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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.1 São Paulo abr. 2017

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i1p83-99 

ARTIGO

 

O pequeno semelhante em questão: o que bebês e crianças pequenas podem fazer pelos seus pares semelhantes na constituição psíquica e no desenvolvimento

 

Toddlers in question: what babies and young children can do for their similar peers in the psychic constitution and development

 

El pequeño similar en cuestión: lo que los bebés y los niños pequeños pueden hacer por sus pares semejantes en la constitución y el desarrollo psíquicos

 

 

Daniel Kazahaya

Psicólogo. Mestrado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), São Paulo, SP, Brasil. Professor na Universidade de Guarulhos (UNG) e na Universidade Anhanguera de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Investigam-se as interações entre bebês e crianças pequenas apontando as possibilidades de participação na constituição psíquica e no desenvolvimento. Esses sujeitos foram denominados "pequenos semelhantes" e definidos em termos constitucionais. Foi realizada uma revisão bibliográfica da teoria psicanalítica embasada em três principais autores: Freud, Lacan e Winnicott. Esta revisão foi confrontada com dados de observação da psicologia do desenvolvimento. Conclui-se que os pequenos semelhantes interagem e formam organizações pré-grupais e grupais marcadas pela identificação, agressividade e cooperação, além de ter participação única e diferencial na constituição psíquica e no desenvolvimento, melhor definida como a gênese dos sentimentos sociais.

Descritores: psicanálise da criança; desenvolvimento humano; bebês; criança; constituição psíquica.


ABSTRACT

This paper investigates the interactions between babies and young children indicating the possibilities of a participation in psychic constitution and development. These subjects were named "similar toddlers" and defined in constitutional terms. A literature review of psychoanalytic theory was performed, based on three main authors: Freud, Lacan, and Winnicott. This review was confronted with observation data of developmental psychology. We conclude that similar toddlers interact and form pre-group and group organizations marked by identification, aggression, and cooperation, as well as having a unique and differential participation in the psychic constitution and development, better defined as the genesis of social feelings.

Index terms: psychoanalysis of children; human development; babies; child; psychic constitution.


RESUMEN

Se investigan las interacciones entre los bebés y los niños que precisan las posibilidades de una participación en la constitución y el desarrollo psíquicos. Estos chicos fueron nombrados pequeño semejante y definidos desde términos constitucionales. Se hizo una revisión de la literatura sobre la teoría psicoanalítica en tres autores principales: Freud, Lacan y Winnicott. Esta opinión fue confrontada con la observación de los datos de la psicología del desarrollo. Concluimos que los pequeños semejantes forman organizaciones pregrupales y grupales marcados por la identificación, la agresión y la cooperación, así como tiene una participación singular y diferenciada en la constitución y el desarrollo psíquico que mejor define como la génesis de los sentimientos sociales.

Palabras clave: psicoanálisis del niño; desarrollo humano similar; bebés; niño; constitución psíquica.


 

 

Bebês e crianças compartilham o viver e espaços comuns, seja na família nuclear com irmãos, seja na família extensiva com primos e amigos, seja na tribo, ou mesmo nas creches, berçários e orfanatos. O que pode haver em comum nesse compartilhar o viver com semelhantes, também pequenos, diante dessa variedade cultural dos encontros e desencontros desses pequenos sujeitos? É a pergunta que norteia este artigo.

Este trabalho explora um tema relativamente pouco abordado em psicanálise, que é o encontro de dois ou mais pequenos sujeitos ainda nos primórdios de sua constituição psíquica. Inclui-se esta discussão no âmbito das chamadas novas configurações familiares (Ceccarelli, 2007), pois é nesse contexto que surgem as perguntas em torno da problemática a qual nos dispomos analisar.

Na atualidade, a discussão sobre o pequeno semelhante e sua participação na constituição psíquica urge na sociedade ocidental. Não somente pelas questões socioculturais de formações de grupos, mas, especialmente, pela ida da prole às instituições de cuidados e educação (como creches, berçários, escolas e orfanatos) em idades cada vez menores, o que envolve a convivência precoce com pares e grupos infantis.

