SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39 número97EditorialEnfrentamento e redes sociais significativas de familiares cuidadores de crianças com queimaduras índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.39 no.97 São Paulo jul./dez. 2019

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

Autolesão em adolescentes, depressão e ansiedade: um estudo compreensivo

 

Self-harm in adolescents, depression and anxiety: a comprehensive study

 

Autolesión en adolescentes, depresión y ansiedad: un estudio comprensivo

 

 

Leila Salomão de La Plata Cury TardivoI; Helena Rinaldi RosaII; Loraine Seixas FerreiraIII; Gislaine ChavesIV; Antônio Augusto Pinto JúniorV

IProfessora Associada do departamento de Psicologia Clínica (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.). Av. Mello Moraes, 1721. Bloco F. Cidade Universitária. São Paulo – SP. CEP 05508-030. (11) 3091 4173 – E-mail: tardivo@usp.br. ORCID iD https://orcid.org/0000-0002-8391-0610.
IIProfessora Doutora do departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil). Av. Mello Moraes, 1721. Bloco A. Cidade Universitária. São Paulo – SP. CEP 05508-030. Telefone; (11) 3091-4355. E-mail: hrinaldi@usp.br. https://orcid.org/0000-0003-0068-4177
IIIDoutoranda do Departamento de Psicologia Clínica (IP.USP). Professora da Universidade São Judas. Av. Mello Moraes, 172. Bloco F. Cidade Universitária. São Paulo – SP. CEP 05508-030. (11) 98771-0697. E-mail: loseixas@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2580-5721.
IVMestranda do Departamento de Psicologia Clínica (IP.USP). Av. Mello Moraes, 172. Bloco F. Cidade Universitária. São Paulo – SP. CEP 05508-030. (11) 97273-9865. E-mail: gislaine.ch@usp.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9239-8401..
VDocente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Block N - Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis - Gragoatá, Niterói - RJ, 24210-201. E-mail: antonioaugusto@vm.uff.br. https://orcid.org/0000-0002-1667-4865

 

 


RESUMO

Observa-se um aumento considerável da conduta de autolesão na população escolar e são poucos os estudos com instrumentos psicológicos que analisam a situação em nosso meio, em especial em adolescentes mais jovens, que muitas vezes o mantêm em segredo. O objetivo nesse artigo foi o de aprofundar o conhecimento de aspectos psicológicos – como a visão de si, do mundo, as relações, angústias e emoções, e identificar sinais de depressão e ansiedade, em adolescentes com condutas de autolesão, manifestadas em ambiente escolar. Foi empregado o método clínico, o qual é indicado para conhecer e interpretar os sentidos dos fenômenos observados. Participaram do estudo três adolescentes, entre 13 e 15 anos, indicados por uma escola. Foram empregados: o Procedimento de Desenhos-Estórias, o Questionário de Depressão Infantil (CDI) e o Inventário Beck de Ansiedade (BAI), e entrevistas semidirigidas iniciais. Os resultados apontaram traços de insegurança e inadequação, bem como sentimentos de menos valia, demonstrando a necessidade dos adolescentes de serem cuidados e compreendidos. A conduta de autolesão foi evidenciada como busca de "alívio" da dor. Em síntese, os achados apontaram a necessidade de mais estudos e trabalhos interventivos e preventivos junto à família e às escolas.

Palavras chaves: adolescência, autolesão, avaliação psicológica.


ABSTRACT

There is a considerable increase in self-harm behavior in the school population, and there are few studies with psychological instruments that study the situation in our environment, especially in younger adolescents, who often keep it secret. The objective of this article was to deepen the knowledge of psychological aspects - such as self-view, of the world, relationships, anxieties and emotions - and to identify signs of depression and anxiety in adolescents with self-harm behaviors manifested in a school environment. The clinical method was used, which is indicated to know and interpret the senses of the phenomena observed. Three adolescents, between the ages of 13 and 15 years old, indicated by the school participated in the study. The Drawing-Story Procedure, the Children Depression Inventory (CDI) and the Beck Anxiety Inventory (BAI) were used, as well as initial semi-guided interviews. The results showed traces of insecurity and inadequacy, as well as feelings of low value, demonstrating the need for adolescents to be cared and understood. Self-harm behavior was evidenced as a search for pain "relief". In summary, the findings pointed to the need for more intervention and preventive studies and works with the family and schools.

Keywords: adolescence, self-harm, psychological evaluation.


RESUMEN

Se observa un considerable aumento de la conducta de autolesión en la población escolar y son pocos los estudios con instrumentos psicológicos que estudian la situación en nuestro medio, en especial en adolescentes más jóvenes, que muchas veces lo mantienen en secreto. El objetivo en este artículo es profundizar el conocimiento de los aspectos psicológicos - como la visión de sí, del mundo, las relaciones, angustias y emociones, e identificar signos de depresión y ansiedad, en adolescentes con conductas de autolesión, manifestadas en el ambiente escolar. Se empleó el método clínico, el cual es indicado para conocer e interpretar los sentidos de los fenómenos observados. Participaron del estudio tres adolescentes, entre 13 y 15 años, indicados por la escuela. Se utilizó el Procedimiento de Dibujos - Historia, el Cuestionario de Depresión Infantil (CDI) y el Inventario Beck de Ansiedad (BAI), así como entrevistas semi estructuradas iniciales. Los resultados apuntaron rasgos de inseguridad e inadecuación, así como sentimientos de desvalorización, demostrando la necesidad de los adolescentes ser cuidados y comprendidos. Se evidenció la conducta de autolesión como búsqueda de "alivio" del dolor, y se concluyó por la necesidad de más estudios y el desarrollo de trabajos interventivos y preventivos junto a la familia y las escuelas.

Palabras clave: adolescencia, autolesión, evaluación psicológica.


