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Psicologo informacao

versão impressa ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.12 no.12 São Paulo out. 2008

 

O sentido de aprender psicologia para alunos de graduação em fisioterapia*

 

The Sense of Learning Psicology to Graduating Physiotherapy Students

 

 

Denilson Grecchi**; Dagmar Silva Pinto de Castro***;

Universidade Metodista de São Paulo

 

 


RESUMO

A profissão de fisioterapeuta exige, entre outras habilidades, capacidade de escuta, pelo seu caráter terapêutico. A Psicologia, como uma das disciplinas que compõe a grade curricular do curso, é entendida como campo do saber que permitirá ao aluno apropriar-se de conhecimentos necessários acerca dos aspectos subjetivos presentes na relação fisioterapeuta- paciente, que modulam a adesão ao tratamento para um melhor resultado da intervenção. O objetivo deste estudo é compreender qual o sentido de aprender Psicologia para alunos do último ano de graduação em Fisioterapia. Foram ouvidos e gravados os relatos de três alunos de uma universidade do ABC Paulista. Inspirado no método fenomenológico, realizou-se a leitura atenta dos relatos e o levantamento de unidades de significado, que foram transformadas em seis categorias analíticas: a compreensão do outro, a relação com o outro, a compreensão de si, o exercício da profissão, o ensino da Psicologia e a ética na prática da profissão. A análise compreensiva das categorias permitiu desvelar que a prática cotidiana da Fisioterapia mostra-se desafiante para o aluno que, no contato com o paciente, percebe-se como ser finito e descobre se despreparado para lidar com a sua dimensão humana e a do outro. Esse resultado aponta para a necessidade de um cuidado na formação desse aluno, que ultrapassa o aspecto intelectual e técnico da profissão. Ele precisa apropriar-se dos conteúdos das disciplinas com suporte adequado do ponto de vista psicológico. A abertura de espaços que acolham questões existenciais da profissão do cuidado é fundamental por tocar em aspectos que não exigem somente o manejo competente da técnica, mas a capacidade da escuta do outro.

Palavras-chave: Psicologia; Fisioterapia; Fenomenologia; Alunos de Graduação.


Abstract

The profession of physiotherapist requires, among other skills, ability to listen by its therapeutic character. The Psychology, as one of the disciplines that composes the curriculum of the course, is understood as field of knowledge which will allow the student wakes up for needed knowledge about subjective aspects of the therapist-patient relationship that modulate the adherence to treatment for a better result of the intervention. The purpose of this study is to understand the sense of learning psychology for students of last year of graduation in physiotherapy. Were heard and recorded reports of three students from an university in ABC Paulista. Inspired by the phenomenological method the reports were read and some units of meaning were identified which were transformed into six analytical categories: understanding the other, the relationship with the other, to understand themselves, the practice of the profession, the teaching of psychology and ethics in the practice of the profession. The comprehensive analysis of the categories helped reveal that the daily practice of physiotherapy is challenging for the student who, in contact with the patient, perceives itself as a finite being and find itself unprepared to deal with his human dimension and to the other. This result points to the need for care in training of student who goes beyond the intellectual and technical aspect of the profession. The content of the curriculum should to be taught with an adequate support from a psychological point of view. To open spaces that welcome existential issues of a care profession is essential for touching things that do not require only the competent management of the technique but the capacity of listening to the other.

Keywords: Psychology; Physiotherapy; Phenomenology; Graduating Students.


 

 