Esse contexto, que inspirou a temática deste trabalho, é bem definido: a convivência intensa e frequente de bebês e crianças pequenas com seus pares em instituições de cuidado e educação. Esses pequenos chegam a permanecer 12 horas diárias, 5 dias por semana aos cuidados da creche, demandando do adulto cuidador uma referência fundamental para o vir a ser desses sujeitos (Mariotto & Bernardino, 2009). Porém, a realidade social do Brasil e de muitos outros países é de uma escassez de cuidadores em contraste ao grande número de crianças aos seus cuidados (Papalia, 2009). Os números podem chegar a 10 ou 20 bebês e crianças aos cuidados de apenas uma cuidadora ou um par que se reveza (Newcombe, 1999).

Diante dessa escassez de adultos cuidadores, surge a questão central deste trabalho: o que se pode esperar do convívio de bebês e crianças com seus pares? Será que esses pequenos sujeitos podem contribuir entre si em termos de constituição psíquica e desenvolvimento?

Para esta investigação, adotou-se uma delimitação de objeto de estudo, denominado "pequeno semelhante", e optou-se por uma definição em termos constitucionais. O pequeno semelhante ao qual nos referimos é o semelhante que se apresenta para um bebê ou criança pequena ainda no início de sua constituição subjetiva. Inclui os pares semelhantes que estão percorrendo um período similar quanto à constituição subjetiva.

Em termos lacanianos, o pequeno semelhante inclui o sujeito na chamada encruzilhada estrutural, formada pelo complexo do desmame, complexo do intruso e o estádio do espelho. Em termos winnicottianos, o pequeno semelhante se refere ao indivíduo que está percorrendo as fases inicias do que ele denominava "amadurecimento pessoal", em especial a tarefa de integração, a qual abriria a possibilidade do relacionamento a três corpos.

O pequeno semelhante se refere a esse sujeito que está num período de estruturação subjetiva, que vai do nascimento a possibilidade do complexo de Édipo, quando o sujeito teria, então, elementos subjetivos suficientes para lidar com o outro enquanto outro (não somente enquanto representação de si mesmo), assim como para assimilar o pai e a disposição que este poderá vir a ocupar no complexo de Édipo freudiano.

É importante ponderar que o termo não se restringe a uma cronologia, mas se aproxima do tempo lógico. Lacan e Winnicott enfatizavam essa problemática. Lacan (1985) nos diz que os estágios da libido permanecem sempre opacos, pois não têm uma pseudomaturação natural, e Winnicott (1988/1990) sublinha que os estágios do desenvolvimento não são lineares, mas se entrecruzam em movimentos circulares.

Inicialmente o trabalho explora a questão do pequeno semelhante pelo viés da teoria psicanalítica pautando-se em três principais autores: Freud, Lacan e Winnicott. Posteriormente comparam-se os dados de observação da psicologia do desenvolvimento, de modo a verificar possíveis pontos de apoio à teoria psicanalítica.

Freud, embora não tenha abordado o encontro de dois ou mais pequenos semelhantes em sua obra, trabalhou largamente o tema do semelhante e, em seus escritos, encontramos os elementos fundamentais para a definição na noção aqui adotada de pequeno semelhante. Nesses escritos destacam-se três elementos constantes na temática dos semelhantes: identificação, agressividade e cooperação. Esses elementos foram utilizados como operadores de leitura.

Em Totem e tabu (Freud, 1913/1990), por exemplo, a filogênese social é abordada por esse viés. Os semelhantes se unem para poder lidar com o pai da horda primitiva e frear sua onipotência e narcisismo. Ou seja, é a partir do outro semelhante com quem o sujeito se identifica em desamparo e na subjugação ao poder do pai que o indivíduo encontra meios para se haver com o pai da horda. Numa visão mais ampla e geral, Freud trabalha o encontro dos semelhantes sempre referenciados ao pai. É o pai quem intermedia e dá lógica a esses encontros.

Em outros momentos, Freud (1921/1990) trabalha o semelhante no encontro de crianças, a exemplo dos irmãos, em que o sentimento coletivo seria uma formação reativa de justiça e tratamento igual para todos. O primeiro filho, diante da impossibilidade de exclusividade do amor dos pais, tem que ceder a realidade de que esse amor é também voltado a outros filhos, os quais o primogênito não pode excluir. Assim, ele é obrigado a se identificar com os demais filhos na busca de tratamento igual, ou seja, já que ele não pode ser o preferido e ter exclusividade no amor, então que mais ninguém tenha.

