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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.14 n.26 São Paulo  2009

 

ARTIGO

 

Psicanálise aplicada à educação: uma discussão teórica a partir de freud e lacan

 

Psychoanalysis applied to the education: a theoretical discussion based on freud and lacan

 

El psicoanálisis aplicado a la educación: una discusión teórica a partir de freud e lacan

 

 

Cynthia Pereira de MedeirosI; Suely Alencar Rocha de HolandaII

IPsicanalista, Doutora em Psicologia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. cynthiamedeiros@yahoo.com
IIPsicanalista, Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. sueholanda@digizap.com.br

 

 


RESUMO

Este trabalho discute teoricamente a questão da aplicação da psicanálise à educação. Freud, ao distinguir a psicanálise de outras terapias, situa sua especificidade na abordagem ao inconsciente, apontando os limites da transmissão acadêmica na formação do analista. Lacan centra-se na questão da produção do analista e da ética daí decorrente, já que estes dois eixos definem o campo de aplicação da psicanálise. É na medida de sua submissão à causa do inconsciente que uma prática se revela analítica, o que só se testemunha no a posteriori. Assim, é somente recolhendo os testemunhos de atos que nascem da iniciativa dos analistas que podemos dizer das (im)possibilidades de aplicação da psicanálise.

Descritores: aplicação da psicanálise; psicanálise e educação; pesquisa em psicanálise; ética da psicanálise; formação do analista.


ABSTRACT

This work theoretically argues the question of the application of the psychoanalysis to the education. Freud, distinguishing the psychoanalysis from other therapies points out its especificity in the boarding to the unconscious and the points that limits the academic transmission in the formation of the analyst. Lacan is centered in the question of the analyst production and from there the decurrent ethics, for Him, these two axles define the field of application of the psychoanalysis. It is in the measure of its submission to the cause of the unconscious that this practic reveals analitic, what only is witnessed in a posteriori. Thus, it is only collecting the certifications of acts that are born of the initiative of the analysts that we can say of (the im)possibilities of application of the psychoanalysis.

Index terms: application of the psychoanalysis; psychoanalysis and education; research in psychoanalysis; ethics of the psychoanalysis; formation of the analyst.


RESUMEN

Este trabajo discute teóricamente la cuestión de la aplicación del psicoanálisis a la educación. Freud, distinguiendo el psicoanálisis de otras terapias, localizó su especificidad en la aproximación al inconsciente, destacando los límites de la transmisión académica en la formación del analista. Lacan se centra en la cuestión de la producción del analista y de la ética consecuente, ya que para éste, esos dos ejes definen el campo de aplicación del psicoanálisis. Es en la medida de su sumisión a la causa del inconsciente que una práctica se revela analítica, aspecto que sólo es evidente de forma a posteriori. Así, es solamente a partir de los testimonios de los actos nacidos por la iniciativa de los analistas que podemos hablar de las imposibilidades de aplicación del psicoanálisis.

Palabras clave: aplicación del psicoanálisis; psicoanálisis y educación; investigación en psicoanálisis; ética del psicoanálisis; formación del analista


 

 

Comprometidas com a formação psicanalítica e, ao mesmo tempo, inseridas numa universidade como docentes, encontramo-nos nesse percurso com algumas questões que insistem, exigindo um esforço de trabalho e de formalização de nossa parte. Ao sustentarmos, a partir da psicanálise, uma articulação com outros campos de saber e prática, o que pode nos servir de bússola?

De acordo com Viganò (2000), não é possível encontrar, de Freud até Lacan, uma continuidade temática acerca da aplicação da psicanálise. Nesse sentido, "a questão deve ser reformulada a cada passagem para seguir os novos rumos que concernem a sua própria articulação" (p. 5).

Seguindo tal indicação, este texto visa comunicar o percurso teórico realizado em torno da questão da psicanálise aplicada ao campo da educação, abordando-a a partir das obras de Freud e Lacan.

 

Freud e a psicanálise aplicada

Ao analisarmos a obra de Freud, vemos que em mais de um momento ele alude ao tema da aplicação da psicanálise a outros campos do saber (1913a/1996, 1913b/1996, 1914/1996, 1925/1996, 1933a/1996), recortando tal aplicação em duas vertentes: uma que trata da aplicação terapêutica da psicanálise, ou seja, a psicanálise como método de tratamento de neuróticos, e a outra como aplicação dos conceitos e descobertas psicanalíticas a outros campos de prática, dentre os quais ele destaca a educação.