A profissão de fisioterapeuta teve início por volta do ano de 1880, através de um grupo de enfermeiras inglesas que se mobilizou a fim de aprender uma nova massagem que as auxiliassem no tratamento de mulheres neurastênicas. A massagem foi se tornando então uma profissão independente e deixando de ser apenas um adjunto da enfermagem. Em meados de 1884, surgem as primeiras escolas de treinamento para ensinar cientificamente a massagem e a eletricidade, com cursos que duravam de quatro a seis meses e incluíam aulas de anatomia e trabalho em hospitais. A epidemia de poliomielite e o grande número de trabalhadores portadores de lesões e mutilações provenientes dos novos regimes de trabalho instituídos pela Revolução Industrial impulsionaram, na Europa e nos Estados Unidos, o desenvolvimento das técnicas adotadas pela Fisioterapia no final do século XIX. A Primeira e a Segunda Guerra Mundial também contribuíram fortemente para a consolidação da Fisioterapia como profissão, pois era necessário reabilitar os soldados debilitados para que estes pudessem voltar ao campo de batalha. Dessa forma, o tratamento físico começava a ganhar reconhecimento público e passava a atuar juntamente com outras áreas das ciências médicas em busca da reabilitação total do paciente (OLIVEIRA, 2005b).

Segundo Gava (2004), entre 1945 e 1959, a Fisioterapia passou por uma fase de reconstrução e direcionamento, onde se originaram muitas das características e práticas presentes nesta área até os dias de hoje. As entidades de classe e os profissionais da Fisioterapia continuaram a se desenvolver e alcançaram também o mundo do esporte. Os currículos dos cursos de Fisioterapia também foram revisados, pois apenas os conhecimentos em Anatomia e Fisiologia, bem como o domínio de diversas técnicas de reabilitação, já não eram suficientes.

Historicamente, a Fisioterapia sempre esteve ao lado da Medicina, tomando esta como referência para as suas práticas profissionais e compartilhando a mesma visão reducionista e mecanicista de ser humano, de mundo e de ciência. Esta visão de ser humano pode muito bem ser exemplificada nas disciplinas de Anatomia, na qual os alunos manuseiam, sem constrangimento ou preocupações, partes de corpos como se esses fossem partes de uma máquina (GAVA, 2004). Essa visão reducionista do ser humano ainda se faz muito presente nas ciências biológicas, sendo o homem, muitas vezes, comparado a uma máquina, a exemplo do que fizera Descartes (1637) no passado. Também sobre esta questão, escreve Merleau-Ponty (2006, p. 124):

Enquanto tenho “órgãos dos sentidos”, um “corpo”, “funções psíquicas” comparáveis àquelas dos outros homens, cada um dos momentos da minha experiência deixa de ser uma totalidade integrada, rigorosamente única, em que os detalhes só existiriam em função do conjunto, eu me torno o lugar onde uma multidão de “causalidades” se entrecruzam.

O autor faz a fenomenologia da existência corpórea e, ao buscar a mais fundante percepção humana, tira as camadas que envolvem o sentido originário da percepção. Ao desvelar o corpo que a ciência transforma em objeto de estudo, aponta para a fragmentação do corpo como partes. Um dos desdobramentos de corpo para a ciência é a doença, que aparece então como um mau funcionamento desse mecanismo biológico, e os profissionais da saúde devem então aprender a repará-lo com os recursos ou ferramentas que suas profissões lhes proporcionam (MERLEAU-PONTY, 2006).

A hegemonia do médico no modelo de saúde atual confere a este uma postura paternal, onde todas as decisões devem ser tomadas pelo profissional, não cabendo ao paciente questionálo. No entanto, quando questionados, sentem-se obrigados a fornecer uma resposta ao seu interlocutor, pois não é aceitável demonstrar suas fragilidades perante o conhecimento. Neste contexto, surge o fisioterapeuta, seguindo o modelo médico tradicional e, ao mesmo tempo, vivenciando um movimento contrário que o aproxima de seu paciente e vislumbra, na criação de um vínculo afetivo, a possibilidade de acessar o corpo deste de uma forma mais eficiente. Infelizmente, o conteúdo aprendido nos bancos escolares não garante ao fisioterapeuta o sucesso necessário neste movimento de aproximação, pois este pode solicitar-lhe a renúncia de um modo de ser próprio, muitas vezes voltado para si mesmo, para perceber a singularidade do outro e então acessá-lo (GAVA, 2004).