Desse modo, verificam-se elementos essenciais dos encontros com os semelhantes: a agressividade, no desejo inicial de exclusão; a identificação, no reconhecimento de que o irmão também tem o amor dos pais e que está em situação muito similar à do sujeito; e na cooperação, já que esse semelhante pode se unir ao outro na busca de justiça e tratamento igual. "Identificação" e "agressividade" são termos frequentemente utilizados em psicanálise, mas o termo "cooperação" não está ligado a esse campo de conhecimento, sendo mais utilizado pela Etologia e pela Psicologia do Desenvolvimento. Entretanto, o termo foi utilizado aqui por melhor representar o conjunto de fenômenos que envolve os semelhantes num tipo de organização social da qual advém o colaborar, a união, um pacto de ação mútua, em que é necessário lidar com as demandas do outro respeitando o uso comum de espaços.

A agressividade sofre um desenvolvimento ulterior, pois, para além da questão da destrutividade, é ela o que permite ao sujeito alavancar seus desejos no social. Freud (1930/2010) pondera que a luta e a disputa são imprescindíveis ao sujeito, mas não necessariamente significam inimizade, ou seja, há uma espécie de "disputa amigável".

Curiosamente, em Freud (1919/2010) encontramos indícios do que poderia ser uma análise mais profunda sobre o que denominamos "pequeno semelhante" em seu texto sobre as experiências Unheimlich, termo por vezes traduzido como "o Inquietante", pois as características encontradas nesses fenômenos são análogas às trabalhadas por Lacan sobre o pequeno semelhante no Complexo do Intruso.

A interpretação que Freud (1919/2010) dá para os fenômenos Unheimlich está ligada ao ressurgimento do que fora muito próximo e familiar, mas recalcado, e que ao retornar nas diversas experiências provoca o inquietante. Em várias passagens essa experiência inquietante estaria ligada ao semelhante, seja na forma de um duplo ou do sósia.

Para Freud (1919/2010), "o duplo foi originalmente uma garantia contra o desaparecimento do Eu" (p. 353), sobre o que, a princípio, concorda com Rank (1914 citado por Freud, 1919/2010) que estaria ligado à alma imortal, à primeira negação da morte. Porém, o duplo é citado também como aquele semelhante que participaria da identificação nas questões relativas ao pai, numa análise muito similar ao Totem e Tabu. Em sua citação de Gotthelf, vemos a seguinte demarcação: "Sch. 127, 148; Eis o que é verdadeiramente Heimelich, quando o homem sente no próprio coração como é pequenino, e como é grande o Senhor" (Gotthelf citado por Freud, 1919/2010, p. 335).

O duplo e o sósia teriam sua importância por sua aparência igual, o que facilitaria os processos de identificação. Freud também enfatiza a gênese da experiência do inquietante nos primórdios da constituição subjetiva:

Essas concepções surgiram no terreno do ilimitado amor a si próprio, do narcisismo primário, que domina tanto a vida psíquica da criança como a do homem primitivo e, com a superação dessa fase, o duplo tem seu sinal invertido: de garantia de sobrevivência passa a inquietante mensageiro da morte (Freud, 1919/2010, p. 352).

Freud atribuía ao duplo um recuo a períodos iniciais da formação do sentimento do Eu, no qual não havia uma nítida delimitação do Eu contra o mundo externo e contra os outros. Este seria um ponto fundamental do inquietante, ou seja, um período em que o outro, semelhante, fora tão próximo a ponto de ser confundido com o próprio Eu, mas que agora retorna com angústia, pois está recalcado. Freud (1919/2010) relaciona esse recalcado a um "caráter demoníaco" que estaria ligado às "tendências do bebê" e pondera que "as considerações anteriores nos levam a crer que será percebido como inquietante aquilo que pode lembrar essa compulsão de repetição anterior" (p. 356).

Embora Freud, por vezes, sinalize o inquietante em termos de uma instância psíquica (de vigia do eu, auto-observação e autocrítica), nossa indagação está na possibilidade de o pequeno semelhante poder se apresentar enquanto encarnação desse duplo ou sósia. Assim, em um dos vieses, o inquietante seria um resquício ou sinal da experiência com o pequeno semelhante, que recalcado nos primórdios da constituição subjetiva ressurgiria na atualidade como o inquietante. Esse fato será trabalhado com maior profundidade nos fenômenos do transitivismo, em Lacan, e da localização do Eu no corpo, em Winnicott, apresentados adiante.

