SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número22Abrindo espaço para o ser: Winnicott e a ludoterapia no contexto da violência familiarO Complexo de Édipo em questão índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.12 n.22 São Paulo jun. 2008

 

RESENHAS

 

Os últimos dias de Freud

 

 

Fábio Roberto Rodrigues Belo*

Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 

MARZAGÃO, Lúcio Roberto. Freud: sua longa viagem morte adentro. Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2007. 160p.

A relação entre a psicanálise e a literatura é multiforme. A psicanálise pode interpretar um texto literário, como o próprio Freud fizera com a Gradiva, de Jensen (1907[1906]). Ela pode ser transmitida em forma de literatura, como fizera Groddeck, no seu Livro d’Isso (1984). Ela pode até mesmo ser vista como literatura (Mahony, 1992). Uma das formas mais surpreendentes dessa relação, porém, é quando nossos personagens históricos ganham vida novamente por meio de invenções literárias1. O romance de Lúcio Roberto Marzagão, Freud: sua longa viagem morte adentro, tem o mérito de pertencer a essas três categorias ao mesmo tempo.

Em primeiro plano, temos “acesso” aos últimos dias de Freud, às suas últimas cartas e às suas últimas palavras sobre a psicanálise, no turbulento período que se estende de sua saída de Viena até sua morte em Londres. Na medida em que acompanhamos Freud, podemos ver ainda suas últimas entrevistas e até mesmo um último atendimento. Nesse sentido, algumas interessantes lições de psicanálise são transmitidas de forma clara e sem jargões. Por fim, ainda encontramos referências interessantes a alguns textos literários, como A pele de Onagro, de Balzac (p. 30), o conto Do rigor na xiência, de Jorge Luís Borges (p. 79-80), e uma inusitada presença de poemas Fernando Pessoa (p. 81), dentre outras citações, que se não chegam a ser interpretações exaustivas de textos literários, articulamse de forma instigante com a psicanálise, propondo metáforas que ajudam na compreensão de questões teóricas, bem ao estilo de Freud. Pode-se dizer que, de maneira geral, o romance de Marzagão acaba por multiplicar as relações entre psicanálise e literatura. Mas, há outros pontos relevantes a serem destacados. Passemos a eles.

O romance é dividido em seis partes. A primeira, intitulada “Fim”, é um monólogo, um fluxo de consciência, no qual Freud vive seus últimos instantes. Os três últimos dias de vida são vividos em uma atmosfera quase etérea. Para escapar da dor, Freud tenta pensar. O sofrimento causado pelo câncer, porém, não permite que seus pensamentos sejam lineares. Acompanhamos a associação livre de idéias: a lembrança de um romance, um comentário sobre a psicanálise, uma carta, um devaneio, um sonho. Até que, finalmente, Max Schur, médico de Freud, é chamado. A morte chega suave, e Freud diz a ela: “veja, tomei todas as providências antes que você chegasse... se cair coroa, eu ganho, se cair cara, você perde...” (p. 32). Como se pode ver, a ironia é uma arma nunca abandonada pelo autor de A interpretação de sonhos.

Como começa do final, o romance de Marzagão retorna aos eventos anteriores que levaram Freud a morrer em Londres. O segundo capítulo, “Bergasse 19 fecha as portas”, narra os últimos dias da família Freud em Viena. A dimensão política da narrativa começa a tomar vulto. O romance de Lúcio permite ver algo importante: Freud foi uma dessas raras pessoas nas quais o espírito de uma época se corporifica. Além da invenção da psicanálise, Freud e sua obra representavam muito do ponto de vista político. O tratamento que Marzagão dá a esta faceta de Freud merece atenção.

No quarto capítulo, “O nazismo encontra seu bode”, Marzagão narra a curiosa história do assassinato de Ernst von Rath, oficial diplomata alemão, cometido por um jovem judeu. O governo alemão usa o evento para justificar as agressões aos judeus na Noite dos Cristais. O mais interessante da história é que ficamos sabendo que o jovem judeu, Herschel Grynzpan, “vinha mantendo um romance com o diplomata alemão e dele tinha obtido a promessa de que sua permanência irregular em território francês seria regularizada por sua interferência diplomática e política” (p. 93). Quem narra essa outra versão do assassinato para Freud é o escritor H.G. Wells. Freud lembra que as várias versões do assassinato fazem pensar na psicanálise e sua recusa à “verdade final”. Para Freud, o que importava era que “as conseqüências dessas interpretações não diminuíam a tragicidade dos fatos” (p. 94).