É assim que, no artigo O interesse científico da psicanálise, escrito a pedido do diretor chefe de Scientia, conhecido periódico científico italiano, Freud (1913a/1996) afirma, de um lado, o interesse psicológico da psicanálise e, de outro, o interesse da psicanálise para as ciências não-psicológicas, entre elas a filologia, a filosofia, a biologia, a história da civilização, a estética, a sociologia e a educação.

Esta posição é reiterada em seu artigo A história do movimento psicanalítico, no qual encontramos a afirmação de que "as teorias da psicanálise não podem ficar restritas ao campo médico, mas são passíveis de aplicação a várias outras ciências mentais" (Freud, 1914/1996, p. 45). Aí vemos afirmada a aplicação da psicanálise à literatura, à religião, à antropologia, à estética e, uma vez mais, à educação.

Em fevereiro de 1913, referindo-se especificamente ao campo da educação na introdução ao livro do pastor Oscar Pfister, The psycho-analytic method, considera que as vantagens de uma utilização da psicanálise para fins educativos seriam óbvias, pois o educador, a partir do conhecimento das disposições humanas gerais da infância, estaria preparado para julgar quais dessas disposições ameaçam conduzir a um desfecho indesejável. Já aí, no entanto, interroga-se acerca do alcance da aplicação da psicanálise, articulando-a à formação do analista, ao afirmar que "a única garantia da aplicação inócua do procedimento analítico tem de depender da personalidade do analista" (Freud, 1913b/1996, p. 357). Nesse sentido, embora considere promissora a possibilidade de aplicação da psicanálise a serviço da educação, tal interrogação, ao marcar as diferenças entre as mesmas, revela seus limites.

A despeito desta reflexão, ainda neste ano afirma, entre as aplicações não-médicas da psicanálise, o interesse educacional. Alertando para o abismo que separa nossa vida mental dos processos de desenvolvimento da infância, processos estes trazidos à luz pela experiência analítica ao revelar a natureza da sexualidade infantil, aposta em um reposicionamento dos adultos frente à sua própria infância, a partir de familiaridade com as descobertas da psicanálise. Esta reconciliação do adulto com certas fases do desenvolvimento infantil, acreditava Freud, traria consequências para a educação das crianças, a partir do reconhecimento dos efeitos indesejáveis da repressão das manifestações da sexualidade na infância. Mostra-se, nesse momento de sua elaboração, profundamente esperançoso na possibilidade profilática da neurose através de uma "educação psicanaliticamente esclarecida" (Freud, 1913a/1996, p. 191).

Em 1925, por ocasião da apresentação do livro Juventude desorientada, de August Aichhorn, afirma: "nenhuma das aplicações da psicanálise excitou tanto interesse e despertou tantas esperanças, e nenhuma, por conseguinte, atraiu tantos colaboradores capazes quanto seu emprego na teoria e prática da educação" (Freud, 1925/1996, p. 307). Justifica esse interesse na medida em que as crianças se tornaram o principal tema da pesquisa psicanalítica, o que poderia beneficiar o trabalho da educação.

Reiterando a posição assumida em 1913, sugere que toda pessoa que trabalha, como Aichhorn, com delinquentes juvenis, deveria receber uma formação psicanalítica, uma vez que, sem esta, as crianças lhe serão inacessíveis.

Acrescenta ainda que esta formação será melhor se a própria pessoa se submeter a uma análise e a experimentar em si mesma, posto que "a instrução teórica na análise fracassa em penetrar bastante fundo e não traz convicção" (Freud, 1925/1996, p. 308). Com isto, vemos afirmada, mais uma vez, a aplicação da psicanálise intimamente ligada à própria análise: "a possibilidade de influência analítica repousa em precondições bastante definidas, que podem ser resumidas na expressão 'situação analítica'; ela exige o desenvolvimento de determinadas estruturas psíquicas e de uma atitude específica para com o analista." (Freud, 1925/1996, p. 308)

Tal posição, no entanto, não deve ser lida como uma prescrição de análise para todos. Menos ainda da perspectiva de que a psicanálise poderia vir a substituir a educação. Afirma que o trabalho educativo é algo sui generis "cujo objetivo é orientar e assistir as crianças em seu caminho para diante e protegê-las de erros" (Freud, 1925/1996, p. 307). Nesse sentido, não pode ser confundido nem substituído pelo trabalho analítico. "A psicanálise pode ser convocada pela educação como meio auxiliar de lidar com uma criança, porém não constitui um substituto apropriado para a educação" (Freud, 1925/1996, p. 308).

