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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624
Estilos clin. vol.23 no.3 São Paulo set./dez. 2018
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i3p670-675
DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i3p670-675
RESENHA
A démarche1da psicanálise na formação dos professores
Maria Gabriela Guidugli PedreiraI
IPsicóloga e psicanalista. Mestranda pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil
Psicanálise e formação de professores: antiformação docente. Voltolini, R. et al. São Paulo, SP: Zagodoni, 2018, 200 p.
Nas últimas décadas, o tema da formação de professores vem ganhando grande destaque não apenas na agenda pedagógica, mas também no meio político. A centralidade e urgência que a formação do professor adquire no cenário educativo tem como pano de fundo uma questão em torno do fracasso escolar, na qual se responsabiliza o professor por esse fracasso. É por esta via, de culpabilização do professor, que a atual formação docente vem sendo pensada.
O livro Psicanálise e formação de professores: antiformação docente é fruto da pesquisa realizada pelo autor e seus colaboradores na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), intitulada Formação docente em tempos de educação inclusiva. Diante do cenário de urgência e complexidade que abrange o tema, Rinaldo Voltolini se lança corajosamente a delinear a trama sintomática presente na atual formação dos professores.
Logo no início da leitura, somos advertidos de que a utilização, no título, do termo "antiformação docente" não representa uma palavra de ordem contra o modelo de formação, menos ainda a oferta de qualquer proposta ideal. Ao contrário, trata-se de tomar o discurso pedagógico pelo avesso, examinar o pathos, orthos e ethos do campo da formação docente, "renovando cada questão candente em seu campo, pela via da reinclusão do sujeito na cena pedagógica." (p. 10). Tal ressalva já indica, ao leitor, a démarche específica da psicanálise ao adentrar o campo da formação dos professores.
Foi através de dois eixos conceituais importados da psicologia, da adaptação e do desenvolvimento, que a pedagogia incluiu a psicanálise em seu campo. Essa inclusão (ou seria exclusão?) da psicanálise pela pedagogia, como parte de uma psicologia da educação, tem efeitos reveladores das próprias características do discurso pedagógico. Apoiada na noção de sujeito epistêmico, a empreitada pedagógica toma a criança como aquela que está sempre apta a aprender e cujo desenvolvimento normal caminharia em direção ao progresso. Deixa de fora, entretanto, tudo aquilo que é da ordem do desejo, desconsiderando, assim, os elementos ético e erótico do sujeito. (p. 25).
Como mais uma das reformas que atingiram as instituições educativas nos últimos anos, a pedagogia, em nome da ideologia do rendimento, da eficácia e da avaliação, procurou cientificizar-se. A forma peculiar de apropriação dos saberes científicos pela pedagogia, segundo Voltolini, revela seu funcionamento enquanto dispositivo, no sentido foucaultiano do termo, ou seja, uma pedagogia que visa construir um conjunto de saberes e estratégias destinados a exercer controle sobre a cena educativa (p. 26). O interesse por seu sujeito está apenas naquilo que ela pode operar sobre ele.
Diferentemente da ciência, que é descritiva, a pedagogia torna-se essencialmente prescritiva. A psicanálise, por sua vez, longe de pretender oferecer qualquer proposta ideal educativa, entra no campo da educação por meio da interpelação ética, isto é, situando-a de suas condições de possibilidade. Cabe à psicanálise recolocar o sujeito na cena educativa do qual foi suprimido, recuperando na formação dos professores a dimensão sexual e sua relação intrínseca com o saber, relação essa que se viu cindida com o advento da ciência.
Seguimos com a leitura do livro para descobrir que Voltolini utiliza-se das questões que a educação inclusiva traz para a formação de professores como exemplar tanto do "furor" formativo que ela demanda, como, também, pelo que inclusão e formação docente revelam de seu caráter sintomático nos dias atuais.
Mas, do que sofre a formação dos professores? É com essa pergunta que Voltolini começa a traçar um diagnóstico do pathos da formação docente atual. A primeira característica do lugar sintomático que essa formação ocupa no cenário educativo corresponde à culpabilização do professor pelo fracasso escolar. Se até a década passada, a preocupação em torno do dito "fracasso escolar" estava centrada na figura do aluno e das dificuldades de aprendizagem, atualmente há um deslocamento para a figura do professor, visto como mal formado ou formado de maneira insuficiente e, desse modo, responsabilizado pelo fracasso. A formação dos professores é, assim, pensada de modo reparatório, ao invés de emancipatório, como bem aponta Voltolini (p. 49).