A motivação para este estudo surgiu a partir da experiência adquirida no estágio em Psicologia Escolar, realizado durante o período de graduação, onde surgiram inquietações que despertaram o interesse em uma maior compreensão do aluno de Fisioterapia como futuro profissional. Daí surge o entendimento de que a Psicologia, enquanto ciência que estuda o humano e seu modo de ser no mundo, pode auxiliar as demais áreas da ciência que interagem com este humano a perceber quais caminhos podem contribuir para a reintegração do ser humano consigo mesmo, com os seus semelhantes e com o mundo. Assim, sua importância se dá na medida em que buscar compreender o sentido de aprender Psicologia para os futuros fisioterapeutas também implica em buscar compreender o ser humano em sua existência, cuja constituição se dá pela dimensão da produção da vida, continuidade da espécie, sobrevivência e produção de si mesmo. É reconhecer que não se pode atribuir a organização da psique somente por um externo, mas na atribuição de sentidos e significados que o humano dá. Assim como o paciente, o fisioterapeuta está submerso num mundo próprio, de experiências e vivências ímpares e que influenciarão o seu ser com o outro no mundo.

O objetivo principal deste estudo é compreender qual o sentido de aprender Psicologia para os alunos do último ano de graduação em Fisioterapia de uma universidade do ABC Paulista. Tem-se, ainda, como objetivos específicos, que compreender de que forma a Psicologia auxilia os alunos na compreensão de si mesmo, na sua relação com o outro e na prática da profissão de fisioterapeuta.

 

MÉTODO

O desejo de estudar o fenômeno a partir da experiência cotidiana dos alunos de Fisioterapia nos conduziu à escolha do método fenomenológico para a realização deste estudo.

Segundo Merleau-Ponty (2006, p. 1),

[...] a fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências [...]. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que propõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico.

O método fenomenológico é uma via pela qual o homem pode ser compreendido na essência de seu exercício efetivo, pois as ciências objetivas não seriam capazes de conduzir a um conhecimento dessa natureza. Assim, faz-se necessária uma redução fenomenológica, ou seja, a colocação das ciências naturais entre parênteses (époché) para que se isolem os objetos intramundanos reais ou ideais transformando-os em noemas (objetos intencionais presentes na consciência sem serem parte dela) para a consciência, no sentido transcendental e não psicológico (CAPALBO, 2005; HUSSERL, 2002).

Sob a luz da fenomenologia, a realidade passa a ser compreendida, não como algo objetivo e passível de ser explicado em termos de causa e efeito, mas como algo que emerge da intencionalidade da consciência. Por intencionalidade, entende-se a visada de consciência e produção de um sentido que permite perceber os fenômenos humanos em seu teor vivido. Dessa forma, a realidade torna-se perspectival, ou seja, existem tantas realidades quantas forem suas interpretações e comunicações (BICUDO, 1997; HUSSERL, 2002).

O método fenomenológico propõe um retorno à coisa mesma como um caminho que permite a compreensão da realidade em sua dinamicidade e a existência de um ser humano que é atribuidor de significados. É um convite ao exercício reflexivo que permite abarcar o novo saber, conforme produzido, a partir da experiência e pode participar da construção de novas perspectivas na produção de conhecimento (HUSSERL, 2002; MERLEAU-PONTY, 2006).

Participantes

Foram convidados a participar da pesquisa três alunos do último ano de curso de graduação em Fisioterapia de uma universidade da região do ABC Paulista, na faixa etária dos 20 aos 30 anos, de ambos os sexos e escolhidos por conveniência. Foram considerados como critério de escolha dos participantes, além do curso de graduação e faixa etária, a autorização da gravação de todo o conteúdo das entrevistas de coleta de dados e a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

Local

As entrevistas foram realizadas no interior da Faculdade de Fisioterapia da universidade dos participantes, entre os dias 16 e 22 de março de 2006.

Instrumento

Como instrumento de pesquisa, utilizou-se entrevista aberta (MARTINS; BICUDO, 2005). A entrevista foi conduzida de forma que o sujeito expressasse livremente sua opinião acerca do sentido de aprender Psicologia em seu curso de graduação.