 

 

Introdução

O presente trabalho tem como foco os comportamentos autolesivos em crianças e adolescentes. Tal conduta envolve a realização de ferimentos pelo indivíduo sobre si mesmo, provocados sem intenção de morte declarada e considerados socialmente não aceitos (APA, 2013). Observa-se um aumento considerável do comportamento autolesivo na população escolar, e são poucos os estudos com instrumentos psicológicos que investigam essa situação, em especial em adolescentes mais jovens, que muitas vezes a mantêm em segredo (Tardivo et al, 2019; Chaves, 2018; Cardoso, 2015). No entanto, as evidências científicas apontam o contínuo crescimento da autolesão na população adolescente e sua persistência na vida adulta, denunciando a necessidade de investigação e melhor compreensão desse fenômeno em decorrência de sua gravidade e forte ligação com o risco de suicídio futuro (Grandclerc et al., 2016; Cipriano, Cella e Cotrufo, 2017; Stewart et al., 2017; Victor et al., 2018; Tardivo et al, 2019). A autolesão e o suicídio são considerados os principais problemas de saúde pública em adolescentes (Hawton, Saunders, O'Connor, 2012) no Brasil e no mundo. Messer e Fremouw (2008), em artigo de revisão crítica acerca da automutilação em adolescentes, propõem modelos explicativos para o fenômeno, como o sexual, na linha do sadismo e do masoquismo; o modelo que aponta a despersonalização; o modelo interpessoal ou sistêmico; o que se refere ao suicídio; o que tem a ver com aspectos fisiológicos ou biológicos; o modelo relativo à regulação do afeto, e o modelo comportamental decorrente do ambiente. Esses autores encontram mais evidências para o último, por incluírem a regulação do afeto, relações interpessoais e, ainda, o modelo de despersonalização. Outros elementos muito relevantes para a compreensão e o enfrentamento da automutilação e suicídio entre jovens são a vulnerabilidade genética, psiquiátrica, psicológica, além dos aspectos familiar, social e cultural, efeitos da mídia e da internet (Hawton, Saunders e O'Connor, 2012). Apesar das explicações para a compreensão desse fenômeno, Messer e Fremouw (2008) concluem que a compreensão da automutilação adolescente é uma tarefa complexa e sugerem que devam ser considerados aspectos de vários modelos e, ainda, uma integração desses distintos modelos, para favorecer essa compreensão. Entre as motivações para a autolesão, citam-se: raiva, alívio de tensão, desvio do foco de atenção da dor emocional para a dor física e desejo inconsciente de morrer (Kaplan e Sadock, 1998). Embora não haja uma associação direta entre automutilação, abuso de drogas (incluindo o abuso de álcool) e transtornos alimentares, grupos que apresentam quaisquer dessas condições podem ser considerados de risco. Todos os atos de automutilação ou autolesão, praticados por adolescentes no contexto escolar ou em casa, devem ser levados a sério pelos profissionais de saúde e é necessário oferecer tratamentos a qualquer adolescente envolvido com essa conduta, apontam Greydanus e Shek (2009) em sua revisão sobre a relação entre o cutting e o suicídio.

O comportamento autolesivo abordado nesse estudo, na atualidade, tem sido classificado mundialmente como Non Suicidal Self-Injury (NSSI) ou, em tradução livre para o português, autolesão não suicida (Guerreiro e Sampaio, 2013). Nock et al (2006) apresentam um estudo relacionando o diagnóstico de adolescentes que apresentaram autolesão não suicida (NSSI) com tentativas de suicídio e afirmam que há muitos aspectos fundamentais nessa conduta que permanecem desconhecidos. Sobre autolesão não-suicida (NSSI), destaca-se o estudo de Bakken e Gunter (2012) que, como outros autores, encontraram dados alarmantes nessa conduta, de prevalência de mais de um em cada oito adolescentes envolvidos em autolesão, e também apontam as relações entre essa conduta e tentativas de suicídio. Estudaram 2.639 estudantes do ensino médio, tendo encontrado mais casos em meninas, e essas também apresentaram mais ideação suicida. Foram ainda identificados outros aspectos importantes, como experiências de vitimização, uso de substâncias, depressão e comportamentos sexuais de risco. Os autores reafirmam a necessidade de serem desenvolvidas medidas preventivas por profissionais de saúde e da escola.

Hall e Place (2010) colocam que a prevalência do comportamento de automutilação por corte no Reino Unido é elevada e se observa um aumento, com uma estimativa de 1 em 15 até 1 em 12 adolescentes com esse comportamento.  Poucos são os dados encontrados entre adolescentes brasileiros, mas as observações clínicas, em serviços de saúde e junto a profissionais de educação, relatam esse aumento em sua experiência (Simioni, 2017; Silva, 2017; Silva & Siqueira, 2017).

Ainda, Hall e Place (2010) visaram identificar os fatores que estão associados com automutilação por corte e apontaram estratégias de enfrentamento que podem reduzir tal comportamento. Analisaram os resultados de uma pesquisa com os alunos que estudavam em quatro grandes escolas no norte da Inglaterra por meio de análise fatorial exploratória e identificaram os fatores de coping (enfrentamento) Social e Ativo, e consideram que o enfrentamento pode ajudar a minimizar a necessidade de lidar com a realidade a partir desse auto ferimentos. Colocam, ainda, que esse enfrentamento em conjunto com redes de amizades positivas e recreação física também favorece essa diminuição.

No Brasil, estudos têm sido realizados com a intenção de mensurar sua prevalência e de melhor compreender os sentidos, significados e intenções subjacentes aos comportamentos autolesivos, assim como identificar suas inter-relações com o contexto social, familiar e fatores biológicos, possibilitando diversos desenvolvimentos teóricos (Tardivo, 2019; Chaves, 2018; Fortes e Kother, 2017; Lorena, 2016; Vilhena & Prado, 2015; Venosa, 2015; Jatobá, 2010). Esse comportamento vem sendo percebido em serviços de saúde, ora como motivo principal da busca de atendimento, e muitas vezes aparece na consulta motivada por outras queixas e sintomas, acabando por ser revelado pelos adolescentes e pré-adolescentes nas consultas com os profissionais, conforme apontam os estudos mencionados acima.

