos em geral, de uma virtude vinculada ao austero cumprimento de deveres, conotação dada ao termo pelo cristianismo; mas de algo relacionado à possibilidade do exercício da eudaimonia, ou em outras palavras, da vida plenamente realizada.
6 Este ponto será de extrema importância no desenvolvimento de nossa argumentação.
7 Em congruência com as afirmações de Jaeger estão as de outro importante helenista, o francês Pierre Vidal-Naquet (2002), que diz ser a Ilíada anterior à Odisséia por alguns decênios, acrescentando que provavelmente a composição oral dos poemas homéricos data dos últimos anos do século IX a.C., ou do início do século VIII a.C.; período de suma importância na história do mundo grego, em que se dá a consolidação de uma forma original de vida em sociedade: a pólis. A primeira versão escrita dos poemas, contudo, é um pouco mais tardia, datando provavelmente do século VI a.C.
8 Ressaltamos, não obstante, que em alguns cantos da Odisséia, sobretudo os cantos iniciais que narram o retorno de Ulisses à Ítaca, os valores ligados à guerra ainda permanecem, de certo modo, como medida da ação dos protagonistas.
9 Poderíamos acrescentar ainda que em termos morais, a glória do herói homérico se traduziria na honra, no prestígio e na fama, enquanto seu fracasso implicaria em imensa vergonha.
10 Aqui, a noção de conflito psíquico, tal como elaborada pela psicanálise, é de grande auxílio para nosso entendimento.
11 Com efeito, a idéia de alma unificada só aparecerá no pensamento grego com Sócrates (cf. Reale, 1999, p. 258-261).
12 O que ajuda, em muito, a compreender a crença dos heróis em uma “intervenção psíquica”: a ate.
13 Esclarecemos, desde logo, que essa distinção (cultura da vergonha versus cultura da culpa) deve ser em certa medida relativizada, pois alguns aspectos característicos de uma cultura da vergonha (Grécia Homérica) podem persistir em uma cultura da culpa (Grécia Arcaica), e assim reciprocamente.
14 Entretanto, dado o escopo deste ensaio, não iremos nos aprofundar a respeito da Grécia Arcaica, o que será realizado em estudo ulterior, dedicado à poesia de Hesíodo.