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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.18 no.2 São Paulo ago. 2013

 

ARTIGO

 

Transgressão e criatividade em sala de aula

 

Transgression and creativity in classroom

 

Transgresión y creatividad en el aula

 

 

Karen Geisel DominguesI; Inês Maria Zanforlin Pires de AlmeidaII; Teresa Cristina Siqueira CerqueiraIII

IDoutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. SQS 213, Bloco K/03 70292-110 - Brasília - DF - Brasil. karengeisel@gmail.com
IIProfessora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. UnB Campus Universitário Darcy Ribeiro - Faculdade de Educação - Asa Norte 70910-900 - Brasília - DF - Brasil. almeida@unb.br
IIIProfessora doutora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF, Brasil. UnB Campus Universitário Darcy Ribeiro - Faculdade de Educação - Asa Norte 70910-900 - Brasília - DF - Brasil. teresacristina@unb.br

 

 


RESUMO

O artigo apresenta parte de uma pesquisa de mestrado que utilizou como referencial epistemológico a teoria da criatividade de Winnicott. A investigação aconteceu a partir de entrevistas com professores da 2a Fase do Ensino Fundamental de escolas da rede pública e particular de Brasília-DF, a fim de compreendermos a interpretação dos educadores sobre o processo de constituição do sujeito-aluno no entretecer de comportamentos transgressores e criativos no trabalho-educar. Concluiu-se que a transgressão pode ser considerada parte do processo criativo para o aluno, tanto em relação a ações e produções no mundo social quanto à criação da própria identidade do indivíduo.

Descritores: transgressão; criatividade; constituição do sujeito.


ABSTRACT

The article presents part of the research methodologically oriented by the creativity theory of Winnicott. For subjects we had teachers of second phase of the fundamental level (6th year to 9th year) from two different types of schools: particular and public schools, aiming to understand the relationship between transgression behaviors and creativity of pupils and their subjective constitution. During the research we verified positive and negative aspects about the behavior of the student, we examined if there were relations between creative and transgressor behavior. From the psychoanalysis theory about creativity we conclude that transgression may be part of the creative process of the student, including also social productions and identity constitution.

Index terms: transgression; creativity; subject constitution.


RESUMEN

El artículo presenta parte de una búsqueda de maestría que utilizó como referencia epistemológica a la teoría de la creatividad de Winnicott. La investigación aconteció a partir de entrevistas con profesores de la 2a etapa de la enseñanza primaria de escuelas de la red pública y particular de Brasilia-DF, con el propósito de comprender la interpretación de los educadores sobre el proceso de constitución del sujeto-alumno en el entrelazar de comportamientos transgresores y creativos en el trabajo-educativo. Se concluyó que, la transgresión puede ser considerada parte del proceso creativo para el alumno, tanto en relación a las acciones y producciones en el mundo social cuanto a la creación de la propia identidad de este sujeto.

Palabras clave: transgresión; creatividad; constitución del sujeto.


 

 

O assunto proposto para este artigo apresenta-se como parte de uma pesquisa de mestrado que utilizou como referencial epistemológico a teoria da criatividade do pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott. A investigação aconteceu a partir de entrevistas com professores da 2ª Fase do Ensino Fundamental de escolas da rede pública e particular de Brasília-DF, a fim de compreendermos a interpretação dos educadores sobre o processo de constituição do sujeito-aluno no entretecer de comportamentos transgressores e criativos no trabalho-educar.

A teoria da criatividade de Winnicott (2005) afirma que todos os sujeitos são capazes de serem atores criativos para si mesmos, em suas construções subjetivas e objetivas, e para o grupo no qual estão inseridos. É através de um processo de crescimento complexo, determinado geneticamente e pela interação com o meio - podendo ser positivamente facilitador ou não - que a criança se torna um adulto, descobrindo-se equipado com a capacidade para ver tudo de um modo novo, para ser criativo nos detalhes do viver. Para Winnicott (1975), ao se analisar a criança em sua forma de usar um objeto transicional - a primeira possessão não-eu -, assiste-se ao primeiro momento de uso de um símbolo, a primeira experiência de brincadeira da criança, e pergunta-se: ela criou esse objeto ou o encontrou somente? A partir dessa observação, é apresentado o conceito de objeto subjetivo, produto de uma experiência de onipotência do bebê, que permite que ele crie, em sua fantasia, o que já estava criado, o que já fazia parte da realidade exterior. Essa experiência é a base da criatividade primária do bebê, criatividade que Winnicott percebeu como indissociável da condição de sentir-se.