Arcoverde e Soares (2012), em amplo estudo de revisão integrativa da literatura realizado no Brasil, identificaram uma carência de levantamento de dados brasileiros sobre tais condutas. O estudo tem sido fonte de consulta brasileira para a realização de projetos posteriores ou ampliados sobre o tema. As autoras sugerem o emprego do termo autolesão no lugar de automutilação, considerando que a autolesão se refere ao ato de se machucar intencionalmente de forma superficial ou moderada, com a "destruição ou alteração direta do tecido corporal sem intenção suicida consciente, mas que resulte em ferimento suficientemente grave para provocar danos a esse tecido" (Gratz, 2001, p. 254, citado por Arcoverde e Soares, 2012, p. 2), não se tratando de simulação de suicídio nem de mutilação desfigurante. Entre os atos considerados como autolesão estão: cortar-se; queimar-se; bater-se; morder-se; beliscar-se; atritar objetos contra a pele; impedimentos de cicatrização; coçar excessivamente a pele; derramar ácido, água sanitária ou outros materiais corrosivos sobre a pele; tudo isso de tal forma que ocorra o aparecimento de um ferimento (Gratz, 2001).

Arcoverde e Soares (2012) consideram que a intenção de suicídio não é motivação manifesta para esta conduta, porém se trata de comportamento autodestrutivo que pode ser encarado como uma afronta inconsciente à própria vida, assim como o abuso de drogas, acidentes frequentes e envolvimento em outras situações de risco. Elas afirmam que isso não significa que pessoas que se autolesionam tentarão algum dia o suicídio, até porque às vezes os ferimentos servem como meios de evitar a morte, através da "neutralização parcial dos instintos destrutivos" (Kovács, 2008, p. 183, citada por Arcoverde e Soares, 2012, p. 294). Em outra pesquisa, realizada com mulheres jovens, sugere-se que a autolesão serve como uma âncora para a realidade, proporcionando um senso de autocontrole para pessoas com habilidades adaptativas comprometidas (Ryan, 2008). Richardson e Zaleski (1986) indicam que a repetição do ato de se ferir em algumas pessoas pode ser devido a uma dependência da endorfina, que é liberada quando há danos corporais. A liberação de β-endorfina e a sensação de dor física causada pelo ferimento funcionariam como uma forma de distração a sentimentos de angústia e frustração, causando alívio temporário. Como em qualquer relação de dependência, ocorre o fenômeno da tolerância e ferimentos cada vez mais graves são provocados para manter altos níveis de β-endorfina e evitar a sua abstinência. É importante destacar que as explicações puramente "biologicistas" vem sendo criticadas, diante da complexidade do comportamento de autolesão.

A perturbação de personalidade, que pode estar presente em casos de automutilação, constitui uma base a partir da qual surgem outras perturbações menos duradouras, ou seja, cria um certo grau de vulnerabilidade a patologias como a depressão e a ansiedade (Millon e Davis, 1996). Isso aponta a importância de se estudar as relações entre aspectos da personalidade e a conduta auto lesiva; e ansiedade e depressão.  

Numa linha diversa, Le Breton (2010) apresenta uma análise compreensiva sobre esse fenômeno. Ele afirma que os piercings e tatuagens são formas de embelezamento do corpo, podendo ser encarados como uma assinatura do sujeito sobre a pele. Ou seja, "como um desejo de obter a sua 'marca' no mundo de uma maneira lúdica, perto de si, com seu corpo (p. 25)". Já as lesões corporais intencionais (cortes, cicatrizes, etc.) podem dar pistas sobre a aflição que vivem. Frente à avalanche de emoções que experimentam, alguns adolescentes se ferem, queimam-se, cortam-se com compasso, vidro, navalha, faca. Chocando-se contra o mundo, de maneira a se machucar, recu­peram o controle de uma emoção poderosa e destrutiva, eles procuram uma contenção e encontram então a dor ou os ferimentos, completa o autor (idem, p. 26). Os atentados à integridade corporal, em princípio, não se relacionam à tentativa de morrer, mas tentativas de viver. A ferida auto infligida pode ser compreendida como um compromisso, uma tentativa de restauração do sentido. Pode ser um apego à pele, à busca de vestígio de realidade, obtido pelo sangue, pela dor possível. O autor traz diversos relatos de adolescentes sobre as sensações trazidas por essa conduta, como uma jovem vítima de incesto, cujos cortes a ajudavam a suportar esses episódios de sofrimento e davam um tipo de saber sobre a adversidade vivida. O autor fala sobre a falta, quer seja de um investimento emocional suficiente, da parte dos pais, durante a infância (falta de containing), ou por um ferimento interior (incesto, abuso sexual, frustração, etc.). Nesses casos, o corpo não é mais sentido como experiência de prazer, a dor controlada pode ser buscada como restabelecimento de um sentido; ou seja, a dor e a cicatriz podem ser buscadas como contorno, o restabelecimento de uma fronteira entre o dentro e o fora. Le Breton (2010) ainda observa que as lesões corporais são significativamente mais numerosas nas meninas e esse fenômeno pode ter relação com a propensão de o sofrimento nas meninas se interiorizar, e nos meninos o sofrimento tomar mais a forma de uma agressão contra o mundo exterior.

Considerando o exposto e em meio aos conflitos evidenciados na adolescência, atrelados à vivência em uma sociedade com uma estrutura social mais fragilizada, os comportamentos de autolesão requerem estudo e compreensão aprofundada de forma a se poder preveni-los e propor formas de intervenção. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi conhecer e avaliar adolescentes com comportamento autolesivo, a fim de compreendê-los e assim favorecer o desenvolvimento saudável. Objetivou ainda aprofundar o conhecimento de aspectos psicológicos (como a visão de si, do mundo, as relações, angústias e emoções) e identificar sinais de depressão e ansiedade em adolescentes com comportamento auto lesivo, manifestado em ambiente escolar.

 

Método

Foi empregado o método clínico, indicado para conhecer e interpretar as significações psicológicas e socioculturais que os indivíduos (pacientes, familiares, profissionais) dão aos fenômenos do campo da saúde-doença. Tal método trabalha no paradigma fenomenológico, na área das Ciências do Homem, valorizando as angústias existenciais dos sujeitos, a atitude clínica de acolhida e usando um quadro de referenciais teóricos interdisciplinar, com destaque a concepções psicanalíticas básicas (Turato, 2005).

A pesquisa qualitativa, segundo Turato (2005), tem como cerne os sentidos e significações dos fenômenos observados. O autor menciona como principais características: dados descritivos, a preocupação com o processo e a importância da significação. E ao pensar sobre os fenômenos, o autor traz a importância de refletir sobre a distinção entre fenômeno e consciência, onde "o primeiro recebe os sentidos, enquanto a segunda dá os sentidos" (2005, p. 246), compreendendo que "a subjetividade do pesquisador terá uma importância capital, ao contrário do que se postula nas chamadas ciências duras" (2005, p.25).