Embora Lacan não cite diretamente o Unheimlich em seus escritos sobre o pequeno semelhante, vemos que os elementos presentes no complexo do intruso são antecipados por Freud nesse texto de 1919.

Mais adiante, é Lacan quem vai aprofundar e destrinchar a importância do pequeno semelhante na constituição subjetiva. Lacan (1938/2003) atribui ao pequeno semelhante uma função de intruso já nos primórdios da constituição da subjetividade, num período anterior ao complexo de Édipo freudiano.

Para isso, Lacan parte da proposta de complexos anteriores ao complexo de Édipo, denominando-os "complexos familiares", sendo eles, além do complexo de Édipo, o complexo do desmame e o complexo do intruso. O autor trabalha o pequeno semelhante apresentado primeiramente na figura do irmão que, por meio de uma intrusão, remete o sujeito a uma identificação na forma de rivalidade, na qual se desdobrarão elementos constitutivos fundamentais e inaugurais das relações triangulares. Nesse percurso Lacan situa o sujeito numa encruzilhada estrutural, formada pelo complexo do desmame, do complexo do intruso e do estádio do espelho. Essas três operações desembocariam na formação do eu.

Lacan (1938/2003) atribui ao complexo do intruso a gênese do sentimento social: "O Eu se constitui ao mesmo tempo que o outro no drama do ciúme" (p. 49). O autor utiliza a figura do intruso no sentido da identificação pela rivalidade e pela alteridade. O intruso, ao ocupar um lugar de privilégio que antes pertencia exclusivamente ao sujeito, permite uma identificação e introduz o incômodo ao mostrar que o lugar que outrora fora privilégio do sujeito pode pertencer a outro, sendo, portanto, passível de disputa, de rivalidade.

No complexo do intruso o sujeito primitivo se reconhece entre irmãos, ou seja, ele se distingue de outros. É nesse momento que perceberá e entenderá que existe o outro. O pequeno sujeito reconhece o outro enquanto intruso e rival num primeiro momento, mas, ao reconhecer que o outro ocupa um lugar diferente do seu próprio, ele tem a possibilidade de se distinguir dele.

Mais adiante, Lacan (1949) trabalha o fenômeno do transitivismo:

Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial (tão bem ressaltado pela escola de Charlotte Bühler nos fenômenos de transitivismo infantil), a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas (p. 101).

No transitivismo, a criança transita pelos outros, por assim dizer. Seu espaço se confunde com o do outro. Lacan (1938/2003) dá o exemplo da criança que chora ao ver outra cair no chão, como se ela transitasse pelo outro que se machuca, ou, mais precisamente, como se a outra que caísse fosse o próprio sujeito que observa. Há um "transitar" que remete o sujeito a uma identificação com o outro. Uma identificação de característica narcísica, pois se refere ao próprio sujeito, a qual Lacan (1948/1966) especificou em sua quarta tese sobre a agressividade: "A agressividade é a tendência correlativa a um modo de identificação a que chamamos narcísico e que determina a estrutura formal do eu do homem e do registro de entidades características de seu mundo" (p. 110).

É importante frisar esse primeiro paradoxo no qual se encontra o pequeno sujeito diante de seu semelhante. O irmão que ao mesmo tempo se quer destruir, pois remete a uma exclusão, é o mesmo que novamente, por exclusão, lhe permite manter o vislumbre de ser uma unidade separada do Outro. Nesse paradoxo o sujeito tem a possibilidade de engendrar o sentimento social, de aceder ao fato de que o semelhante pode ser odiado, mas também pode ser objeto de identificação, é rival e "salvador", intruso, mas colaborador.

Assim, Lacan pondera que há uma espécie de simpatia ciosa, similar à disputa amigável trabalhada por Freud, que marca e delimita com precisão a gênese do sentimento social. Aquele que me exclui é o mesmo que me inclui. O que ameaça um lugar nostálgico é o mesmo que garante um devir subjetivo.

