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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2018
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p483-502
DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p483-502
DOSSIÊ
Feminilidade e a sistematização kleiniana: o corpo materno como palco da gênese psíquica
Femininity and kleinian systematization: the mother's body as the stage of psychic genesis
Feminidad y sistematización kleiniana: el cuerpo de la madre como escenario de la génesis psíquica
Marcos Leandro KlipanI
IProfessor adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil.
RESUMO
Propomos investigar o tema da feminilidade presente no livro A psicanálise de crianças de Melanie Klein. Nossa concepção é a de que essa autora invertera a lógica clássica da constituição subjetiva do mundo ocidental: a de que o falo/masculino seria o ponto de partida para as diferenciações sexuais. A noção kleiniana de feminilidade que utilizaremos como lente para nossa leitura dessa obra nos permitiria, em termos epistemológicos, compreender melhor como se fundamentou a concepção dessa autora sobre o materno e a possibilidade de suas revisões sobre o complexo de Édipo e a proposição de novos conceitos.
Descritores: psicanálise; Melanie Klein; feminilidade.
ABSTRACT
This study aims at investigating the theme referred to as femininity as shown in the book The psychoanalysis of children, by Melanie Klein. The perspective herein is that this author transposes the classical logic of the subjective constitution of the Western world, i.e., that the phallus/masculine would be the starting point for sexual differentiation. In epistemological terms, the Kleinian notion of femininity, used in this investigation as a lens for reading such work, shall allow us to better understand the basis of the author's conception of mother, in addition to revising the Oedipus complex and the proposition of new concepts.
Index terms: psychoanalysis; Melanie Klein; femininity.
RESUMEN
El presente estudio tiene como objetivo investigar el tema de la feminidad, que se presenta en el libro El psicoanálisis de niños de Melanie Klein. La concepción aquí es que la autora invierte la lógica clásica de la constitución subjetiva del mundo occidental, es decir, que el falo/masculino sería el punto de partida para las diferenciaciones sexuales. En términos epistemológicos, la noción kleiniana de feminidad utilizada en esta investigación nos permitirá comprender mejor cómo se basó la concepción de la autora sobre lo materno, además de revisar el complejo de Edipo y la proposición de nuevos conceptos.
Palabras clave: psicoanálisis; Melanie Klein; feminidad.
Feminilidade e a sistematização kleiniana: o corpo materno como palco da gênese psíquica
Neste artigo1, iremos nos dedicar a uma releitura do livro A psicanálise de crianças (Klein, 1932/1997) e nosso trabalho pode ser entendido como uma historiografia de abordagem epistemológica (Abrão, 2007).
Dentro dessa proposta, buscamos refletir sobre nosso tema levando em conta sempre as condições e o contexto em que foi construído. Especialmente no caso da obra kleiniana, esse modelo de pesquisa visa superar aquele a-historicismo deformante em função de como os textos kleinianos vinham a público no Brasil durante muitas décadas do século passado , como nos apontam Elias Barros (1995) e Elias E. M. Barros e Elizabeth Barros (1988), e a dificuldade notória na compreensão da escrita de Klein, que se assentaria, como nos indicam esses autores, pelo estilo que prima pela crueza na apresentação das fantasias infantis.
A escolha de nos dedicarmos exclusivamente a apenas um texto de Klein se refere à importância epistemológica que ele apresenta no conjunto da obra dessa autora. Tal valor não diz respeito apenas ao conteúdo original que A psicanálise de crianças conseguiu trazer, mas, principalmente, à sistematização que esse livro empregou em sua construção. Organizou todo um pensamento muito produtivo, mas ainda bastante desatado dessa autora; seja porque suas produções aconteciam predominantemente em artigos e comunicações em eventos psicanalíticos ou simplesmente porque ela ainda estava desenvolvendo as bases de seu pensamento. A organização de um livro exige, inevitavelmente, uma exploração e exposição de maior fôlego teórico: é preciso mergulhar profundamente nos temas e, com isso, apresentar maior consistência teórica para sustentá-los. Tendo conseguido isso, entendemos que Klein conquistava definitivamente sua residência na Inglaterra, ocorrida poucos anos antes do início da escrita desse livro icônico.
O tema da feminilidade, como defendem Birman (1999, 2001) e Arán (2000, 2002, 2006, 2009)2, descentraria o masculino do eixo de estruturação do sujeito tal como Freud teria sustentado na maior parte de sua obra. Como é notório, Freud teve uma posição dicotômica e contraditória em relação ao feminino: inventou um espaço inovador para a escuta do desejo e da singularidade presente em suas pacientes e, ao mesmo tempo, teorizou o feminino a partir do estatuto fálico presente em nosso mundo ocidental desde a Antiguidade. O resultado problemático mais visível dessa dicotomia é o quanto o feminino se adequa mal à proposta do complexo de Édipo. Todavia, ao final de sua obra, Freud (1937/1996) abriu uma nova trilha para outras concepções de subjetivação ao apontar que haveria algo muito importante na relação do bebê feminino com sua mãe. Trata-se apenas de um apontamento, não de uma reflexão bem desenvolvida. Contudo, a importância desse apontamento se refere ao momento tardio em que essa preocupação freudiana ainda insistia em aparecer: de que há algo pré-edipiano e feminino que precisamos averiguar melhor. Do nosso ponto de vista, tanto essa quanto outras noções freudianas mais tardias seriam o ponto de partida das teorizações kleinianas. Nesse sentido, a posição assumida por essa autora, bem como o trabalho psicanalítico diretamente realizado com crianças, teriam levado Klein a explorar condições psíquicas muito mais primitivas, o que a conduziu a centralizar na mãe o palco mais constante de suas teorizações.
Em termos característicos mais explícitos, A psicanálise de crianças se divide em duas partes: a primeira, com sete capítulos, se dedica a apresentar e sistematizar a técnica de psicanálise com sujeitos antes da vida adulta; a ênfase é a criança, mas a autora também apresenta e discute o trabalho psicanalítico no período de latência e da adolescência. A segunda parte, com cinco capítulos, trata como o próprio nome dessa parte demarca sobre o efeito das ansiedades mais arcaicas no desenvolvimento da criança.
Na primeira parte, Klein retoma e aprofunda textos anteriormente publicados em forma de artigos; já na segunda parte, Klein apresenta suas mais recentes reflexões clínicas e as teoriza a partir de seus novos pontos de vista. Como bem destacam Cintra e Figueiredo (2004), Klipan (2009) e Klipan e Melo Neto (2012), há um predomínio dos aspectos mais destrutivos do psiquismo, especialmente pelo destaque que a neurose obsessiva apresenta nos exemplos clínicos trazidos pela autora para ilustrar as angústias arcaicas que expressavam a dinâmica mental em seu período mais primitivo. Isso se modifica ao acompanharmos a autora, por exemplo, em seus textos posteriores a 1935, nos quais o amor e a pulsão de vida se mostram fundamentais para a estruturação egoica.
A característica principal de A psicanálise de crianças pode ser destacada pela intensa luta da criança contra suas mais radicais ansiedades e culpas vindas de fantasias que evidenciavam um pesado fardo caso das crianças obsessivas atendidas por Klein , o que só poderia existir como derivado de um superego já atuante, porém muito mais sádico do que Freud havia concebido. Essa característica não era exclusiva como efeito da patologia; apenas intensificava aquilo que estava presente em todas as crianças, tal como a Psicanálise percebeu desde seu início: que a diferença entre "normalidade" e patologia é quantitativa e não qualitativa.
Logo no primeiro capítulo do livro, Melanie Klein retoma e aprofunda um artigo publicado em 1926 sob o título de "Os princípios psicológicos da análise de crianças pequenas" (Klein, 1926/1996). Em nossa compreensão, esse aprofundamento teórico se faz, principalmente, pela nova perspectiva sobre a dinâmica psíquica que passa a enfatizar a intensa interação entre as representações psíquicas da criança sobre a mãe em seus planos externo e interno (inconsciente). Ou seja, as noções de mãe real e mãe introjetada passam, cada vez mais, a se tornarem imprescindíveis nas explanações teóricas dessa autora. A falta de uma boa integração entre esses dois planos, através de diversos mecanismos de defesa utilizados de forma patológica, levaria a criança a não se permitir como no caso clínico da pequena Rita, de 2 anos e 9 meses estar presente na própria cena de suas fantasias; sendo assim, a criança pequena ficaria impedida de reconhecer seus próprios desejos ou tratá-los de forma lúdica. No caso dessa criança, apesar de possuir alguns brinquedos extremamente ligados afetivamente a ela, não conseguia, por exemplo, se colocar no lugar de mãe de uma boneca com a qual tanto brincava. Era como se ela estivesse proibida por sua própria mãe (interna) de ousar se posicionar em seu lugar: "A proibição, contudo, não provinha de sua mãe real, e sim de uma mãe introjetada que a tratava com muito mais severidade e crueldade do que a mãe real jamais a tratara" (Klein, 1932/1997, p. 26).
Além desse exemplo, de uma severa neurose obsessiva encontrada em Rita, o caso da menina de seis anos, Erna, também é muito ilustrativo quanto a essa dinâmica entre o real e o introjetado. A sua incapacidade de se afastar de sua mãe e ir brincar com outras crianças e, principalmente, sua intensa dificuldade em personificar brincadeiras ao longo de suas sessões analíticas eram, segundo Klein, derivações de sua impossibilidade de articular bem os planos interno e externo a partir de suas fantasias. A vida se tornara tão pesada para essa garota que, a partir de sua própria percepção, um desgosto generalizado pela própria vida a acompanhava e marcava sua severa neurose. Em seu caso, além disso, esse sadismo lhe impingia uma genitalidade bastante precoce e descontextualizada, pois a menina tinha uma forte compulsão em se masturbar, mesmo na presença de outras pessoas.
Apesar dessas características que derivavam dos casos patologicamente mais severos e da tendência infantil de expressar os conteúdos inconscientes através de atuações acting out e, principalmente, acting in , Klein empreendia um trabalho psicanalítico muito sensível, tal como Julia Kristeva (2002) descreve:
No coração desse universo destruidor, o analista faz uma aposta: a evolução do ego, no curso normal do desenvolvimento, e a cura analítica, quando tem êxito, permitem a perlaboração das angústias destruidoras e das fantasias sádicas. O ego se aprofunda por meio da perlaboração depressiva. A capacidade de cumprir o luto do objeto perdido substitui o sadismo inicial pela dor psíquica: a nostalgia e a culpabilidade formariam a face tranquilizadora de Tânatos. (p. 107)
Somado a isso que Kristeva destacou nesse excerto, podemos acrescer que o sadismo não apenas começa a ser superado, mas, também, modificado pela força que o amor, por meio da introjeção do bom objeto, passa a exercer na personalidade total do sujeito, com um ponto central em uma espécie de intersecção do ego com outras instâncias inconscientes que lhe permitiriam articulações alteritárias reconhecer a si e ao outro e representam aquilo que estamos entendendo e nomeando de feminilidade. Esse ponto de intersecção é aquilo que chamamos de um registro além do falo, uma vez que essa cena se faz a partir de outro universo continente que, como compreende Klein, se refere ao interior do corpo da mãe.
O resultado da análise para a criança, como percebe a autora (Klein, 1932/1997), é uma maior e mais flexível capacidade crítica sobre si e sobre o exterior, o que lhe permitiria melhor competência lúdica refletida, por exemplo, em um aumento do próprio humor e da capacidade de sublimação.
Todavia, esses processos, como a própria autora reconhece, são graduais e acontecem como resultado do próprio desenvolvimento do ego e não sua precondição. Um exemplo bem marcante sobre isso em A psicanálise de crianças pode ser encontrado no caso da garota Ruth, de quatro anos e três meses, também com uma extrema e ambivalente fixação em sua mãe. À medida que sua análise avançava, iam ficando evidentes os seus intensos sentimentos de inveja e ódio contra ela. Isso porque, em suas fantasias, a menina acreditava que sua mãe havia incorporado o pênis do pai durante o coito. As fantasias dessa criança iam em direção ao desejo de invadir o interior da mãe e roubar-lhe o pênis e todos os bebês que sua genitora possuía e lhe negava por puro sadismo (projetado). Tal como a pequena Erna, essa criança vivia as ambivalências de uma realidade mal integrada entre as imagos de uma mãe má e uma mãe boa, o que lhe impedia uma aproximação satisfatória com sua mãe real e, consequentemente, uma relação qualitativamente melhor com esta.
Sobre esse fenômeno das fantasias infantis, podemos perceber que, quanto mais profundamente ele era investigado por Klein, mais a autora remetia-o à cena primária e ao que reconhecemos como o desamparo existente na condição da subjetivação da feminilidade, na qual um universo de objetos bizarros circulam nessas fantasias e a (suposta) garantia fálica ainda não se petrificou. Desta forma, concordando com Freud em "Inibições, sintomas e ansiedade" (1926/1996), a autora retoma o medo que as meninas teriam em perder o amor; algo semelhante ao medo dos meninos com relação à castração:
O medo de ficar só, de ser abandonada pela mãe, aparece muito claramente no material das análises de meninas pequenas que eu citei. Mas esse medo, creio, tem uma origem profunda. Está baseado nos impulsos agressivos da criança contra a mãe e nos seus desejos de matar a mãe e de roubá-las, desejos oriundos dos estágios iniciais do seu conflito edípico. Esses impulsos geram não apenas ansiedade ou medo de ser atacada pela mãe, como também medo de que a mãe a abandone ou morra. (Klein, 1932/1997, p. 51)
Tal sentimento acometia constantemente a já citada paciente Erna. Essa menina, como Klein a percebia, "Sofria de depressões graves que descrevia dizendo: 'Tem alguma coisa na vida que eu não gosto!'" (Klein 1932/1997, p. 55). Segundo a autora, o fato de a garota perceber seu sofrimento e chegar a pedir ajuda, apesar da penúria dessa condição, foi muito favorável para todo o tratamento. A retomada desse caso, identificada anteriormente em nosso trabalho, já vinha aparecendo nos escritos de Klein desde 1924, no artigo "Extrato da análise de uma neurose obsessiva numa criança de seis anos". Tal artigo se aprofunda na articulação que Klein faz do sadismo vivido pela menina em suas fantasias, interligando, como efeito desse sadismo, um caráter bastante paranoide. Também nesse caso, o palco da cena é o interior do corpo da mãe e todo o mal projetado pela menina para destruir esse interior invejado.
Além da temática sobre o superego e o complexo de Édipo contidos no oitavo capítulo de A psicanálise de crianças, é possível acompanharmos a autora invertendo a lógica fálica que toma o sujeito masculino como modelo de subjetivação. Essa inversão viria contida junto à mudança de perspectiva com relação a essas duas clássicas temáticas da Psicanálise que, desde seu artigo de 1928, "Estágios iniciais do complexo de edipiano" (Klein, 1928/1996), enunciava uma mudança conceitual que transformava a lógica fálica de nossa cultura ocidental. Vejamos como a autora reflete isso em 1932:
Penso que a razão pela qual o menino tem nas camadas mais profundas de sua mente um medo tão tremendo da mãe como castradora, e pela qual ele abriga a ideia tão intimamente associada com esse medo da 'mulher com pênis'; é que ele tem medo dela como uma pessoa cujo corpo contém o pênis do pai; desse modo, o que ele teme em última instância é o pênis do pai incorporado à mãe. (Klein, 1932/1997, p. 153)
Por essa perspectiva, o pênis ou sua representação fálica estaria contido em uma dimensão maior, o interior da mãe. Apesar da autora ainda buscar mostrar que haveria um terror maior dentro do corpo da mãe, já ficava explícito que ela seria o continente. O terror, na verdade, derivaria dessas combinações bizarras (fantasia dos pais combinados), típicas para a condição psíquica de um bebê, onde a diferenciação eu/não-eu ainda não teria sido totalmente instaurada. É exatamente nesse momento que a instância do superego começaria a se constituir.
Boa parte desse oitavo capítulo é uma retomada daquele artigo de 1928. Contudo, no livro, publicado quatro anos depois, Klein insiste mais na força dos impulsos de ódio, derivados da pulsão de morte, como ponto original do superego primitivo e do complexo de Édipo. Para a autora, não apenas as tendências incestuosas dariam origem ao nosso sentimento de culpa, mas o próprio horror ao incesto, representando a intensidade máxima das pulsões sexuais. Aqui, poderíamos localizar uma contradição: se é o auge de uma intensidade sexual que criaria o superego, qual sua relação com as pulsões destrutivas ou pulsões de morte? Os desejos de atacar, de esvaziar, de sugar tudo e de retalhar tão presentes nas fantasias infantis , apesar da conotação agressiva, seriam de natureza sexual. O contrainvestimento dessa agressividade, em uma espécie de lei de talião como já tratamos em outro trabalho (Klipan, 2009; Klipan & Melo Neto, 2012) traria algo além do princípio do prazer. A forma extrema de defesa contra o colapso que se anunciava seria através de um desligamento de toda a forma de energia circulante no aparelho psíquico. Isso seria o predomínio da pulsão de morte e é justamente contra isso que o psiquismo travaria uma luta inicial bastante árdua. Essa é a noção kleiniana de infantil que é reconhecida em A psicanálise de crianças (Klein, 1932/1997).
Mas, não sucumbindo às forças desintegradoras da pulsão de morte, o que restaria ao psiquismo para defender-se contra essa instância ameaçadora que se instaurou como superego? Entrar na triangulação edipiana; estrutura que nossa cultura ocidental criou como uma via de subjetivação e que, na Modernidade, se radicalizou em seu modelo de família nuclear burguesa (Zaretsky, 2006).
Então, em nossa leitura, o superego seria o ápice de um sexual sem ordem, no qual um psiquismo ainda incipiente não suportaria tamanha carga de excitação e aquilo que era da ordem do prazer se tornaria dor, naquele sentido que Freud já pensava desde a época de seu "Projeto para uma psicologia científica" (1895/1996). A triangulação edipiana seria uma maneira de, no reconhecimento de mais um outro, retirar a criança de uma relação simbiótica anterior. Nesse sentido, é interessante ver a autora retomando a noção de pulsão epistemofílica (Wisstrieb) como um impulso do sujeito em busca de seus objetos de ligação; algo que a autora já insistia desde seus primeiros textos na década de 1920 (Klipan, 2015; Klipan, no prelo). Nesse caso, essa pulsão levaria a criança a buscar no pênis do pai uma via alternativa de satisfação menos ameaçadora que o objeto original, a mãe. Entendemos que a grande contribuição de Klein, em 1932, foi deixar bem claro que esse segundo objeto seria, primeiramente, buscado no interior da própria mãe. Apenas se a criança tivesse uma boa relação com esse cenário original que se faz pelo corpo da mãe é que ela conseguiria, de fato, ascender a um verdadeiro e bom relacionamento com esses objetos secundários.
O que queremos dizer é que o pai, ou mesmo a mãe real, seriam secundários nessa condição extremamente primitiva de constituição psíquica. Somente a partir dessa condição de feminilidade que conjuga alteridade, impulso de conhecer e ser reconhecido pelo outro (Klipan, 2009; Klipan & Melo Neto, 2012) é que o pequeno sujeito superaria seus lutos de passagem do princípio do prazer para a realidade e não decairia, por exemplo, em uma embotada e triste melancolia. Para Klein, todos os mecanismos de defesa levariam a criança a não desenvolver aquilo que evidenciaria uma rachadura no ego, representada, por exemplo, pela psicose. Os sintomas, na primeira clínica freudiana3, seriam tentativas de satisfação frente às frustrações da realidade. A noção de sintoma, na segunda clínica, que é de onde entendemos que Klein parte seu trabalho, se referiria a algo que não conseguiu ascender a um conflito como o de um sintoma; pelo menos em sua forma clássica compreendida até ali. É então que percebemos, como correlato da compreensão teórica e técnica de Klein, o grande predomínio de uma transferência negativa nos seus tratamentos, algo diferente dos enamoramentos tão comuns nos casos clínicos freudianos.
Lado a lado com a polaridade da pulsão de vida e da pulsão de morte, podemos, creio, situar a interação delas como um fato fundamental nos processos dinâmicos da mente. Existe um vínculo indissociável entre a libido e as tendências destrutivas que coloca a primeira em grande medida sob o poder das últimas. Mas o círculo vicioso dominado pela pulsão de morte, no qual a agressividade da origem à ansiedade e a ansiedade reforça a agressividade, pode ser rompido pelas forças libidinais quando estas se fortalecem; nos estágios iniciais do desenvolvimento, a pulsão de vida tem que exercer o seu poder ao máximo a fim de manter-se contra a pulsão de morte. Mas esta mesma necessidade estimula o desenvolvimento sexual. (Klein, 1932/1997, p. 170)
Isso se daria, segundo Klein, pela introjeção de uma mãe bondosa, a qual seria a representação da superação daquela ameaça desintegradora que tratamos anteriormente. Para a autora, nesse momento de sua obra haveria um equacionamento de pênis e seio, sendo que o impulso em conhecer e ser reconhecido pela mãe se daria através do interior do seu corpo.
A partir disso, entendemos que esse palco era inaugural para a construção dos conceitos kleinianos das posições. Isso porque, páginas à frente dessa última citação, a autora fala explicitamente em "posições libidinais" (Klein, 1932/1997, p. 183) e das regressões e flutuações existentes nelas, que seriam a característica dos estágios mais arcaicos do desenvolvimento psíquico. A dinâmica das fantasias encontradas nas crianças atendidas começava a pressupor, então, algo mais flexível que os conceitos de fases libidinais propostas pela Psicanálise até aquele momento.
Essa introjeção, então, capacitaria a criança com aquilo que estamos considerando como feminilidade. Exemplo maior dessa expressão seria o brincar. Isso porque, "Através do brincar, a criança transforma a experiência que ela sofreu passivamente em uma experiência ativa e transforma o desprazer em prazer, dando à sua experiência originalmente desagradável um final feliz" (Klein, 1932/1996, p. 196). Mas não só isso, pois a criança também ". . . supera a realidade penosa, como, ao mesmo tempo, a usa para controlar seus medos pulsionais e perigos internos, projetando no mundo externo" (Klein, 1932/1996, p. 196-197).
Foi justamente essa noção kleiniana que nos fez ter a intenção de articulá-la à proposta da noção de feminilidade de Joel Arán, pois entendemos que existe uma semelhança que mereceria diálogo. Como destaca Arán (2002), o jogo vai além da ruptura com o desamparo originário, mas pode ser considerado ademais de uma mediação uma verdadeira transformação da pulsão. Nesse sentido, estaríamos nos referindo ao ponto mais elementar do que também é chamado de simbolização, que operaria um processo de transformação e não de separação e/ou corte, como é típico dos mecanismos de defesa clássicos, como o recalcamento. Como faces da mesma moeda, a criança estaria sempre experimentando o externo e o interno, de forma indissociável. A brincadeira, assim como o trabalho na vida do adulto, tem a capacidade de transformar os objetos externos e, sem o sujeito se dar totalmente conta disso, também se transforma junto a eles. Haveria, então, algo de erógeno no desamparo. A feminilidade, como reflete Birman (1999), é a face criativa que permite ao sujeito se reinventar.
Exemplo bem marcado do que estamos nos referindo, com relação à positividade da feminilidade, aparece em uma nota de rodapé:
Em muitas das suas sublimações, particularmente seus esforços intelectuais e artísticos, o menino faz uso extenso do modo feminino de dominar a ansiedade. Ele emprega livros e trabalho, em seu significado de corpos, fertilidade, criança etc., como uma refutação da destruição do seu corpo que, na posição feminina, ele espera vir das mãos da mãe, que é sua rival. (Klein, 1932/1997, p. 209)
Essa nota vem a complementar uma reflexão de Klein sobre as ansiedades arcaicas no desenvolvimento do ego do menino, tema presente no décimo capítulo desse livro. Em tal teorização, encontramos o conceito de reparação sendo construído e aparecendo pela primeira vez a partir da noção de restituição. No caso específico da nota, a autora se refere à superação por parte do menino de seu temor pela castração e o reconhecimento de suas potências. Essa superação promove o declínio do sentimento de culpa, algo que, se não superado, inviabilizaria a capacidade sublimatória típica das neuroses e, no caso das neuroses infantis, as suas inibições intelectuais. Como destaca Petot (1991), a construção do conceito do mecanismo de reparação tem como fator desencadeante a culpa e não a ansiedade, como no caso do superego.
Um exemplo feminino que traremos a seguir, diferentemente do masculino, coloca as mulheres com uma intimidade maior com o corpo.
Com algumas mulheres, pude estabelecer o fato de que quando elas terminam sua toalete matinal, têm um sentimento de frescor e de energia em comparação com o estado de espírito anterior de depressão. Lavar-se e vestir-se significam para elas uma restauração de muitas maneiras. (Klein, 1932/1997, p. 210)
Quando acompanhamos essa relação do sujeito masculino com seu corpo, a autora percebe que essa dinâmica tende a ser sempre mais racionalizada. A subjetivação feminina, então, se manteria mais diretamente ligada a sua fonte corporal e, talvez por isso, a condição feminina em ter um especial cuidado com seu próprio corpo ainda muito frequente na atualidade, se comparada ao contexto masculino. Nesse sentido, concordamos com a hipótese de Kristeva (2002) de que haveria uma espécie de atração feminina pelo arcaico, por aquilo que, psiquicamente, representa o primário e sua relação com o orgânico. Essa seria uma marca tipicamente feminina na Psicanálise e não:
apanágio apenas de Melanie e seus discípulos. Na história da psicanálise, numerosos terapeutas mulheres insistiram no impacto da experiência orgânica sobre a vida psíquica: de Eugènie Sokolnicka, passando por Marie Bonaparte, para citar só aquelas que se tornaram célebres na França, às modernas especialistas em psicossomática. (Kristeva, 2002, p. 175)
Os dois capítulos seguintes e restantes de A psicanálise de crianças se dedicam a continuar tratando sobre o tema da ansiedade arcaica, porém, com ênfase no desenvolvimento específico da menina (capítulo 11) e do menino (capítulo 12). Apesar de nosso ponto de vista conceber que a feminilidade é uma condição subjetiva que pode e deve estar presente em ambos os sexos e que permanece, mesmo que recalcada, na pluralidade de gêneros que possam existir a partir dos conflitos e destinos derivados da sexuação, optamos por dividir aqui as nossas reflexões sobre essa parte final do livro de Klein em duas partes para cada uma delas tratar a seguir a mesma divisão escolhida por Klein. Comecemos por sua compreensão sobre a menina.
O desenvolvimento da menina
Antes de iniciarmos essa reflexão, é importante destacar aquilo que Petot (1991) diz sobre o percurso libidinal e suas decorrências sobre a menina: a tese kleiniana sobre o superego e as implicações deste para o conflito edipiano se impuseram a partir da clínica, ou seja, não é uma construção que se fez a partir de um problema teórico inicial, mas um contraste entre teoria e realidade encontrada. Além disso, é imprescindível apontar que o superego primitivo e o Édipo arcaico foram percebidos inicialmente em meninas para, só depois, serem localizados e discutidos em meninos. Isso imprimiu "a revisão completa da teoria freudiana da sexualidade feminina, a reinterpretação das manifestações da inveja do pênis e o reconhecimento de um complexo de feminilidade do menino, simétrico ao complexo de masculinidade da menina" (Petot, 1991, p. 121).
Comecemos, então, por acompanhar essas reflexões no texto de Klein:
Como resultado das frustrações orais que ela vive com a mãe, a menina se afasta desta e toma o pênis do pai como seu objeto de satisfação. Esse desejo cria uma pressão para que ela dê novos e importantes passos no seu desenvolvimento. Ela desenvolve fantasias da mãe que introduz o pênis do seu pai em seu corpo e que dá a ele o seio; e essas fantasias formam o núcleo das teorias sexuais arcaicas que despertam sentimentos de ódio nela quando é frustrada por ambos os pais. (Klein, 1932/1997, p. 213-214)
o que ela primariamente quer não é possuir um pênis que seja seu como um atributo de masculinidade, e sim incorporar o pênis do pai como um objeto de satisfação oral. (Klein, 1932/1996, p. 215; grifos nossos)
É interessante notarmos a teorização que a autora faz com respeito à interação entre os impulsos destrutivos e libidinais. Vimos que essa noção já estava muito presente em seu pensamento ao final da década de 1920. A ideia de que esses campos pulsionais sempre se dinamizam de forma interativa e não polarizada, faz com que a autora retome o conceito de "afânise", de Enest Jones (1927 citado por Klein, 1932/1997). A retomada desse conceito leva a autora a reconhecer que, para a subjetivação feminina, existiria, desde muito cedo, um prazer genital precoce, o qual seria sentido como uma espécie de salvaguarda contra os impulsos agressivos e a ameaça de perder essa capacidade de alcançar a satisfação libidinal passaria a atuar, de forma muito semelhante, ao medo de castração nos meninos. A afânise, então, seria essa ameaça da perda da capacidade de obtenção de prazeres libidinais, uma espécie de pena de talião imposta pelo superego e sentida pelo ego (eu) como culpa.
Se Freud chamou a atenção para o temor feminino da perda do amor algo que também ameaçaria os meninos , podemos ver, em Jones e Klein, algo mais primitivo do que o reconhecimento da perda do objeto amoroso. Todavia, seria justamente a introjeção do objeto amoroso a condição necessária para a ascensão do sujeito (feminino e/ou masculino) para um tipo de relação mais integralizada e menos sádica.
Além dessa característica de encontrar satisfações libidinais como uma salvaguarda contra o sadismo, a capacidade de reparar a mãe que fora estragada pela projeção do sadismo para aplacar a culpa parece ser uma marca da feminilidade que permite ao ego (eu) sua integração. Klein cita exemplos de brincadeiras de meninas que, frequentemente, se expressam através do conserto de roupinhas de bonecas ou livros. Nesse sentido, as meninas precisariam mais frequentemente se apoiar nesse mecanismo, se comparada aos meninos. Isso porque, diferentemente da realidade do corpo masculino, que teria a evidência do próprio pênis (Birman, 1999, 2001), o sujeito feminino não teria esse tipo de auxílio contra a ansiedade de sua posição feminina. Assim, Klein entende que a possibilidade de constatar a presença do pênis, para os meninos funcionaria como uma forma de aplacar a ansiedade e as fantasias contra os estragos no próprio corpo derivados de seu próprio sadismo contra o corpo da mãe.
nem mesmo a estrutura do seu corpo lhe permite qualquer possibilidade de saber qual é o verdadeiro estado de coisas dentro dela. É essa incapacidade de saber o que quer que seja sobre a sua condição que agrava o que, na minha opinião, é o medo mais profundo da menina a saber, que o interior do seu corpo foi danificado ou destruído e que ela não tem nenhuma criança ou só possui crianças danificadas. (Klein, 1932/1997, p. 228)
Ao mesmo tempo que Klein reflete sobre essa relação da menina com seu corpo, a autora também reconhece que é necessário que permaneça uma parte da posição masculina na menina para que ela possa desenvolver sua capacidade de fazer restituição à mãe, ou seja, para que a menina desenvolva sua capacidade de reparação que, como estamos refletindo, é uma das extensões da feminilidade: "Devemos agora examinar mais de perto por que é que em alguns casos a posição masculina e a posse de um pênis são uma condição indispensável, sem a qual a menina não pode fazer restituição à mãe" (Klein, 1932/1997, p. 233; grifos nossos).
Vejamos que, apesar de Klein fazer uma aproximação do masculino com o sentido freudiano (Freud, 1908/1996, 1913/1996, 1923/1996), que o ligava ao que seria ativo uma herança da Antiguidade, como bem discute Birman (1999, 2001) , a referência já não é mais o masculino como o eixo estruturante, senão o feminino, ou seja, a mãe.
É certo que tanto nas meninas quanto nos meninos é necessária a existência dessa capacidade reparatória para que possa existir uma boa integração egoica e, consequentemente, o desenvolvimento daquilo que nesse texto de 1932 começava a se manifestar com mais clareza: a capacidade do amor como a força integradora do ego e, ao mesmo tempo, ponto de articulações alteritárias. Todavia, diferentemente de Freud (1930/1996), que em período muito próximo havia identificado na mulher uma capacidade menor para se ligar a esse tipo de afeto que ata o laço social com exceção de sua relação com seu filho , Melanie Klein sustentava a perspectiva de que a mulher teria uma capacidade maior para o amor, pelo menos pela perspectiva de sua flexibilidade. Como é possível acompanharmos em textos posteriores ao que estamos discutindo neste nosso trabalho, a autora insistirá cada vez mais nessa concepção, a qual é realmente o oposto da teorização de Freud.
Klein ainda retoma a discussão sobre a reparação que pode ser entendida como raiz das sublimações tipicamente femininas. Os meninos, como nos aponta a autora, também têm a fantasia de possuir crianças em seu interior, sendo este confundido e quanto mais no início da vida indiferenciado com o da mãe. Porém, essas fantasias acabam por se deslocar e se concentrar nas preocupações com o pênis. Especialmente pela força cultural que essa dinâmica imprime enquanto registro fálico, o universo masculino se situaria, assim, muito mais racionalizado se comparado ao feminino, que permanece tendo no seu interior um campo de contínuas re-subjetivações.
Assim, enquanto no homem é o ego e, com ele, relações com a realidade que na maior parte do tempo tomam a dianteira, de modo que sua natureza como um todo é mais objetiva e prosaica, na mulher é o inconsciente que é a força dominante. No caso dela, não menos que no dele, a qualidade de suas conquistas dependerá da qualidade do ego, mas adquirirão o caráter especificamente feminino de intuitividade e subjetividade a partir do fato de que o ego da mulher está submetido a um espírito interno amado. (Klein, 1932/1997, p. 253)
A autora ainda destaca o quanto dessa capacidade reparativa estaria baseada nas primitivas relações da menina e dos meninos com sua mãe. Entretanto, é interessante acompanhar a importância que a autora dá, especialmente no campo feminino, para os aspectos mais sensíveis, afetivos e inconscientes.
A autora finaliza sua perspectiva sobre o campo feminino compreendendo que a menina se defenderia muito mais de sua condição feminina por conta do medo da mãe do que propriamente por tendências masculinas. Isso, na perspectiva kleiniana, significa diferir de Freud, que acreditava que o apego da menina por sua mãe ocorreria antes da situação edipiana. Essa condição da menina e sua feminilidade, no sentido que empregamos em nossas reflexões, surgiria como uma via ao encontro de e, ao mesmo tempo, de defesa perante o outro que começa a ser reconhecido. Tal reconhecimento levaria à necessária entrada no princípio da realidade, ou seja, além da aquisição de todas as exigências necessárias dessa condição humana, a pequena criança necessitaria lidar com uma nova qualidade afetiva: a ansiedade da ameaça da perda vejamos quão próximo estamos da construção do conceito da posição depressiva. No caso da menina, haveria uma dupla ameaça: a de perder a mãe e, ao mesmo tempo, da criança destruir o interior do corpo da mãe, que passou a ser reconhecido como o local da gênese da bondade e de geração da vida.
O desenvolvimento do menino
Se, para a menina, a raiz de sua constituição subjetiva se dá na relação com o interior do corpo da mãe e, depois, se estende para o interior do seu próprio corpo, marcando assim a sua lógica de fantasias inconscientes e de sua realidade psíquica; os meninos têm destinos diferentes, como demonstra Klein. Apesar de também terem na relação com a mãe a base de suas realidades psíquicas, muito cedo eles investem no pênis e na sua relação com esse órgão o predomínio da lógica de suas fantasias (Kristeva, 2002). No entanto, como afirmamos anteriormente, a feminilidade é função subjetiva de muita importância para os meninos, por isso a necessidade de discuti-la também no contexto masculino.
Apesar dessa característica, o encontro do menino com o pênis se faz no interior do corpo da mãe e, como isso, essa relação que permanecerá a partir daí terá sempre uma marca desse local originário. A autora começa o capítulo XII de A psicanálise de crianças descrevendo uma fase feminina nos meninos, aprofundando o que já havia apresentado em seu texto, quatro anos antes, sobre os estágios iniciais do Édipo (Klein, 1928/1996).
Segundo a autora (1932/1997, p. 258), "nesta fase, o menino tem uma fixação oral de sugar o pênis do pai, do mesmo modo que a menina tem". Nesse sentido e em outros apontamentos logo no início desse capítulo, a autora deixa explícito que o menino seguiria uma linha de desenvolvimento semelhante ao da menina.
Na fantasia do menino, a mãe incorporaria o pênis do pai dentro de si e, a partir disso, apresentá-lo-ia para o menino. Em primeiro momento, o menino conheceria o pênis dentro da mãe para, somente depois, conhecer o seu próprio. O pênis introjetado seria a imago do próprio pênis e, de início, teria uma marca oral nesse desejo de posse e de conhecimento. Essa relação estabelecida no interior materno marcaria aquilo que a autora chama de complexo de feminilidade do menino.
A autora ainda aponta esse fenômeno como: "A força motivacional mais poderosa do seu trabalho criativo" (Klein, 1932/1997, p. 291). Dessa forma, seria a relação que o menino teria com sua fase feminina e com o pênis introjetado na mãe que marcariam o seu bom ou mal desenvolvimento egoico. Essa dupla relação necessária ao menino construiria objetos bons que significam crianças boas presentes em seu interior; o que, muito precocemente, também se equivaleriam a pênis bons. Essa dinâmica que, segundo Petot (1991), seria da ordem da formação reativa, funcionaria como um mecanismo de defesa semelhante em importância ao mecanismo de reparação para a menina.
Apesar dessa semelhança, especialmente pela marca de nossa cultura Ocidental, o pênis, como um órgão externo, permitiria uma maior capacidade de controle para o menino, principalmente de tudo aquilo que é "estranho e aterrorizante na mulher" (Kristeva, 2002, p. 148). A radicalidade dessa defesa poderia se estruturar em uma homossexualidade patológica, na qual essa proteção traria um custo psíquico muito caro: abandonar a mulher de uma vez por todas. Em termos alteritários, essa é uma característica muito típica das depressões, muito mais do que da prática homossexual que, em si, não pode ser considerada a priori como patológica.
É importante destacar sobre esse capítulo de A psicanálise de crianças que a autora não ignora a relação ambivalente do menino com o pai; porém, a inovação trazida da perspectiva dessa nova compreensão edipiana se sobrepõe a isso e a deixa bastante secundária, nesse sentido. Tanto que, no último parágrafo dessa parte do livro, a autora destaca que o papel genital masculino, quando atinge seu auge, é um reencontro com:
a mãe generosa, que agora lhe dá também prazer genital; e, em parte como um presente de retribuição, em parte como uma reparação para todos os ataques que se fez a ela na época em que se danificou o seu seio, ele lhe dá o seu sêmen sadio, que a dotará de crianças, restaurará o seu corpo e lhe dará também satisfação oral. (Klein, 1932/1997, p. 295)
A partir destas últimas palavras, o seio começa a se destacar cada vez mais em suas reflexões.
Consideração finais
De maneira melhor desenvolvida do que no início da construção de sua obra (Klipan, no prelo), podemos perceber que Melanie Klein avança bastante naquilo que se refere ao espaço feminino nas origens da constituição do subjetivo. Ou seja, em A psicanálise de crianças, vemos que o feminino reverte a posição ocupada pelo masculino que as teorizações freudianas propunham como um reflexo da própria cultura Ocidental.
O destaque aos elementos agressivos e sádicos se mantiveram em todas as linhas gerais desse texto de 1932. O resultado mais notório e expressivo disso é compreender como Klein liga a sua compreensão dos estágios iniciais do conflito edipiano e a proposta da formação primitiva do superego às ansiedades mais arcaicas da criança. Contudo, o espaço que os componentes amorosos em suas funções integradoras passam a ocupar, compreendemos como a trilha mais inovadora em relação ao tema da feminilidade, o que buscamos tomar como foco de nossa releitura desse livro de Klein. Entendemos que, ao abrir espaço para esse universo arcaico do feminino, a autora descentralizou o registro fálico e a importância que Freud havia concebido para ele. O exemplo mais direto disso é que o pênis, por exemplo, passa a ser apenas mais um dos objetos contidos no interior da mãe. Este último torna-se palco principal das discussões sobre a gênese psíquica. Provavelmente, em termos históricos e culturais, ainda não temos a dimensão de uma proposição como essa.
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Endereço para correspondência
mklipan@gmail.com
Avenida Colombo, 5790 bloco 118
87020-900 Maringá PR Brasil
Recebido em fevereiro/2018.
Aceito em dezembro/2018.
NOTAS
1. Este trabalho é parte modificada de uma pesquisa de doutorado defendida em 2015 sob o título de "Noção de feminilidade em Melanie Klein: subjetivações para além de um registro fálico". Nessa tese propusemos uma releitura da obra kleiniana a partir da proposta e compreensão do tema da feminilidade apresentado por Birman (1999, 2001) e Arán (2000, 2002, 2006, 2009).
2. Para esses autores, a caracterização principal dessa noção de feminilidade é uma subjetivação que acontece fora dos parâmetros fálicos fundamentais para a compreensão do núcleo subjetivo que acontece no complexo de Édipo. Esse modo de subjetivação que não seria exclusivo para o sujeito feminino, pois também necessário ao masculino, é um percurso marcado pelo sensível, pelo início da alteridade e de uma relação mais intersubjetiva. A partir da baliza que o registro fálico traz por meio do complexo de Édipo, acabaria por ser abandonado e negativado por influências culturais, passando a ser rejeitado pelo sujeito como ameaçador. Isso está mais bem discutido em nosso texto "Feminilidade e Melanie Klein: o tema da feminilidade em suas primeiras publicações" (Klipan, 2018).
3. Que é como chamamos (Klipan, 2015; Klipan, 2018) ao período das produções de Freud até 1920, antes das importantes transformações como a da mudança das tópicas do aparelho psíquico, da teoria da angústia, da criação do conceito da pulsão de morte etc.