Tardivo (2007) se respalda em Bleger (1980) ao refletir sobre a Psicologia Clínica como ciência, que é definida pelo autor como o campo e método apropriado para acessar a conduta e personalidade dos seres humanos. A autora ressalta que o papel do psicólogo clínico como investigador e profissional que intervém precisa ser de aproximação e postura de compreensão, propondo possivelmente novas medidas que levem a mudanças. Enfatiza que a investigação e a intervenção são indissociadas, ocorrendo simultaneamente, e que a compreensão não é de passiva aceitação, mas de ousadia, diante da necessidade de implementar novas medidas.

Por se tratar de uma pesquisa que abrange três participantes, compreende-se como método a pesquisa de múltiplos casos. Stake (2011) comenta que o estudo de múltiplas realidades propicia o enriquecimento pelas diferentes percepções e experiências por pessoas que estão no mesmo lugar e ao mesmo tempo, favorecendo maior profundidade para a escuta, comparada ao que seria a escuta de uma única experiência. Considerando que "as pessoas interpretarão o evento de formas diferentes e, com frequência, as várias interpretações possibilitam profundidade de compreensão que a interpretação mais consagrada ou popular não permite" (Stake, 2011, p. 77).

Os casos múltiplos propõem a ideia da lógica de replicações, em que cada caso deve ser selecionado de forma a prever resultados semelhantes. Considera, ainda, que se todos os casos se mostrarem previsíveis, poderiam fornecer uma base convincente para o conjunto inicial de proposições (Yin, 2005). Yin coloca: “Cada estudo de caso em particular consiste em um estudo completo, no qual se procuram evidências convergentes com respeito aos fatos e às conclusões para o caso; acredita-se, assim, que as conclusões de cada caso sejam as informações que necessitam de replicação por ouros casos individuais” (2005, p. 71).

 

Participantes

Participaram da pesquisa três adolescentes com idades entre 13 e 15 anos, de ambos os sexos, matriculados na escola em que a pesquisa foi realizada. Os participantes foram indicados pela direção da escola por apresentarem comportamento de autolesão e abordados após a autorização dos pais ou responsáveis, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os adolescentes concordaram em participar e assinaram um Termo de Assentimento. O projeto, parte de pesquisa mais ampla com outras amostras, participantes e instrumentos, foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (CAAE 60486016.7.0000.5561, parecer 1.844.372).

 

Instrumentos

Entrevistas semiestruturadas:

Tavares (2007) define a entrevista clínica como

... um conjunto de técnicas de investigação, de tempo delimitado, dirigido por um entrevistador treinado, que utiliza conhecimentos psicológicos, em uma relação profissional, com o objetivo de descrever e avaliar aspectos pessoais, relacionais ou sistêmicos (indivíduo, casal, família, rede social), em um processo que visa a fazer recomendações, encaminhamentos ou propor algum tipo de intervenção em benefício das pessoas entrevistadas (p.45).

Assim, a entrevista se baseia numa relação com uma característica particular referente à posição de um dos integrantes, que é o técnico. Nesta relação humana deve procurar saber o que está fazendo e atuar com este conhecimento. Bleger (1980) descreve esse procedimento:

"uma compilação de dados preestabelecidos, de tal amplitude e detalhe, que permita obter uma síntese tanto da situação presente como da história de um indivíduo, de sua doença e de sua saúde" (p. 11-12).

Seguindo a proposta de trabalhar na pesquisa em uma relação sujeito-sujeito, vale ressaltar que há nesta relação a importância de, ao longo da entrevista, perceber o que o paciente transmite e provoca no investigador/pesquisador, considerando os aspectos transferenciais e contratransferenciais (Souza e Tardivo, 2008). Nesse trabalho foram empregadas entrevistas semiestruturadas, assim denominadas porque o entrevistador tem clareza de seus objetivos, e são úteis em settings onde é necessária ou desejável a padronização de procedimentos e registro de dados, como nesse trabalho na clínica social (Tavares, 1999). As perguntas que direcionaram a entrevistas tiveram como tema: o início do comportamento autolesivo; frequência dos cortes; método utilizado para realizar os ferimentos; se há algum sentido ou significado para o comportamento e busca por ajuda ou outras alternativas para lidar com o sofrimento.

Procedimento de Desenhos-Estórias:

O Procedimento de Desenhos Estórias (D-E) foi proposto por Trinca em 1972, que ao lado de outras técnicas de investigação psicanaliticamente fundamentadas como a Hora de Jogo Diagnóstica e o Jogo de Rabiscos. Trouxe enorme contribuição para o Psicodiagnóstico, concebido em seu aspecto compreensivo, sendo hoje muito usado com essa finalidade por visar essa compreensão a partir de desenhos livres associados a histórias. O D-E e procedimentos derivados são compostos por dois processos básicos: a forma gráfica de expressão e a verbal, ou seja, como uma técnica baseada no conceito de Apercepção Temática. Constituem-se em procedimentos de exploração livres e amplos, visando uma compreensão da dinâmica psíquica profunda, e favorecendo intervenções (Trinca, 2013).

No D-E, são solicitados desenhos livres (sendo oferecidos lápis preto e coloridos) que devem ser considerados e compreendidos de forma integrada com os demais elementos da produção, e são os estímulos para a história a ser contada (Tardivo, 2013). Basicamente se solicita um desenho livre (qualquer), com o material disponível, e em seguida se solicita uma história sobre o desenho feito. Podem ser feitas perguntas para esclarecimentos, e ao final se pede um título para o conjunto apresentado. Denomina-se unidade de produção desenho, história, inquérito e título. Em seguida repetem-se os procedimentos de forma a se obter até 5 unidades de produção em no máximo duas sessões. É um procedimento de muita utilidade no Psicodiagnóstico de tipo "compreensivo", que visa encontrar um sentido para o conjunto das informações disponíveis, tomar aquilo que é relevante e significativo na personalidade, entrar empaticamente em contato emocional com alguém e conhecer os motivos profundos da vida emocional dessa pessoa (Trinca, 1984). No contexto das manifestações de conduta autolesiva, o psicodiagnóstico mostra-se essencial e desempenha um papel fundamental no processo de investigação como o que se fez e, além disso, oferece subsídios importantes para o futuro acompanhamento e tratamento psicológico.

