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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.14 n.26 São Paulo  2009

 

DOSSIÊ

 

Atendimento psicoterapêutico conjunto pais-crianças: espaço de circulação de sentidos

 

Psychotherapeutic attendance parent-child: space for movement of senses

 

Atendimiento psicoterapeútico conjunto padres-niños: espacio de circulación de sentidos

 

 

João Luiz Leitão ParavidiniI; Caio César Souza Camargo PróchnoII; Hélvia Cristine Castro Silva PerfeitoIII; Ludmilla de Sousa ChavesIII

IPsicólogo, psicanalista, Professor Adjunto da Graduação e Pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia - UFU. paravidini@ufu.br
IIProfessor Associado 2 da Graduação e Pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia - UFU. caioprochno@terra.com.br
IIIPsicóloga Clínica e Mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
IVPsicóloga Clínica do Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência de Uberlândia (CAPSi), Mestranda em Psicologia Aplicada pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia - UFU

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão acerca do Atendimento psicoterapêutico conjunto pais-crianças, descrevendo suas sustentações técnicas, teóricas e metodológicas e articulando-as enquanto espaço de circulação de sentidos. Esta proposta toma em consideração todo o processo de constituição da subjetividade para articular o seu modelo técnico. Primando pela intervenção na construção dos laços primordiais, trazendo para o setting analítico as cenas das formações vinculares. Apresenta uma possibilidade de intervenção-mediação na primeiríssima infância, na medida em que se sustenta no método psicanalítico, no campo de afetação e se articule tecnicamente e teoricamente para o processo de subjetivação.

Demarcadores: atendimento psicoterapêutico conjunto pais-crianças; psicanálise; primeiríssima infância.


ABSTRACT

The article proposes a reflection on the psychotherapeutic attendance parent-child, describing their technical supports, theoretical and methodological and articulating as an area of movement of senses. This proposal takes into consideration how the process of constitution of subjectivity, the primacy of the intervention in the construction of the primordial ties, moving to the analytic setting relational formations. It presents a possibility of intervention-mediation in earliest infancy, to the extent that relies on the psychoanalytic method in the field of involvement and articulates technically and theoretically to the process of subjectification.

Index terms: psychotherapeutic attendance parent-child; psychoanalysis; early childhood.


RESUMEN

El artículo propone una reflexión sobre el atendimiento  psicoterapeútico conjunto padres-niños, describiendo sus  sustentaciones técnicas, teóricas y metodológicas, bien como lo  articula como espacio de circulación de sentidos. Esta propuesta  lleva en consideración el processo de constitución de la  subjetividad, la primacia de la intervención en la construción de  los lazos primordiales, trasladando para el setting analítico las  cenas de las formaciones vinculares. Presenta una posibilidad de  intervención-mediación en la primerísima infancia, en la medida en  que se apoya en el método psicanalítico, en el campo de afectación y  se articula tácnica y teóricamente para el proceso de subjetivación.

Palabras clave: atendimiento padres-niños; psicaonálisis con niñns; primera infancia.


 

 

1. Introdução

A clínica psicanalítica se enriquece por meio de todas as experiências em que se perceba a exigência do repensar da nossa tarefa - atendimento psicoterapêutico - prática. Isso nos obriga a um esforço teórico para elaborar conceitos que a sustentem. Novos pensamentos teóricos são impulsionados exatamente por este trabalho desenvolvido nos limites do conhecido. A clínica pode ser inventada e reinventada para que nossa ferramenta de trabalho - o método psicanalítico - mantenha sua validade (Sigal, 2001).

Herrmann (2001), ao propor o resgate do método psicanalítico, escreve sobre a possibilidade de o psicanalista exercer uma prática não dogmática, um fazer menos limitado, podendo ousar e construir, em seu próprio nome, uma clínica que trate o sofrimento do sujeito.

Esse mesmo autor faz a diferenciação entre método, técnica e teoria, pontuando o primeiro como o método investigativo e interpretativo; o segundo corresponde ao como encaminhar o processo analítico e o último refere-se às generalizações organizadas norteadoras da interpretação (Herrmann, 2001). Ao fazê-lo, Herrmann demonstra que o método é o essencial, o invariável, ao passo que a técnica e a teoria possuem maior flexibilidade, desde que estejam atuando em função do método.

