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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.1 São Paulo abr. 2017

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i1p132-149 

ARTIGO

 

A relação educativa e a ética no trabalho social à luz das concepções lacanianas da educação

 

The educational relationship and the ethics in social work in light of the lacanian conceptions of education

 

La relación educativa y la ética en el trabajo social a la luz de los conceptos lacanianos de la educación

 

 

Sébastien Ponnou

Doutor em Psicanálise pela Universidade Paris 8. Formador e Pesquisador no Pôle Limousin d'Action et de Recherche en Intervention Sociale (Polaris), Laboratório Francófono de Educação e Diversidade (Fred), Université de Limoges, Limoges, França

Correspondência

 

 


RESUMO

A relação entre educação e psicanálise foi amplamente debatida na literatura profissional, universitária e psicanalítica de língua francesa. A comparação entre esses campos mostra que as concepções lacanianas da educação nunca foram objeto de estudo aprofundado na França. Desse modo, procedemos à análise sistemática da totalidade do corpus lacaniano, publicado e inédito, para dele deduzir as ocorrências pertinentes sobre o tema da educação. Apresentamos os resultados obtidos para discutir seus determinantes em termos de relação educativa e de ética no setor do trabalho social que constitui nosso campo principal de pesquisa.

Descritores: Lacan; educação; psicanálise; discurso; subjetividade; ética.


ABSTRACT

The relationship between education and psychoanalysis has been widely discussed in French professional, academic, and psychoanalytic literature. However, the comparison between these three fields reveals that a Lacanian conception of education has never been the object of in-depth study in France. Thus, we carried out a systematic analysis of the entire Lacanian corpus, published and unpublished, in order to deduce pertinent occurrences on the subject of education. We present the results obtained to discuss its determinants in terms of educational relationship and ethics in the social work sector, which represents our main research field.

Index terms: Lacan; education; psychoanalysis; discourse; subjectivity; ethics.


RESUMEN

La relación entre la educación y el psicoanálisis se debatió ampliamente en las universidades francesas, específicamente en el área de la psicología. La comparación entre estos campos muestra que los conceptos lacanianos acerca de la educación nunca fueron objeto de un estudio minucioso en Francia. Por lo tanto, llevamos a cabo un análisis sistemático del corpus lacaniano, publicados y no publicados, para deducir las ocurrencias relevantes sobre el tema de la educación. Se presentan los resultados para discutir sus determinantes en cuanto a la relación educativa y la ética en el sector del trabajo social que es nuestro principal campo de investigación.

Palabras clave: Lacan; educación; psicoanálisis; discurso; subjetividad; ética.


 

 

Introdução

A relação entre educação e psicanálise foi amplamente debatida na literatura profissional, universitária e psicanalítica de língua francesa. A comparação entre esses campos mostra que, apesar de numerosas referências teóricas e institucionais, as concepções lacanianas da educação nunca foram objeto de estudos aprofundados (Ponnou, 2015). A partir dessa indicação, procedemos à análise sistemática do conjunto do corpus lacaniano, publicado e inédito, do qual extraímos ocorrências pertinentes sobre o tema da educação. Para isso, partimos de duas perguntas principais: (1) Existiria uma concepção lacaniana da educação? Se for o caso, quais seriam os traços proeminentes? (2) Que indicações podemos deduzir em termos de prática e de ética do campo do trabalho social que constitui nosso principal objeto de pesquisa?

 

As concepções lacanianas da educação

A análise sistemática do corpus lacaniano permitiu trazer à luz um painel de 106 ocorrências pertinentes, divididas em 28 referências separadas em cinco categorias principais passíveis de condensar as concepções lacanianas da educação: (1) educação, repressão e analidade; (2) da impotência ao reconhecimento do impossível; (3) função da palavra no campo da educação; (4) função paterna e célula familiar; (5) educação e loucura. Além dessas categorias, as concepções lacanianas da educação inscrevem-se na dialética do laço do sujeito com o Outro e na trama do discurso do mestre.