Childrens Depression Inventory (CDI) - Questionário de Depressão Infantil:

É um Inventário de autorrelato elaborado por Kovacs (1983; 1985), adaptado do Beck Depression Inventory (BDI) - Inventário Beck de Depressão de Beck, para adultos. O objetivo do CDI é detectar a presença e a severidade do transtorno depressivo na infância, e identificar alterações afetivas em crianças e adolescentes. Este inventário é composto por 27 itens, cada um com três opções de resposta. A criança deve escolher a opção que melhor descreve o seu estado nos últimos tempos, e as respostas são pontuadas de 0 a 2. O CDI foi adaptado para uso no Brasil por Barbosa, Dias, Gaião e Lorenzo (1996) e a nota de corte no Brasil é 17, mas se considera que mais de 11 pontos pode indicar algum grau de depressão.

Beck Anxiety Inventory (BAI) - Inventário Beck de Ansiedade:

Para o estudo das relações entre ansiedade e as condições dos participantes foi utilizado o Inventário Beck de Ansiedade, que consta de uma lista de 21 sintomas com quatro alternativas cada um, em ordem crescente do nível de ansiedade. A classificação brasileira propõe como resultados os níveis de 0 a 9 como mínimo, de 10 a 16 como leve e segue até uma pontuação máxima de 63, numa escala de moderada a grave (Cunha, 2001).

 

Procedimentos

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, contemplando os dados psicossociais e história do adolescente, e, em seguida foram aplicados os instrumentos referidos, individualmente.

 

Resultados – Estudos de caso

Serão apresentados para ilustrar os achados na pesquisa, três casos, tendo sido selecionadas apenas algumas unidades de produção por participante em razão de espaço e por serem suficientes para indicar os Resultados.

Caso A:

A. tem 15 anos e aceita participar por apresentar condutas de automutilação – fere-se nos braços. Descreve-se como homossexual. Pouco antes do atendimento fez uma tentativa de suicídio. Conta que perdeu a mãe e vive com os tios, numa relação muito conflituosa. Diz que os tios não o aceitam, especialmente a tia, por sua condição. A. apresenta relações conflitivas na escola, tendo sido alvo de agressões por ser provocado. A escola tomou as providências necessárias, sendo que a família foi convocada e passou a tratar A de uma forma melhor (após chamada também por autoridades).

 

Pontuação no CDI: 17 e no BAI: 13.

Procedimento de Desenhos-Estórias:

Produção 1 – Caso A.

 

 

"Um dia ensolarado no meio do bosque, vivia uma casa distante de todas as outras. Lá morava um a senhora, idosa, que se isolava de tudo, ela não via a família há anos. Perdeu o contato da família após uma briga com o filho. Dias passam e a senhora começa a ficar doente sem hospital e medicamentos, ela não  consegue ajuda. Uma certa noite chuvosa, vizinhos à distância ouvem a senhora gritar por socorro, imediatamente uma curandeira vai até a casa dela ajudá-la. Chegando lá, ela encontra a senhora morta. Dias passam, a vida de todos segue. Uma tarde friosa, o filho da senhora reapareceu ... em seguida ele vai para o cemitério, senta no túmulo da mãe e pede perdão. Horas depois, ela vai para a casa, pega a família e vai morar na casa da mãe e constrói a família perdida. Fim."

Título: A senhora solitária.

Produção 2 – Caso A.

 

 

"Um belo dia, ensolarado, uma menina chamada Daniele veio para a cidade de São Paulo e se apaixonou por um menino. O menino era da rua dela, ele a desprezava por ela ser estranha e uma tarde ela se declarou para ele. Ele, para se mostrar para seus amigos, a desprezou. A menina triste, chateada, voltou para casa e foi direto para o quarto. Decepcionada, quebrou o apontador e tirou a lâmina que tinha dentro. E começou a se cortar, digo, se machucar. Dias passavam e o maior que ela tinha pelo garoto começou a crescer. No outono o garoto começou a namorar com sua vizinha. A menina, chateada, que era obrigada a ver a cena entre os dois todos os dias, pensou em uma saída. De manhã, ela foi para a escola com seu sorriso falso e fingiu que estava tudo bem. Ao ir para casa, se despediu de todos e seguiu o seu caminho. Chegando em sua rua, se deparou com o amor da sua vida beijando outra. Triste e cansada, entrou em sua casa quando não havia ninguém, foi para o quarto de sua mãe, pegou o frasco de remédio e tomou todos. Horas depois, sua mãe chega em casa, se depara com o corpo da sua filha gelado e sem vida. Anos passaram, a vida de todos continuou, não como a mesma. Sua melhor amiga hoje se automutila.

Título: Amor correspondido.

Síntese Interpretativa Caso A:

A. mostra como atitude básica uma visão depreciativa de si mesmo, e relações baseadas na perda e no abandono. Na terceira unidade se refere claramente à conduta de autolesão como resultantes de situações de dor. As figuras (personagens) presentes também são carregadas de dor e insegurança. Assim os sentimentos predominantes são de perda abandono e tristeza, com poucas soluções adequadas. Apresenta indícios fortes de depressão e ansiedade, pelos pontos obtidos nos inventários, uma vez que seus resultados estão acima das notas de corte em ambos os inventários.

Caso B:

O Caso B é de uma menina de 13 anos, cursando o 7º ano, com dois episódios de autolesão. Relatou que tudo começou quando ela começou a ler e descobriu que a mãe a abandonou quando era criança, por meio de recados que encontrou e conseguiu ler. Disse que isso a deixou "com muita raiva" (SIC). Ao encontrar com a mãe (tem contatos muito esporádicos com a mesma, que some e fica muito tempo sem dar notícias), disse que a esta justificou o abandono por ser muito nova e não saber cuidar da filha. A menina disse que, ao descobrir o abandono, ficou com muita raiva e começou a se cortar (há um ano). Mora com o pai e a madrasta. O pai soube por meio de mensagem de whatsapp, em que ela enviou uma foto do braço cortado para uma amiga e o pai estava no mesmo grupo de conversa.