Retomando Freud, Sigal (2001) salienta que os momentos mais profícuos desse teórico foram exatamente aqueles em que a certeza foi perdida e tudo pôde ser novamente pensado. Segundo Sigal, Freud aventura-se na multiplicidade e abre questões com várias linhas de fuga, que levantam enigmas e induzem a adentrar em novos campos.

Com base nesses teóricos, pode-se afirmar que a psicanálise fundamenta-se no método psicanalítico e movimenta-se por intermédio deste, numa busca constante do tratamento das mais diversas formas de expressão do sofrimento psíquico. Esta é a essência da palavra método, em grego methodos, que significa caminho para um fim (Herrmann, 2001). No entanto, não há caminho pronto; ele se faz ao caminhar - e como Sigal nos propõe: o fazer psicanalítico é um convite ao desafio, à criação, a invenções e reinvenções.

Por meio destes princípios, o presente artigo propõe uma reflexão acerca de uma proposta de trabalho com crianças de zero a três anos de idade em estado de sofrimento psíquico agudo e grave, descrevendo suas sustentações técnicas, teóricas e metodológicas e articulando-as na condição de espaço de circulação de sentidos.

 

2. Atendimento Psicoterapêutico Conjunto Pais-Crianças

Trata-se de um modelo de atendimento denominado Atendimento Psicoterapêutico Conjunto Pais-Crianças, desenvolvido na Clínica de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, com a supervisão do professor Dr. João Luiz Leitão Paravidini e da psicóloga Maria Hélvia Cristine Castro Silva Perfeito.

Uma característica importante dessa proposta é realizar o trabalho em conjunto. Isso significa que, durante todos os atendimentos, estão presentes: a criança, seu grupo familiar (pais, cuidadores, irmãos), como também, no mínimo, dois psicoterapeutas.

Esta proposição clínica é desenvolvida desde 2002, tendo sido atendidos 66 casos.

Paravidini (2008) apresenta algumas sustentações teóricas que respaldam a inserção dos pais na clínica da primeira infância, a partir da noção de constituição do mundo psíquico, do importante papel reservado às funções parentais neste processo constitutivo e a articulação das formações sintomáticas infantis e demanda parental.

Esta proposta considera todo o processo de constituição da subjetividade para articular o seu modelo técnico. Prima, ao fazê-lo, pela intervenção na construção dos laços primordiais, trazendo para o setting analítico as cenas das formações vinculares.

O objetivo técnico está em poder oferecer o acesso à observação e à experiência imediata da dramaticidade e intensidade com que a conflitiva pais-criança irrompe na sessão, como também o desempenho e alternância de diferentes papéis entre os participantes dos atendimentos (Caron, 1996 citado por Paravidini, 2008).

Há a possibilidade, assim, de se intervir no que Maia (2003) denominou de campo de afetação. Segundo esta autora, este campo se articula como um espaço intersubjetivo não linguístico e não simbólico, mediante o qual se criam condições para a não-dispersão pulsional, possibilitando os processos de subjetivação.

Percebemos que a comunicação que se estabelece nas sessões está inserida no âmbito da linguagem em seu sentido mais amplo, envolvendo a palavra falada, corporificada, afetada, agida, interagida.

Assim, o trabalho analítico infantil passa a atuar diretamente na formação dos laços primordiais, com a possibilidade - a partir da experiência constituída nesse campo complexo de afetações - de produzir intervenções-mediações.

2.1 Definindo o seu enquadre: a técnica

Este trabalho é desenvolvido na Universidade Federal de Uberlândia e, como tal, atende não só à demanda de tratamento psicológico da população do município, mas também ao compromisso com a formação acadêmica dos estagiários participantes. O serviço está articulado com a rede municipal de saúde mental e se responsabiliza pelo atendimento precoce às crianças que apresentem sintomas ou sinais de risco de psicopatologias graves.

O seu funcionamento acontece em modelo ambulatorial. Os atendimentos são agendados previamente, com a frequência de uma vez por semana e duração de 50 a 60 minutos. Há supervisões semanais dos casos em atendimento, de 3 horas e 30 minutos, em grupo.

