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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p523-541 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p523-541

DOSSIÊ

 

Nascimento: cesura, catástrofe e psicanálise

 

Birth: caesura, catastrophe and psychoanalysis

 

Nacimiento: cesura, catástrofe y psicoanálisis

 

 

Paula Cristina Nogueira Vieira KomniskiI; Daniela Scheinkman ChatelardII

IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil
IIDocente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir, à luz da teoria psicanalítica, alguns dos aspectos psicológicos presentes no momento do nascimento. Para tanto, exploraremos o termo "cesura", utilizado por Freud em 1926 e retomado por diferentes autores para tratar da complexidade dessa experiência, marcada, dentre outros eventos, pela prematuridade do bebê e sua relação de dependência absoluta no início da vida. Dependência esta que se estenderá, de forma relativa, por muitos anos, sem nunca deixar de estar presente nas relações humanas. Trataremos também da importância da figura materna, representante do ambiente, para o acolhimento e sustentação psíquica do bebê que acaba de nascer. A mudança radical de ambiente vivenciada pelo bebê, que passa do mundo aquático para o mundo aéreo – assim como a reorganização do psiquismo materno que acontece com a chegada de um filho são experiências radicais, resultando no que será considerado por alguns autores como experiência catastrófica. O artigo busca compreender essa maneira de abordar tal acontecimento, procurando explorar o sentido de tal descrição, assim como suas implicações nas formas afetivas de se relacionar do humano.

Descritores: nascimento; cesura; catástrofe; psicanálise.


ABSTRACT

This article aims at discussing, under the light of the psychoanalitical theory, some of the psychological aspects that take place at the moment of birth. To do so, we intend to explore the term caesura, used by Freud in 1926 and resumed by different authors interested in exploring the complexity of this experience characterized, among other things, by the prematurity of the human baby and its relationship of total dependence at the beginning of its life, and that will relatively continue for many years and will always be present in human relationships. We will also explore the importance of the maternal figure, which represents the environment and is responsible for receiving and offering the psychological support for the newborn. The radical change experimented by the baby when passing from an aquatic environment to the aerial one, as well as the re-organization of the mother's psychism that happens with the arrival of a child, can be considered radical experiences, which will be considered by different authors as catastrophic. This article aims at understanding this particular approach to this event, trying to understand the meanings of such term and its implications for the establishment of human relationships.

Index terms: birth; caesura; catastrophe; psychoanalisis.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir, a la luz de la teoría psicoanalítica, algunos aspectos psicológicos presentes en el momento del nacimiento. Para hacerlo, exploraremos el término "cesura", utilizado por Freud en 1926 y retomado por diferentes autores para tratar la complejidad de esta experiencia caracterizada, entre otras cosas, por la prematuridad del bebé y su relación de dependencia absoluta al inicio de la vida –dependencia esta que se extenderá, de forma relativa, por muchos años, sin nunca dejar de estar presente en las relaciones humanas–. Trataremos también de la importancia de la figura materna, representante del ambiente, para la acogida y sustentación psíquica del bebé que acaba de nacer. El cambio radical de ambiente vivido por el bebé, que pasa del mundo acuático al mundo aéreo, y la reorganización del psiquismo materno que sucede con la llegada de un hijo, son experiencias radicales, resultando, para algunos autores, en una experiencia catastrófica. El artículo busca comprender esta manera de abordar tal acontecimiento, examinando el sentido de tal descripción, así como sus implicaciones en las formas afectivas vividas por los humanos.

Palabras clave: nacimiento; cesura; catástrofe; psicoanálisis.


 

 

A psicanálise freudiana tem como paradigma a sexualidade infantil e, mais precisamente, seus efeitos e consequências vividos e, é preciso dizer, recalcados após a passagem pelo Édipo. São os autores pós-freudianos que ampliam a discussão sobre a constituição psíquica, levando em conta as experiências iniciais quando o terceiro ainda não entrava em cena, sendo a relação com a figura materna e os cuidados oferecidos por ela os responsáveis pela garantia da continuidade de ser do bebê, como proposto por Winnicott (1956/2000).

Partindo de tais considerações, este artigo situa-se, justamente, no movimento psicanalítico que se inicia em Freud e tem como paradigma a situação edípica, mas avança e amplia seu pensamento com os autores pós-freudianos, que levam em conta as experiências iniciais, vividas mais precisamente a dois (bebê-mãe) e que serão compreendidas e tratadas como fundantes da estruturação psíquica do sujeito.

Com o avanço dos estudos sobre o autismo, desenvolvidos por Kanner (1943), e, no mesmo período, as pesquisas de Spitz (1950/1999), que culminaram com os conceitos de depressão anaclítica e hospitalismo, observamos que passa a ser concedido ao bebê, a partir de então, o direito ao sofrimento psíquico e, consequentemente, à loucura (Golse, 2003). Assim, a partir desse período é possível afirmar que a psicanálise passa a adotar um novo paradigma: a criança deixa de ser olhada somente de uma perspectiva edípica, metaforizada por seu lugar na cama dos pais, mas a atenção se volta também para o bebê no colo da mãe. Vemos aqui, anterior à triangulação edípica, a importância e o foco na díade: um bebê, que acaba de nascer, e uma mãe, que também nasce a partir do encontro com seu bebê.