O segundo traço dessa formação, que faz sintoma e que o autor retoma de Tardif, é a heteronomia formativa, isto é, a formação do professor não é concebida e planejada por eles próprios, mas pelos experts. Para Voltolini, a falta de autonomia em sua formação contribui para o declínio de prestígio social do professor.
A partir das marcas que regeram historicamente sua profissionalização e sua formação, o autor nos indica o lugar de proletário, no sentido atribuído por Lacan ao termo, ocupado pelo professor e, com isso, evidencia a desapropriação do saber do professor. Dentro dessa perspectiva, o professor proletário corresponde à figura do operário, aquele cujo saber necessário para operar a máquina é essencialmente técnico, repetitivo e pode ser absorvido, no futuro, pela própria máquina. Voltolini nos alerta de que qualquer oferta de formação docente que não levar em conta essa condição de proletário vivida pelo professor, estaria arriscada a corroborar com seu mal-estar e a atingir efeitos paradoxais: "não há verdadeira profissionalização sem implicação subjetiva, aquém de algum nome, sem alguém que possa dizer o que faz" (p. 54).
Após destacar o pathos da formação docente, a leitura dessa obra ainda nos permite percorrer os debates e as reflexões que têm sido promovidos no campo da formação docente, seu ethos e orthos, procurando em seu recorte demonstrar como vários autores das ciências da educação foram sensíveis, cada um a seu modo, às questões do sujeito e do saber.
A formação dos professores está constituída pelo domínio teórico conceitual e sua aplicação prática. O problema desse modelo formativo "é o quanto ele exclui o papel do sujeito" (p. 55). O autor destaca os estudos de alguns autores das ciências da educação que apontam na mesma direção que a démarche psicanalítica. Dentre eles, a crítica de Perrenoud (1988) à "utopia racionalista", termo empregado para ressaltar a aposta excessiva no controle racional do comportamento e do caráter utópico de uma proposta de trabalho baseada nesse controle. Assim como o estudo de Imbert (1992), que resgata a oposição entre o cientificismo, eixo ideológico do modelo dominante na formação de professores, e a práxis, aquilo que ocorre dentro da sala de aula e que não é da ordem da ciência (p. 55-56).
Se esses estudos convergem na direção da démarche psicanalítica, ao considerar o sujeito como o lugar decisivo a partir do qual o processo educativo ganha forma, por outro lado, eles divergem a respeito da noção de sujeito aí implícita. O sujeito da psicanálise não deve ser confundido com o de indivíduo da psicologia, este último muito mais próximo do que a psicanálise convencionou localizar do lado do Ego.
Voltolini faz, ainda, uma análise das consequências que a promoção da ideia de competência trouxe para a formação docente. Segundo ele, apesar dos esforços de Perrenoud, de tentar retirar a conotação que o termo "competência" ganhou no meio empresarial, sempre atrelada às idéias de rendimento, performance e competição, ainda assim, a noção de competência é problemática. Entre as críticas que tece a essa noção, está o lugar que uma formação baseada na aquisição de competências atribui ao fracasso, no qual, mesmo que se possa reconhecer os sentimentos e práticas indesejáveis de um professor, ainda assim, a ideia de competência estaria funcionando na ordem de imperativo a ser desenvolvido e de ideal a ser alcançado e, portanto, na lógica da prescrição (p. 61-62).
Por ser uma atividade das relações humanas, a docência não pode ser resumida a um simples manejo racional de conhecimentos, nem tampouco à pura aplicação de técnicas. Voltolini propõe recuperar o termo "engenhosidade2 docente" para falar sobre o que se passa na sala de aula no encontro de um professor com o seu aluno, e que é sempre da ordem do imprevisível. Mais ainda, o que a psicanálise tem a nos dizer sobre a engenhosidade docente é que nesse encontro há algo no acesso ao conhecimento que é da ordem da transferência e, portanto, fora de qualquer planejamento e controle.