A dinâmica dos atendimentos acontece a partir da dupla (psicoterapeuta e psicoterapeuta observador) e da criança com seu grupo familiar. O psicoterapeuta é - como descrito por Chaves (2007) - o agente condutor da sessão; é o portador da palavra falada, cabendo a ele realizar as perguntas, as colocações e as ações que poderão propiciar o bom andamento do caso. Já o psicoterapeuta observador é o portador da palavra escrita; é o representante do espaço de continência, pois por meio da sua postura receptiva, de quem só olha, escuta e anota o que se passa na sessão, ele contém tanto os elementos comportamentais quanto os emocionais, do campo criado pela interação do grupo. Neste sentido, a função terapêutica é bipartida e complementar.

Contudo, durante as supervisões ocorre a inversão dos lugares antes estabelecidos nas sessões, isto é, o psicoterapeuta observador, em vez de assumir a posição de quem vivencia e silencia, passa a ser portador da palavra falada, uma vez que as discussões dos casos acontecem a partir do seu relato. Assim, o psicoterapeuta passa a ter um papel ativo, dando voz à sua experiência. Em contrapartida, o psicoterapeuta deixa de ocupar o lugar daquele que vivencia e intervém, passando a se aproximar do outro lugar, silenciando-se para ouvir o relato. Como as supervisões acontecem em grupo, há a possibilidade de todos fazerem perguntas, colocações, enunciar dúvidas, promovendo a circulação da palavra, à semelhança da configuração dos atendimentos, na qual cada membro da família também pode dizer de si, ampliando as possibilidades de comunicação (Chaves, 2007).

Percebemos, com base na experiência, que estamos atuando em um campo complexo de transferências múltiplas, envolvendo tensões produzidas pela interação do grupo familiar com os dois psicoterapeutas. A formação deste complexo campo transferencial nos faz refletir sobre as possibilidades de manejo clínico a partir desta vertente do trabalho em conjunto. A questão que aqui se apresenta é: o que sustenta este trabalho, permitindo a atuação nesta configuração técnica? Como resposta possível encontra-se toda a concepção de método psicanalítico.

2.2 Fundamentação clínica: o método psicanalítico

Retomando o conceito de método já citado anteriormente, temos a ideia de caminho para um fim (Herrmann, 2001), de uma diretriz, de um fio condutor que possa permear todo o trabalho conferindo a este uma identidade. É o método que sustenta uma prática, possibilitando a flexibilidade do enquadre e a criatividade.

Qual seria, neste sentido, o fio condutor que permeia este trabalho? Em que ele se sustenta para possibilitar estas novas configurações técnicas? Enfim, qual é o seu método?

A resposta imediata a estas questões está na concepção de método psicanalítico desenvolvida por Fábio Herrmann, cujo sentido revela a interpretação como elemento identificatório da Psicanálise. Apresentamos, assim, a possibilidade de ser também a interpretação o elemento norteador deste modelo de atendimento conjunto.

A interpretação é essencialmente um desencontro produtivo, que rompe um campo. Toda relação humana é suportada por um campo. Ele sustenta, significativamente, as relações que nele ocorrem. Campo Psicanalítico é aquele onde todos os campos ocorrentes valem estritamente pela possibilidade de serem rompidos. O processo de ruptura de campo proporcionado pela interpretação ocasiona, por transitividade, um escorregamento das representações do analisando rumo a campos mais fundantes de sua estrutura psíquica, o que causa um efeito de vórtice - matriz operacional da regressão analítica (Herrmann, 2001).

Minerbo (2003) também trabalha as ideias de Herrmann. Ao fazê-lo, afirma que o processo interpretativo inicia-se com o fato de tomar em consideração os elementos marginais do discurso e termina quando vier à luz a regra emocional inconsciente que determina o sintoma, momento em que analista e/ou paciente poderão formular, numa sentença interpretativa, o produto da ruptura de campo. Assim, interpretar faz surgir um novo sentido que não pode ser previsto, o que promove o processo conhecido como deslocamento.

Herrmann, em entrevista a Maria Emília Lino da Silva (1993), afirma que o método psicanalítico é afetado por certa espessura ontológica, por ser um método de pesquisa, de operação sobre o humano, um operador de certo tipo de diálogo humano. Contudo, ao mesmo tempo, também contém uma eficácia concreta que o torna parte, no sentido de participante, do próprio inconsciente, pois é ele quem revela o que constrói. Sobre sua aplicabilidade, o autor responde que o método psicanalítico se aplica a um conjunto de relações humanas e define relações em um sentindo amplo, como tudo aquilo que tem um sentido humano.