Esse evento é importante na estrutura do romance de Marzagão por vários motivos. Como bons romances históricos tendem a fazer, as várias versões do assassinato de Von Rath colocam em dúvida a veracidade da história. O leitor pode se perguntar sobre o motivo dessa história em um livro que conta os últimos dias de Freud. Como interpretar isso que parece ser uma invasão da política em uma narrativa intimista? Penso que a “invasão” desse evento, além de mostrar como não podemos confiar no que é narrado pela história, mostra também como a interpretação de um fato pode potencializar o sentido que se queira dar a ele. Não poderíamos ler, então, essa passagem como uma metáfora metatextual, ou seja, como um aviso ao leitor de que o Freud que está sendo construído no romance de Marzagão é também um Freud interpretado, fruto de interesses que podem ir muito além da representação que se queira dar ao “fato”? E se for assim, como é esse Freud apresentado por Marzagão? Uma outra interpretação para a presença do assassinato de Von Rath no romance é que essa história se parece muito com a de Freud no que tange à sua relação um tanto absurda e trágica com o nazismo. Afinal, assim como Grynzpan foi usado como bode expiatório para a Noite dos Cristais, Freud também não tem uma relação tão direta com o judaísmo que justificasse sua perseguição pelo nazismo. Sabemos que a situação de Freud era igual à de milhares de outros judeus perseguidos e mortos no genocídio hitlerista. A questão é que Freud é um caso emblemático. Sua história pessoal mostra com muita clareza o absurdo e a “tragicidade dos fatos”.

Voltando à questão levantada: como é o Freud de Marzagão? Há pelo menos duas facetas desse personagem que merecem ser destacadas: uma íntima e outra pública. A íntima está expressa nas belas cartas espalhadas por todo o livro. Cartas de despedida, de agradecimento, de recomendações. A face íntima de Freud mostra alguém sem medo da morte que se aproxima. A gratidão dá o tom em todas as cartas para a família. Já a face pública do personagem está intimamente ligada às suas posições com relação à psicanálise. Ela é expressa também em vários momentos do livro. Gostaria de destacar alguns.

O capítulo 3, “Londres”, narra a chegada e a instalação da família Freud na capital inglesa. Nele há também uma longa e interessante entrevista de Freud, na qual ficam claras algumas de suas posições com relação à psicanálise. O Freud de Marzagão é profundamente interessado em aproximar a psicanálise da literatura, e extremamente cético com relação à ciência e suas “certezas”. Uma advertência do mestre junta essas duas características: “quando insisto no papel exercido pela Linguagem na prática clínica, devo compartilhar o receio de que a Psicanálise venha perder sua direção, retornando sua ênfase aos caminhos já trilhados, quando adotou um viés cientificista. Em outras palavras, passe a usar e abusar das descobertas sobre a linguagem, transformando sua prática em atos mecânicos e repetitivos próprios das ciências positivas: uma tentativa de domar a selvageria do fenômeno criativo propiciado pela Palavra em clichês estereotipados” (p. 83). Essa postura “de Freud”, um tanto wittgensteiniana e antimetafísica, lembremos, tem muito a ver com as posições teóricas defendidas por Marzagão em seu livro Psicanálise e pragmática (1996).

Diante desse Freud repleto de gratidão, com rara leveza decorrente da sabedoria dos que estão prestes a morrer, leitores de Mal-estar na civilização e Além do princípio do prazer podem-se perguntar para onde foram a pulsão de morte e o horror de conviver com o outro. Se esses mesmos leitores, aliás, também tiverem se debruçado sobre Longa viagem noite adentro, de Eugene O’Neill, cujo título serve de óbvia referência para o livro de Marzagão, e cuja atmosfera trágica parece não dar chance alguma para nenhuma virtude entrar, então esses leitores podem se surpreender. O Freud desses leitores é certamente mais pessimista do que aquele apresentado no romance. Mais uma vez, a única conclusão possível é admitir que não há apenas uma descrição possível da realidade, e que todas as descrições possíveis são sempre tributárias dos mais variados interesses de seus autores.

No capítulo 4 há outro exemplo do Freud imaginado por Marzagão. Trata-se da transcrição de duas sessões, nas quais Freud atende Carl James, um paciente norte-americano. Apesar de breve, a cena é bem escrita, e permite ver Freud em ação, praticando, talvez pela última vez, esse tipo de “conversa” que busca sempre o inesperado.