Dentre os autores que contribuem para esse movimento, Winnicott é figura central, uma vez que sua prática clínica lhe permitiu analisar pacientes adultos, ao mesmo tempo em que, como pediatra, recebia e observava, diariamente, ao longo de mais de trinta anos, dezenas de bebês, juntamente com suas mães.

Para o autor, "não é possível observar um bebê, exceto no sentido de olharmos para seu corpo e vermos seu comportamento" (Winnicott, 1988/1990, p. 172). Ele vai além, ao afirmar que a forma de estudo mais convincente do início da vida psíquica do sujeito provém do contato clínico com pacientes adultos, que regridem ao longo do trabalho analítico, chegando, por vezes, a atingir situações psíquicas limítrofes; ou seja, indivíduos que precisaram chegar a um estado de doença do tipo psicótica no decorrer do tratamento.

O estudo dos estágios iniciais do desenvolvimento emocional do indivíduo pode fornecer a chave para a saúde mental, no que diz respeito à possibilidade de nos libertarmos da psicose. Não há, portanto, estudo mais importante que aquele do indivíduo intimamente envolvido, no início, com o ambiente que o cerca (Winnicott, 1988/1990, p. 172).

Vemos, dessa forma, como a inflexão do movimento psicanalítico, no sentido do início da vida, parece trazer contribuições fundamentais para a compreensão das psicopatologias. Para além das questões psicopatológicas mais graves, os estudos desse tempo inicial são profundamente ricos e ampliam, de maneira complexa e enriquecedora, o contato e a compreensão do mundo interno do humano.

Levando em conta tais considerações, este artigo tem como objetivo retomar aspectos do pensamento psicanalítico relacionados à constituição e à organização do psiquismo do bebê, no intuito de compreender mais profundamente a complexidade vivida pela díade no momento do nascimento. Ou seja, o que é possível observar e compreender dessa relação, na qual não se pode diferenciar o que é de um e o que é de outro, ao mesmo tempo em que sabemos da existência da singularidade de cada um.

Se o ato de nascer pode ser descrito como um salto num vazio de sentido, no qual a representação ainda não se faz presente, afinal, nesse tempo de inexistência do eu, a gravidade ainda não opera, é justamente aí que a psicanálise encontra seu lugar: nessa busca pela experiência de gravidade, que só poderá acontecer a partir do encontro com um ambiente que dê sustentação física e também psíquica para um bebê ainda frágil e absolutamente dependente do ambiente.

Tal proposta de contato com o bebê recém-nascido e sua mãe parte da influência do pensamento de Esther Bick, que aporta uma nova contribuição à psicanálise. Seu método de investigação – a observação de bebês – nos permite, enquanto analistas, "nadar nas águas subterrâneas da experiência do bebê e de emergirmos com um conhecimento aprofundado dos terrores aos quais o bebê deve fazer face, bem como de seus esforços desesperados para criar um espaço psíquico no qual possa sobreviver" (Briggs, 2006, p. 33).

Tais questões nos remetem à complexidade presente no contato com um aspecto sempre aberto e já muito abordado em psicanálise, qual seja, o da busca pelo início ou pela fundação do inconsciente – termo utilizado por Bleichmar (1994). Como afirma Bucher (1984), "a origem do ser humano, a sua dimensão originária, se perde em trevas, num 'acheronta' cujo véu nem Freud conseguiu levantar, de tanto pudor, de tanto temor que é cercado" (p. 153).

Falar sobre o bebê que acaba de nascer e questionar se essa criatura já traz consigo marcas que lhe são próprias, algo inaugural no qual podem ser observados elementos de sua personalidade, é retomar o originário, retomar a questão do momento do surgimento do inconsciente, se é que esse fato pode ser localizado temporalmente. Assim, faz-se necessário retomar as linhas possíveis do que Bleichmar (1994) define como "teoria das origens". É preciso lembrar que a autora defende a ideia de que o inconsciente não existe desde o início da vida, sendo, então, "produto de cultura fundado no interior da relação sexualizante com o semelhante e, fundamentalmente, como produto do recalcamento originário que oferece um topos definitivo às representações inscritas nos primeiros tempos de tal sexualização" (Bleichmar, 1994, p. 9).

Trazer à luz o tema do momento do nascimento e da constituição psíquica do bebê, bem como as possíveis dificuldades do pós-parto, observando atentamente a dinâmica psíquica vivenciada pela díade, pode ser relevante, uma vez que, ao reconhecermos e darmos lugar para o sofrimento psíquico já no início da vida, podemos trabalhar para compreender as possíveis origens de tais dificuldades e atuar no sentido de facilitar o encontro e o acolhimento do bebê e da mãe que acabam de nascer.