Colocando em evidência a fala sobre o método, que se constitui operador de certo tipo de diálogo humano e enfatizando o princípio de ele se aplicar às relações humanas, surge uma importante questão a ser desenvolvida: como acontecem os diálogos nos atendimentos, tendo em vista o trabalho na primeiríssima infância, momento de constituição subjetiva? Em outras palavras: como se dão as sentenças interpretativas nesta configuração do atendimento conjunto?

Para fundamentar a resposta, utilizaremos o conceito de campo de afetação desenvolvido por Marisa S. Maia, em toda a sua extensão.

O primeiro sentido importante, apresentado por Maia (2003), está na íntima relação entre humanização e campo de afetação. Segundo esta autora, não existe possibilidade de constituição de subjetividade exterior a um campo de afetação. Neste campo, estão implicadas as dimensões do corpo, dos afetos e da linguagem. Durante o processo de constituição do sujeito, temos a linguagem como um aspecto vital e fundamental, na medida em que inscreve o infante na ordem da cultura, apresentando-se como um dos agentes reguladores das relações linguageiras existentes entre o meio e o bebê. No entanto, nos primórdios da estruturação psíquica o corpo e os afetos, em seus dois registros - intensidade e qualidade - tornam-se instrumentos preciosos, pelos quais o bebê se fará humano (Maia, 2003).

A autora propõe a articulação corpo, afeto, linguagem. Ao fazê-lo, considera estes elementos como importantes aspectos do processo de subjetivação. Ela, assim, apresenta uma dimensão da subjetivação em que a linguagem convive com uma camada não-verbal (gestual, sensorial, prosódica) que a permeia e a alimenta, incluindo dois outros elementos fundamentais para o processo de subjetivação, o que confere um estatuto semiológico ao corpo e ao afeto.

Esta noção de campo se aproxima da ideia de uma atmosfera de impressões, que envolve afetos categóricos, de vitalidade, percepções sutis, como também tudo que é captado pelos órgãos dos sentidos. Por afetos categóricos entendem-se os afetos com característica temporária, como raiva, tristeza, alegria. Já por afetos de vitalidade àqueles que são permanentes, apresentando uma determinada frequência e constância - são os reguladores da vida que estão presentes em qualquer manifestação afetiva categórica. As percepções sutis nos remetem ao nível invisível, não-semiotizado e não-amorfo que permeiam as relações linguageiras e possibilitam o laço entre o linguístico e o não-linguístico. Elas são estruturantes do campo de afetação, pois são fundamentais para viabilizar os processos de simbolização. Essa atmosfera primária de afetos, percepções e sentidos deixa marcas que, posteriormente, se oferecerão como um manancial para toda a vida, modelando o corpo expressivo, a gestualidade; um jeito de ser, estar e se relacionar com o mundo (Maia, 2003).

Desta forma, intervir no processo de subjetivação/humanização significa trabalhar neste complexo campo de afetação, se atentando para a comunicação na extensão do corpo, afeto e linguagem; em seu nível linguístico e não-linguístico. Esta é a prerrogativa da concepção de interpretação no modelo de atendimento conjunto aqui proposto. Isto é, os diálogos se dão por meio da formulação de uma sentença interpretativa que rompe o campo, como também mediante a imersão nesse campo de afetação como espaço de criação e circulação de sentidos.

2.4 Sustentações teóricas

Partimos da concepção de que a criança é um sujeito, ser de linguagem, com capacidade de intuir a verdade do que lhe é dita (Dolto, 2005); de que o ser humano é, na sua constituição, um ser de relação, inserido no campo subjetivo, a partir da relação com outro humano (Crespin, 2004).

Perfeito (2007) afirma que um bebê, antes do seu nascimento, já é falado, ou seja, sua história antecede à condição de pessoa física. Trata-se de uma aposta, uma antecipação de algo que poderá vir a ser, da tomada de um ser (o bebê) como desejo do outro. Somente por esta via é possível a criança ser inserida na linguagem, no mundo do humano.