No processo de constituição da subjetividade e, consequentemente, da criatividade do sujeito, ocorrem fenômenos interessantes: em um primeiro momento, existe a exigência da repetição e constância das necessidades satisfeitas, quando a criança passa a desenvolver uma credibilidade na realidade, gozando da ilusão de criação e controle onipotente. Mais adiante, em outra etapa, reconhecerá gradativamente o elemento ilusório, o qual lhe permitirá imaginar e brincar. Se a criança não receber a oportunidade do brincar no espaço potencial - intersecção entre a realidade interna e a realidade externa, não existirá área em que possa brincar ou ter experiência cultural. Winnicott (1975) aponta, então, a existência de três áreas da vida: a primeira é a da realidade psíquica pessoal ou interna; a segunda é a do mundo real, no qual o indivíduo está inserido; e a terceira é a da brincadeira - espaço potencial que se expande no viver criativo e em toda vida cultural do homem. Nesse espaço potencial é que se dá a intersecção entre a realidade interna e a realidade externa do indivíduo, é que se localiza a área de experiência do viver criativo, a área em que ocorre o brincar, forma primordial de construção da realidade objetiva e subjetiva.

No entender de Winnicott, é no brincar que a criança ou o adulto aproveitam a liberdade de criação, podendo experienciar sua capacidade criativa e utilizar sua personalidade integral. É no brincar que se fazem os primeiros ensaios da comunicação, os primeiros impulsos motores e sensórios para fora do Eu, que são a matéria-prima do que virá a se constituir a criação do mundo dos objetos externos. É, pois, no entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, na área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo que vai ocorrer o processo criativo.

O impulso criativo é algo que pode ser considerado naturalmente necessário a um bebê, criança, adolescente, adulto ou idoso, quando eles se inclinam de maneira saudável para algo ou realizam algo deliberadamente, demonstrando que frui o que estão a realizar. O impulso criativo passa a tomar forma no indivíduo quando este deseja agir ou pensar algo e o mundo torna-se testemunho desse ato. Intimamente associada à capacidade criativa que irá se desenvolver no indivíduo está sua capacidade de usar um objeto. O desenvolvimento da capacidade de usar um objeto constitui um exemplo do processo de amadurecimento, algo que depende de um meio ambiente propício.

Em um primeiro momento, existe a relação com o objeto; depois, finalmente, o uso desse objeto. No entanto, entre a relação e o uso existe o momento de colocação do objeto para fora da área de onipotência do sujeito, isto é, a percepção do objeto como fenômeno externo e fora do controle absoluto do ego. Assim sendo, é interessante pontuar que o primeiro impulso de relação com o objeto é o impulso destrutivo, pois o indivíduo o mata dentro de si - como simples projeção, material subjetivo - para que ele possa existir na realidade externa, percebido objetivamente e de forma compartilhada. Ou seja, o sujeito avança do princípio do prazer para o princípio de realidade. Nesse ponto, a teoria winnicottiana afirma que o sujeito está sendo criativo, ao criar o objeto, no sentido de descobrir a própria externalidade.

Reiteramos que, se o indivíduo em desenvolvimento não tiver a oportunidade de descobrir os objetos, criando-os fora de si, não haverá área em que possa brincar e ter experiência cultural. O brincar, o ensaiar a vida dentro de si mesmo e com os outros, produz a possibilidade de construir e reconstruir o mundo. Não havendo a possibilidade do brincar, do experimentar, pode ocorrer a falta de vínculos com a herança cultural e a falta de contribuição para o fundo cultural, ou seja, para o próprio grupo ao qual pertencemos. Quando cultura e criatividade entram em sintonia, conseguem engendrar-se, produzindo novas terras a serem fecundadas e novas sementes a serem germinadas na educação e na sociedade. É no experimentar e no recriar que observamos momentos de confronto entre o antigo e o novo, gerando por vezes impulsos agressivos entre os que desejam expressar ideias e propostas inovadoras e diferentes dos padrões convencionados que garantem a ordem e a segurança de um grupo.

 

Criatividade e transgressão

Propusemos, então, a partir da teoria winnicottiana, uma aproximação entre transgressão e comportamento agressivo, esse último sendo compreendido como ataque e investida a valores e regras sociais, aos modelos de criação e educação, às instituições ou grupos que as representam. A transgressão pode ser percebida como uma agressão às normas instituídas, uma agressão à lei vigente e aos pais.