Procedimento

Após aprovação deste estudo pela Faculdade de Psicologia e Fonoaudiologia da Umesp, a coordenação do curso de Fisioterapia da instituição participante foi contatada para a apresentação da pesquisa e obtenção da autorização e relação dos alunos elegíveis à participação na mesma. Os participantes desta pesquisa foram escolhidos por conveniência e participaram por adesão espontânea, ficando aberta a possibilidade de desistirem a qualquer momento. Antes de cada coleta dos dados, foi feita uma breve apresentação da pesquisa, onde foi apresentado o seu objetivo e suas condições de realização. Cada participante então assinou o Termo de Consentimento Livre Esclarecido e o gravador foi ligado com o consentimento do mesmo. Em seguida, lhe foi feita a pergunta: “Qual o sentido de aprender Psicologia em seu curso de graduação?”. Não foi estipulado tempo máximo para a fala do participante. Foi permitido aos participantes anularem os conteúdos ou falas que julgassem impertinentes. As entrevistas apenas foram consideradas encerradas quando os participantes manifestaram tal desejo. Os resultados deste estudo serão utilizados exclusivamente para fins científicos e o autor assume total responsabilidade ética pelos achados da pesquisa. O instrumento de coleta de dados não levou risco aos participantes.

No que diz respeito especificamente ao método fenomenológico, a compreensão do fenômeno estudado a partir do relato da experiência dos participantes seguiu etapas específicas de análise. Foram elas: descrição, categorização das unidades de significado, análise ideográfica e análise nomotética. A seguir, descrevemos cada uma dessas etapas de forma mais detalhada.

Descrição1: É através da descrição ou relato feito pelo participante da pesquisa que o fenômeno inicia o seu desvelar e, para compreendê-lo, é necessário sistematizar os dados com clareza e precisão a partir do discurso ingênuo (natural e espontâneo) dos participantes. É pela descrição que o participante encontra espaço para colocar a sua experiência em seu acontecer, em sua vida, tal como se dá. A descrição realizada pelo participante é analisada pelo pesquisador em quatro operações: 1) leitura da descrição a fim de familiarizar-se com o texto que descreve a experiência vivida; 2) releitura da descrição a fim de evidenciar unidades de significado dentro de uma perspectiva psicológica, focalizando o fenômeno que está sendo estudado; 3) identificação do insight psicológico contido nas unidades de significado evidenciadas; 4) reagrupamento dos constitutivos relevantes a fim de se chegar a uma análise da estrutura do fenômeno. (CASTRO, 1996; MARTINS; BICUDO, 2005).

A categorização das unidades de significado: O debruçar-se sobre o discurso e analisá-lo várias vezes, familiarizando-se com o mesmo, conduzem a uma compreensão na qual é possível perceber, a partir das unidades de significado identificadas, o que há nesse discurso e as convergências e divergências que se mostram dentro do próprio discurso (CASTRO, 1996).

Análise ideográfica2: Trata-se da análise da ideologia que permeia as descrições ingênuas do sujeito. Busca-se a inteligibilidade que se articula em cada um dos discursos, sua unidade estrutural, as inter-relações dos significados que possuem em relação à interrogação feita. Trata-se aqui de entrar, penetrar no mundo do sujeito para a compreensão do fenômeno. É acessar a sua intersubjetividade. O pesquisador deve deixar de lado suas crenças e preocupar-se não com a verdade ou não do discurso, mas com a compreensão de suas relações e estrutura. “Nesta Psicologia individual temos o que o sujeito pensa e responde à interrogação do fenômeno. É o desocultar do sujeito em seu discurso” (CASTRO, 1996, p. 47; MARTINS; BICUDO, 2005).

Análise nomotética3: “A análise nomotética desvela a estrutura geral do fenômeno como resultante das convergências e divergências que se mostram nos discursos individuais” (p. 48). Através da comparação dos discursos individuais, busca-se encontrar a evidência em todas as unidades de significado, a clareza alcançada pelo insight a partir da leitura das unidades de significado e das convergências encontradas. As divergências nos discursos revelam os aspectos estruturais ou peculiares de cada participante.