Neste processo da formação dos laços primordiais, há a articulação das funções materna e paterna como elementos estruturantes da subjetividade. Entende-se como função materna o cuidado vital, humanizado, que conduzirá o bebê ao campo da subjetividade, não se tratando apenas de atender às necessidades da criança, mas para além deste cuidado, atribuir significação, sentido, às suas demandas (Timi, Braga & Mariotto, 2004). E como função paterna: o operador psíquico da separação, introduzindo a dimensão de alteridade (Crespin, 2004). Contudo, um bebê também faz seus pais, isto é, a criança constrói e parentaliza os pais ao mesmo tempo em que ela mesma se constrói (Lebovici, 2004).

Estas são as dimensões das formações vinculares, nas quais há a articulação entre o psiquismo infantil e o psiquismo parental, transpondo o olhar para o interpsíquico, para a relação, não atribuindo peso a nenhuma das partes, mas compreendendo o seu enlace, a sua configuração.

Desta forma, percebe-se que o discurso dos pais funciona como matriz simbólica de partida, fundamental para a constituição subjetiva da criança, contudo, isso não significa que o inconsciente infantil seja um simples reflexo do inconsciente parental (Zornig, 2001). Temos, neste sentido, um processo de via dupla, em que a criança constitui seus pais ao mesmo tempo em que estes a constituem.

O olhar deste trabalho, portanto, recai não somente nos pais ou na criança, mas na relação, nas formações vinculares. Desta forma, atuamos a partir da vertente interpsíquica, na qual o sintoma pode ser entendido como circulação de sentido. Segundo Mannoni (1999), o sintoma está em uma fala que falta, nos não-ditos, aparecendo como uma máscara ou fala cifrada, o que sustenta esta ideia do sintoma como comunicação.

Contudo, a comunicação aqui ganha a extensão do campo de afetação (afeto, corpo e linguagem); está na palavra falada, nas sensações captadas pelos sentidos e aprisionadas no corpo, no registro escrito do observador, enfim nas suas múltiplas variações.

Como tentativa de melhor dizer sobre este arranjo teórico, técnico e metodológico, proporemos a breve discussão de duas sessões de um caso clínico.

2.5 Caso clínico

Para realizar a articulação do que já foi apresentado com a prática clínica, foram selecionados dois registros de duas sessões (seguidas) por ter sido possível a confecção do relato da observação e o relato da vivência de um dos dois psicoterapeutas que acompanharam o caso. Desta forma, o setting deste atendimento é composto por dois psicoterapeutas e um psicoterapeuta observador, a criança e seus pais.

Trata-se de uma menina de dois anos e sete meses com disfunções físicas significativas e comprometimento neurológico. Ela veio encaminhada pela AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), já tendo sido transcorridos oito atendimentos anteriores aos dois em questão.

A partir da junção dos registros do observador e de um dos psicoterapeutas destas duas sessões escolhidas, podemos descrever algumas cenas que ilustram, de duas perspectivas, a montagem do setting, as comunicações, o campo de afetação, enfim a complexa rede de circulação da palavra, do afeto e da linguagem.

Cena 1 - "Encontro nas almofadas"

Deito nas almofadas, meu rosto fica perto do dela (criança). Fazemos vários movimentos com as mãos abrindo e fechando, batendo sobre a almofada. Ela faz. Eu repito o movimento. Ela espera, dá pausas, faz novamente e assim ficamos por um tempo, mãos abertas, mãos fechadas, um dedo aberto e o resto da mão fechada. Penso em repetição e vazio, me indago: Que conversa é essa? (Nono atendimento. Estão presentes: dois psicoterapeutas, o psicoterapeuta observador, a criança e o pai. Relato da Psicoterapeuta)

Esta cena demonstra a proximidade afetiva da psicoterapeuta com a criança, o que possibilita a abertura para uma conversa (comunicação) não-verbal, "conversa com as mãos". A experiência vivida suscita pensamentos e sensações na terapeuta, ela se questiona "que conversa é essa?" e sente "repetição e vazio".

Simultaneamente a essa cena há outro psicoterapeuta conversando com o pai da criança. Com base no relato do observador e da sequência desta cena podemos dar um zoom no enquadre e perceber que, além dos afetos sentidos e conversados neste recorte, há mais elementos circundando o atendimento.