Esse local nostálgico, para Lacan (1938/2003), seria a relação com a mãe, representada no complexo do desmame pela imago da amamentação, à qual o autor relaciona uma imagem de quase totalidade do sujeito. Tanto o complexo do desmame quanto o complexo do intruso seriam momentos de embate entre uma pulsão que quer se satisfazer e o real que impõe sua limitação, o que liberaria um quê de angústia.

É neste ponto que o pequeno semelhante – enfatizado por Winnicott – surge como uma triangulação inicial, que auxilia o sujeito a sair de uma relação dual imaginária com a mãe. Winnicott (1966) atribui ao pequeno semelhante também outras funções, como o amadurecimento pessoal e mesmo formações grupais e pré-grupais entre esses pequenos.

Para o pediatra inglês, o pequeno semelhante, na figura do irmão, seria fundamental ao contribuir para a integração da agressividade e para a passagem desta ao amor. O que também favoreceria o que ele denominou "permanência de objeto", ou seja, o fato de o irmão ser a mesma pessoa que primeiramente o sujeito quis eliminar, para depois se transformar num parceiro com o qual se pode brincar e compartilhar a vida.

O irmão mais novo surge como ameaça a uma relação segura e estável com os pais. Essa ameaça surge apenas em relação, e no que Winnicott denominava "espaço potencial", isto é, a representação de um espaço subjetivo que dialoga com o sujeito e a realidade compartilhada por meio da criatividade. O espaço potencial permite ao sujeito sentir que "a vida vale a pena ser vivida", pois este se inicia em relação à mãe e culmina na cultura (Winnicott, 1988/1990).

O olhar de Winnicott (1966) sobre o advento de um irmão é, portanto, de um "enriquecimento" para a vida do sujeito. É no contato com esse pequeno semelhante que o sujeito poderá "dominar os tremendos conflitos e sentimentos suscitados" (p. 151).

O autor trabalha a questão de ter ou não irmãos, e enfatiza uma função principal que o irmão pode desempenhar:

Uma coisa que falta especialmente no filho único é a experiência de sentir o ódio crescer nele; o ódio da criança quando o novo bebê ameaça o que parecia ser uma relação estabelecida e segura com a mãe e com o pai.... Esse ódio cederá gradualmente o lugar ao amor à medida que o novo bebê se converter num ser humano com quem se pode brincar e de quem podemos sentir orgulho (Winnicott, 1966, p. 151).

Com a confiança e fidedignidade na relação do bebê com o ambiente, o contato do sujeito com o pequeno semelhante – que a princípio era ameaça – pode gradualmente se transformar em uma relação de amor, contribuindo para o sujeito integrar nessa relação os diferentes aspectos de um objeto. Isto é, está gradualmente se formando como unidade e considerando os demais como unidades separadas. O bebê está se aproximando do ponto em que seria possível a introdução de um relacionamento a três corpos.

Winnicott considera o grupo uma conquista do sujeito, uma conquista do Eu Sou. Ao ponderar a questão da escola, da instituição de cuidado de bebês e crianças, e a psicologia de grupo, Winnicott (1965/2005) trabalha duas possibilidades para as crianças:

1. A criança normal, que tem um lar normal, tem objetivos, e vai à escola querendo de fato aprender alguma coisa, que trava contato com seu próprio ambiente e chega até a ajudar a conservá-lo ou modificá-lo, e 2. a criança desajustada, por contraste, tem necessidade de um ambiente cuja tônica seja o cuidado, e não o ensino; este assunto secundário que pode assumir às vezes caráter especializado, tendo mais a natureza de um remédio de que de instrução escolar. Para a criança desajustada, em outras palavras, a "escola" tem o significado de abrigo ou albergue (p. 213).

Mais adiante, Winnicott (1965/2005) é categórico quanto à participação do grupo na constituição do sujeito:

A criança recém-integrada participa, assim, de seu primeiro grupo. Antes desse estágio só existe uma formação primária pré-grupal, na qual elementos não-integrados são mantidos unidos por um ambiente do qual não se encontram ainda diferenciados. Esse ambiente é a mãe que segura o filho.

O grupo é uma conquista do EU SOU, e é uma conquista perigosa. A proteção é muito necessária nos estágios iniciais; sem ela, o mundo externo repudiado volta-se sobre o novo fenômeno e o ataca por todos os lados e de todos os modos possíveis e imagináveis (p. 217-218).