Na pesquisa qualitativa não se fazem generalizações. O ser humano é perspectival, não tem fim nem conclusão. Do particular (idiossincrático) vai-se para o geral (nomotético), chegando-se à construção dos resultados, destacando o que é essencial para a compreensão do fenômeno pesquisado. (CASTRO, 1996, p. 48).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A pesquisa propriamente dita se apresenta a seguir, com as descrições dos participantes e as análises ideográficas e nomotética. Os nomes dos participantes estão representados por letras a fim de preservar suas identidades. Os números entre parênteses identificam as categorias de análise atribuídas às unidades de significado em destaque.

Descrição de K.

Eu acho [a Psicologia] muito importante porque a gente tem que lidar com o paciente como um todo. Não tem como ele chegar e, você dizer: ele é só uma perna, só um braço, ele é um todo e, ele é principalmente, cabeça, mente (1).Eu senti muita falta [da Psicologia]. Para mim, fez e faz falta até hoje, porque a gente teve Psicologia só no primeiro semestre, muito pouco e, eu acho que faltou ser mais específico, falar mais sobre como lidar com a pessoa (2). Porque tem paciente que chora, tem paciente que precisa além, mais até do que movimentar a perna, o braço, precisa de uma conversa. Ele quer mais fazer uma terapia, com um psicólogo (1). Acho que faltou nesse sentido Acho que é muito importante para a gente, devido às dificuldades em lidar com o paciente, porque são mundos diferentes, cabeças diferentes, eles pensam diferente. Cada paciente que você pega é uma coisa (1).Meu primeiro estágio foi no hospital, e, outra coisa que eu acho importante, que a Psicologia, além desses pontos que eu falei, é para preparar a gente mesmo. Porque eu sofri para caramba. Para mim, foi muito difícil lá no hospital. Eu chorei muito, só chorava, chorava, chorava, não conseguia entender porque eu não conseguia lidar com aquilo. Lidar com a morte, lidar com o paciente que está entubado, que não movimenta nada e que você tem que ir lá e falar: oi, tudo bem? Como você está? Você sabe que o paciente pode morrer daqui cinco minutos, então, eu acho muito difícil (2). É um ambiente muito pesado e eu acho que a gente não tem preparo nenhum para isso. Todo mundo diz: você vai lá, você chacoalha, você vira, você mexe, você faz essas técnicas e pronto. Só que eu acho que não é (4). No final do estágio eles pediram para a gente comentar como foi, se gostou, e eu coloquei que o preparo emocional, para mim, é fundamental, e a gente não teve esse preparo e pra mim fez falta (4). Não só para mim, mas pra muita gente. O pessoal que estava comigo falou, chorou, reclamou. Mesmo aquelas pessoas que gostavam muito disseram: eu adoro hospital, mas não conseguiam lidar com a questão. É outra vida, é outro mundo. Você está lidando não só com o paciente, você está lidando também com outros profissionais. Tem uma equipe multidisciplinar ali que, às vezes, não sabe como agir (2). E eu acho que faz falta ter, às vezes, um apoio, ter um psicológico mesmo. Eu até falava: eu queria muito estar fazendo terapia neste momento para poder botar para fora, pedir opinião, não sei, alguma coisa. Porque acho eu que guardava muito as coisas para mim (3). Você ia, lidava e não tinha com quem falar. Você só lidava. Atendia um monte de pacientes por dia e tchau, vai embora. Aí, você chega em casa acabado, não é nem dor no corpo de virar paciente, é mal, com mágoa, me senti muito mal (2). Eu acho que depois você acostuma, como tudo na vida a gente vai acostumando, mas é difícil. Eu acho que a Psicologia é muito importante. Acho que seria muito legal não só Psicologia como uma disciplina, mas talvez, como um apoio psicológico mesmo (5). Separar alguns alunos, quem estiver disposto. Eu já fiz terapia e, então, eu sei que a gente tem que estar disposto a fazer, não adianta ser obrigado a fazer. Mas não tem nem esse intuito que vocês mesmos têm. Eu acho que é importante fazer, mesmo, um pré-acompanhamento. Eu acho que psicólogo faz terapia, certo? Então eu acho que fisioterapeuta também deveria fazer (4). Eu acho que valeria a pena. Acho que é muito importante.