Cena 2 - "Batendo as cabeças"

A criança bate a cabeça na almofada e eu repito seu gesto. Batemos a cabeça várias vezes. Ela olha para a parede. Eu olho, vejo uma sombra. É a sombra da minha cabeça. Penso se o pai está me olhando e vendo a brincadeira das cabeças batendo. Me recrimino e penso: bater a cabeça não pode?! Mas é na almofada! Estes pensamentos vêm em função do que o pai está falando com o terapeuta, sobre não poder bater a cabeça. Continuo sentindo vazio, não sei o que falar com a criança. (Nono atendimento. Estão presentes: dois psicoterapeutas, o psicoterapeuta observador, a criança e o pai. Relato da Psicoterapeuta)

Cena 3 - "Conversando da crise"

A criança vai até as almofadas, bate com a mão nelas inicialmente e em seguida se deita. Seu pai a repreende dizendo que não podia bater a cabeça, e então percebo que ela, deitada, batia a cabeça na almofada. Ele também conta que a menina bate a cabeça no chão quando está nervosa.... O terapeuta pergunta sobre a crise e o pai relata que os médicos só disseram que tinha a ver (ou não tinha) com o emocional. O pai nega a questão e continua a contar que a médica disse que conforme a criança cresce, precisa aumentar mais a dosagem dos remédios, pois o cérebro (algo sobre os disparos...).... Diz que a tendência era aumentar as crises e que a partir dos quatros anos aumentava a curiosidade, que o cérebro trabalhava mais e que aumentava os disparos. (Nono atendimento. Estão presentes: dois psicoterapeutas, o psicoterapeuta observador, a criança e o pai. Relato do observador)

Na cena 2, descrita pela psicoterapeuta, temos notícia do que se passava entre ela e a criança, da angústia sentida pela terapeuta ao perceber o olhar repressor do pai. Um olhar que revela o medo de um possível perigo, que não se encontrava exatamente na cena das almofadas, mas no seu relato das crises.

A criança naquele momento não estava em perigo, mas com base no recorte das falas do pai pelo observador (cena 3), percebemos que a criança havia sofrido uma crise convulsiva recentemente. O relato está cheio de lacunas, dúvidas, demonstradas pelo observador, pelas reticências. Podemos deduzir que não foi uma fala tranquila de ser escrita, estava carregada de emoções, medos e angústias, que não apareceram no discurso do pai, mas na escrita do observador.

Estes dois recortes nos dão a dimensão ampliada dos processos de comunicação, demonstrando a complexidade do campo aqui formado.

Na sequência deste atendimento, há uma cena relatada pela psicoterapeuta que posteriormente poderá ser articulada com a história da criança, promovendo a circulação dos sentidos.

Cena 4 - "Menina dos fios"

A criança está no meio dos fios da filmadora. Eu olho para os seus pés. Ela dá pequenos passos entre os fios da filmadora. Penso que ela pode ficar embaraçada, mas não me importo. Não ligo nem para a filmadora, se ela pode quebrar ou não. Olho para os fios, sinto vazio, não sei o que fazer.... Fico paralisada, não há palavras, sentimentos, nada. (Nono atendimento. Estão presentes: dois psicoterapeutas, o psicoterapeuta observador, a criança e o pai. Relato da psicoterapeuta)

A partir desta cena em que a criança se "embaraça" nos fios da filmadora, a psicoterapeuta relata a seguinte associação: "Considero a sessão um deserto, mas após um tempo, quando começo a considerar sobre a cena dos fios, sobre o vazio, pensamentos começam a se formar em minha mente: o embaraço dos fios, a menina dos fios, a respiração por fios e, por fim, a cena traumática."

Estes foram os sentidos articulados a partir da experiência vivida no atendimento. Sentidos que tiveram ressonâncias na sessão seguinte.