O percurso inicial do ato criativo passa pela agressividade e destrutividade. Para Winnicott (2005), o comportamento agressivo e a destrutividade têm origem na vitalidade e atividade muscular do bebê. A agressividade do indivíduo aparece com dois significados: o primeiro é direta ou indiretamente uma reação diante da frustração; o segundo é uma das principais fontes de energia que o homem possui. A construção da segunda forma de agressão ocorre e se desenvolve a partir do encontro onipotente do bebê com o objeto externo, desencadeando a agressividade e, criando assim, a exterioridade. Esse é o momento em que o objeto é percebido como "outro" diferente do ego, a origem das relações objetais. Mas é necessária uma condição: a sobrevivência do objeto aos impulsos agressivos do bebê. O primeiro objeto será a mãe, que oferecerá à criança a oportunidade da perda e reencontro com o mundo pela ruptura de sua onipotência e a recuperação do objeto externo por meio do vínculo afetivo.

Para Winnicott (1988), o impulso agressivo é inato, juntamente com o amor, de forma que, em suas teorizações a agressão é parte da expressão primitiva do amor. Entretanto, a atitude da criança para com esses instintos é que virá a marcar o destino da agressividade. A oportunidade de reparação oferecida pelos pais é que trará a possibilidade de a criança confiar em sua atitude amorosa, favorecendo a aquisição da capacidade de preocupar-se com os outros. Revive-se a experiência de reparação cada vez que se desenvolve uma tarefa criativa. A agressão que não é negada e pela qual é possível aceitar a responsabilidade pessoal pode ser utilizada para fortalecer as tentativas de reparação e restituição. Winnicott (1975) explica que, em geral, a destruição desempenha um papel essencial na formação da realidade, já que coloca o objeto fora da pessoa. O pressuposto é que a agressão consiste em uma reação ao encontro com o princípio da realidade, enquanto o impulso agressivo é que irá criar a exterioridade. A partir daí, surge outro movimento: a capacidade para a inquietude, ou capacidade para preocupar-se com o outro. Essa capacidade envolve reconhecer a própria responsabilidade nas relações em que aparecem os impulsos instintivos, trazendo a chance da reparação do objeto.

Não é o reconhecimento da própria destrutividade o que produz a possibilidade de reparação, são as experiências construtivas e criativas que permitem reconhecer a própria destrutividade... Por trás de todo jogo, de todo o trabalho e de toda arte, existe um remorso inconsciente pelo dano realizado na fantasia inconsciente e um desejo inconsciente de começar a arrumar as coisas. (Winnicott, 1965 citado por Abadi, 1997, pp. 63-64)

Safra (2004) esclarece que, para haver a ruptura destrutiva e a reparação criativa, é necessário encontrar o Outro. Não encontrar o Outro para receber a ruptura com o instituído (o impulso destrutivo) é correr o risco de sofrer rupturas dentro de si próprio. O gesto-ruptura, dirigido ao Outro que o acolhe, possibilita o estabelecimento do sentido, transforma-se em comunicação, permitindo a encarnação do ser humano; ou seja, o ser acontece como corpo que existe para o Outro. O criativo e a busca do novo, do recém-criado, possibilitam ao homem aparecer como ser singular, e é bastante diferente do criativo socialmente aceito. O próprio nascimento humano e a ação criativa são rupturas, pois rompem a história para fazer história. É assim que a originalidade nasce da tradição. A agressividade, durante o ato criativo, pode ser considerada, nesse momento, um ato de transgressão ao poder instituído. Poder esse que se materializa tanto na área das relações pessoais e afetivas, como na área do conhecimento ou nas artes e religião. Ao criar-se algo, destrói-se, inevitavelmente, aquilo que embargava a chegada do original. No âmbito educacional, muitos jovens necessitam de mais espaço para nascer através da produção de conhecimento. Muitos partos são dolorosos, pois há pouco espaço para a diferença criativa, uma vez que ela é posta como alienígena no processo pedagógico. Durante a adolescência, percebemos uma exacerbação dos conflitos gerados entre o novo e o velho. E como saber olhar esse fenômeno criativo na instituição escolar?