Análise ideográfica de K.

K. acha a Psicologia importante porque a ajuda a lidar com o paciente como um todo, não só com seu braço ou sua perna. Acredita que o conteúdo da disciplina de Psicologia com que teve contato na faculdade foi insuficiente e não contemplou o lidar com o outro, pois há pacientes que necessitam de algo além de movimentar uma perna, um braço, precisam de uma conversa, uma terapia com um psicólogo. K. reconhece a singularidade dos pacientes e vê nisso uma dificuldade para lidar com eles. Entende que a Psicologia deve ser utilizada para prepará-los para o exercício da profissão, pois chorou muito e sentiu muita dificuldade de atuar no hospital, em lidar com a morte, com pacientes entubados, com pacientes que não se movimentam, sabendo que poderiam morrer dentro de poucos minutos. Acha o ambiente hospitalar muito pesado e diz não ter preparo para atuar nele. Discorda das recomendações recebidas para limitar o tratamento do paciente a chacoalhos, viradas, mexidas e algumas outras técnicas. Considera o preparo emocional fundamental e sente falta de não tê-lo recebido. Segundo K., a dificuldade em lidar com o outro não se restringe apenas ao paciente, mas também se estende a outros profissionais, à equipe multidisciplinar que os fisioterapeutas integram e que às vezes também não sabe como agir. K. vê na Psicoterapia uma possibilidade de se desabafar, de pedir uma opinião, de ser acolhida, pois acredita que guarda muitas coisas para si. Após atender os pacientes, não tinha com quem falar, então ia para casa acabada, mal, com mágoa. Sugere que a Psicologia não seja apresentada somente como uma disciplina, mas como um apoio psicológico e entende a importância da Psicoterapia como suporte profissional.

Descrição de M.

Eu acho que tem duas coisas muito importantes. Acho que uma é a gente como profissional, o fisioterapeuta ter condições próprias de se portar diferente com alguns problemas. A gente encara doenças muito graves, doenças, às vezes, degenerativas, doenças que são progressivas, isso para gente é complicado. Eu acho que a gente precisa de um suporte para, às vezes, conseguir orientar o paciente (4). Porque, querendo ou não, aqueles que são contactantes, que falam, que conversam, que não sabem muito que a gente é só fisioterapeuta, não sabem dividir muito bem que eles estão lá para cuidar, teoricamente, mais do motor (1). Eles vêm e acabam contando tudo que acontece, tudo em volta, os problemas da família inteira e todas as coisas. E aí é complicado porque a gente, às vezes, não sabe muito se dá palpite e se está sendo invasivo ou não. Então, você vai lá e fala ou você fica só de ouvinte e faz o que você deve fazer, que é cuidar, exatamente, daquilo para o quê eles vêm (2). Parece que não tem muito como separar, então a gente acaba dando alguns palpites, tenta não resolver pelo outro, mas é difícil ser tão imparcial assim, até porque a gente fica um tempo com o paciente (2). Acho que da primeira vez que você escuta, você não fala nada, mas depois, você vai acompanhando um mês e tal e você fala: vou dar algumas dicas, não sei se vai melhorar ou piorar. Eu comecei com a Neuro esse ano, foi meu primeiro estágio e é complicado. A gente fica a primeira semana meio baqueado. Na verdade, na maioria das doenças, as pessoas que estão ali vão melhorar do que estão, mas não vão ficar, como que a gente chama, de totalmente saudáveis (2). Para a gente é difícil, porque no fundo, você queria dar um jeito de parar com tudo, de curar e não é isso, a gente sabe que não pode (3). Então eu acho que são essas duas coisas mais importantes. Por isso, acho que a gente tem, na grade, Psicologia. No sexto semestre, tivemos Psicologia e depois Psicossomática. Mas, em geral, eu acho que não é muito efetivo. A gente teve alguns princípios, mas acho que na hora mesmo, é mais o que você tem de experiência de vida e tal e tem gente que acaba conseguindo ficar um pouco mais maduro, tem gente que não (5). Tem gente que se abala mais quando dá de cara com alguns pacientes, com algumas doenças. Tem gente que encara numa boa, que consegue não se envolver, não misturar, ir lá tratar. Eu acho que eu consigo bem, mas, para ser sincera, tiveram uns pacientes mais jovens, mais de igual para igual com a gente, de vinte, vinte e poucos anos, que você os vê com lesão medular e foi mais difícil. Quando é velhinho, parece que a gente está mais acostumada a vê-lo dependente (2). Acho que [a Psicologia] é importante, porque a gente presta ao longo do curso todo um suporte. Acho que seria o ideal nos cuidarmos aos poucos, nos prepararmos aos poucos para enfrentar, porque a gente tem, lá no primeiro ano, e aí depois a gente entra no segundo ano nas matérias específicas. No terceiro ano, mais de doença mesmo e acabamos deixando um pouco de lado esse lado (4). Às vezes, a gente é muito técnico para coisa, chega lá e no primeiro contato, você nem leva em conta o que você sabe. E aí, como é que você começa? Então, acho que seria o ideal, mas não sei se isso é viável ou não. Mas, pelo menos a gente tem! Têm faculdades que nem os princípios básicos. Estamos bem, mas seria o ideal que tivéssemos por mais tempo, porque, quanto mais, melhor.