Não podemos dizer que a engenhosidade docente não é levada em conta na formação do professor. Na reflexive practice, postura que surge como uma crítica ao aplicacionismo generalizável da evidence based practice, a engenhosidade do professor aparece como um produto da capacidade do sujeito de refletir na e sobre a sua prática. A partir da discussão a respeito dessas duas posturas formativas e na concepção de sujeito que está na base de cada uma delas, o autor procura demonstrar como elas ainda recusam como parte integrante dessa engenhosidade, o sujeito do inconsciente.
Pretendendo abordar o tema da formação não apenas do ponto de vista teórico, mas também por meio de uma experiência com essa. Voltolini se dedica, então, aos termos operatórios de como considerar o sujeito do inconsciente na formação do professor.
Será na démarche clínica que o autor encontrará as bases que irão apoiá-lo em seu trabalho de pesquisa. O termo clínica, na formação dos professores, significa "curvar-se ao valor da experiência" (p. 80). Na démarche clínica, o professor é convidado a falar sobre um caso no qual reconheça um impasse. A narrativa de um caso, que é sempre da ordem do campo transferencial, ressalta a dimensão do singular, desse sujeito dividido entre o conhecimento universal, que usa para se referenciar, e o saber inconsciente, que o orienta sem que se dê conta de sua implicação subjetiva.
Se a formação docente está centrada no campo do conhecimento e da instrumentalização e acredita ser capaz de, através do esclarecimento, preencher as lacunas da formação do professor, a psicanálise, por sua vez, nos demonstra que há algo do saber inconsciente que marca presença no campo do conhecimento, isto é, uma relação de não saber com o que se sabe. É numa formação fundada sobre a démarche clínica que a relação com o não saber do professor pode ser abordada em direção à desalienação e à elaboração (p. 84).
Apoiando-se nas premissas da démarche clínica, Voltolini e seus colaboradores se lançam ao trabalho de campo com o intuito de oferecer aos professores um espaço de palavra plena sobre a sua prática. Através de um modelo de intervenção grupal, de inspiração psicanalítica, os professores foram convidados a falar sobre o que manca em sua prática e, assim, permitir que algo da ordem de um enigma pudesse advir e, quem sabe assim, contornar o vício de uma formação prescritiva e reparatória.
Acerca dessa experiência singular na pesquisa, os colaboradores foram convidados a expor, sob a forma de um artigo, suas reflexões e concepções, sendo eles que compõem a segunda parte do livro, intitulada "Experiências e excursões conceituais". Participaram deste testemunho: Eric Plaisance, Marise Bartolozzi Bastos, Mônica Rahme, Lenara Spedo Spagnuolo, Ana Galletti Martins de Oliveira, Isabel Napolitani, Rinaldo Voltolini e Lígia Vertematte Rodrigues.
Nesse livro, Voltolini parece "limpar o terreno" de um campo em que nos vemos mobilizados pela complexidade e urgência, propiciando, assim, um diagnóstico esclarecedor, que amplia as possibilidades de articulação entre os campos da psicanálise e da formação dos professores. Ao mesmo tempo, sua leitura também nos adverte do risco que a própria psicanálise corre, de vir a se transformar na mais nova "receita pedagógica", e nos indica a démarche específica da psicanálise, que contém algum valor para o campo da formação dos professores.
Endereço para correspondência
mg.pedreira@hotmail.com
Av. Adolfo Pinheiro, 1029/137 Torre Sul
04733-100 São Paulo SP Brasil
Recebido em outubro/2018.
Aceito em dezembro/2018.
NOTAS
1. Optamos por não traduzir a palavra de origem francesa démarche por duas razões: em primeiro lugar, para respeitar o modo como o próprio Voltolini utilizou o termo no livro aqui resenhado; em segundo lugar, por considerar que esse termo já foi incorporado ao uso corrente nos textos psicanalíticos brasileiros. Podemos encontrar como sinônimos do termo dentro desse contexto, as palavras: "conduta" e "postura".
2. Termo elaborado por Huberman (1980), no qual distingue a engenhosidade da engenharia para abordar a relação entre o saber e o ato do professor. A primeira estaria ligada à habilidade de improvisação, enquanto a segunda caracterizaria um saber técnico adquirido previamente.