Destaco a passagem em que Winnicott diz que antes da integração há apenas uma formação pré-grupal com elementos não-integrados amparados pelo ambiente. Winnicott (1965/2005) considerava que o estágio de Eu Sou seria um momento "cru", no qual o indivíduo sente-se infinitamente exposto, de modo que esse momento só poderia ser suportado quando há alguém envolvendo a criança em seus braços. Ele diz que "exposto" significa nu e aponta a importância de corpo e psique estarem ocupando o mesmo lugar, a membrana limitadora não pode ser apenas simbólica, mas deve coincidir com a membrana corporal, a pele.

Winnicott cita um breve relato de caso de uma paciente adulta que auxilia a ilustrar essa questão. O autor enfatiza que a localização do eu no próprio corpo pode ser considerada óbvia, mas que uma paciente psicótica em análise recordou que, na infância, "ela achava que sua irmã gêmea no assento ao lado do carrinho era ela mesma. E até se surpreendia quando alguém pegava a sua irmã no colo e ela ficava parada onde estava. Sua percepção do eu e do outro-que-não-o-eu não tinha se desenvolvido" (Winnicott, 1941/2000, p. 223). Neste caso, claramente o pequeno semelhante não se apresenta como "ameaça", mas, quem sabe, como uma salvação, uma "garantia de sobrevivência do eu". Remeto o leitor à passagem destacada anteriormente sobre o Unheimlich freudiano.

Assim, a compreensão de Winnicott (1965/2005) sobre a formação de grupos remete a dois termos: a "unidade do indivíduo" e a "cobertura materna", sendo que a origem dos grupos pode se referir a qualquer um dos extremos desses dois termos. No primeiro extremo, com a integração do indivíduo, ele se une ao grupo enquanto "unidade individual", e assim pode-se atribuir ao grupo formado por indivíduos integrados como que uma "superposição de unidades" em que a base da formação grupal madura é a multiplicação de unidades individuais. Neste caso, o grupo pode se beneficiar da experiência pessoal de cada membro justamente porque recebeu os termos necessários considerados por Winnicott (1965/2005), a cobertura materna e o apoio à integração.

No outro extremo da formação grupal, em que se considera a "cobertura", aquelas pessoas estariam relativamente não-integradas. Nesses casos, o autor define três estágios:

(a) Apreciam o fato de estarem sendo cobertos, e adquirem confiança.

(b) Começam a explorar a situação, tornando-se dependentes e regredindo à não-integração.

(c) Começam, cada um por si mesmo, a adquirir alguma integração, e, nesses momentos, valem-se da cobertura proporcionada pelo grupo, a qual lhes é necessária devido às suas expectativas de perseguição. Os mecanismos de cobertura são submetidos nesse ponto a grande tensão. Alguns indivíduos conseguem obter sua integração pessoal, e prestam-se assim a serem inseridos em outro tipo de grupo, no qual os indivíduos mesmos proporcionam o funcionamento grupal. Já outros não podem ser curados pela terapia das coberturas apenas, e continuam precisando do cuidado de uma agência, sem, porém, identificarem-se com essa agência (Winnicott, 1965/2005, p. 219, grifos nossos).

Sublinha-se que Winnicott considerava que o grupo poderia, em alguns casos, contribuir para a integração do sujeito, servindo como "cobertura" que ampara os sujeitos que não tiveram uma integração suficiente, ou seja, o grupo pode amparar a falta do ambiente. No entanto, em outros casos esses grupos devem ser cuidados, ou seja, demandam uma estrutura organizada que os agencie.

No entanto, Winnicott (1965/2005) considera que, devido à exposição envolvida na formação do Eu Sou – sentimento de estar nu, cru, exposto –, há na formação grupal uma expectativa de perseguição. Esse sentimento pode inclusive ser um estímulo para essa formação, que, porém, se constituída dessa maneira, se revelará artificial e apresentará instabilidade. Portanto, abrem-se diversas possibilidades na formação grupal de pequenos semelhantes, nas quais estes podem ou não contribuir para a constituição psíquica, dependendo das características individuais e/ou grupais.