Análise ideográfica de M.

Para M., é complicado o fato de ter que lidar com doenças graves, degenerativas e doenças progressivas no exercício de sua profissão. Acredita que precisa de um suporte para orientar o paciente quando necessário. Na visão da estagiária, os pacientes que são contactantes e que não sabem que os alunos que os atendem são somente fisioterapeutas, não compreendem que estão na clínica somente para cuidar de sua parte motora. Os pacientes contam a M. seus problemas familiares e tudo mais o que acontece em suas vidas. A aluna fica em dúvida se deve dar palpites ou se deve somente ouvi-los e cuidar exatamente daquilo que vieram tratar. No entanto, devido ao vínculo estabelecido no decorrer do tempo em que fica com os pacientes, M. acha difícil ser imparcial aos conteúdos trazidos por estes e acaba dando-lhes alguns palpites, embora tente não resolver os problemas por eles. O estágio prático de M. teve início pelo núcleo de Neurologia e, segundo ela, foi complicado, sentiu-se baqueada na primeira semana. Para a estagiária, a maioria dos pacientes atendidos na clínica ficará melhor de seus problemas, mas não se tornará totalmente saudável. Esta realidade se mostra difícil para M., que deseja curar a todos, mas sabe que não pode. Os conteúdos de Psicologia e Psicossomática ensinados no sexto semestre do curso de Fisioterapia parecem não ser efetivos, M. então diz recorrer à sua experiência de vida na hora de lidar com seus pacientes. M. sugere que esta prática permite a alguns alunos amadurecer mais do que outros. A estagiária considera mais fácil tratar pacientes mais velhos, que pela idade já são dependentes de ajuda, do que tratar pacientes com a mesma idade que a sua, na faixa de vinte anos. M. acredita que os alunos deveriam ser preparados aos poucos para enfrentar os desafios da prática do curso de Fisioterapia. Porque, segundo ela, os alunos têm Psicologia apenas no primeiro ano do curso, depois entram nas disciplinas mais específicas da área e acabam deixando as questões psicológicas de lado.

Descrição de R.