Cena 5 - "Cena traumática"

A mãe da criança relata um episódio. Chegou a um hospital, em determinado período, e a mangueira de ar estava no chão e a filha paradinha, enrijecida. Relata que acha que tiveram que ressuscitar a menina. Alega que ela deve ter ficado uns trinta minutos sem o ar e que quando viu, gritou, e que vieram os funcionários. Em seguida, foi puxada para uma sala com a psicóloga. A criança devia ter uns dois meses.... Ela conta também que a filha ficou isolada uns dois meses. E, respondendo a uma pergunta do terapeuta, diz que fazia contato com a filha passando a mão no rosto dela, conversando e passando a mão no corpo dela. (Décimo atendimento. Estão presentes: dois psicoterapeutas, o psicoterapeuta observador, a criança e a mãe. Relato do Observador)

Cena 6 - "Encontrando sentido"

Ouço partes da conversa da mãe com o terapeuta. Ela fala de chegar no berçário e encontrar a filha sem o respirador, paradinha... conta sobre a cena em que chamou as enfermeiras e sobre a correria. Neste instante, a criança faz um som com a boca, como se estivesse sem ar. É um ah! sufocado, que sai bem do fundo da garganta. Eu vejo, ouço e admiro a sua compreensão da fala da mãe. Repito o som e digo: ah, faltou ar, doeu, foi ruim! Oh, a criança está entendendo o que vocês estão falando! (Décimo atendimento. Estão presentes: dois psicoterapeutas, o psicoterapeuta observador, a criança e a mãe. Relato da Psicoterapeuta)

Nestes dois fragmentos, pode-se perceber a angústia sem nome, o vazio, o mal-estar. Com base na articulação da fala da mãe, relatando a sua experiência de ter encontrado seu bebê quase morto sem ar, associada à fala da criança que nos dá notícia da sensação terrível de ter ficado sem ar, foi possível conversar e vivenciar a angústia de quase-morte do bebê. Foi possível dar um sentido, palavra, para as sensações do corpo, construindo conjuntamente a estória da família.

Estas duas cenas exemplificam o principal propósito do trabalho que está na possibilidade de oferecer um espaço para que o grupo familiar possa "dizer" sobre as suas vivências, angústias, buscando dar sentido àquilo que não pudera ainda ter significado. Contudo, esta busca de sentido vai ao encontro da concepção de interpretação anteriormente discutida, pois não é revelar o que estava encoberto, mas construir com base na relação vivida o sentido possível, partindo da experiência, da afetação.

 

3. Considerações finais

A partir da reflexão técnica, teórica e metodológica deste modelo de atendimento, é possível enfatizar que todo o trabalho aqui é desenvolvido na articulação de sentidos possíveis; estes vivenciados na experiência clínica.

Abre-se, assim, o espaço para que a linguagem simbólica e não-simbólica possa circular e, assim, encontrar um sentido possível e construído em conjunto. Esta forma de atuação clínica pode ser nomeada de intervenção-mediação, pois a intenção está em promover o enlace simbólico, isto é, intervir a partir da mediação entre tudo o que se passa no campo de afetação para que os processos de significação possam advir.

Segundo Maia (2003), o campo de afetação está a serviço da retomada dos processos de subjetividade. Segundo esta autora, a vivência traumática não comporta sentido em si, e somente ganhará a significância de dor, ou não, mediante um desdobramento do psíquico frente ao impacto traumático. Desta forma, o trauma, em seus aspectos positivos (subjetivantes), provoca a narrativa na medida em que afeta ou desestabiliza momentaneamente as construções psíquicas operantes, podendo provocar desdobramentos de formas, sentidos e significações. Já em seus aspectos dessubjetivantes, a afetação traumática coloca em xeque qualquer possibilidade de narrativa acerca do ocorrido, desafiando a memória e as possibilidades de elaboração psíquica.

Estes conceitos advindos de Maia nos permitem dizer que no atendimento conjunto há a oportunidade de vivências traumáticas dessubjetivantes serem revividas com esta possibilidade de desdobramento de formas, sentidos e significações, tornando-se experiências traumáticas subjetivantes. Temos isso exemplificado na discussão das cenas clínicas, nas quais a vivência traumática da criança no hospital pode ser revivida e contada com significação, havendo o desencadeamento de sentidos. Nesses termos, os atendimentos se tornam uma via de subjetivação.

Desta forma, o Atendimento Psicoterapêutico Conjunto Pais-Crianças nos apresenta uma possibilidade de intervenção-mediação na primeiríssima infância, na medida em que se sustenta no método psicanalítico, no campo de afetação e se articule tecnicamente e teoricamente para o processo de subjetivação.

 

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Recebido em novembro/2008.
Aceito em fevereiro/2009.

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