Um exemplo elucidador sobre esse aspecto da teoria winnicottiana foi apresentado por uma analista numa discussão sobre o tema num colóquio de psicanálise de crianças realizado em São Paulo. A analista deu o seguinte exemplo:

Às vezes vejo grupos de crianças que estão para adoção, e eles assumem características que se completam e formam um grupo muito fechado. Às vezes apenas uma das crianças se relaciona com os adultos, às vezes apenas uma fala com outras pessoas, e outro é extremamente calado. Às vezes um é agressivo e o outro bondoso, ou um é muito ativo e o outro passivo, e normalmente eles mantêm uma postura de "fechamento" entre eles, onde é muito difícil conquistar a confiança das crianças. Quando isto acontece, é em relação ao grupo todo. Isoladamente, estas crianças tendem a ter atitudes diferentes.

O exemplo demonstra claramente que, quando houve quebra de confiança no ambiente cuidador e ainda não há integração dos indivíduos em unidades separadas, os pequenos semelhantes podem se unir em grupo, o que traria uma sensação de unidade (partes não integradas no indivíduo, unidas e manifestadas no grupo enquanto uma pseudounidade).

Esse fato será posteriormente apresentado na psicologia do desenvolvimento, que mostrará que as crianças se relacionam a partir da mãe (ambiente) ou cuidador, e que suas interações estão frequentemente amparadas por essas figuras. Já em outras situações, quando não há apoio do ambiente (mãe ou educadora), como no caso de algumas creches, as crianças tendem a interagir entre elas sem demonstrar uma referência em relação ao adulto cuidador, isto é, não há identificação.

Essa análise winnicottiana das formações grupais demarca uma grande diferença em relação a Freud. Winnicott trabalha a hipótese das formações grupais já nas tenras idades, antes de a lógica edípica permear o contato com outros semelhantes. Nesses grupos, não é o pai e a lei que referenciam a formação coletiva, mas a constituição (integração) dos sujeitos do grupo (sua integração ou estabelecimento do Eu sou) e a cobertura materna.

 

Psicologia do desenvolvimento

Diante dessas considerações sobre o pequeno semelhante na teoria psicanalítica, nos voltamos para a psicologia do desenvolvimento para buscar verificar se os dados de observação poderiam contribuir para a compreensão dos fenômenos.

A princípio, a hipótese era a de que a psicologia do desenvolvimento não atribuía uma interação entre bebês e crianças pequenas. Isso realmente foi verificado em grande parte pelos autores que desenvolveram pesquisas até meados da década de 1980, a exemplo de Piaget e Inhelder (1982), Gesell (1974/1985), Vygotsky e Luria (1996), entre outros.

Porém, encontramos algumas exceções, como a psicóloga Charlotte Bühler (1943), que realizou observações sobre bebês em tenras idades sob um viés mais psicanalítico. A autora descreve, já em 1924, interações entre bebês nas quais ela localiza a agressividade e o colaborar. Em suas observações ela incluiu a disputa de brinquedos, o olhar, o sorriso, um grito, balbucios, imitações, atividades lúdicas, choro, e outros, de modo que se ampliou o campo de observações sobre as interações desses pequenos, verificando que muitas dessas interações já estariam presentes mesmo aos 5 meses de idade.

Foi nas observações de Bühler que Lacan se inspirou para elaborar o complexo do intruso. Há uma passagem que muito nos auxilia:

Um bebê de 6 a 11 meses empurra o outro para o lado ou lhe toma o brinquedo das mãos, e logo sorri triunfante; o outro permanece sentado, quieto, inibido, e não se atreve a defender-se. Ou se rebela, se lança sobre o rival e tenta toma-lhe o brinquedo. Quero dizer que no segundo semestre de vida já comprovamos demarcadas relações de rivalidade, de domínio e de sujeição, início de uma hierarquia (Bühler, 1946, p. 52, tradução nossa).

Essa autora já antecipa um debate sobre uma esfera vital do sujeito. Algo como um campo subjetivo que delimita e dá contornos às interações entre os sujeitos.

Alguns pesquisadores brasileiros, como Vasconcelos, Amorim, Anjos e Ferreira (2003), enfatizaram a importância de se considerar o contexto em que ocorrem essas interações. Fatores como a presença ou não da mãe, de brinquedos, de cuidadores, de outras crianças, influenciam decisivamente nas interações.

Um brinquedo pode não interessar muito a uma criança, mas basta que outra lhe tome para que o sujeito tente pegá-lo. Um adulto pode passar desapercebido num ambiente, mas se dá atenção para outro pequeno, o sujeito tenta chamar atenção também. Isso mostra que as interações dos bebês têm que ser avaliadas num contexto ampliado, em que se considere algo como um campo subjetivo. Vasconcelos et al. (2003) enfatizam que é importante estabelecer uma definição de interação que possibilite captar e traduzir as características das interações nas tenras idades. Eles adotaram uma visão de interação que diz respeito a um "potencial de regulação entre os componentes do grupo, do sistema" (Carvalho; Império-Hamburger; Pedrosa, 1999, citado por Vasconcelos et al., 2003, p. 247), de modo que bebês num mesmo ambiente configurem um campo interacional.

Os pesquisadores apontam que no primeiro ano de vida há diversas interações entre os bebês que poderiam ser classificadas como não intencionais, mas que modificam o comportamento umas das outras. Em outro ponto, a incompletude motora dos bebês seria promotora de interações.

Os autores ressaltam que o distinguir ou não episódios de interação entre os bebês pode estar diretamente relacionado à nossa rede de significações. Destacaram três aspectos das interações entre bebês: o primeiro seria o "poder do olhar" e sua capacidade de desencadear ações, emoções e imitações; o segundo aspecto foi apelidado de "diálogo mudo", "múltiplas vozes" ou "dança de mãos", que trata das interações que envolvem as crianças e suas mães, em que se destacam várias passagens nas quais as mães fazem algo como uma dança de mãos e vozes para guiar a interação de bebês; e o terceiro seria o "complexo bebê-objeto", que se refere à atração do sujeito ao objeto. Assim, o brinquedo pode ser um atrativo, mas o que configura a interação é o fato de o brinquedo estar em posse de outra criança.

Portanto, alguns autores da psicologia do desenvolvimento contribuíram de forma decisiva para a compreensão das interações dos pequenos semelhantes. As interações estão lá, e dependem em grande parte da rede de significações dos pesquisadores. Essas interações têm características únicas, principalmente porque são mais fragmentadas e esporádicas em relação às interações de crianças grandes ou adultos, de modo que devemos respeitar e considerar a peculiaridade dos pequenos sujeitos.

As observações demonstram que identificação, agressividade e cooperação começam a se desenvolver já aos 5 ou 6 meses. Vão se complexando gradualmente a partir dessa faixa etária. As interações não podem ser consideradas isoladas, é necessário ponderar o campo subjetivo que influencia os bebês.

Finalizando, creio que este trabalho também forma uma rede de significações sobre o pequeno semelhante no desenvolvimento e na constituição subjetiva, que nos indica uma participação fundamental que pode ser mais bem descrita, como disse Lacan, como a gênese dos sentimentos sociais. É no encontro com o pequeno semelhante que o sujeito tem a possibilidade de se reconhecer e de se distinguir do outro. Como aponta Winnicott, é com este que ele poderá expressar e integrar um ódio genuíno e o amor de compartilhar a vida. Os pequenos semelhantes também podem formar grupos que apresentam características diferentes daqueles estudados por Freud, uma vez que a referência não é o pai, mas constituição subjetiva dos indivíduos e cobertura materna. Há um contraponto aqui, visto que a base da formação grupal não é a identificação com o pai e o ideal do eu, mas o sentimento de estar nu, exposto, com expectativa de perseguição. Aqui o grupo fornece uma proteção momentânea contra esse sentimento, em que alguns indivíduos podem se beneficiar da "terapia da cobertura" obtendo integração, já outros não, necessitando dos cuidados de uma agência. Podemos apontar que o pequeno semelhante também pode ser um indicador clínico da formação de um espaço de confiança e amor (na relação com a mãe e/ou educador), o espaço potencial, onde o bebê pode se constituir numa base de espontaneidade e criatividade. Por exemplo, se há entre os pequenos semelhantes disputa para obter atenção do cuidador ou brinquedos, então há uma relação de confiança. Essa disputa gradualmente cederá espaço para a cooperação, marcando uma abertura social.

 

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Endereço para correspondência
Praça Tereza Cristina, 1. Clínica Psicológica
07023-070 – Guarulhos – São Paulo – SP – Brasil.
danielkazahaya@gmail.com

Recebido em janeiro/2017.
Aceito em março/2017.

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