A fragilidade física e psíquica do bebê, sua dependência absoluta, associadas ao não saber materno, bem como a radical queda hormonal vivida pela mãe no pós-parto, além de todas as questões inconscientes suscitadas e convocadas com a chegada do bebê, contribuem para a formação daquilo que, ao longo deste artigo, trataremos como catástrofe do nascimento. Arriscamos, portanto, propor que nascemos da ambivalência, do pendular, da falta e do preenchimento: nascemos no entre e, ao sermos atirados no vazio da existência, encontramos os braços maternos e seguimos buscando o encontro, nascendo e renascendo nas experiências humanas de vir à luz e revelar-se, para o outro e para nós mesmos.

Tais reflexões levam-nos a considerar, além das dificuldades e ambivalências presentes no início da vida, o fato de que, primeiramente, pensamos a partir do outro, do qual somos tão completamente dependentes, e só mais tarde seremos capazes de considerar a existência e significação desse outro, simbolizado pela figura materna e, a partir dela, por outras figuras humanas a nossa volta, para depois enxergarmos o mundo (Komniski, Chatelard e Carvalho, 2017).

O estado de prematuridade e inacabamento do bebê já nos é evidente e vem sendo, juntamente com suas competências, há muito estudado. O reconhecimento da voz materna, sua capacidade de seguir atentamente os movimentos da mãe, exercícios motores complexos, dentre outros, são exemplos de tais competências, observadas e descritas por inúmeros autores, como Brazelton (1984), Cramer (1993), dentre outros – imagens que nos impressionam, se considerarmos o nível de fragilidade característica do bebê humano.

Assim, vamos nos aproximando dos inúmeros movimentos presentes e observados no nascimento do bebê. Se ele tem, dentre outros elementos fundantes, a marca da catástrofe, ela será "superada" com base na adaptação ambiental às necessidades individuais de cada criança. Aproximamo-nos, desta forma, da importância e significação da figura materna e da relação que esta irá estabelecer com o bebê que chega. Além disso, devemos levar em conta, para além da prematuridade do bebê humano, suas competências e potencialidades.

Para Ciccone (2007), enquanto bebês, conhecemos as emoções primitivas, mas não temos ainda as palavras necessárias para nomeá-las. Porém, quando adquirimos a linguagem, tais experiências já terão sido esquecidas. Assim, nossa história fica marcada no corpo e, ao mesmo tempo, atada a nossa condição de dependência e, inevitavelmente, ao discurso que nos inclui, oferecendo pertencimento e nos concedendo um lugar. Afinal, como afirma Costa (2001), nosso corpo é recoberto pela linguagem mesmo quando estamos nus.

Freud (1926-1929/2014) faz uso do termo cesura para descrever a separação entre mãe e bebê no momento do nascimento. Para Ciccone (2007), a cesura pode ser compreendida como uma das figuras do ponto de contato entre as diferentes partes da personalidade, entre os diferentes tempos históricos de uma experiência, mas também como um dos elementos da intersubjetividade, lugar do desenrolar dos processos de crescimento e desenvolvimento psíquico. Para o autor, a cesura é ainda lugar de separação e contato, estando à mercê das turbulências emocionais que o eu deverá conter e organizar desde o início.

Ao propormos investigar o bebê em sua singularidade, vemo-nos impossibilitados de fazê-lo sem levar em consideração o discurso materno. Assim, arriscamos dizer que essa tarefa se dá, justamente, nesse lugar de separação e junção, de corte e ligação, afastamento e aproximação, no qual a palavra é ainda um vir a ser, um enunciado enigmático, ainda não decifrado, desconhecido, misterioso, como o ser que acaba de nascer.

Os estudos sobre o bebê realizados nas últimas décadas nos permitem observar a utilização, por diferentes autores, de metáforas e figuras na tentativa de ilustrar a força das experiências primárias e, como afirma Ciccone (2007), o "constrangimento que se impõe ao sujeito no alvorecer de seu nascimento psíquico, ao organizar tais experiências no tempo e no espaço, para preservar o contato com o mundo e consigo mesmo" (p.22).

Essa aproximação na direção de uma compreensão dos ritmos, dos movimentos, tanto do bebê quanto da mãe, indica a necessidade de aprofundar a construção da experiência da internalização do tempo na vida psíquica do bebê. Além disso, é preciso lembrar que o bebê traz consigo o ponto histórico no qual ele nasce e esse tempo lhe pertence, apesar de ele ainda não ter um lugar no Outro.

Partindo de tais considerações, os seguintes temas serão, portanto, abordados e desenvolvidos ao longo deste artigo: o nascimento e a cesura, a prematuridade do bebê humano e o aspecto fundamental e estruturante da mãe para acolher e sustentar tal prematuridade, bem como o sentido de tais experiências, catastróficas e organizadoras do psiquismo humano.

 

Bebê: o cosmonauta sem a roupa adequada

Esther Bick, idealizadora do método psicanalítico de observação de bebês, sugere que o bebê que acaba de nascer pode ser comparado a um astronauta projetado no espaço, com a diferença de que o recém-nascido não possui a roupa adequada para viver tal experiência. Ao aceitarmos tal proposição, colocamos luz sobre o desenvolvimento psíquico e as possíveis formas de "sobrevivência no espaço" desse bebê, ainda frágil, absolutamente dependente e à mercê de um mundo-ambiente desconhecido, que pode, em termos kleinianos, ser ameaçador. Como postulou Freud (1895/1975), devemos buscar compreender as formas de satisfação pulsional a cada vez que o objeto de satisfação não se oferece à criança, ou se oferece sem atrasos e sem reservas.

Tais situações vividas pelo bebê têm, como base, a questão da estabilização ou da estabilidade: o bebê, precipitado no espaço, é ameaçado de perder a confortável estabilidade que conheceu durante a vida intrauterina e deverá, a partir de agora, não somente encontrar, no mundo exterior, o objeto de sua satisfação, mas também reencontrar as bases da estabilidade perdida, sob pena de viver angústias de queda mortal, de liquefação, de explosão (Houzel, 2006, p. 10).

O autor ressalta ainda que o desenvolvimento psíquico parece, à luz das descobertas feitas graças à observação dos bebês, ligado à necessidade de se tecer a melhor "combinação" possível para que eles sobrevivam ao espaço. Para o autor, é fundamental atentarmos para o fato de que tal "combinação" refere-se ao postulado freudiano sobre a satisfação pulsional, oferecida pelo objeto de satisfação, sem reservas nem atrasos. Ou seja, trata-se da tecelagem de uma malha de cuidados responsável pela adaptação do bebê ao que denominaremos, ao longo deste artigo, de mundo aéreo.

A passagem de uma condição a outra, que caracteriza a situação do nascimento, é descrita por Bion (1977/1989) em seu texto "Caesura", no qual o autor retoma, justamente, a citação freudiana sobre a cesura do ato do nascimento. Em seu texto, Freud (1926-1929/2014) é categórico ao afirmar que a vida intrauterina terá influência sobre a vida psíquica do sujeito.

Rezende (1999), ao tratar desse texto bioniano, retoma a etimologia do termo "catástrofe", que se origina no vocabulário do teatro grego e que caracteriza a passagem de uma estrofe para outra.

Toda mudança de cena era indicada por uma nova estrofe (catastrófica), tanto mais significativa quanto mais a cena seguinte era diferente da precedente. No contexto das tragédias, a mudança catastrófica enfatizava o conflito entre vida e morte, em situações de grande perigo (Rezende, 1999, p. 7).

Como propõe Dolto (1984/2015), o nascimento é marcado por "modificações cataclísmicas", o que nos remete a Rezende (1999, p. 7), ao afirmar que "no contexto das tragédias, a mudança catastrófica enfatizava o conflito entre vida e morte, em situações de grande perigo". Dolto (1984/2015) faz uso do termo "castração umbilical", uma vez que, em sua visão, o nascimento constitui, efetivamente, a primeira castração. Para a autora, o nascimento é, aparentemente, um fator da natureza. No entanto, avança sua reflexão para pensar a complexidade que caracteriza a recepção do bebê em um mundo de linguagem. Ele vai além, ao afirmar que o papel simbolígeno do nascimento "marca com modalidades emocionais primeiras sua chegada ao mundo enquanto ser humano, homem ou mulher, acolhido segundo o sexo o qual seu corpo testemunha pela primeira vez, e segundo a maneira pela qual é aceito tal como é, frustrante ou gratificante para o narcisismo de cada um de seus pais" (p. 72). Ele lembra ainda que o nascimento, primeira castração, pode ser compreendido como matriz para as castrações ulteriores.

De um início marcado pela fragmentação corporal, "meia libra de carne", como propõe Lacan (1998, p. 5), vemos a organização psíquica se instalar a partir dos cuidados corporais. Eis a transformação de um corpo fragmentado em uma reunião impressa na imagem especular que coincide com o desmame. Lacan (1938/2003) evidencia o diferencial humano, pela capacidade do bebê de antecipar uma realidade psíquica, ainda que diante de sua impotência biológica.

O estádio do espelho assim considerado corresponde ao declínio do desmame, isto é, ao fim dos seis meses cuja dominante psíquica de mal estar, corresponde ao atraso do crescimento físico, traduz a prematuração do nascimento, que é, como dissemos, a base específica do desmame no homem (p. 47).

Para Lacan (1938/2003), a capacidade da criança de reconhecer sua imagem no espelho é um evento profundamente significativo e que leva meses de contato humano antes de seu acontecimento psíquico: " a imagem especular, justamente em razão dessas afinidades, fornece um bom símbolo dessa realidade: de seu valor afetivo, tão ilusório quanto a imagem, e de sua estrutura, que como ela, é reflexo da forma humana" (p. 47).

Dolto (1984/2015) descreve as experiências fisiológicas vividas pela criança recém-nascida sem deixar de considerar o fator psíquico que também se manifesta e se instala: o grito sonoro que se segue à primeira inspiração, a evacuação do conteúdo intestinal, a aquisição de novas percepções como o olfato – sentido que, segundo a autora, é, inconscientemente, o primeiro impacto de uma referenciação particular de sua relação com a mãe. Todas essas vivências corporais e de ascensão ao mundo aéreo, mundo das palavras, marcam o encontro, mas marcam também a perda da condição homeostática, de preservação da energia e da condição de simbiose com o corpo materno (mas não ainda com a figura materna). Diz Dolto (1984/2015):

Modificações cataclísmicas, marcam, portanto, nosso nascimento, nossa primeira parte mutante, pela qual deixamos uma parte importante daquilo que constituía in útero nosso próprio organismo, invólucros amnióticos, placenta, cordão umbilical; parte graças à qual pudemos ser viáveis para um outro espaço que, ao nos acolher, nos leva à situação de retorno impossível ao espaço anterior, ao modo de viver e de gozar que havíamos ali conhecido (p. 73).

Tal reflexão parece confirmar a imagem do bebê como um astronauta sem a roupa adequada, como Esther Bick gostava de dizer. Além disso, dentre os elementos catastróficos e contraditórios que marcam o nascimento, vale retomar Freud (1917-1920/2014) em sua teorização sobre a pulsão de morte, quando afirma que:

se é lícito aceitarmos, como experiência que não tem exceção, que todo ser vivo morre por razões internas, retorna ao estado inorgânico, então só podemos dizer que o objetivo de toda vida é a morte, e, retrospectivamente, que o inanimado existia antes que o vivente (p. 204).

Assim, parece inevitável levarmos em conta o fato de que a catástrofe do nascimento também se relaciona ao fato de que, ao nascermos, começamos a morrer.

Já ao final de sua obra, no texto "Análise terminável e interminável", Freud (1937-1939/1996) retoma o termo "trauma do nascimento", proposto por Otto Rank e já discutido por ele em "Inibição, sintoma e angústia", de 1926. O autor lembra que, para Rank, a verdadeira fonte da neurose seria o ato do nascimento. Isso porque a neurose encerraria, em si, a possibilidade de a fixação primeva de uma criança à mãe não ser superada e persistir como repressão primeva. A proposta de Rank, segundo Freud, seria que, ao lidarmos com esse trauma inaugural durante um processo de análise, estaríamos livres de toda a neurose que pudesse nos acometer. Freud faz uma dura crítica a tal proposta, analisando-a como um produto de seu tempo, num contexto que envolvia a prosperidade americana do pós-guerra projetada "para adaptar o ritmo da terapia analítica à pressa da vida americana" (Freud, 1937-1939/1996, p. 231). Ele vai além, ao afirmar que a proposta de Rank certamente não faria mais do que o faria o Corpo de Bombeiros ao ser chamado para socorrer uma casa que pegara fogo em função de uma lâmpada a óleo emborcada, e se contentasse somente em retirar a lâmpada do quarto onde o fogo havia começado.

A crítica de Freud à radicalidade da proposta de Rank, que localiza e circunscreve a neurose ao trauma do nascimento, leva-nos a questionar e buscar ampliar as reflexões sobre a significação dessa realidade (ou dessa verdade humana), sem desconsiderar a marca e a força do longo tempo gestacional, do longo tempo de dependência em função da radicalidade da prematuridade humana e de uma vida toda marcada pela dependência e, consequentemente, pela necessidade de ser amado. Assim, a cesura do ato do nascimento, bem como sua cicatriz, se fazem presentes e nos lembram, constantemente, de nossa condição de desamparo, assim como do desejo e necessidade de sermos amados.

Michel Soulé (1999), em um texto intitulado "A placenta, sua vida, sua obra, sua abnegação", traz a seguinte epígrafe: in principio erat verbum e ante principio erat placentum. Observamos, assim, a significação mesma, tanto do sentido e da radicalidade "simbolígena" do corte, como afirma Dolto, como também da singularidade da vida placentária que virá carregada, inevitavelmente, de um sentido que se apresentará no discurso. Diz Soulé (1998/1999):

Observem seus umbigos, Narcisos! Esse orifício fechado que não serve para nada, nem mesmo em questões de anatomia, exceto para zombarias. Nele, vocês verão seu luto, sua castração, sua orfandade, a ausência de seu gêmeo, a imputação anatômica de sua placenta, que a igreja considera indispensável para que vocês sejam batizados, a marca indelével da placenta morta apenas alguns anos antes de vocês. Sei que assusto vocês fazendo com que se lembrem: de sua mãe, anfitriã do 'Albergue do Feto', de sua vida aquática, de suas membranas, do capitão Nemo, primeiro ecografista, de sua filogênese e de toda a metafísica incompreensível (p. 48).

O autor segue dando voz à placenta, afirmando ser ela o "objeto primário do feto" ou o divã no qual o feto constrói suas primeiras associações. Pensar o bebê na placenta é olhar para a vida intrauterina e supor um sentido de existência anterior à chegada do bebê ao mundo aéreo. Diz o autor: "Uma parte da humanidade gasta bilhões de dólares para que uma pequena cápsula dê algumas voltas ao redor da terra ou da lua. Em certo momento, vemos um pequeno feto abrir a cápsula e sair, cuidando atentamente de seu cordão umbilical" (Soulé, 1998/1999, p. 57).

Se considerarmos a função do ar, que garante a articulação da fala e do discurso, ou mesmo da primeira forma de comunicação, o choro, que se manifesta, justamente, quanto ele entra e expande os pulmões, entramos em contato com a radicalidade da mudança de condição, vivida por esse "astronauta sem a roupa adequada". Ao mesmo tempo, no mundo aquático as palavras não podem ser articuladas e o bebê fica, então, à mercê do discurso do Outro, externo a ele, a quem já escuta e, aos poucos, passa a reconhecer, ainda que continue, por muito tempo, em sua condição de estrangeiro.

Bucher (1984) nos lembra sobre a falta de significantes disponíveis para designar a experiência da vida intrauterina, assim como o retorno a ela pela morte, mas também pelo sono. "Não há significantes da dimensão umbilical da existência, aquém da simbolização e aberta apenas a uma fantasmatização nostálgica e angustiante" (p. 152).

Para Dolto (1984/2015), esta passagem de um mundo a outro implica a perda de percepções conhecidas e o surgir de novas percepções que irão constituir o que a psicanálise freudiana reconhecerá como sendo o trauma do nascimento. Para a autora, esse trauma tem a ver com uma mutação inicial da vida,

que marca por um estilo de angústia mais ou menos memorizado, para cada feto que vem para a vida aérea, sua primeira sensação liminar de asfixia associada ao final dado ao elemento aquático quente e ao surgimento no mundo aéreo da força da gravidade (p. 73).

Resta-nos, a partir dessas imagens impactantes representadas pelos significantes "catástrofe", "cataclisma", "castração umbilical", entre outros, pensar o sentido e a direção dessa realidade humana constitutiva e desconcertante. A visão desses diferentes autores sobre o momento do nascimento deixa-nos, como marca fundante da condição humana, o desamparo e a relação de dependência. Desse modo, a partir de tais constatações, pode-se afirmar que uma mãe com condições de se disponibilizar para seu bebê, atendendo-o na medida de suas necessidades, vai oferecendo e permitindo a ele o acesso à sensação de gravidade, até então desconhecida. Em contraposição a isso, Winnicott (1952/2000), ao falar sobre as falhas maternas e suas consequências, usa como imagem a sensação, experimentada pelo bebê, de "cair para sempre".

Os registros mnêmicos desse tempo marcam o corpo, tatuagens invisíveis de uma história que se inicia. Na linguagem do corpo, observamos aquilo que não pôde ser expresso em linguagem simbólica, aspectos da organização psíquica primitiva, que Winnicott (1952/2000) denomina de terrores extremos, sem fim, sem limites – angústias impensáveis, uma vez que não há psiquismo organizado minimamente para pensá-las.

Compreende-se, assim, a importância da disponibilidade e sensibilidade maternas para viabilizar a chegada e a introdução do bebê ao mundo externo. A maneira como a mãe apresenta o mundo a esse bebê que chega, nos diz sobre os primeiros acordes de comunicação dessa díade. Como afirma Winnicott (1945/2000), pode-se dizer que a mãe ajuda o bebê a perceber o mundo em pequenas doses.

A sensibilidade e adaptação maternas permitem ao bebê sobreviver à angústia presente na condição de desamparo experimentada no ato do nascimento.

Nos dois aspectos, como fenômeno automático e como sinal salvador, a angústia revela-se produto do desamparo psíquico do bebê, que é a contrapartida evidente de seu desamparo biológico. Não requer interpretação psicológica a notável coincidência de que tanto a angústia do nascimento como a angústia do bebê são determinadas pela separação da mãe (Freud, 1926-1929/2014, p. 80).

Observamos, então, já em Freud, uma atenção especial, no que se refere ao início da vida, marcado, sobretudo, pela separação da mãe.

Assim, a partir da condição de desamparo e, ao mesmo tempo, da presença materna, vamos nos aproximando desse sentido que podemos denominar de órbita mútua: bebê e mãe, que se atraem, se afastam, buscam formas e sentidos de comunicação: uma mãe que fala, canta, relata, conta, descreve e projeta e um bebê que necessita de contato e cuidado para que, no limite, possa sobreviver. Observamos, nessa relação de encantamento e dificuldades, uma dupla tentando se conhecer e comunicar: movimentos e formas que vão desenhando a organização psicossomática de um ser frágil, dependente, à mercê do outro (Komniski, Chatelard e Carvalho, 2017).

Crespin (2004) retoma um aspecto da evolução humana, lembrando que nossa caixa craniana segue seu desenvolvimento depois do nascimento, ou seja, já fora do útero materno. Segundo a autora, essa condição seria responsável pelo desenvolvimento do neocórtex, responsável pelas funções ditas superiores, mais especificamente a linguagem. "A linguagem concebida como um sistema significante que codifica o real do qual as diferentes línguas faladas seriam a expressão" (p. 21). A autora afirma que, ainda que tal hipótese seja inverificável, segue sendo sedutora, já que permite concebermos a linguagem como ferramenta específica, substituta das programações instituais perdidas de nossos ancestrais primatas.

É preciso lembrar que essa mudança no curso evolutivo complexifica a condição humana, trazendo para nossas relações com o mundo este "outro inevitável" (Crespin, 2004, p. 21). A autora retoma o termo em alemão, utilizado por Freud (1895/1975): nebensmench, que pode ser traduzido por "próximo prestativo".

Assim, vemos que a catástrofe, marcada pela passagem, pela mudança radical de condição, mas também pela prematuridade e pela dependência absoluta, terá como elo de ligação e sustentação, a linguagem que esse Outro, próximo prestativo, enuncia e apresenta.

Se não há significantes disponíveis que permitam ao sujeito que acaba de nascer, falar sobre sua experiência, sobre si ou sobre a angústia, também na morte essa realidade se repete: já não é mais possível falar sobre a vida, nem sobre a experiência de morrer. Assim, é preciso lembrar que nascer é também começar a morrer. Mais uma vez, vemos o movimento catastrófico e paradoxal que impulsiona o sujeito para a vida, mas, ao mesmo tempo, em direção à morte.

 

O tempo e o ritmo: o bebê na órbita materna

O bebê ainda não conhece a experiência da passagem do tempo. Assim, a espera não é algo possível ou pensável. No início, tudo o que é vivido e experimentado é da ordem da urgência. A ausência ou a não resposta do objeto produz angústias impensáveis, como diria Winnicott (1952/2000). Compreende-se, desta forma, a importância da afinação, ou seja, como a mãe se ajusta às demandas urgentes do bebê. Afinação no sentido musical do termo, se considerarmos o sentido do tempo na música.

Winnicott (1965/1982) nos lembra que "para as crianças e muito mais para os bebês, a vida é apenas uma série de experiências terrivelmente intensas" (p. 77). O autor usa o termo "aniquilamento" para descrever as ameaças oriundas das ansiedades vividas pelo bebê antes que seu psiquismo esteja preparado para suporta-las:

neste lugar que é caracterizado pela existência essencial de um ambiente sustentador, o 'potencial herdado' está se tornando uma 'continuidade do ser'. A alternativa a ser é reagir, e reagir interrompe o ser e o aniquila. Ser e aniquilamento são duas alternativas (Winnicott, 1960/1990, p. 47).

Vemos aqui que, para além dos cuidados oferecidos, há também a importância e a sutileza presentes em como são oferecidos tais cuidados. O autor afirma ainda que, observados de fora, tais processos podem aparentar ser puramente fisiológicos, mas, na realidade, fazem parte da psicologia da criança "e ocorrem em um campo psicológico complexo, determinados pela percepção e empatia da mãe" (Winnicott, 1960/1990, p. 44).

Vemos, assim, a importância da afinação, ou seja, o modo como a mãe se ajusta às demandas urgentes do bebê, adequando seus movimentos e suas intervenções, garantindo o que o autor denomina de ilusão de onipotência. Ou seja, de forma sensível e devotada, a mãe permite que a criança viva a experiência de criar o objeto de sua necessidade, ainda que ela mesma nem saiba de que objeto se trata. Observamos, nessas primeiras experiências, a formação das bases para o que, mais tarde, conheceremos como criatividade.

Além da afinação, observamos o ritmo (outro termo musical) como outro elemento fundamental, observado no trabalho psíquico da criança. Ciccone (2007) afirma que "a ritmicidade organiza a separação e a fratura que esta produz, assim como o caos no qual ela mergulha" (p. 21). O autor lembra que o caos a que se refere provém tanto da separação do bebê do objeto primário, como de seu encontro com o mundo, com a alteridade. Ele diz ainda que é através do ritmo que se opera a passagem do caos à ordem.

Tal pensamento parece dialogar intimamente com a proposta winnicottiana de que o bebê deve estar protegido das intrusões ambientais. Ou seja, a fratura produzida pelo nascimento só poderá ser reparada caso o ambiente permita que o bebê viva suas primeiras experiências sem perceber que existe algo fora dele. Ao se dar conta, precocemente, de que as coisas de que necessita para sobreviver vêm de fora, a criança é invadida pelo mundo, sem ter ainda arcabouço físico e psíquico para lidar e suportar a intensidade que tais experiências produzem. Aproximamo-nos, desta forma, da força do conceito de preocupação materna primária tão bem forjado por Winnicott (1956/2000). Ou seja, é somente com base em cuidados previsíveis e adequados, provindos de uma mãe sensível e disponível, que a criança vai, aos poucos, colecionando experiências que a permitem, de maneira gradual, ir se abrindo para o que vem de fora, ou seja, para a exploração do mundo.

Para a criança com sorte, o mundo começa a conduzir-se de maneira tal que se conjuga com sua imaginação e, assim, o mundo é entretecido na própria contextura da imaginação, enriquecendo-se a vida íntima do bebê com o que é percebido no mundo externo (Winnicott, 1965/1982, p. 81).

Prat (2008), ao abordar o tema da observação de bebês segundo Esther Bick, propõe a ideia de que o pensamento é um movimento que dá voltas: "se cria em vários tempos, ao oferecermos tempo para os desvios, as idas e vindas, o tempo de suspensão, de digestão, de retorno" (p.13). A autora retoma a definição de valsa: uma dança a três tempos, na qual cada par gira em torno de si mesmo, se deslocando no espaço.

Tal imagem retrata a complexidade observada nas primeiras interações bebê-mãe. Ora, se já não podemos mais contar com nossas programações instituais, consequência de nosso complexo modelo evolutivo, ao mesmo tempo em que não temos ainda a linguagem instalada, é somente através da relação com esse nebensmench, esse outro prestativo, como o define Freud, que reside nossa chance de sobrevivência e adaptação.

É preciso lembrar, no entanto, que esse outro, do qual dependemos tão absolutamente, também guarda em si registros marcantes e significativos de seu trauma inicial, da experiência catastrófica de sua própria experiência de rompimento e ligação: restos de vivências que se atualizam na chegada de um outro frágil, dependente e complexo. Afinal, como afirma Golse (2003), o bebê que nasce suscita, naqueles que dele se ocupam, o bebê que eles mesmos foram. Fragilidades, dificuldades e desencontros se atualizam na mãe que recebe o filho que acaba de nascer. Parece residir aí a significação e a intensidade daquilo que nos faz humanos.

O que a cesura separa, a palavra une, costura e significa. Ela se organiza e se estrutura como linguagem a partir do Outro que se adapta, se ajusta, supõe e decifra, numa valsa interativa e complexa, na qual o inconsciente se faz presente para organizar e desorganizar. Como afirma Crespin (2004), não basta que a mãe seja um semelhante, também é preciso ser prestativo, isto é, "portador de desejo de sobrevivência pelo recém-nascido" (p. 22). Para a autora, as formas mais graves de diparentalidade nos confrontam com o fato de que o desejo de sobrevivência não é garantido pela gestação biológica.

A autora lembra ainda que antes do nascimento e talvez antes mesmo da gestação, o bebê humano já se encontra preso no universo simbólico dos pais, tanto no âmbito da família, mas, para além dele, no contexto da sociedade e da cultura a que pertencem. Assim, podemos supor que, durante as trocas e interações que ocorrem ao longo dos cuidados primários, se faz presente o sistema simbólico ao qual a mãe pertence, formando a rede de representações que organizam suas respostas face ao recém-nascido do qual se ocupa.

A complexidade cultural que envolve o ambiente familiar, bem como os elementos particulares de cada história, levando em consideração os aspectos transgeracionais que se presentificam e atualizam com a chegada do bebê, nos parecem elementos essenciais para a compreensão da construção do ritmo interativo e, portanto, da internalização do tempo, como parte da subjetividade do bebê.

Para Ciccone (2007), a construção da ritmicidade concerne três tipos de experiência: ensaios de presença e ausência do objeto, trocas interativas e intersubjetivas e alternância de posições de abertura objetal e recuo narcísico. Para o autor, esses três tipos de experiência necessitam de uma ritmicidade em seu desenvolvimento. Ele vai além, ao afirmar que essa é fundadora da segurança no bebê. Assim, o ritmo produzido pela alternância entre presença e ausência pode ser compreendido como o sustentáculo do crescimento mental, bem como do desenvolvimento do pensamento, a partir da falta.

Para Winnicott (1965/1982), a criança recém-nascida inicia sua vida nada sabendo sobre o mundo e, juntamente com a mãe, enfrenta uma situação evolutiva e em constante mutação. De início, "os pés de uma criança não precisam estar firmemente plantados na terra" (Winnicott, 1965/1982, p. 78). É na dança interativa na qual a mãe, de forma sutil e adaptada apresenta o mundo, que a criança vai, aos poucos, se diferenciando, conhecendo, explorando e, no limite, aprendendo a esperar e também a ser.

Ou seja, é a partir da apresentação do mundo em doses suportáveis, adequadas à capacidade de recepção de cada criança, a quem a mãe se disponibiliza de forma sensível e adaptada, que a realidade vai, aos poucos, se fazendo possível e os pés da criança vão podendo alcançar a terra. As urgências diminuem, o choro corporal, no qual tudo se move (uma vez que ainda não há unidade somática) dá lugar ao choro emocional e observamos como, aos poucos, as expressões faciais começam a aparecer e as comunicações se tornam mais claras.

Observamos, desta forma, que a realidade não é algo que é imposto à criança, mas se organiza como algo possível e suportável, oferecida em "pequenas doses". "Felizes daqueles cujos pés estão bem plantados na terra, mas que, mesmo assim, conservam a capacidade de desfrutar intensas sensações, nem que seja apenas em sonhos que são sonhados e recordados" (Winnicott, 1965/1982, p. 77).

A imagem de uma dança interativa nos faz lembrar que, apesar de frágil e dependente, o bebê é participante ativo nesse baile. Ou seja, mãe e filho dançam juntos, adaptando-se um ao outro e, embalados pelo ritmo emocional produzido no e pelo encontro vão, aos poucos, afinando a comunicação presente nos gestos e nas trocas. Assim, uma partitura musical ganha corpo e as experiências se inscrevem, marcando o ritmo e a intensidade que organizam e embalam uma história que há muito se iniciou, mas pode finalmente começar a acontecer: aqui os sonhos acontecem e o campo da criação se organiza e se instala. As fantasias ganham forma e o infantil comparece, tecendo o enredo criativo e criador que sustenta e alimenta a vida psíquica, a arte e também a dor.

 

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Recebido em março/2018.
Aceito em dezembro/2018.

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