O capítulo final, “Descanse em Paz”, é narrado por Paula Fichtl, governanta dos Freud. Fichtl conta como foi a cerimônia de cremação, e lembra-se das palavras de homenagem de Ernest Jones e Stefan Zweig. Jones disse: “deixa a vida um grande espírito. Se pudermos dizer que alguém venceu a morte, que está vivo, entre nós, esse homem é Freud” (p. 119). Já Zweig lembrou: “Freud conseguiu a consonância profunda de dois sons – a rigidez do espírito e a bondade do coração; no fim de sua vida obteve a harmonia mais perfeita: uma sabedoria pura, clara, uma sabedoria de outono” (p. 120). O Freud construído por Marzagão faz jus a essas descrições.

A última parte do livro, “Freud, família, amigos e colegas...”, traz as fotos dos “personagens” da história: Marie Bonaparte, Minna Bernays, Dorothy Burlingham, entre muitos outros. Aliás, essas não as únicas imagens do livro. A começar pela capa, que traz uma foto da casa dos Freud em Londres, temos também nas primeiras páginas objetos pessoais de Freud: uma cadeira vazia, seu diário, suas estatuetas, seus óculos. Na primeira página de cada capítulo também temos algumas fotografias. Isso nos dá o ensejo para comentar o belo trabalho editorial do livro. A editora Ophicina de Arte & Prosa caprichou na escolha do papel e na qualidade das imagens. Além da instigante história, o livro tem um excelente projeto gráfico.

O livro termina com uma curiosa advertência do autor: “este livro foi elaborado a partir de documentos discutidos pelos principais biógrafos de Freud. O relato, porém, é ficcional e da inteira responsabilidade do autor” (s/p). Marzagão ainda lembra que a tentativa de distinguir os acontecimentos verdadeiros dos inventados pode ser irrealizável, pois como lembra Freud em uma carta a Fliess, “não se pode distinguir entre a verdade e a ficção que foram catexizadas pelo afeto” (s/p). Acho que uma das provas da qualidade do romance escrito por Lúcio Marzagão é exatamente esta: o leitor se sentirá seduzido a investigar se o Freud que nos é apresentado poderia ter dito e feito o que nos mostra a narrativa. É interessante pensar, diga-se de passagem, como romances psicológicos que retratam pessoas conhecidas trazem com inusitada força uma das questões mais importantes da crítica literária, qual seja: é verossímil? O leitor-psicanalista, porém, talvez deixe essa questão de lado, pois compreende bem a advertência de Freud. Onde há afeto, a verdade é quase sempre indiscernível da ficção. Eis a lição fundamental, tanto do ponto de vista psicológico, quanto político, desse romance.

Em resumo, o romance de Marzagão, não apenas pela qualidade técnica na composição do romance, mas também pelas lições de psicanálise, é um livro indispensável para todos aqueles interessados na disciplina inventada por Freud.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund. (1907[1906]). Delírios e sonhos na Gradiva, de Jensen. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. vol. IX.        [ Links ]

GRODDECK, Georg. O livro d’Isso. São Paulo: Perspectiva, 1984.

MAHONY, Patrick. Freud como escritor. Rio de Janeiro: Imago, 1992.        [ Links ]

MARZAGÃO, Lúcio Roberto. Psicanálise e pragmática: ensaios e escritos heréticos. Belo Horizonte: Passos, 1996.        [ Links ]

MARZAGÃO, Lúcio R.; AFONSO, Maria Lúcia Miranda; RIBEIRO, Paulo de Carvalho. (orgs). Psicanálise e universidade: temas contemporâneos – percepção, lei e vínculo social. Belo Horizonte: Passos, 2000.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fábio Roberto Rodrigues Belo
Rua Germano Torres, 166 / 707 - Cruzeiro
30330-040 - Belo Horizonte/MG - Brasil
E-mail: frbelo@terra.com.br

 

 

*Mestre em Teoria Psicanalítica (UFMG); Doutorando em Literatura Brasileira (UFMG).
1 Ana Cecília Carvalho já fizera esse experimento, escrevendo uma brilhante carta “de Freud”. Cf. Discurso de Abertura do II Encontro Nacional sobre Psicanálise e Universidade (Marzagão, Afonso e Ribeiro, 2000).