Em 1933, na XXXIV das Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, intitulada "Explicações, Aplicações e Orientações", reencontramos a posição freudiana de que a psicanálise interessa ao campo da educação, fundamentalmente pela via da análise dos educadores.

Tal conclusão poderia nos levar facilmente a uma ideia de prescrição freudiana de análise para todos. No entanto, uma leitura mais cuidadosa do texto nos leva a reconhecer quão equivocada seria esta ideia.

Admitindo, de um lado, o lugar da neurose na economia psíquica e as limitações terapêuticas da análise, isto é, casos nos quais a eficácia da análise permanece tolhida e, de outro, a particularidade do diagnóstico psicanalítico que se realiza sempre no depois, vemos afirmados, pelo próprio Freud, os limites da psicanálise.

Assim, se o recenseamento produzido por Freud em torno das aplicações não-médicas da psicanálise remete o leitor a uma ideia de que as possibilidades de aplicação da psicanálise a outros campos de saber estão intimamente ligadas à formação do analista, a permanente interrogação freudiana acerca dos limites dessa aplicação adverte contra a tendência a fazer da teoria psicanalítica uma visão de mundo (Freud, 1933b/1996).

 

Lacan e a psicanálise aplicada

Podemos dizer que a questão acerca do que faz um analista - qual a especificidade de sua formação, os fundamentos de sua práxis - funciona como eixo em torno do qual giram as elaborações de Jacques Lacan no decorrer do que, no seu ensino, ficou conhecido como O seminário.

Lacan trata da questão da formação do analista ao longo de dez anos de investigação e sistematização (1953-1963), antes de tratar de forma explícita da questão da psicanálise aplicada (1964/2003).

Nesse percurso destaca-se, em suas considerações sobre o que concerne ao eixo da experiência analítica, o trabalho com o conceito de desejo, em articulação com a necessidade e a demanda, tal como elaborado no seminário As formações do inconsciente e no escrito do mesmo ano A subversão do sujeito e a dialética do desejo.

Lacan toma como ponto de partida uma consideração sobre a prematuridade constitucional do filhote humano, que se traduz em uma incapacidade de reconhecer e satisfazer por si mesmo o que seria do registro da necessidade, para destacar sua condição de dependência de um Outro que venha interpretar o seu grito como um apelo.

Do ponto de vista desse Outro, referido por Lacan (1966/1998) como o lugar da linguagem, tesouro do significante, em geral encarnado pela mãe, esse grito já está desde antes referido a um contexto de sentidos, assumindo um valor de demanda.

Essa transmutação da necessidade em demanda, passando pelo desfiladeiro da palavra, produz um resto, uma diferença irredutível a que Lacan se refere como desejo: "O desejo se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade" (Lacan, 1966/1998, p. 828).

Assim, a demanda é o que se articula em significantes, isto é, o que se presentifica em cada ato de fala, sendo o desejo o que transparece na demanda como seu mais além, o que resta como impossível de se dizer.

Como desdobramento dessa elaboração, Lacan (1961/1998) situa a importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento. Trata-se, para ele, de não responder à demanda, uma vez que, seja pela via da frustração ou da gratificação, "toda resposta à demanda na análise conduz a transferência à sugestão" (p. 641).

Durante os anos de 1959 e 1960, a investigação lacaniana sobre a ética da psicanálise o leva a mais uma volta em torno do conceito de desejo, o que desta vez ele faz a partir do modo como essa noção surge na elaboração freudiana acerca da experiência de satisfação, tal como se encontra no Projeto para uma psicologia científica (1950/1996).