 

Educação, repressão e analidade

As proposições de Lacan são relativamente críticas em relação aos educadores e pedagogos, dos quais ele denuncia a ferocidade tingida de altruísmo (Lacan, 1966, 1978, 2001a). No entanto suas indicações retomam as proposições já sublinhadas por Freud ou por aqueles que contribuíram para a pedagogia psicanalítica a respeito dos limites de procedimentos pedagógicos baseados no princípio da frustração ou na instância do supereu (Lacan, 1966). A crítica lacaniana da educação se refere essencialmente a uma acepção real das dimensões da frustração, da repressão ou do interdito, que atravessou e atravessa ainda o campo educativo. Assim, Lacan associa regularmente a educação a certa forma de exigência sádica, referindo-a à analidade. Ele chega a reduzir a questão educativa à da limpeza e associá-la à demanda do Outro (Lacan, 2001a, 2001b, 2004a). Encontramos aqui uma formulação lacaniana elementar da função educativa: a educação é a demanda do Outro. Cabe ao sujeito responder a ela, satisfazê-la ou subtrair-se dela. Mas, inegavelmente, a educação se vê levada pela dialética do laço do sujeito ao Outro (Lacan, 2001b). A proposta parece crua, até mesmo cruel, pois em "Kant com Sade" Lacan considera A filosofia da alcova, de Marquês de Sade, como um tratado de educação, sexual ou das jovens, do qual trata-se de questionar a ética:

Uma perseverança maior no escândalo ajudaria a reconhecer, na impotência com que comumente se exibe a intenção educativa, justamente aquela contra a qual a fantasia se esforça ali: daí nasce um obstáculo a qualquer apreciação válida dos efeitos da educação, já que não se pode confessar da intenção o que produziu os resultados. Esse traço poderia ter sido impagável, pelos efeitos louváveis da impotência sádica. Que tenha escapado a Sade dá o que pensar. Sua carência se confirma por outra não menos notável: o livro nunca nos apresenta o sucesso de uma sedução, com o qual, no entanto, se coroaria a fantasia: aquela em que a vítima, nem que fosse em seu derradeiro espasmo, viesse a consentir na intenção de seu torturador, e até passasse para o lado dele, pelo ardor desse consentimento. Com o que se demonstra, por outra visão, que o desejo é o avesso da lei (Lacan, 1966, p. 787).

A impotência do fantasma de domínio, as veleidades de dominação do educador, cujo reconhecimento pode levar à construção de algo praticável na vertente do impossível.

 

Da impotência ao reconhecimento do impossível

Em Discurso aos católicos (2004b, p. 69-72), Lacan afirma que a criança faz sua educação, inscrevendo-se assim em uma forma de tradição freudiana. Convém compreender a VI Conferência de Freud literalmente: não ensinar a criança a dominar suas pulsões, dificuldade recorrente dos educadores, mas deixar a criança aprender a dominar suas pulsões (Freud, 1984). Em outras palavras, deixar que ela estabeleça uma relação de linguagem com a pulsão. Esse deslocamento acentua a passagem da impotência – e das veleidades repressivas ou demiúrgicas que ela implica – ao reconhecimento de um impossível no centro da relação educativa (Millot, 1997). Lacan insiste sobre este ponto várias vezes, por exemplo, em "Radiofonia": no que diz respeito à apreensão da palavra certa de Freud sobre os três ofícios impossíveis, ele indica que "para a histérica, é a impotência do saber provocada por seu discurso ao animar-se no desejo que revela o fracasso do educar" (Lacan, 2001a, p. 444).

 

Função da palavra no campo da educação

Por outro lado, Lacan (1966) denuncia o uso da linguagem pelos educadores para lembrar a concepção do inconsciente estruturado como linguagem, ou seja, do inconsciente como discurso do Outro. Daí a função da linguagem à qual Lacan se refere, que remete à dimensão simbólica do significante que representa o sujeito por outro significante. Em relação à tarefa educativa, a criança aprende a estabelecer uma relação de linguagem com a pulsão, aí representada, e envolve seu gozo para que seja retornado em escala invertida do desejo. Se a educação vem de uma imposição, trata-se primeiramente de um ato simbólico, de um exercício do significante: brincar com as palavras, contando com o equívoco (Lacan, 1998). Aqui o domínio da linguagem é posto em tensão com a criatividade do sujeito. Lacan instaura uma forma de dialética do laço do sujeito com o Outro, em que o prazer se desvela nas imperfeições da linguagem. A partir disso, o educador sustenta o campo da linguagem – do Outro – de modo que o sujeito possa hospedar sua singularidade e sustentar seu desejo (Lacan, 1998). A relação do educador com a linguagem e sua função simbólica é claramente posta em evidência.