 

Pontos no CDI: 15 e no BAI: 12.

Procedimento de Desenhos-Estórias:

Produção 1: Caso B.

 

 

"Eu, para mim, é uma paisagem. Desenhei coqueiros, porque gosto de coqueiros. A montanha porque acho muito bonito. Um rio. É o lugar que eu gostaria de morar. Calmo, tranquilo e mais a natureza, assim. O coqueiro uma árvore e um rio. Era uma vez uma menina chamada Mi... Ela morava num lugar onde ninguém sabia onde era. E nesse mesmo dia, um dia lindo, ela resolveu nadar no rio, escalar montanhas e beber água de coco. Ela se sentia muito solitária, mas ela encontrou um camaleão para se tornar seu amigo. Para ela, o camaleão falava com ela. Mas na verdade era tudo imaginação. Ela fazia tudo com o camaleão: ela brincava com ele, dormia com ele, lia histórias com ele, mas aconteceu uma tragédia no dia que ela foi nadar no rio. Ela se separou dele, ele acabou caindo na água e acabou sendo arrastado pela correnteza. A menina ficou tão triste e solitária que acabou morrendo. Só."

Título: A menina e o camaleão

Produção 2: Caso B.

 

 

"Esse aqui (o homem) ele é o meu pai. Na época em que ele me teve junto com a minha mãe, ele tinha 22 anos. E a minha mãe tinha 17. Daí eles começaram a namorar e decidiram morar juntos. Eles ficaram por 2 anos morando juntos. O meu pai ele vivia trabalhando junto com meu tio, que morava junto com a gente e a minha mãe, como ela era nova, ela não sabia cuidar muito de mim e o meu pai só chegava de noite. Então ela não dava o leite na temperatura certa para mim, ela não me dava banho, só ficava me cobrindo, porque eu ficava toda machucada. Como ela me cobria eu fui ficando toda assada. E eu tinha alergia do leite que ela me dava. Ela não tinha essa prática. Daí um dia meu pai chegou em casa e me pegou no colo. Como naquele dia estava muito abafado, ele tirou minha touca e viu que eu estava muito ferida na cabeça. Depois ele foi tirando a minha roupa e eu estava toda machucada. E ele resolveu se separar da minha mãe e pegar a minha guarda. E até hoje eu moro com meu pai".

Título: Minha História

Síntese Interpretativa Caso B:

B. mostra, como atitude básica, a passividade e a dificuldade de aceitação de si. Na última história conta sua própria vida, a separação dos pais decorrente do maltrato e da negligência da mãe. Na primeira unidade releva sentimentos de solidão e busca de relacionamento, o que só é possível com um "camaleão", um animal que muda de cor, ou seja, não tem uma existência definida. E ela mesma aponta que essa amizade só ocorre em sua imaginação. Ainda assim é a única relação possível, também marcada pela perda e pela morte. Traz sua situação de viver com o pai, como a única alternativa possível. Pontua em ansiedade e apresenta uma tendência à depressão, com nota próxima ao corte.

Caso C:

O caso C é de um menino de 14 anos, fruto do segundo casamento de sua mãe. Seus pais se separaram quando ele estava com 10 anos. Reside com sua mãe e com seu irmão mais novo (fruto de outro relacionamento da mãe), possui mais quatro meio-irmãos (dois por parte da mãe e dois, do pai). Gosta de ler e de ouvir música, principalmente, rock. Contou que compra gilete na farmácia e realiza o corte nos pulsos com a frequência de uma vez ao mês. Iniciou tal comportamento há dois anos, por influência de uma amiga de outro colégio (com idade menor que a sua): "A gente tava conversando pela net e ela me disse que aliviava e eu comecei... mas não adianta, não alivia... a lâmina é mole, não vai até onde precisa" (SIC). Ressalta que a ideia não é se matar, mas que sente como um "castigo... eu mereço, pela minha culpa". Sentia-se culpado por não conseguir ajudar seu pai que passa por um processo de depressão há dois anos, sendo que faz um ano que não o vê. Ele e sua mãe se distanciaram quando ele tinha por volta dos 11 anos de idade. Diz implicar, em muitos momentos, com o comportamento dela, levando a brigas e distanciamento. Diz que quando se corta passam por sua cabeça sentimentos de tristeza e raiva: "Sento em minha cama, pego a gilette, faço o corte, normalmente um ou dois, no máximo, e fico observando" (SIC).

 

Pontos no CDI: 16 e no BAI: 13.

Procedimento de Desenhos-Estórias:

Produção 1: Caso C.

 

 

"Nunca vi em nenhum lugar, nenhum site de simbologia, é uma cruz minha. Eu peguei o caderno e comecei a fazer cruz diferente e sai esta e eu gostei desta. Eu só faço quando eu acho que precisa. Não sei. Faço quase sempre, é meio que um crucifixo para mim. É como se fosse um escudo. A linha vertical é como se fosse eu, e o Z que corta a cruz é o que me protege, protege tudo. Eu não tenho muito medo, acho que não tenho quase nenhum medo. Não é no sentido de espírito e coisas sobrenaturais. Protege do dia a dia, de tudo que tem de ruim, de tudo que realmente existe e é comprovado como criminalidade".

Título: Cruz de proteção.

Produção 2: Caso C.

 

 

"É um símbolo de paz (1) e de infinito (2) e o terceiro é meio que uma abreviação.""MD>^V, meu Deus é maior que os altos e baixos. Eu vi em uma tatuagem, mas era em inglês e traduzi. Esse é o mais interessante e os outros é o que desenho sempre. Não sou de religião. Esse Deus é algo interior, que comanda, algo que cuida e não tem nome".

Síntese interpretativa Caso C:

Toda a produção de C revela-se muito defendida diante de um sentimento de depressão que parece ser muito intenso, mais do que ele gostaria de deixar transparecer. São presentes sentimentos de solidão, raiva, impotência, abandono; denota uma ansiedade muito intensa, e busca figuras sem nome e fora da realidade. C tem pontuação que indica ansiedade e fortes indícios de depressão.