Nesse contexto, Freud, ao especular sobre o início da vida psíquica, supõe um momento inaugural em que o recém-nascido experimenta um estado de tensão, relativo às necessidades vitais (fome e sede, por exemplo), que não pode ser resolvido apenas com uma regulação interna; faz-se necessária uma ação específica, vinda do mundo externo, para poder eliminá-la. A remoção fica ligada, a partir daí, tanto à imagem do objeto quanto ao movimento da descarga.

Quando o estado de necessidade se repete, surge uma moção psíquica que procura reinvestir a imagem mnênica da percepção, visando restabelecer a situação da satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que Freud nomeia como desejo. Essa satisfação original, jamais podendo ser restabelecida, configura o objeto do desejo como impossível.

Este objeto, nomeado na teoria freudiana como das Ding, "a Coisa", e qualificado na teoria lacaniana como objeto perdido, funda o suporte a que se refere toda a experiência prática do sujeito.

Assim, é em torno de das Ding que, no dizer de Lacan (1986/1995), orienta-se todo o encaminhamento do sujeito, toda a referência em relação ao mundo de seus desejos. É em relação a essa exigência primeira de reencontrar a Coisa que Lacan faz uma interlocução com o que se elaborou ao longo dos tempos em matéria de ética.

Para ele, reside aí todo o paradoxo da ética na psicanálise, pois o que a experiência analítica, desde Freud, nos mostra é que "o que nos governa no caminho de nosso prazer não é nenhum Bem Supremo, e que para além de um certo limite de nosso prazer, estamos no que diz respeito ao que das Ding recepta, numa posição inteiramente enigmática" (Lacan, 1986/1995, p. 121).

Portanto, a ética da psicanálise não pode incidir sobre uma especulação acerca dos bens, dos valores e da arrumação destes. Ela diz respeito, em última instância, à relação do sujeito com o desejo. "É aí que reside a experiência da ação humana, e é por sabermos, melhor do que aqueles que nos precederam, reconhecer a natureza do desejo que está no âmago dessa experiência, que uma revisão ética é possível, que um juízo ético é possível, o qual representa essa questão com valor de Juízo final: Agiste conforme o desejo que te habita?" (Lacan, 1986/1995, p. 376). Questão nada fácil de sustentar, nos diz Lacan, e que ele espera que jamais seja colocada senão no contexto analítico. É nesta perspectiva que se situa a afirmação de que a ética da psicanálise é a ética do desejo, intimamente articulada à formação do analista.

Essa investigação sustentada por Lacan, que interroga de modo rigoroso e contundente os fundamentos da prática analítica, provoca mal-estar e dá lugar a uma série de ações desenroladas entre os mandatários da IPA e da Sociedade Francesa de Psicanálise, que têm por desfecho a proibição do seu ensino por esta última, que passa a não reconhecê-lo como analista didata (Roudinesco, 1994).

A resposta de Lacan a tais acontecimentos surge logo depois, na forma do Ato de fundação da Escola Francesa de Psicanálise, em 1964, no qual estabelece os princípios de estrutura e funcionamento de uma Escola centrada na questão da formação do analista. É nesse contexto que a questão da psicanálise aplicada aparece explicitada. Ali, a psicanálise pura refere-se à práxis e à doutrina da psicanálise propriamente dita - a psicanálise didática -, que diz respeito à formação do analista.

A psicanálise aplicada significa terapêutica e clínica médica e diz respeito à prática do analista, cuja verificação se daria na comparação com a prática dos grupos médicos, analisados ou não, que estariam em condições de contribuir para a experiência analítica, pela crítica de suas indicações em seus resultados, quanto ao exame clínico, às definições nosográficas e à formulação dos projetos terapêuticos.

O recenseamento do campo freudiano responde pela "atualização dos princípios dos quais a práxis analítica deve receber, na ciência, seu estatuto" (Lacan, 1964/2003, p. 238), dizendo respeito ao que se formaliza da psicanálise como saber exposto. Convoca-se nesse contexto o comentário contínuo do movimento psicanalítico, sua articulação com as ciências afins e a ética da psicanálise.

Embora no Ato de fundação já estivesse colocada a ênfase na formação do analista como tarefa primordial da Escola, é somente três anos depois, na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, com o dispositivo do passe, que Lacan institui um meio de verificação do ato analítico referido à própria lógica da análise. Essa Escola, portanto, acha-se centrada na produção do analista, cuja investigação passa a contar, desde então, com o testemunho do passe, um relato que o analista faz de sua própria análise, num esforço de transmitir a mudança subjetiva que ali teria se operado. Então, em sentido estrito, uma análise se revela didática por retroação desse tempo posterior, no qual o passe se verifica.

Neste ponto do ensino de Lacan, a questão da formação do analista, além de constituir um tema central, implica uma ética, a ética do desejo. Vale sublinhar que "aqueles que empreendem uma psicanálise didática o fazem por sua iniciativa e por sua escolha" (Lacan, 1964/2003, p. 240), mas, por outro lado, a verificação do ato analítico, ato que tem como produto o analista, se daria, com o dispositivo do passe, no a posteriori da experiência.

Seguindo Viganò (2001), para quem a aplicação a outras práticas se dá somente se essas se submetem à causa do inconsciente, devemos pensar a Escola fundada por Lacan como centrada sobre a psicanálise pura, na condição, no entanto, de considerar a relação desta última com a psicanálise aplicada.

Portanto, sendo uma consequência possível da implicação do praticante com a causa da psicanálise em sua formação, também a aplicação só se revelaria em sua qualidade analítica num tempo posterior ao seu desenvolvimento.

 

Algumas considerações para concluir

Iniciamos esse percurso com Freud e Lacan movidas pela exigência de encontrarmos referências teóricas e éticas que pudessem nos servir de bússola na sustentação de uma prática articulada a outros campos de saber, notadamente o campo da educação.

Nas referências freudianas, encontramos, de início, sua esperança nos benefícios de uma aplicação de conceitos analíticos a esse campo. Essa esperança, no entanto, se relativiza a partir do reconhecimento dos limites dessa aplicação, na medida em que tais benefícios dependeriam da análise pessoal dos educadores e uma prescrição de análise para todos estaria inteiramente fora dos princípios da própria psicanálise.

Neste sentido, podemos dizer que, desde Freud, o esforço de responder à questão da aplicação da psicanálise a outros campos de saber põe em relevo o tema da formação do analista. Ou seja, o que especifica a psicanálise como experiência não se transmite integralmente pela via da instrução teórica. Encaminhá-la pela via de um saber exposto, de uma aplicação de conceitos, constitui um meio pelo qual facilmente a psicanálise se converteria em uma ideologia, contrariamente às advertências feitas por Freud em mais de uma ocasião. A aplicação da psicanálise, assim, supõe um analista.

O percurso que fizemos nas referências lacanianas revelou-nos que, para Lacan, o tema da psicanálise aplicada se apresenta como um desdobramento da questão fundamental com a qual está às voltas no seu ensino: a formação do analista.

Da elaboração de Lacan em torno dessa questão, destacamos a delimitação do conceito de desejo, em oposição à necessidade e à demanda, bem como suas consequências para a prática analítica, que passa a estar orientada para um mais além do sentido, visando preservar o lugar do desejo na direção do tratamento.

Esse lugar é radicalizado na sua investigação acerca da ética da psicanálise, na qual formaliza o desejo como tentativa de recuperar a satisfação original, ou seja, constituído em torno de um objeto, em última instância, sempre impossível.

A exigência de um manejo com esse impossível na direção do tratamento recoloca de forma incessante a questão da formação do analista, a qual, sendo efeito de uma análise levada a termo, implica uma mudança de posição subjetiva, que só se revela no a posteriori da experiência.

Nesse sentido, podemos dizer que, com Lacan, a psicanálise pura, aquela que tem por efeito a formação de um analista, é sempre uma decorrência possível da psicanálise aplicada. Por outro lado, a aplicação da psicanálise supõe um analista, ou seja, um praticante submetido à causa do inconsciente.

Do trabalho realizado até o presente, extraímos, ainda que provisoriamente, que a oferta de um analista, mais além do campo da aplicação da psicanálise, delimitado por Lacan como dizendo respeito à terapêutica e à clínica médica, orienta-se pela referência ao desejo.

Essa referência, na qual se articula um impossível de se escrever, é o que pode nos servir de bússola na sustentação de uma posição de escuta que, por visar o mais além da demanda e do sentido, abra as vias de um trabalho que possa vir a contemplar a particularidade do sujeito.

 

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Recebido em setembro/2008.
Aceito em dezembro/2008.

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