 

Função paterna e célula familiar

Lacan (1991, 2001a) define que a relação da criança com a linguagem, com o discurso, passa necessariamente por seus educadores, dentre os quais os pais estão em primeiro lugar; e insiste sobre a preponderância da estrutura familiar na formação do indivíduo. Entretanto, seria conveniente não se enganar sobre suas propostas em relação à família, que não se satisfazem com um maniqueísmo político, oscilando entre reforma e conservadorismo – precisamente nem a favor, nem contra. Ele também não desenvolve uma pretensão sociológica ou antropológica, mas, apoiado em sua experiência clínica, sustenta que o desenvolvimento da criança exige que esteja presa a um desejo que não seja anônimo (Lacan, 2001a). Essas indicações merecem ser associadas aos múltiplos comentários sobre o complexo de Édipo em Lacan. Constatamos, de modo sistemático, quando a questão do complexo é associada à da educação, que a função do pai tem um lugar particular, como "protótipo da repressão edípica" (p. 48), sob condição de nunca escorregar da metáfora, do simbólico, do semblante (Lacan, 2007) para uma versão do pai real – tomar-se realmente pelo pai (Lacan, 1998, 2013). Da célula familiar à função do pai, a educação se encontra constantemente interpelada em sua dimensão simbólica como suporte da relação do sujeito com o significante: "não há sujeito sem o significante que o funde" (Lacan, 1998, p. 118). Na falta disso, Lacan nos indica que ela conduz às portas da loucura.

 

Educação e loucura

Lacan esboça várias vezes um paralelo entre educação e loucura, apoiando-se no caso Schreber (Freud, 1954). Lembremos que o pai de Schreber era médico higienista "educacionalista", para retomar a expressão de Lacan, que insiste sobre a função metafórica do pai, e até mesmo da função educativa como suporte do discurso (Lacan, 1966, p. 518). Lacan não denuncia tanto a função do pai quanto as veleidades de domínio, enquanto o simbólico se estrutura sobre um fundo de falta, de ausência, de incompletude, para tornar-se espaço habitável para uso da criança (Lacan, 1974-1975).

 

Educar: dialética do laço do sujeito com o Outro e discurso do mestre

O estudo sistemático do corpus lacaniano situa a relação educativa como dialética do laço do sujeito com o Outro: o sujeito do inconsciente "representado por um significante para outro significante" (Lacan, 1966, p. 819), ou "significado do texto que ele não sabe" (Lacan, 2001a, p. 581), literalmente submetido à ordem da linguagem à qual ele supõe um saber sobre a verdade de seu ser, não tendo outra perspectiva a não ser se referir ao Outro, tesouro do significante, do saber, do simbólico e da lei (Lacan, 1966) para inscrever-se de modo original em uma das múltiplas formas de discurso que compõem a base do laço social. Ora, Lacan nos ensina que esse Outro, quaisquer que sejam os suportes, as figuras, é atingido por um duplo status: unitário de um lado, lugar da garantia e do desenvolvimento do significante; incompleto de outro lado, na medida em que esse Outro não se sustenta, marcado por uma falha entendida como porta aberta para o real. Como primeira consequência, esse defeito estrutural estabelece a relação educativa como entidade clínica, espaço de subversão e de composição para uso da criança. Como segunda consequência, o que vem no lugar do Outro que não existe é a promoção do discurso como novo ponto de capitonê ou o laço social como necessidade de um grampo (Miller, 1995-1996). Para a psicanálise, o laço social é antes de tudo considerado como fato de linguagem, ou modalidade singular de inscrição do sujeito na linguagem. Ele resulta do discurso entendido como "articulação de estrutura que se confirma como tudo o que existe de laço entre os seres falantes" (Lacan, 1973/1974). Lacan associa regularmente a função educativa ao discurso do mestre hegeliano que dirige, comanda e promove um amor em exercício, pelo qual a criança tem acesso à autonomia transformando-se ela mesma, transformando seu ambiente (1966, 1991, 2006, 2013). A versão lacaniana do discurso do mestre é um enigma: se repousa sobre uma imposição, produz uma dúvida, um suspense na infância que, por meio da dialética do desejo e dos mecanismos transferenciais, encontra sua solução em termos de identificação, de saber, de aprendizado e de inscrição social. O discurso do mestre estrutura uma incompletude (Lacan, 1991), um lugar de saber, que se torna praticável para a interpretação da criança, para um trabalho de composição em que este se vê levado a tornar-se o operário da beleza de sua própria vida (Foucault, 2001). O essencial do processo educativo escapa ao processo educativo, o que não reduz sua necessidade, e leva ao desenvolvimento das práticas clínicas nos diferentes campos da educação.