 

Discussão

Tanto nas entrevistas como nos relatos aos desenhos, os adolescentes contam histórias com muita dor, impregnada por falhas e privação, negligência e ausência de um dos pais, além de problemas graves na estrutura familiar. Estão presentes sentimentos de desproteção, tristeza e solidão; os severos conflitos na família levam a dificuldades em comunicar não apenas a situação de autolesão, mas há falhas amplas na comunicação, no vínculo e contato com os pais. Tais dados estão de acordo com os apontados por Hawton, Saunders e O'Connor (2012) e Gratz (2001).

Foi evidenciada a conduta de autolesão como busca de "alívio" da dor pela análise dos casos; no Caso A houve tentativas de suicídio, no Caso B, dor e falta, como apontado, em conformidade com o que colocam Kaplan e Sadock (1998). Adolescentes chegam a mencionar nas entrevistas que a conduta de auto lesão trouxe alívio à dor e sofrimento vivenciado.

Em todos destaca-se dificuldades nas relações significativas; mas se observa também pedidos de proteção e auxílio, de ser cuidado, compreendido; de poderem comunicar sua dor pois há intensas angústias pelas dificuldades de enfrentamento, e atitudes de autodestruição, como Arcoverde e Soares (2012) descreveram em estudo realizado em nosso meio.

Como se pode observar nas sínteses interpretativas de cada caso, há traços de insegurança e inadequação, bem como sentimentos de menos valia, demonstrando a necessidade dos adolescentes de serem cuidados e compreendidos. Tais dados estão de acordo com o modelo de dificuldades nas relações como um dos apontados por Messer e Fremouw (2008), para a compreensão da conduta de automutilação. Nas unidades de produção, enquanto há figuras negativas, que brigam, os esquecem, desprezam, também estão presentes figuras que ajudam, reforçando a necessidade de proteção e auxílio. Pode-se perceber que os sentimentos encontrados nessas unidades foram de desproteção, tristeza, solidão, ainda que também se evidenciem impulsos destrutivos e amorosos – denotando-se aspectos depressivos, confirmados pelos resultados no Inventário Beck de Depressão. O Procedimento D-E revela ainda histórias pessoais ou que se referem a episódios de autolesão e severos conflitos familiares trazendo sentimento de tristeza, raiva e incômodo. Também são presentes sinais de ansiedade, pois todos os adolescentes apresentam pontuações na nota de corte ou acima no BAI.

 

Considerações Finais

Os adolescentes desse estudo revelaram severas dificuldades nas relações significativas. Aponta-se a necessidade de mais estudos, assim como que sejam desenvolvidos programas de prevenção nas escolas com os adolescentes, com os pais e toda a comunidade escolar, e intervenções imediatas e eficazes junto a todos esses atores. Pode-se indicar rodas de conversa realizadas com grupos de adolescentes na escola, sem discriminação entre os que se lesionam ou não, em que temas relativos à adolescência possam ser debatidos, visando oferecer uma escuta com respeito às dificuldades observadas e, assim, realizar encaminhamentos adequados. O trabalho preventivo deve ser feito com a comunidade. Este trabalho, além de ser um recorte de pesquisa mais ampla em desenvolvimento, apresenta limitações, seja pelo número ainda pequeno de participantes adolescentes o que configura um estudo ainda preliminar, seja pela necessidade de ampliação de instrumentos de investigação, bem como por indicar a necessidade de atingir preventivamente também pais e escola. Espera-se ainda assim estar contribuindo com a compreensão do fenômeno da autolesão por pré-adolescentes e adolescentes, na orientação de profissionais das áreas de saúde e educação e, mais ainda, junto à própria população de adolescentes e seus familiares.

 

Referências

American Psychological Association (APA). (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5. ed.). Arlington: American Psychiatric Publishing.         [ Links ]

Arcoverde, R. L., & Soares, L. S. L. C. (2012). Funções Neuropsicológicas Associadas a Condutas Autolesivas: Revisão Integrativa de Literatura. Psicologia: Reflexão e Crítica, 25(2), 293-300. doi: 10.1590/S0102-79722012000200011        [ Links ]

Bakken, N. W., & Gunter, W. D. (2012). Self-Cutting and Suicidal Ideation among Adolescents: Gender Differences in the Causes and Correlates of Self-Injury. Deviant Behavior, 33, 339–356. doi: 10.1080/01639625.2011.584054        [ Links ]

Barbosa, G. A., Dias, M. R., Gaião, A. A., & Lorenzo, W. C. G. (1996). Depressão infantil: um estudo de prevalência com o CDI. Infanto Rev Neuropsiquiatr Infanc Adolesc., 3(4), 36-40.         [ Links ]

Bleger, J. (1980). Temas de Psicologia. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Cardoso, B. C. C. (2015). A escarificação na adolescência: A problemática do Eu-pele a partir do método de Rorschach. (Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasil).         [ Links ]

Chaves, G. (2018). Adolescência e autolesão: Psicodiagnóstico como proposta de compreensão e intervenção a partir de um caso clínico. (Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo).         [ Links ]

Cipriano, A., Cella, S. & Cotrufo, P. (2017). Nonsuicidal Self-injury: A Systematic Review. Frontiers in Psychology, 08. doi: 10.3389/fpsyg.2017.01946        [ Links ]

Cunha, J. A. (2001). Manual da versão em português das Escalas Beck. São Paulo, Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Fortes, I., & Kother, M. (2017). Automutilação na adolescência - rasuras na experiência de alteridade. Psicogente, 20(38), 353-367. doi: 10.17081/psico.20.38.2556        [ Links ]

Grandclerc, S., Labrouhe, D., Spodenkiewicz, M., Lachal, J., & Moro, M-R. (2016). Relations between Nonsuicidal Self-Injury and Suicidal Behavior in Adolescence: A Systematic Review. PloS ONE, 11(4): e0153760. doi: 10.1371/journal.pone.0153760        [ Links ]

Gratz, K. L. (2001). Measurement of deliberate self-harm: Preliminary data on the deliberate self-harm inventory. Journal of Psychopathology and Behavioral Assessment, 23(4), 253-263. doi: 10.1023/A:1012779403943        [ Links ]

Greydanus, D. E., & Shek, D. (2009). Deliberate self-harm and Suicide in Adolescents. The Keio Journal of Medicine, 58(3), 144-151. doi: 10.2302/kjm.58.144        [ Links ]