 

Adolescência e criatividade no contexto educacional

Para os psicanalistas, entre eles, Françoise Dolto, honrar pai e mãe é quase sempre ter de virar-lhes as costas e ir-se embora, mostrando ter-se tornado um ser humano capaz de se assumir (Julien, 2000). Dessa afirmação, pressupõe-se um nascimento, o surgimento de um jovem dentre as vestes infantis. O novo momento de transformações traz consigo sentimentos de perda de origens, de "des-prendimento", de deixar de ser, para tornar-se. Esse processo só é possível se os pais puderem compreender que pôr no mundo é saber retirar-se, da mesma forma que o mar cria o litoral: retirando-se. Por meio de uma afirmação criadora - tu és diferente de nós -, os pais permitem que a criança/jovem vire-se para outro lugar, em direção à própria geração e de acordo com ela. Esse é o processo da adolescência, de individualização, para os pais e para os filhos. Tal processo de individualização leva anos até se conformar, e durante esse período existem inúmeras queixas sobre o comportamento dos adolescentes.

Uma dessas queixas é sobre a imaturidade do adolescente, a qual é abordada de forma positiva por Winnicott (2005), quando afirma que a imaturidade é parte preciosa da adolescência, pois contém características fascinantes do pensamento criativo, sentimentos novos e desconhecidos, ideias para um modo de vida diferente. A sociedade precisa ser chacoalhada pelas aspirações de seus membros mais jovens. O momento de imaturidade é o momento de chance de brotarem novas maneiras de enxergar as coisas, e cabe aos adultos e pais maduros a responsabilidade e o aproveitamento das ideias embrionárias que borbulham pelo mundo jovem. O adolescente é um ser recém-nascido em seu desejo de conhecer o mundo. Assim sendo, o desejo de saber e obter prazer pelo saber inicia-se pelo relacionamento dos pais com os filhos; depois, mais tarde, os professores e a escola assumem grande parte dessa função. Na infância, a criança descobre e cria seu mundo infantil; na adolescência, o jovem descobre e cria seu mundo jovem. A cada fase da vida, um mundo se descortina e é recriado pelo indivíduo. Logo, a adolescência, como fase, também é reconhecida como momento muito criativo, por ser um período de transformações e construções. Nessa etapa da vida, existe o desenvolvimento do pensamento formal, que proporciona ao indivíduo a capacidade de raciocinar sobre hipóteses e elaborar conclusões a partir delas. Essa nova possibilidade de pensamento propicia ao adolescente um novo tipo de relacionamento com o mundo, dessa vez o mundo adulto. E, nesse encontro-confronto, o jovem sente a onipotência de tudo poder explicar e de tudo poder resolver, já que seu pensamento, apesar de ter atingido a abstração e a formalidade, ainda se acha impregnado do caráter mágico da infância. Para Saggese (2001), esse momento não é somente de simples desenvolvimento da área cognitiva, pois também se exige do jovem a capacidade de integrar-se no campo sociosimbólico, no qual é testada sua capacidade de responder às trocas exigidas pelo meio, ou seja, de entrar enfim no mundo dos adultos.

Para Outeiral (1993), assim como ocorre na fase da primeira infância, é na brecha entre a fantasia e a realidade que o adolescente acha seu espaço para criar, para desenvolver sua criatividade. De início, essa criatividade se manifesta por meio de uma atividade impulsiva, difusa - caótica, na visão dos adultos em geral, porém considerada normal pelas teorias de desenvolvimento. Aos poucos, a atividade criativa vai amadurecendo e se tornando mais definida, integrada e produtiva. O período de transição exige um ambiente propício, capaz de suportar as tensões dos movimentos iniciais do processo criativo, processo esse que deve ser cuidado tanto na família quanto na escola. A criatividade na adolescência articula-se com a noção de limite, que nesse período irá significar a criação de um espaço protegido no qual o adolescente exercitará sua espontaneidade e criatividade sem riscos, permitindo que ele organize sua mente e seu mundo.

O que confere à escola importância vital no processo de desenvolvimento do adolescente é o fato de ela produzir uma simulação da vida, em que o adolescente poderá exercitar e conhecer as regras a serem seguidas, e conhecer também as transgressões possíveis, ainda protegido das sanções da sociedade. Ele sentirá até onde poderá aprender com a transgressão e até onde o grupo o aceitará em sua criatividade e destrutividade. Segundo Winnicott (2005), é salutar lembrar que o estudante turbulento e sua manifestação podem ser, em parte, produto de uma atitude positiva, resultado dos cuidados dispensados àquele jovem durante sua vida de bebê e criança. Ele exorta os adultos a permitirem que o jovem altere a sociedade e os ensine a ver o mundo de modo totalmente novo; aos adultos cabe orientá-lo e protegê-lo de sua destrutividade ainda sem controle. Existem três áreas da vida necessárias ao desenvolvimento da capacidade de criar em um indivíduo: a primeira é a da realidade psíquica pessoal ou interna; a segunda é a do mundo real, no qual o indivíduo está inserido; e a terceira é a da brincadeira, que se expande no viver criativo e em toda vida cultural do homem. Existe o chamado espaço potencial, lugar de intersecção da realidade interna e da realidade externa do indivíduo; é a área de experiência do viver criativo, na qual ocorre o brincar - forma primordial de construção da realidade objetiva e subjetiva.

Nesse sentido, a agressividade, durante o ato criativo, pode ser considerada, um ato de transgressão ao poder instituído. Poder esse que se materializa tanto na área das relações pessoais e afetivas, quanto na área do conhecimento ou nas artes e religião. Ao criar-se algo, destrói-se, inevitavelmente, aquilo que embargava a chegada do original. Normalmente, é a adolescência o período em que o indivíduo mais experiência seu potencial destruidor e, possivelmente, criativo. Para Outeiral (1993), a criatividade na adolescência articula-se com a noção de limite, que nesse período irá significar a criação de um espaço protegido no qual o adolescente exercitará sua espontaneidade e criatividade sem riscos, permitindo que ele organize sua mente e seu mundo. A escola, durante essa fase, proporciona esse espaço social protegido, em que esse indivíduo exercitará sua "brincadeira" de tornar-se adulto.

A escola tem um significado primordial para o adolescente, já que, a depender do ambiente escolar por ele vivenciado, seu processo de aprendizagem poderá ser, ou favorecido e prazeroso, ou violento e/ou desinteressante. No primeiro caso, o adolescente poderá experimentar e exercitar sua capacidade criativa; no segundo caso, o processo de aprendizagem poderá levá-lo a tornar-se um indivíduo violento e/ou desinteressado. Na escola, o adolescente carrega suas vivências familiares e características constitucionais, às quais se somam os aspectos do ambiente escolar. E esse tripé influenciará todo o seu processo educacional. Compreender o aluno como ser criativo é permitir que ele manifeste sua necessidade de expressão em cada gesto em sala de aula, que revele a construção de novas ideias, novos olhares, novas perspectivas e comportamentos.

 

Discussão dos resultados

Podemos verificar, ao observarmos os resultados das entrevistas com os professores, que o aluno criativo atua intensamente nas três áreas da vida citadas na teoria winnicottiana: 1) na realidade psíquica pessoal ou interna - quando o aluno imagina, fantasia, desenvolve ideias e produz soluções; 2) no mundo real no qual se acha inserido - quando ele interage com o grupo e com o professor, materializando o que criou internamente; 3) e na brincadeira - quando o adolescente brinca e joga com suas ideias, quando faz uso de informações que recebe do meio para transformar as coisas, impondo a elas seu olhar inovador. É exatamente a partir do ponto de união das três funções - a realidade interna, a realidade do mundo social e a realidade da brincadeira - que Winnicott prevê a expansão do viver criativo em toda vida cultural da sociedade.

Nas respostas dos professores, constatamos a presença de percepções e sentimentos ambíguos, gerados pelo convívio com o aluno criativo. O aspecto de imprevisibilidade, inerente a toda criação, em geral acontece à revelia da força das certezas da vida cotidiana, do coletivo, que se firma na posição segura do antigo e do conhecido. A ambiguidade de sentimentos que "o novo" produz na sociedade ocorre também no docente em sala de aula. Como lidar com a mudança, a criação e o novo em um local em que se privilegia a repetição, a cópia e o instituído? Como lidar com alunos que se rebelam contra as propostas tradicionais de ensino e avaliação, sugerindo em seu lugar, ainda que muitas vezes de forma imatura e desconexa, a invenção de caminhos inusitados? A ambiguidade também pode ser explicada pelo pressuposto de que a criatividade deve ser aprendida desde cedo, a partir do exercício de agressividade e destruição sobre os objetos. Talvez com base nesse paradoxo possamos apresentar a resposta para o impasse dos docentes que se postam diante desse aluno criativo com um misto de admiração e rejeição, desejo e receio. Afinal, o aluno criativo deseja destruir ou criar em nossas aulas? - Perguntam-se. Questões como essas despontam nos professores, até porque eles próprios já viveram sua adolescência e seus momentos de criatividade, nem sempre aceitos em seu tempo e em sua escola.

O professor afirma ser tarefa difícil conhecer a si mesmo e conhecer o outro. Não é fácil perceber de imediato um ato criativo, pois ele vem normalmente acompanhado de muitos ruídos internos (como a falta de compreensão de si mesmo) e externos (como a falta de compreensão do outro). A indisciplina, quase sempre associada à bagunça e, por vezes, às agressões dirigidas ao professor e aos colegas, dificulta ainda mais a percepção do ato criativo, emaranhado que está em tantas situações difíceis de ser geridas. Além disso, é complexo julgar e analisar o novo, o que sai dos padrões, pois não há parâmetros construídos para avaliar o recém-criado. Os professores mencionaram a necessidade, por parte desses alunos, de mais liberdade, menos controle dos professores sobre o planejamento e mais flexibilidade de tempo para a execução de seus trabalhos. Usualmente, os alunos criativos brincam mais, se divertem mais, são mais curiosos e expressivos. Tendem a brincar e a criar mais individualmente em seu mundo subjetivo para, em um momento posterior, apresentarem aos colegas suas ideias e produções. Confirmamos em nossa pesquisa a teoria de Winnicott (1975) de que é no brincar que o aluno aproveita a liberdade de criação, em que pode experienciar sua capacidade criativa e utilizar sua personalidade integral. É no brincar que se fazem os primeiros ensaios da comunicação entre subjetividade e mundo objetivo, na área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do grupo social.

Os professores também mencionaram a necessidade de trabalhar com os alunos a expressão de sua criatividade, como: exprimir um desejo ideia ou contestação; elaborar um pensamento; viabilizar a execução de algo que foi criado, primeiramente, na imaginação. Os educadores explicitam como os alunos ficam agitados, angustiados e tensos por não conseguirem ser ouvidos ou compreendidos, ou por não conseguirem exprimir exatamente o que pensam. Remetemo-nos, então, à teoria de Winnicott (1975), afirmando que a criatividade é a capacidade de usar um objeto com habilidade, seja ele um objeto do mundo interno - imaginação, fantasia, elaboração de um pensamento -, seja um objeto do mundo externo - instrumento musical, aparelho eletrônico, pincel. O desenvolvimento da capacidade de usar um objeto constitui um exemplo do processo de amadurecimento, algo que depende de um meio ambiente propício e que está intimamente ligado à capacidade criativa que irá se desenvolver no indivíduo. Logo, os professores percebem um mal-estar nos alunos, quando não conseguem manipular adequadamente os objetos, sejam eles internos ou externos. O papel do professor é, portanto, orientá-los nesse processo de maturação da expressão da atividade criativa.

Na verdade, verificamos que esses alunos circulam por vários graus de expressão da criatividade. Pode haver momentos de agradável expressão da criatividade, como também momentos de angústia, em que o jovem ainda não consegue expressar de forma adequada o que deseja criar ou sua criação, a qual ainda permanece restrita ao plano do mundo interno. Nesse sentido, propomos, com base no diagrama a seguir, um tipo de organização dos momentos de afeto que perpassam o aluno em seu processo de criatividade, a fim de discutirmos os resultados.

 

Circulação da expressão entre a transgressão criativa e a transgressão destrutiva

 

 

Pelo o relato dos professores, pudemos inferir que existem alunos criativos capazes de expressar sua criatividade. Eles mostram-se interessados, com capacidade de transformar as informações recebidas em dados inovadores, questionam o sentido das coisas em seu mundo, extrapolam em ideias e atitudes e são considerados cooperativos com o grupo. Acreditamos que indivíduos com predominância dessas características provavelmente se relacionam bem com eles mesmos e com o grupo.

O segundo grupo de alunos apresenta a necessidade maior de liberdade e independência no ambiente escolar. Há inquietude, há muita curiosidade, assim como um intenso movimento em direção ao novo. Winnicott (1996) traz para esse grupo o conceito de inquietude para falar da responsabilidade de reconstrução sobre o que está sendo destruído ou desfeito. Sem perceber, ao desmanchar o que está fora, o aluno criativo também desmancha o que existe dentro dele, reconstruindo e ressignificando o que necessita para seu desenvolvimento emocional. Ele destrói um mundo velho de crenças e concepções que não lhe serve e constrói um mundo novo, de novos espaços, de liberdade e de autonomia para continuar seu processo de criação e crescimento. Nesse núcleo existe um grande impulso do id, o princípio do prazer, pelo qual o indivíduo começa a aprender a manipular sua energia criativa.

Para a abordagem winnicottiana, o processo da criatividade move-se em sentido oposto ao do comportamento de submissão do ser humano ao mundo, aqui representado como a escola, algo a que é preciso o aluno encaixar-se, que exige sua perfeita adaptação. Nessa área, então, encontra-se possivelmente um local de encruzilhada entre o id, com seus impulsos erótico-agressivos, e o ego com sua capacidade de controle e organização. Existe, aí, o exercício de convivência entre o que o aluno deseja, em seu puro instinto, e o que ele vai ser capaz de realizar no mundo objetivo. Complementar ao anseio de liberdade é a necessidade de limite, a qual o aluno explicita por meio de seu comportamento anárquico. A criatividade na adolescência articula-se com a noção de limite proposta pela escola, já que ela se constitui num espaço protegido em que o adolescente pode pôr em prática sua espontaneidade e criatividade sem riscos. Os professores trouxeram a questão do limite como um auxílio à criatividade do aluno, e não somente como controle da indisciplina. Eles percebem seus alunos desprotegidos diante da energia criativa que necessita de descarga e encaminhamento.

Ao alcançarmos o terceiro grupo de alunos, localizamos a transgressão como seu aspecto principal. Nesse ponto, o aluno age com mais força de impacto para romper com o que impede sua criatividade. Ele contesta o que lhe é apresentado e questiona a autoridade com mais veemência. De acordo com Winnicott (1975), o sujeito, ao confrontar a autoridade e romper limites e regras, está matando, simbolicamente, quem representa tudo isso, no nosso caso, o professor. Ele brinca de "Eu sou o Rei do Castelo", em uma afirmação de ser pessoal, uma realização de crescimento emocional e individual, uma posição que implica a morte de todos os rivais e o estabelecimento da dominância, tema próprio de crescimento na puberdade e adolescência. A autoridade do professor é, definitivamente, inimiga de sua autonomia que vem desabrochando e seus colegas são empecilhos ao desejo de ser único. A partir da transgressão, da destruição de velhos espaços e da entrada em novos territórios, surge a capacidade para a inquietude, para o preocupar-se com o que será do outro destruído. Essa capacidade envolve reconhecer a própria responsabilidade nas relações em que aparecem os impulsos instintivos, trazendo a chance de reparação do objeto. E é nesse momento de consciência da necessidade de reparação que encontramos o embrião da criatividade. Quando não negada, a agressão provocada pela transgressão possibilita o desenvolvimento da responsabilidade pessoal, que ajuda a fortalecer as subsequentes tentativas de reparação e restituição.

Ao nos defrontarmos com o quarto grupo, supomos encontrar o ponto máximo de concentração da energia criativa, mas com pouco recurso para ser expressa. Existe agressividade, inconformismo, insatisfação e sofrimento nesse aluno. Winnicott (1975) propõe que a capacidade de construir é herdeira do impulso destruidor. Podemos explicar essa afirmação pela teoria da maturação associada à teoria da criatividade do indivíduo. Inicialmente, o que existe para o indivíduo é a relação com o objeto; só depois ele saberá fazer uso desse objeto. A teoria winnicottiana afirma que o sujeito, ao criar o objeto, está sendo criativo no sentido de descobrir sua própria externalidade e poder agir sobre esse objeto. Mas a persistência do comportamento agressivo pode indicar que esse aluno não está conseguindo expor sua produção criativa, ou não está conseguindo expressar o seu potencial criativo, visto que suas capacidades ainda se encontram em desenvolvimento. Outro fator considerado é a existência ou não de espaço, atenção ou sensibilidade por parte do professor e do grupo para com a produção criativa do aluno.

Os professores entrevistados explicam que os alunos criativos, entre 11 e 15 anos, ainda estão aperfeiçoando o processo de expressão e controle de sua agressividade, podendo, portanto, apresentar uma postura de contestação exacerbada. Normalmente, a indisciplina é o resultado do excesso de energia desse aluno, que não sabe lidar com ela durante a comunicação e expressão de suas ideias e desejos. O papel do professor, nessas situações, é servir de canal e continente para a descarga de energia do aluno, auxiliando-o, pouco a pouco, a dar significado e sentido aos seus desejos, ou seja, ensinando-o a percorrer o caminho de descarga do princípio de prazer puro e alcançar a expressão de sua criatividade por meio do princípio da realidade. Aliado ao desejo de destruição e à agressividade, o aluno revive a experiência de reparação cada vez que se desenvolve uma tarefa criativa. A agressão provocada pela transgressão, quando aceita, possibilita o desenvolvimento da responsabilidade pessoal, que pode ser utilizada para fortalecer as subsequentes tentativas de reparação e restituição, as quais permeiam o processo de constituição do sujeito.

A agressividade, durante o ato criativo, pode ser considerada, na situação de sala de aula, um ato de transgressão do poder instituído existente. Poder que se concretiza na área das relações pessoais e afetivas e na área do conhecimento. O aluno, ao criar algo, destrói aquilo que embargava sua chegada ao original. É nesse movimento entre transgressão-destruição e criatividade que o aluno criativo vai construindo seu mundo interno e seu mundo externo. É no processo educacional que o aluno se depara com o Outro, a autoridade do mundo externo. O ambiente escolar representa uma oportunidade para que ele empreenda a ruptura com o instituído, apresente seu impulso destrutivo em sala e, mesmo assim, sinta-se aceito pelo professor e pelo grupo. O gesto-ruptura dirigido ao professor que o acolhe, possibilita o estabelecimento do sentido, se transforma em comunicação, permitindo a encarnação daquele aluno; ou seja, o jovem percebe-se como indivíduo que existe. O criativo e a busca do novo, do recém-criado, o impulso de reparação e criação, possibilitam ao aluno aparecer como ser singular.

Ao observarmos os atributos totais que caracterizam o aluno criativo-transgressor, verificamos que esses elementos estão, provavelmente, associados à construção de sua identidade. Na verdade, os aspectos apresentados permeiam todo o processo de constituição do sujeito, evidenciando a necessidade de poder e autonomia do aluno, seu desejo de sentir-se diferente, único e especial. Ao mesmo tempo que em seu processo criativo o jovem se afasta dos colegas e sente necessidade de estar só, ele experimenta o desejo de integração ao grupo e de sentir-se respeitado e reconhecido por esse grupo. É importante proporcionar ao aluno espaço para seu desejo de poder, desejo esse ligado à própria formação de sua identidade. E os professores confirmam que, para lidar com esse tipo de aluno, é necessário lhe entregar poder e autonomia, dentro dos limites necessários a sua integridade física e emocional.

Em verdade, o que confere à escola importância vital, segundo Outeiral (1993) no processo de desenvolvimento do aluno mais criativo ou menos criativo é o fato de ela produzir uma simulação da vida, na qual o adolescente poderá exercitar e conhecer as regras a serem seguidas, e conhecer também as transgressões possíveis, ainda protegido das sanções da sociedade. Ele sentirá até onde poderá aprender com a transgressão e até onde o grupo o aceitará em sua destrutividade e criatividade. Winnicott exalta (2005), nos aspectos centrais de sua teoria - os estudos sobre a criatividade e a maturação do ser humano - para que deixemos que o jovem altere a sociedade e ensine o adulto a ver o mundo de modo totalmente novo. Ao adulto cabe orientá-lo e protegê-lo de sua destrutividade e criatividade, ainda sem controle.

Propusemos, em nossa reflexão, a provável relação entre transgressão e criatividade. A transgressão foi percebida como uma investida às normas instituídas, uma agressão à lei vigente na escola, com seus ritmos e conteúdos. Os professores compreendem a transgressão de seus alunos criativos como forma de comunicação, de pedido de sentido. Eles transgridem para compreender como as coisas funcionam. Avançam para explicações que o acalmem e satisfaçam seus questionamentos. A partir da saída e ruptura com o antigo, passa a ocorrer a criação de novos espaços de compreensão de funcionamento do mundo e de si mesmo. À escola e ao professor cabe a função de continente das experiências de construção de sentidos e significados únicos, e a cada sujeito cabe o próprio ato criativo, fundado em transcendência e aberto para agir e perguntar (Winnicott, 2005).

 

REFERÊNCIAS

Abadi, S. (1997). Sem morrer nem vingar-se (sobre os destinos da agressividade). In J. Outeiral & S. Abadi (Orgs.), Donald Winnicott na América Latina: teoria e clínica psicanalítica (pp. 57-64). Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

Julien, P. (2000). Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Outeiral, J. (1993). Adolescer. Estudos sobre adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Safra, G. (2004). A PO-ÉTICA na clínica contemporânea. São Paulo: Idéias & Letras.         [ Links ]

Saggese, E. (2001). Adolescência e psicose. Rio de janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Winnicott, D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D. (1988). Da pediatria à psicanálise. Textos selecionados. Rio de Janeiro: Francisco Alves.         [ Links ]

Winnicott, D. (1996). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Winnicott, D. (2005). O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Recebido em março/2012.
Aceito em novembro/2012.