 

O trabalho social das concepções lacanianas da educação posto à prova

Nesta seção, nossa proposta é discutir os efeitos das concepções lacanianas da educação no campo do trabalho social a partir de dois eixos principais: (1) o manejo da transferência nas práticas sociais; (2) a ética e clínica no trabalho social1.

 

O manejo da transferência nas práticas educativas

A referência lacaniana da educação no discurso do mestre articula suposição do saber e postura do não-saber e orienta determinado manejo da transferência na relação educativa. Propomos discutir seus determinantes nas práticas sociais com base em um famoso caso clínico apresentado por Aichhorn, em 1920, para dar conta dos princípios de sua prática orientada pela psicanálise em um centro para jovens delinquentes: "em um caso de roubo dentro da instituição, explorei as circunstâncias dadas, não afetivamente, mas criando pela reflexão a situação necessária" (Aichhorn, 2005, p. 140-143). O autor recebeu um jovem de 18 anos que "por roubos perpetrados em seus colegas, havia sido expulso da escola e igualmente culpado de roubos em casa e de pessoas estranhas" (p. 140-143). Aichhorn decidiu confiar-lhe o caixa cooperativo que servia para comprar cigarro para os jovens – entre 700 e 800 coroas. Os efeitos não demoraram muito: o contador assinalou a falta de 450 coroas. Inspirado pela leitura do Mito do nascimento do herói, de Otto Rank, Aichhorn convocou o jovem com a ideia de construir

uma ação da qual ele mesmo seria o centro e que deveria desenvolver-se de tal modo que seu afeto de angústia desencadeado fosse intensificado até o intolerável; e, no momento em que a catástrofe parecesse inevitável, dar-lhe uma virada tão oposta que a angústia deveria subitamente virar emoção. A emoção provocada por esse contraste de afetos deveria levar à ou introduzir a cura (Aichhorn, 2005, p. 140-143).

Aichhorn se inspirou no princípio da catarse com a esperança de fazer do jovem o herói de um drama para o qual ele traria sua própria solução. Recebeu o jovem e pediu que o ajudasse a desempoeirar e organizar os livros em seu escritório: inventou uma mediação, uma cena passível de acolher o ato. Enquanto tiravam o pó, Aichhorn questionou sobre outros assuntos antes de chegar ao ponto, o dinheiro do cigarro. "Quanto você recebe por semana?", perguntou. "De 700 a 800 coroas", respondeu o jovem. Aichhorn continuava a arrumar. Pouco depois perguntou: "O caixa está sempre certo?" Seu interlocutor hesita: "sim". E Aichhorn replica: "ainda assim tenho que ver o caixa". O jovem ficou inquieto, pouco à vontade, mas Aichhorn não mudou de assunto e recomeçou a falar do dinheiro do cigarro.

Quando sentiu que o incômodo chegou ao máximo, pensou que era o momento de colocar o jovem diante da sua decisão: "quando acabarmos aqui, irei conferir seu caixa". Visivelmente mal diante das caixas de livros, o jovem continuou a trabalhar, tirou um livro para limpá-lo e o deixou cair. "O que você tem?", perguntou Aichhorn. "Nada", respondeu o jovem. Depois, inesperadamente: "o que falta no seu caixa?" O roubo explodiu em plena luz do dia, e o rosto do jovem portava a máscara distorcida da angústia. Ele respondeu, balbuciando: "450 coroas". Aichhorn pegou a carteira e lhe estendeu sem nem uma palavra a soma correspondente. O jovem olhou para ele perplexo, "de um modo indescritível e que quer dizer algo". Aichhorn não o deixou falar e o despediu com um sinal de mão amigável. Dez minutos mais tarde, o jovem irrompeu em seu escritório: "prenda-me", ele gritava, "eu não mereço sua ajuda, vou roubar de novo". E explodiu em soluços. Aichhorn o fez se sentar e conversou com ele. Ele não lhe fez um sermão, mas ouviu com interesse o que o jovem lhe contava sobre sua vida, sua família, sua relação com os outros e sobre o que o atormentava. A angústia cedeu à emoção à medida que o choro aumentava.

Ao final dessa troca, Aichhorn lhe entregou novamente as 450 coroas afirmando que não acreditava que ele roubaria novamente. Um ponto importante: ele não deu o dinheiro, mas pediu um reembolso progressivo, quitado dois meses depois. Por fim, o jovem permaneceu pouco tempo na instituição e encontrou emprego como contador em uma fábrica de móveis.

Observemos primeiramente que, orientado por pressupostos teóricos, Aichhorn permanece um fervoroso clínico, apostando na surpresa, no inédito, no insuportável2. Ele dá ao sujeito a chance de transformar a situação a partir de um ato que faz evento: ele confiou o caixa ao ladrão. Trata-se realmente de um ato, pois o educador inscreve um corte que opera uma diferença no processo de repetição. Aliás, Aichhorn confessa que tem uma ideia, mas não sabe exatamente o que faz. Entre o início e o fim da cena, o sujeito não é mais representado sob o mesmo significante: como ladrão, até então caracterizado por sua roupa e motivo de sua internação, endossa o status de devedor. O empréstimo de dinheiro dobra o processo inicial, insistindo sobre o enigma do desejo do mestre a partir do qual o sujeito, sustentado pela alavanca da transferência, passa pela palavra para se tornar responsável por seu sintoma e inventar outro destino. O gancho da situação transferencial cede ao deslocamento e agencia um remanejamento simbólico. A ordem significante é transtornada pelo novo uso que o sujeito faz dela, com o apoio do Outro. Função da relação educativa: acolher o sintoma, fazer dele um objeto de experimentação para o sujeito. Esse estudo clínico nos permite evidenciar os conceitos de historização, de deslocamento e de savoir-faire operando no manejo da transferência nas práticas sociais:

1. na situação transferencial, o educador é colocado no lugar de sujeito suposto fazer com a cultura, as normas, o conhecimento ou as relações sociais: aprender, compreender, falar/trocar, encontrar um lugar na periferia (Rouzel, 2003). O sujeito dirige a ele suas perguntas, suas demandas, suas queixas, seus sintomas, e a relação educativa consiste no acolhimento dessas palavras para permitir ao sujeito tornar-se responsável e lidar com elas. Apoiando-se na dinâmica da transferência, o educador permitirá ao sujeito apropriar-se de sua história e se engajar em um trabalho de composição em que ele é conduzido a falar sobre seu sofrimento, traumas de sua infância etc.

2. A consideração da transferência nas práticas sociais induz ao advento de uma dinâmica que consiste em deslocar a carga afetiva suportada pelo educador para outros objetos de investimento: expressão, criação, aprendizagem, formação, trabalho, laços sociais etc., assim como tantos representantes do campo do Outro. A transferência sobre o educador vem com uma transferência sobre a instituição, o campo do discurso, o saber e o laço social.

3. Por meio do desvio dos processos de historização e de ordenamento, o manejo da transferência nas práticas sociais visa a transmissão de certo savoir-faire do sujeito em relação a seu sintoma e do laço social (Ponnou, 2015; Rouzel, 2003). Esta tríade historização, deslocamento, savoir-faire inspira-se e faz eco à situação apresentada.

Aichhorn conta com o sintoma do sujeito: o roubo. Ele parte do campo do Outro – o interdito, a lei – e refere sua enunciação ao discurso do mestre – diretor do instituto de reeducação – para construir um espaço de mediação (a organização da biblioteca) no qual ele pode colocar em jogo seu desejo de trabalho e sua própria ignorância. O dispositivo não falta, o roubo explode em pleno dia, mas de tal forma que Aichhorn consegue transformar a tensão em intensão, apostando literalmente no jovem, abrindo assim a brecha de um o que o Outro quer de mim? O sujeito engancha. Ele volta para ver Aichhorn – relato de vida, historização, tempo ao fim do qual ele consente no deslocamento significante proposto pelo educador: do significante ladrão, sob os auspícios do qual ele se representava até então, ele se torna devedor. E esse deslocamento dá conta do tempo do desenvolvimento de um savoir-faire particular do sujeito quanto a seu gozo e sintoma: ele ocupa um cargo de contador em uma fábrica de móveis. O deslocamento de ladrão para devedor e, posteriormente, contador testemunha dos efeitos duráveis do manejo da transferência nas práticas educativas e sociais. Esse estudo também destaca o laço entre clínica psicanalítica, manejo da transferência e política do sintoma no campo do trabalho social. Com efeito, Aichhorn não se contenta em adotar uma postura clínica e conta com a supressão do sintoma, qualquer que seja seu caráter difícil e incômodo. Ao contrário, ele constrói uma prática com base no acolhimento e no trabalho do sintoma pelo próprio sujeito no enquadre da relação de ajuda.

 

A ética e clínica no trabalho social

Lacan associa o ato educativo ao discurso do mestre. Auxiliar do simbólico, intermediário da lei e da palavra e de sua estrutura humanizante, o educador é intermediário de um estado de fechamento para um melhor estado, de dentro para fora, mediando o encontro de um sujeito com o Outro, com o discurso do Outro. Ora, o discurso do mestre é um enigma: se repousa sobre uma imposição, produz uma dúvida, algo de suspense na infância que pela dialética do desejo e pelos mecanismos transferenciais encontra sua resolução em termos de identificação, de saber, de aprendizagem e de inscrição social. O discurso do mestre estrutura uma incompletude, um lugar vazio de saber, a partir do qual a interpretação da criança pode ser praticada, assim como um trabalho de composição, de tal modo que ela será levada a estabelecer seus próprios caminhos. O enigma do desejo do mestre – o que o Outro quer de mim? – conduz ao enigma do desejo do sujeito – Quem sou eu? Que sentido dar à minha vida? O laço de dominação característico do mestre encerra um lugar de exceção que, na prática educativa, é correlato à clínica. O desenvolvimento da criança exige que se coloque em jogo um desejo que não seja anônimo (Lacan, 2001a, p. 373) para respeitar seu espírito de subverter sua letra. Esse paradoxo da educação encontra sua expressão levada a uma concepção kantiana da ética, tradicionalmente indexada pelos sintagmas da ética da convicção ou da ética do dever. Com efeito, desde 1784, na Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Kant (1993a, p. 11) adverte: "o homem é um animal que, a partir do momento em que ele vive com outros indivíduos de sua espécie, precisa de um mestre". Por que o filósofo da faculdade do conhecer, do desejar, do julgar, em outras palavras, o filósofo da autonomia do sujeito insiste na necessidade de se referir à autoridade de um mestre? Pouco depois, procurando determinar os princípios da moral, Kant constrói os Fundamentos da metafísica dos costumes (1993b) a partir dos célebres imperativos categóricos:

Aja unicamente a partir da máxima graças à qual pode querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei universal (p. 34).

Aja de tal modo que trate toda a humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como um fim, nunca somente como um meio (p. 40).

Aja segundo uma máxima que possa ao mesmo tempo valer universalmente por si mesma para todo ser razoável (p. 47).

A ética do dever, em Kant, figura uma continuidade do singular para o universal, do indivíduo para a sociedade. O homem de convicção exerce sua influência na passagem do tempo, e é testemunha de sua capacidade ao cuidar das transformações do mundo. Ora, o discurso do mestre carrega em si uma cegueira: a ética da convicção produz uma incompletude, um espaço de interpretação que permite à criança sustentar sua enunciação, sua responsabilidade em relação ao Outro e ao laço social, para engajar-se em uma relação estruturante e pacificada com o saber. Em sua versão lacaniana, o mestre pretende saber o que quer o outro, sob condição de poupar a questão de sua divisão e de seu próprio desejo (Lacan, 1991). O desejo da criança articula-se com o enigma do desejo do mestre, com o vazio estrutural que ele encerra. Da ética da convicção, estabelecida no discurso simbólico do mestre, resulta uma ética do real (Zupancic, 2009) que não responde por nenhuma moral e nenhum ideal, pois ela não se refere a um objeto predeterminado, mas a um núcleo impossível no mais profundo do sujeito: se teu desejo fosse tua lei, o que poderias desejar? A ética kantiana – Faça teu dever! – conduz assim ao enigma e à vertigem do desejo – Qual? O ato educativo estabelece uma imposição que se torna um mistério, para o qual a criança deve encontrar ou inventar suas próprias soluções. Essa articulação entre ética da convicção e ética do real lembra a concepção kantiana da incompletude e perfeição humanas, em relação a qual o destino da criança não é resultado de nenhum determinismo, mas do tornar-se (Kant, 1993a). A estrutura performática do discurso do mestre tem como função primária dar crédito ao sujeito sobre a singularidade de seu ser e de sua identidade (Derrida, 2005). O "és meu filho", "és meu discípulo", procede de um ato de reconhecimento que se liga à responsabilidade do sujeito em relação ao Outro. Em sua concepção da ética da responsabilidade, Weber (1991) apresenta um homem preocupado com as consequências imputáveis a seus atos, tanto quanto possa prevê-los. Trata-se de uma ética do outro e do ambiente, talvez mais de bom grado relativa ao ethos e até mesmo ao campo da ontologia. Essa apresenta imediatamente uma vertente política e até mesmo utilitarista e instrumental, na medida em que se refere ao contexto para tomar as decisões aceitáveis pela maioria (Weber, 1991). A ética da responsabilidade se articula à ética da convicção pelo modo da ponderação, pois ela indica ao homem de paixão a necessidade de dar conta dos vieses operando no evento de seus projetos. Ela os obriga a colocar seus objetivos e finalidades a serviço dos métodos, das técnicas e dos meios passíveis de contaminá-los. Entretanto, a questão da responsabilidade sofre uma plurissignificação passível de conduzir o sujeito a uma forma de indeterminação: responsabilidade individual e coletiva, presente e passada, responsabilidade familiar, profissional, política, cívica, religiosa, ecológica, psíquica, organizacional etc., que regularmente entram em concorrência umas com as outras. A partir de então, que bandeira levar como estandarte? Tratar-se-ia de construir uma hierarquia das responsabilidades e, se for o caso, segundo quais critérios? Sustentamos que o sujeito, posto à prova pelas consequências de seus atos, não tem outra perspectiva a não ser referir-se às suas escolhas, à sua íntima convicção, a seu próprio desejo para decidir entre a massa flutuante das representações e das responsabilidades. Assim, convicção e responsabilidade são a frente e o verso de uma mesma moeda, cuja eficácia Lacan (1966) condensa assim: "de nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis" (p. 858). De que estofo vem a responsabilidade do pedagogo? Digamos logo que o objeto da relação educativa não é a criança, nem o cidadão, o saber ou a técnica, mas a própria relação, como instância de sublimação para o uso do jovem sujeito. A responsabilidade do mestre resulta de um ato de fundação, de imposição, que dá início à responsabilidade da criança. É responsável por tornar o sujeito responsável, fórmula particularmente patente no manejo da transferência nas práticas educativas e sociais, cujo objetivo é levar à responsabilidade e à criatividade do sujeito, contanto que o educador desenvolva sua eficácia a partir de uma postura do não-saber, de uma falha, favorecendo a emergência do desejo da criança, correlato ao enigma do desejo do mestre, o qual ele mesmo ignora. As concepções lacanianas de educação implicam o fato de que não é o saber que educa, ensina, instrui, mas o desejo. Clínica e ética da educação procedem do viés de um suposto-saber, de um saber que sabe que não sabe, descarregado da torpeza do poder com o apoio de uma autoridade que encadeia o desejo à sua causa. Paradoxo da transferência, o saber não está do lado da instituição, de seus representantes, mas do sujeito. Um sujeito responsável, considerado em sua globalidade, aceito em sua singularidade, e cuja palavra é preciso favorecer, valorizar. Vê-se aqui por meio de quais vieses, subvertendo o discurso do mestre, a clínica da educação tende para uma ética da responsabilidade pela construção de um sujeito que possa responder por sua relação com o saber e com os outros. O ser real do sujeito escapa incansavelmente ao poder do simbólico. Visando a emergência do desejo do sujeito, o educador ocupa um lugar de não-saber (Bataille, 1978; Lacan, 1966; Rancière, 1987) que a criança que ele acompanha poderá investir. Essa postura se declina em ter mos do não-saber quanto ao bem do outro: "o educador é um vigia, uma testemunha de que qualquer coisa que se faça em nome do bem não funciona e nunca funcionará" (Roquefort, 2003, p. 120). Ele cultiva o bem-dizer – Lacan evoca o dever do bem-dizer (Lacan, 2001a) – para responder à dificuldade de dizer o bem (Aristóteles, 1994), bem como a de um fazer que, na falta de certas precauções, faz calar. Visando a emergência do desejo do sujeito, o ato educativo procede de uma oferta de composição na qual o educador procura respeitar o estilo entendido como estética passível de fazer laço entre os homens (Roquefort, 2003). Pode-se ver aí por meio de quais vieses a ética da convicção faz apelo à criatividade da criança, pois a interpelação que ela encerra torna-se um centro ausente, um apagamento, uma evanescência – Faça teu dever! Que dever... Injunção a que a criança invente suas próprias soluções. Essa ética da criatividade estabelece a relação educativa como espaço clínico pelo desvio de uma autoridade que restitui à criança um lugar de autor, responsável pelos efeitos de discurso e de composição que ele mobiliza em sua relação com os outros e com o mundo.

 

Conclusão

Este texto mostrou os efeitos das concepções lacanianas da educação no campo do trabalho social: as dimensões da transferência e da ética induzidas pelas referências à dialética do laço do sujeito com o Outro e com o discurso do mestre constituem uma possibilidade de extrair o trabalho social das abordagens ortopédicas, messiânicas ou demiúrgicas que o atrapalham (Maisonneuve, 1972) para trazer uma nova luz ao registro da singularidade, das dimensões do encontro, do inédito e da criatividade. As concepções lacanianas da educação enfatizam o centro das práticas do trabalho social, o que faz seu cotidiano, o comum e o extraordinário da vida institucional e da relação de ajuda e de tratamento, de educação, no contrapé das preocupações de gestão que orientam regularmente os debates contemporâneos do setor. Os efeitos dessa clínica com orientação psicanalítica no campo do trabalho social fazem apelo ao prosseguimento de um trabalho de reflexão, produção e formatação – monografias, estudos de casos clínicos – necessários à transmissão e à formação, bem como ao desenvolvimento de uma política centralizada no valor humano do trabalho social.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
33 Rue François Mitterrand
87032 – Limoges – França
sebastien.ponnou@unilim.fr

Recebido em agosto/2016.
Aceito em março/2017.

 

 

NOTAS

1. As obrigações de exposição desse artigo não nos permitem discutir os desafios induzidos pelas concepções lacanianas da educação no campo do trabalho social. Pode-se ter acesso a todo esse desenvolvimento em língua francesa em Ponnou (2015) ou sob demanda endereçada ao autor.
2. O termo usado pelo autor no original foi "l'insu(pportable)". Insu é a tradução literal do inconsciente freudiano (unbewu em alemão). O jogo de palavras remete portanto à parte inconsciente e ao sentido do sintoma, a que Aichhorn dedica uma atenção especial. Como não é possível traduzir o jogo de palavras, seria preferível suprimir o termo para que este não seja contestável por razões práticas e éticas.

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