Hall, B., & Place, M. (2010). Cutting to cope – a modern adolescent phenomenon. Child: Care, Health and Development, 36(5), 623-629. doi:10.1111/j.1365-2214.2010.01095.x        [ Links ]

Jatobá, M. M. V. (2010). O ato de escarificar o corpo na adolescência: uma abordagem psicanalítica. (Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil).         [ Links ]

Guerreiro, D. F., & Sampaio, D. (2013). Comportamentos autolesivos em adolescentes: uma revisão da literatura com foco na investigação em língua portuguesa. Rev. Port. De Saúde Pública, 31(2), 204-213.         [ Links ]

Hawton, K., Saunders, K. R. C., & O'Connor, R. (2012). Self-harm and suicide in adolescents. The Lancet, 379(9834), 2373-2382. doi: 10.1016/S0140-6736(12)60322-5        [ Links ]

Kaplan, H. I., & Sadock, B. J. (1998). Manual de Psiquiatria Clínica. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Kovacs, M. (1983). The children's depression inventory: A self-rated depression scale for school-aged youngsters. Pittsburgh: University of Pittsburgh School of Medicine.         [ Links ]

Kovacs, M. (1985). The children's depression inventory. Psychopharmacol Bull, 21(4), 955-998.         [ Links ]

Le Breton, D. (2010). Escarificações na adolescência: uma abordagem antropológica. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, (16)33, 25-40.         [ Links ]

Messer, J. M., & Fremouw, W. J. (2007). A critical review of explanatory models for self-mutilating behaviors in adolescentes. Clin Psychol Rev, 28(1), 162-178. Epub Apr 29. doi: 10.1016/j.cpr.2007.04.006         [ Links ]

Millon, T., & Davis, R. D. (1996). Disorders of Personality: DSM-IV and Beyond, 2nd ed. Oxford, England: John Wiley and Sons.         [ Links ]

Nock, M. K., Joiner Jr, T. E., Gordon, K. H., Lloyd-Richardson, E., & Prinstein, M. J. (2006). Non-suicidal self-injury among adolescents: Diagnostic correlates and relation to suicide attempts. Psychiatry research, 144(1), 65-72. doi:10.1016/j.psychres.2006.05.010        [ Links ]

Richardson, J. S., & Zaleski, W. A. (1986). Endogenous opiates and self-mutilation. American Journal of Psychiatry, 143(7), 938-939.         [ Links ]

Ryan, K., Heath, M. A., Lane, F., & Young, A. L. (2008). Superficial self-harm: Perceptions of young women who hurt themselves. Journal of Mental Health Counseling, 30(3), 237-254.         [ Links ]

Simioni, A. R. (2017). Autolesão deliberada em crianças e adolescentes: prevalência, correlatos clínicos e psicopatologia materna. (Dissertação de Mestrado, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre).         [ Links ]

Silva, A. C,, & Botti, N. C. L. (2017). Comportamento autolesivo ao longo do ciclo vital: Revisão integrativa da literatura. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, 18, 67-76. doi: 10.19131/rpesm.0194         [ Links ]

Silva, M. F. A., & Siqueira, A. C. (2017). O perfil de adolescentes com comportamento de autolesão identificados nas escolas estaduais em Rolim de Moura – RO. Revista Farol, 3, 5-20.         [ Links ]

Stake, R. (2011). Pesquisa qualitativa: estudando como as coisas funcionam. Porto Alegre: Penso.         [ Links ]

Stewart, J. G., Esposito, E. C., Glenn, C. R., Gilman, S. E., Pridgen, B., Gold, J., & Auerbach, R. P. (2017). Adolescent self-injurers: Comparing non-ideators, suicide ideators, and suicide attempters. Journal of Psychiatric Research, 84, 105–112. doi: 10.1016/j.jpsychires.2016.09.031         [ Links ]

Tavares, M. (2007). Entrevista clínica. In: J. A. Cunha e cols., Psicodiagnóstico-V (5. ed. rev. ampl.). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Tardivo, L. S. L. P. C. (2007). O Adolescente e Sofrimento Emocional nos Dias de Hoje. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Tardivo, L. S. L. P. C., & Souza, M. A. I. (2008). Entrevistas iniciais como consultas terapêuticas em atendimento clínico. Psicologia, Saúde & Doenças, 9, 63.         [ Links ]

Tardivo, L. S. L. P. C. (2013). O Procedimento de Desenhos-Estórias na expressão e na compreensão de vivências emocionais. In: W. Trinca (Org.). Formas Compreensivas de Investigação Psicológica: Procedimento de Desenhos-Estórias e Procedimento de Desenhos de Família com Estórias. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Tardivo, L. S. L. P.C., Ferreira, L. S., Alhanat, M., Chaves, G., Rinaldi, H. R., Pinto Junior, A. A., & Belisario, G. O. (2019). Self-injurious behavior in preadolescents and adolescents: self-image and depression. Paripex – Indian Journal of research, 8(6), 1-5.         [ Links ]

Trinca, W. (Org.) (2013). Formas Compreensivas de Investigação Psicológica: Procedimento de Desenhos-Estórias e Procedimento de Desenhos de Família com Estórias. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Trinca, W. (Org.) (1984). Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU.         [ Links ]

Turato, E. R. (2005). Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev. Saúde Pública, 39(3), 507-514.         [ Links ]

Venosa, V. S. (2015). O "ato de cortar-se": uma investigação psicanalítica a partir do caso Amanda e do caso Catarina. (Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo).         [ Links ]

Victor, S. E., Muehlenkamp, J. J., Hayes, N. A., Lengel, G. J., Styer, D. M., & Washburn, J. J. (2018). Characterizing gender differences in nonsuicidal self-injury: Evidence from a large clinical sample of adolescents and adults. Comprehensive Psychiatry, 82, 53-60. doi: 10.1016/j.comppsych.2018.01.009        [ Links ]

Vilhena, M., & Prado, Y. Z. C. (2015). Dor, angústia e automutilação em jovens – considerações psicanalíticas. Adolesc. Saúde, Rio de Janeiro, 12(2), 94-98.         [ Links ]

Yin, R. K. (2005). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman.         [ Links ]

 

 

Recebido: 20.03.2019 / Corrigido: 21.08.2019 / Aprovado: 05.09.2019

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons