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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.20 no.1 São Paulo abr. 2015

https://doi.org/http//dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v20i1p106-119 

ARTIGOS

 

Um "homem calculável"?

 

A "calculable man"?

 

Un "hombre calculable"?

 

 

Sonia Xavier de Almeida BorgesI; Simone CostaII

IPsicanalista. Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (UVA), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIProfessora do Curso de Psicologia das Faculdades Celso Lisboa, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A Psicanálise, na medida em que ganha espaço como um discurso explicativo do comportamento humano e dos laços sociais é confrontada com a necessidade de pensá-los como registros em que a transmissão simbólica pode e deve ocorrer. Como ser de linguagem, o homem pode transmitir as marcas simbólicas constitutivas de sua cultura, tendo em vista encontrar nela o seu lugar. A técnica e a tecnologia, que fazem parte deste legado, vêm sendo priorizadas no âmbito dos vários níveis do ensino. Sustentamos que a educação não pode ser reduzida a elas, já que a transmissão simbólica ultrapassa em muito uma formação cujo objetivo seja o ensino de competências técnicas produtoras do que denominamos de "homem calculável".

Descritores: educação; psicanálise; transmissão simbólica


ABSTRACT

Psychoanalysis, to the extent that it is gaining ground as an explanatory discourse of human behavior and, therefore, social relations, even referring to those in the field of school education, is confronted, at every moment, with the need to think them while records in which the symbolic transmission can and should occur. As linguistic beings, humans can systematize and transmit the constitutive symbolic marks of their culture, in order to find their place in it. The technique and technology, which are part of this legacy, have been prioritized within the various levels of education. This paper argues that education cannot be reduced to them. The symbolic transmission, inherent and necessary to education, goes far beyond a vocational training to teaching/learning technical skills, producing what could be considered a "calculable man".

Index terms: education; psychoanalysis; symbolic transmission


RESUMEN

En la medida en que gana terreno como un discurso explicativo de la conducta humana y, por lo tanto, de las relaciones sociales, incluso de los del campo de la educación escolar, el Psicoanálisis se enfrenta, en cada momento, a la necesidad de pensar en ellos como registros donde puede y debe ocurrir la transmisión simbólica. Como un ser del lenguaje, el hombre puede organizar y transmitir los signos simbólicos constitutivos de su cultura, con el fin de encontrar su lugar. La técnica y la tecnología, que son partes de este legado, se han priorizado dentro de los diversos niveles de educación. Este artículo sostiene que la educación no puede reducirlos. La transmisión simbólica de la cultura inherente y necesaria a la educación va mucho más allá de una formación profesional, que al tener sus metas de enseñanza/aprendizaje de carácter técnico, sería productora de lo que podría considerarse "un hombre calculable".

Palabras clave: educación; psicoanálisis; transmisión simbólica


 

 

Entre os anos 1926 e 1937, Freud deu todo apoio à Revista de pedagogia psicanalítica (Zeitschrift für psychanalytische pädagogik), editada em Stuttgart e, posteriormente, em Viena, que chegou a publicar mais de trezentos artigos, todos de autores psicanalistas. Desde então, no campo da Psicanálise, o tema da educação escolar nunca deixou de ser abordado, mas de forma muito restrita, como pode ser comprovado pela exiguidade da bibliografia a este respeito. Principalmente quando se trata da escola, a maior parte das pesquisas é fundamentada na Psicologia cognitiva, ou na Sociologia da educação. Isto teria como causa o desconhecimento do potencial da Psicanálise para se pensar as questões escolares? Ou haveria certo temor de enfrentá-las com a Psicanálise, pelo caráter subversivo do discurso analítico?

É bem recente, mas, vem adquirindo muita força, o interesse pelas conexões entre educação e psicanálise. Multiplicam-se pesquisas, e publicações vêm evidenciando a importância das contribuições da Psicanálise para se pensar a educação escolar. Para isso, é importante ressaltar, pois são de inestimável importância, os trabalhos de Leandro de Lajonquière, Rinaldo Voltolini e Maria Cristina Kupfer, desenvolvidos na Universidade de São Paulo (USP). Estes professores foram, de certo modo, pioneiros e exercem a disseminação do quanto a Psicanálise pode contribuir com perspectivas inovadoras, subversivas para o enfrentamento de questões no âmbito escolar.

O presente trabalho se filia a esta linha de pesquisa. Tendo como referência a Psicanálise, buscamos desenvolver uma reflexão sobre o lugar secundário atribuído à transmissão simbólica da cultura na educação escolar, em decorrência do que podemos chamar de tecnicismo em educação, orientação que subjaz à opção, hoje tão enfatizada, das escolas de Ensino Médio, universidades, até mesmo dos cursos de mestrado e doutorado. Estamos convencidos da necessidade de formarmos técnicos no Brasil e consideramos louvável a política educacional dos últimos anos que propõe a multiplicação dos cursos técnicos e profissionalizantes no país. No entanto, esta formação técnica não é incompatível com uma formação que proporcione mais recursos simbólicos aos sujeitos em formação. Esta dicotomia entre saber e fazer tem sua inspiração na crença em um "homem calculável", para usar a expressão de Lajonquière, que, supostamente seria formado a partir da premissa de que o ensino/aprendizagem de técnicas apropriadas ao fazer de um profissional garantiria a sua formação na área. Nossa hipótese é de que esta tendência educacional é efeito das determinações da economia capitalista. Não estaria também nisso, a causa da ausência das concepções psicanalíticas nos estudos sobre a educação, configurando uma exclusão da Psicanálise por sua incompatibilidade com o discurso capitalista?

 

Legado simbólico e mercantilismo

Para a Psicanálise, como "ser de linguagem", o homem pode sistematizar e transmitir o legado de marcas simbólicas que definem a sua cultura e, mais importante, encontrar o seu lugar nela. A técnica ou a tecnologia fazem parte deste legado, mas este não pode ser reduzido a elas. Nem mesmo pode ser reduzido ao que, em geral, chamamos de transmissão de conhecimentos. A transmissão simbólica da cultura ultrapassa, em muito, uma profissionalização suportada por um ensino/aprendizagem de informações e/ou competências de caráter técnico.

Se pensarmos conforme Althusser (1985) em "Aparelhos Ideológicos do Estado", não só o papel da educação como seus modos de transmissão são sempre determinados fora dela, na base econômica da sociedade. Como exemplo, destaca que no período pré-capitalista, a Igreja exercia este poder ao lado da monarquia: "a Igreja reunia não só as funções religiosas, mas também as escolares, e uma boa parcela das funções de informação" (p. 76). Por isso mesmo, a Igreja foi definida como o primeiro aparelho ideológico do Estado. Com a Revolução Francesa, no "estado burguês", ou na formação capitalista madura, criou-se um novo aparelho ideológico dominante, o escolar, que substituiu a Igreja nestas funções: "o par escola-família substituiu o par Igreja-família". (p. 78).

A este respeito, Walter Benjamin (1986) comenta que na antiguidade e no período pré-capitalista a educação, concebida então como transmissão simbólica da cultura, era realizada predominantemente pela via da narrativa, definida por este autor como "a experiência passada de pessoa a pessoa" (p. 198). Mas aos poucos, com o advento da sociedade industrial, a força da informação foi detectada pelas esferas do poder político e econômico, passando a ser cada vez mais controlada pelos chamados "aparelhos ideológicos" de Estado, inclusive pela escola, cujos objetivos foram se enquadrando aos dos outros aparelhos ideológicos: "a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalista" (Althusser, 1985, p.78).

Benjamin (1986) também faz coro com Althusser quando ressalta que a burguesia fez da educação um meio de produção solidário a ela justamente pela sua orientação pedagógica, de modo a ser cada vez mais seu o privilégio de usufruir dela. Isso justificaria o que chama de extinção da arte de narrar: "são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza" (p. 198). A faculdade de intercambiar experiências perdeu seu valor. Inclusive porque não obedece à exigência capitalista de efeitos de mudança cada vez mais rápidos, que prescindem do tempo necessário para a transmissão do que podemos chamar de saber acumulado por uma cultura.

No entanto, a narrativa, como enfatiza Benjamin, justamente por se enraizar na vida, não é desprovida de praticidade, tem também sempre uma dimensão utilitária: "essa utilidade pode consistir num ensinamento moral, seja numa sugestão pública, seja num provérbio ou numa norma de vida". (Benjamin, 1986, p. 200). Neste sentido, a narrativa, longe de mera informação, evidencia a autoridade e o saber do narrador, pois corresponde a uma sabedoria sobre o estar e o fazer no mundo:

A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um "sintoma de decadência" ou uma característica "moderna". Na realidade, esse processo que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo, e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas (p. 201).

Esta problemática está então, para Benjamin, estritamente ligada às esferas econômica e do trabalho que lentamente saíram dos meios artesãos e adentraram no mundo da industrialização, da produção em série, fruto da tecnologia. A narrativa foi, com isso, perdendo o seu espaço para outras formas de comunicação mais próprias para a passagem de informações de caráter utilitário, relativas ao desenvolvimento imediato de determinadas práticas.

Para Benjamin (1986), "o saber, que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência" (p. 203). O narrador vem perdendo espaço porque já não há interesse em narrar o "puro em si", que tem lugar quando se "mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprimindo na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro o faz na argila do vaso" (p. 205).

Não se pode negar a importância do ensino profissionalizante, técnico, que vem sustentando o necessário desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil. Mas, para isso, seria necessário romper com a valorização da ascendência, da tradição, da herança simbólica? Fazer este rompimento seria necessário para se prometer à nossa descendência o que chama de progresso? Mas, que progresso? O que caracterizaria este progresso? As soluções para os problemas do mercado? Quais, então, seriam as características destas soluções e a quem interessariam?

Lyotard (1979), em A condição pós-moderna , afirma que o saber necessário aos sujeitos não se reduz nem aos progressos da ciência e nem aos da economia, embora estes sejam imprescindíveis. Este saber se constitui a partir de competências que estão além das cognitivas. Relaciona-se com os costumes, com a linguagem, em que inclusive se "pode circunscrever o saber daquele que não sabe (do estrangeiro, da criança), sendo isto o que constitui a cultura de um povo" (p. 36).

Hannah Arendt, no livro Entre o passado e o futuro (2009), enfatiza que o sujeito é introduzido no mundo pela primeira vez através da escola na modernidade. A escola pode ser considerada, então, como a instituição que se interpõe entre "o domínio privado do lar e o mundo, com a responsabilidade de fazer a transição, de alguma forma, da família para o mundo" (p. 238). Para a autora, está nisto a importância de se abrir espaço na escola para a transmissão dos saberes entre gerações:

a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele ... e é também, onde decidimos se amamos as nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las aos seus próprios recursos (p. 247).

Na mesma linha, Lyotard (1979) coloca em questão o ensino no qual o desempenho prevalece como objetivo, ou seja, em que o estudante/profissionalizante não é chamado a discutir mais a verdade dos conteúdos, focando-se somente em sua utilidade. "No contexto da mercantilização do saber, esta última posição se define comumente: isto é vendável? E, no contexto do aumento do poder: isto é eficaz?" (p. 93). Para este autor, estas concepções advêm do fato de que o mercado vem subordinando o ensino à sua lógica, a do aumento da eficiência, em que se "deve assegurar a reprodução de competências, assim como também, o seu progresso" (p. 94). É neste sentido que este autor considera que a educação escolar ganhou o estatuto de mercadoria desde que as escolas e universidades passaram a ter seu foco na reprodução de competências eficazes. Em decorrência disso, diz o filósofo, ocorreu outra consequência indesejável: a fragmentação dos conhecimentos nas microespecializações, também, muitas vezes alienantes. Em linguagem psicanalítica podemos dizer que se produz a exclusão de toda singularidade, ou seja, do sujeito, já que também ele está assujeitado aos interesses econômicos.

Christian Laval (2004), em seu livro A escola não é uma empresa – O neoliberalismo em ataque ao ensino público, também denuncia esta articulação interessada entre a educação e o capitalismo, considerando que esta vem desempenhando um papel utilitarista e mercantilista na atual conjuntura. Este novo modelo escolar e educativo, que tende a se impor, estaria fundamentado, primariamente, na sujeição da escola à mencionada razão econômica.

A educação passa, assim, a comportar características como "a reificação do saber, sua redução a dados, a informação relativa a coisas tidas como prontas e acabadas, a resultados, ao já dito e ao já feito, bem como a tecnificação dos processos formativos" (Coelho, 2006, p. 48), ocorrendo uma transformação radical no âmbito social.

Enquanto os mecanismos de subjetivação pré-modernos produziam a singularidade de um homem-memorável, agora, as pequenas coisas de nossa vida cotidiana fabricam um homem-calculável... o que está em foco é um in/divíduo não só passível de ter sua existência calculada, mas também entregue ao frenesi do cálculo prospectivo para assim vir a saber o grau de bem-estar que o futuro lhe reserva (Lajonquière, 1999, p. 99).

Este ideal de educação visa assegurar primordialmente à reprodução das competências para que o "in/divíduo" supostamente caminhe para o futuro. Esquece-se a dimensão do passado e, consequentemente, perde-se o fio da transmissão simbólica do saber acumulado pelas culturas.

Arendt (2009) nos alertou de que o mundo é bem mais velho do que os aprendizes, havendo, desta forma, uma transmissão que não pode ser verificada rapidamente, não se realiza pela apreensão rápida e instantânea, e nem se identifica como o conhecimento utilitário.

Frente a estas questões, que contribuições a Psicanálise pode trazer? A partir do que Freud deixa claro em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/1989e) podemos dizer que não há psicologia da sociedade e do sujeito em separado. E também não há o "in-diviso", mas o sujeito dividido, barrado pela castração e pelas determinações do inconsciente.

Neste sentido, Mendonça Filho (1998) aponta para o que Freud nos traz sobre as três profissões por ele consideradas como impossíveis, "governar, educar e psicanalisar", ao afirmar que "o ensinar é, na realidade, uma operação que se estabelece entre a imagem de um ideal e a impossibilidade do homem real em atingi-lo". (Mendonça Filho, 1998, p. 98). Em outras palavras, o ato educativo é tipicamente humano e não técnico. Por isso, tem que ser reinventado a cada vez, não se pode prever os seus efeitos, por mais que se tente estabelecer regras e metodologia de cunho didático. Freud, nos vários textos em que desenvolveu ideias sobre educação e ensino, recorreu a um conceito fundamental para a compreensão do ato analítico para pensar os efeitos do que ocorre na relação professor/aluno nestes processos: o conceito de transferência, por ele considerado o motor da clínica e também da educação. Essa transferência, de caráter inconsciente, ocorre no espaço vazio entre o desejo do professor, que não sabe o que o aluno deseja saber, e o aluno, que supõe que o saber buscado está no professor.

No artigo "Algumas reflexões sobre a psicologia escolar", Freud (1914/1989c) nos ensina que também na escola acontece a transferência. É mediante este processo, afirma, que o professor, quando alvo de transferência por parte do aluno, pode exercer efeitos sobre a sua vida escolar e, particularmente, sobre a sua posição frente ao saber. A transferência ocorre, de forma inconsciente, com um traço do professor, muitas vezes desconhecido pelo próprio sujeito. Para Freud, as relações edipianas se repetem neste processo: o professor torna-se substituto dos seus primeiros objetos, os pais. Conforme Borges e Vulej (2011), o ato de aprender implica um investimento pulsional, que, no primeiro momento, ocorre sobre si mesmo, sobre a sua origem e, diferenças sexuais. Sendo assim, antes de aprender, antes de assimilar o saber, uma determinada ordem deve ser instaurada na família e, a partir dessa ordenação, a criança pode construir uma história e, portanto, interessar-se pelo saber e ordenar os significantes proporcionados pela escola, ou seja, direcionar seu desejo para o mundo, para as artes, para os números, para o aprendizado da leitura e da escrita. É da transferência que o professor extrai a sua potência. Assim sendo, na relação professor/aluno dá-se continuidade aos processos de transmissão simbólica que têm início antes mesmo do sujeito nascer. E a posição desejante, maior herança que os pais podem deixar para seus filhos, também pode ser transmitida pelo professor, como Freud o menciona: "estes homens (os professores), nem todos os pais na realidade, tornam-se nossos pais substitutos" (Freud, 1914/1989c, p. 287).

De acordo com Lemos (2007), em seu artigo "Desejo de educar":

Freud não distinguiu a educação da criança pelos pais da educação realizada pelo professor e pela Instituição Escolar, tomando o termo em um sentido mais genérico. Provavelmente isto se deva ao fato de considerar que ambas visam, de algum modo, a transmissão cultural que impõe a renúncia às pulsões e, no melhor dos casos, a sublimação destas (p. 84).

Freud considerava que o educador poderia ter como referência a Psicanálise para orientar a sua prática, inclusive porque a convivência do educador com os jovens favorece a compreensão da vida mental deles: "O educador ... tem a obrigação de não moldar a jovem mente de acordo com suas próprias ideias, mas, antes segundo as disposições e possibilidades do educando" (1913a/1989a, p. 417).

Nesta afirmação de Freud reflete a sua preocupação com o reconhecimento do sujeito e do seu desejo pelo professor. Acreditava, sobretudo, que uma educação não baseada na força repressora dos adultos contra os impulsos das crianças fortaleceria a sua posição desejante:

A educação deve escrupulosamente abster-se de soterrar essas preciosas fontes de ação (as pulsões), e restringir-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras. Tudo o que podemos esperar a título de profilaxia das neuroses no indivíduo se encontra nas mãos de uma educação psicanaliticamente esclarecida (Freud, 1913b/1989b, p. 226).

Esta posição pode ser encontrada em "O futuro de uma ilusão", em que Freud (1927/1989f) desenvolve suas concepções sobre a educação, ressaltando mais o papel da transmissão simbólica e menos o de lutar contra a repressão das pulsões com seus efeitos de recalque. O autor alerta que "quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar seu juízo sobre o futuro" (p. 15). Desta forma, os homens só podem se tornar civilizados ou educados, se ocorrer a transmissão da cultura entre as gerações.

Freud esperava que a educação não se desenvolvesse de modo tendencioso, esforçando-se "por fazer o aprendiz alinhar-se conforme a ordem estabelecida da sociedade, sem considerar qual o valor ou qual o fundamento dessa ordem como tal" (Freud, 1927/1989, p. 184). A educação "orientada psicanaliticamente" teria o objetivo de criar condições para a constituição de sujeitos desejantes, capazes de "amar e trabalhar".

Conforme Voltolini (2009) menciona no artigo "O discurso do capitalista, a psicanálise e a educação na sociedade de mercado", "o sujeito no discurso capitalista pretende, não compartilhar o universo que se abre com a castração, mas criar seu próprio universo onde a relação com seu objeto lhe resolveria o problema da insatisfação". Assim, as pessoas são conduzidas a uma "perda de rumo que se processa pelo apagamento do sujeito em prol do brilho do objeto ... sobre o qual acreditamos ter Mestria quando na verdade é como servos dele que tal pedagogia parece nos condenar a ficar".

Ainda nas palavras de Voltolini (2009):

Numa lógica na qual o objeto domina o sujeito, as pessoas são levadas a aprender apenas aquilo que deste objeto já foi enunciado, como se o conhecimento fosse informação e ficam despreparadas para discutir esta informação como se ela fosse o duplo real do objeto e não apenas uma versão que o contorna. Descontado um utilitarismo comum que assola o ensino atual, poderíamos nos questionar se a famosa pergunta que transborda na boca dos alunos de hoje não quer também indicar outra coisa: professor, para que serve isto?

A homogeneização que decorre de um ensino meramente técnico apaga não só a singularidade do aluno, mas também a do professor, na ilusão de uma maior eficiência por essa eliminação das subjetividades. Como o próprio Freud ressaltou, a relação com o conhecimento passa pela transferência professor/aluno, que inclui a dialética entre as suas posições enquanto desejantes. Mas observa que a consequência disto é que estas relações também podem se carregar de inibições e resistências. Neste sentido, Lacan (2008) em O seminário, livro 16: de um Outro ao outro, 1968-1969, adverte:

Não digo Algum dia vocês aprenderam alguma coisa? Porque aprender é uma coisa terrível, é preciso passar por toda a burrice daqueles que nos explicam as coisas, e isso é penoso de destacar, mas sim, saber algo não é sempre algo que se produz como um clarão? (p. 196)

"Clarão" que é produzido pelas mais diversas formas de mecanismos simbólicos, formas jamais passíveis de serem categorizadas pelas teorias pedagógicas, porque derivadas da produção de um saber que ultrapassa o reino do imediato, da eficiência, da produtividade do mercado. Um saber que afirma, em todo sujeito, a capacidade criadora.

Freud nos revelou que a condição para se tornar humano está fundamentada no desamparo original, pois exige a intervenção de um adulto para que o humano desamparado sobreviva. Neste sentido, o Outro materno, como representante deste universo, fornece ao bebê um conjunto de marcas materiais e simbólicas, ou seja, significantes, que suscitarão no corpo deste um ato de resposta que se chama sujeito. O sujeito é uma resposta dada em ato.

De fato, a criança neste momento ocupa o lugar de objeto, objeto de desejo dos pais, visando suprir a falta simbólica. Deste modo, Lacan (1995), em O seminário, livro 4: a relação de objeto, 1956-1957, indica que para a compreensão desta relação de objeto é preciso estabelecer o falo "como um elemento terceiro" nesta relação dual entre mãe e filho. Este falo é imaginário, mas refere-se ao real. A criança não é o objeto da mãe, ela está inscrita justamente como a falta de objeto que é precisamente o falo. Esta noção de falta de objeto apontada pelo desejo dos pais perante a "sua majestade o bebê" é "a própria mola da relação do sujeito com o mundo" (p. 35) e, consequentemente, com o conhecimento, inclusive o escolar.

A transmissão simbólica, neste contexto, liga-se à penetração afetiva, ao sentido mais escondido do comportamento parental, o significante do pai simbólico, ou seja, o que serve ao sujeito não é propriamente o genitor e sim as relações simbólicas significantes. Em O seminário, livro 3: as psicoses, 1955-1956, Lacan (1992) enuncia que "antes que haja o Nome-do-Pai, não havia pai, havia todas as espécies de outras coisas" (p. 344).

O pai é visto como um estranho na relação mãe-filho, um terceiro. Desta forma, é representante da cultura, do exterior, instaura o recalque e, ao mesmo tempo, o desejo. Segundo Freud (1932/1989):

a dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma criança tem que assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende por milhares de anos, incluindo-se aí a aquisição do controle de suas pulsões e a adaptação à sociedade – ou, pelo menos, um começo dessas duas coisas. Só pode efetuar uma parte dessa modificação através de seu desenvolvimento; muitas coisas devem ser impostas à criança pela educação (p. 180).

Em Nomes-do-Pai, Lacan (2005) revela que Freud coloca no centro de sua doutrina o mito do pai. Segundo Lacan, "o pai primordial é o pai anterior ao interdito do incesto, anterior ao surgimento da Lei, da ordem das estruturas da aliança e do parentesco, em suma, anterior ao surgimento da cultura" (p. 73). Este pai está ligado ao mito de "Totem e tabu" (1913b/1989b), elaborado por Freud. Mas este autor (1939/1989g) vai mais além deste mito inaugural em seu trabalho sobre a transmissão da cultura.

É no contexto destas ideias que se pode apreender o significado das relações transferenciais na sala de aula e sua importância incomensurável na educação como lugar de transmissão simbólica, inclusive de uma posição desejante. No caso das relações de ensino/aprendizagem na escola, ou seja, da aquisição do conhecimento, da capacidade de refletir, de se interrogar, de subjetivar esse conhecimento são emblemáticas dessa "liberdade", deste poder que adquirimos como fruto de nossa condição de seres simbólicos.

Sustentar esta posição deriva da concordância com a afirmação de Freud de que educar é impossível, e que, por isso, a Psicanálise não pode dizer aos educadores o que fazer, pois não se sabe de antemão o que resulta do ato educativo. Mas, isso não significa a desistência, e sim aposta neste ato.

 

Considerações finais

O pressuposto básico que sustenta a importância da valorização da transmissão simbólica pela educação tanto informal quanto a formal e em todos os níveis, que vimos salientando, é a teoria da dívida simbólica, ou seja, o sujeito somente pode se constituir a partir do Outro. A construção freudiana, desde o texto fundador da metapsicologia, "As pulsões e seus destinos" (1915/1989d) indicou rigorosamente como o sujeito se constitui mediante diferentes destinos produzidos pela articulação entre forças pulsionais e o Outro, definido por Lacan como o "universo simbólico" ou "universo dos discursos". O Outro é o regulador do impacto das forças pulsionais, de forma a inscrever o sujeito no registro da cultura. Nesta perspectiva, o sujeito, para a Psicanálise, é marcado pela alteridade, marca constitutiva do seu ser. Por isso, o discurso freudiano não poderia separar os registros da psicologia individual e da psicologia coletiva, pois o sujeito se constitui por esta costura entre o pulsional e o simbólico, o Outro.

É importante salientar que é neste contexto teórico que a compreensão de conceitos básicos, como o do complexo de Édipo, adquire consistência e rigor, ou seja, quando pensados a partir do conceito de dívida e transmissão simbólica que permeiam o sujeito em sua constituição. Freud nos indica que, como a força pulsional é constante e contínua, o sujeito está sempre reiniciando a sua constituição como sujeito, que nunca está terminada ou concluída, sendo sempre relançada por forças pulsionais, impactantes, que o obrigam a se constituir e reconstituir para não ser imobilizado pelo impacto traumático destas forças. Com isto, o recurso ao Outro é permanente e onipresente, estando o sujeito inscrito no infantil, como que em uma infância eternizada. Enfim, este movimento no processo de constituição do sujeito tem um alcance estrutural e não genético – evolutivo, pois se repete infinitamente a partir da constância e da continuidade da força pulsional, sempre recomeçada na sua insistência. Em outras palavras, o sujeito deve a sua existência enquanto tal ao Outro, lugar dos laços sociais, em que a escola se insere. Portanto, deve ao Outro a possibilidade de existir, e isto lhe destina uma dívida em face do Outro que lhe possibilitou sua constituição.

Assim compreendida, esta transmissão pode ocorrer em vários registros. Se pensada no registro filial, é importante observar que se inscreve na ordem simbólica e não biológica, lugar em que a educação formal pode ter também um lugar de destaque. Mesmo porque o exercício desta transmissão é marcado por aquilo que o discurso freudiano denominou de narcisismo das pequenas diferenças, que permeia não apenas as individualidades, mas também as etnias, os povos, as nações, as classes sociais etc. A promoção dos processos simbólicos se realiza de maneira singularizada, pois é como singularidade que o sujeito é constituído por certa tradição.

À luz destas ideias, a redução da educação formal à profissionalização suportada por um ensino reduzido a conhecimentos técnicos pauta-se no esquecimento de que o desejo de saber é próprio do sujeito, como Freud já anunciou desde "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905). Disso deriva a sua capacidade de compreender a realidade, de pensá-la e de agir no sentido de transformá-la. O foco na destreza, nos resultados, na eficiência e na produtividade, em detrimento da transmissão de marcas simbólicas, compromete a dimensão intelectual, humana e autônoma da formação de sujeitos capazes de pensar a si mesmos e o mundo ao seu redor.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em fevereiro/2014
Aceito em dezembro/2014

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