Eu acho que [a Psicologia] ajuda tanto o aluno quanto o paciente (4). Porque, pelo menos agora, no quarto ano, que foi quando caiu, pelo menos para mim, a ficha, que você sempre vai atender e vai conviver com pessoas que tem problema (1). E, também perceber bastante como é, pelo menos, o primeiro estágio, perceber o impacto. Eu vi chorando as meninas do meu grupo, que sou eu e o resto de meninas. Você atende o paciente com amiotrofia, que você sabe que a qualquer hora pode parar de respirar. Uma vez eu vi, atendi, e ainda cheguei para a professora e falei: me senti meio frustrado porque não tinha muito que fazer por ele. Aí ela falou: você já fez, já ajudou. Acho que [a Psicologia] me ajuda a entender mais, como se faz, como fica essa relação entre paciente-terapeuta (4). O que você pode ajudar e o que não pode. Eu acho que no nosso curso foi muito pouco, foi pouca coisa [de Psicologia]. Eu, pelo menos, não me recordo de nada que eu possa usar agora no atendimento, não sei nada que eu possa recordar (5). E, às vezes, é bom para você também saber identificar se o paciente está num quadro depressivo. Você vê e pode encaminhar para o psicólogo (4). Não sei se tem um psicólogo aqui ou você encaminha pra fora. Acho que é mais para isso. Agora, por exemplo, eu agora estou na Pediatria. Eu poderia também estudar alguma coisa relacionada à criança (4). Porque você pega a criança muito novinha, com uma patologia grave, só que não entende muita coisa. Então, como você deve passar isso para ela, como ela deve entender (4). Às vezes, você solta alguma coisa e ela pega e acaba entendendo. Às vezes, o pai e a mãe não falam para a criança o que ela tem, porque acham que ela é muito pequena e não devem falar agora. Podia ter alguma coisa relacionada com um acompanhamento, para que a gente possa saber como ajudar esta essa criança (4). O jeito de passar a informação, o que deve, o que não deve, senão, você fica meio tenso com o pessoal que faz estágio de observação (6). Eu passei por isso no meu primeiro ano, com essa menininha mesmo. Ela veio e eu perguntei o que ela tinha e a fisioterapeuta falou que depois falava, porque ela já estava grandinha e sabia o que podia ser, e se ela me contasse, ela entenderia, porque o pai e a mãe não contam para ela o que ela tem (6). Eu passei por isso esse ano agora, na segunda-feira. O pessoal do primeiro ano chegou e perguntou e eu falei que falava depois, porque você fala, a criança entende, às vezes ela não sabe o que tem e eu não sei como ela fica depois em casa, eu não sei como é o pai em casa, como que é a mãe em casa (6).

Análise ideográfica de R.

Segundo R., a Psicologia ajuda tanto o aluno quanto o paciente. Neste momento do curso, R. percebe que sempre vai atender e conviver com pessoas que têm problemas. R. sente-se frustrado diante dos casos em que não pode fazer muito pelo paciente. Entende que a Psicologia o ajuda a compreender melhor o fazer de sua futura profissão, bem como a relação que se estabelece entre paciente e terapeuta. Acredita que o conteúdo da disciplina de Psicologia visto no curso foi pouco e não se recorda de nada que possa utilizar, neste momento, nos seus atendimentos. Vê a Psicologia como um instrumento, que lhe permite identificar se o seu paciente está num quadro depressivo, encaminhando-o a um Psicólogo quando necessário. Gostaria de estudar algo relacionado à criança para que possa compreender as questões que se apresentam a ele em seu estágio no núcleo de Pediatria, pois quando lida com uma criança muito nova e portadora de uma doença grave, não sabe como comunicá-la a respeito de sua doença e, se o fizer, não sabe como ela entenderá essa informação. Para R., um acompanhamento o auxiliaria a lidar com os casos nos quais os pais não informam seus filhos sobre suas doenças, por considerá-las pequenas demais para compreender tal informação. Sente-se tenso com os alunos do primeiro ano que cumprem estágio de observação na clínica, por não poder falar sobre o caso das crianças na presença delas, sob pena de que apreendam, inadvertidamente, alguma informação que possa lhes causar algum tipo de problema em casa, junto a seus pais.

Categorias levantadas para análise nomotética

A partir da análise compreensiva das descrições, foram levantadas seis categorias que apontam os aspectos convergentes encontrados nas falas dos alunos e que nos revelam a estrutura mais geral do fenômeno: o sentido de aprender Psicologia para os alunos do último ano de graduação em Fisioterapia. Ao analisar cada uma das categorias, é possível estabelecer um diálogo com o saber acumulado a respeito do tema abordado.

1) a compreensão do outro;
2) a relação com o outro;
3) a compreensão de si;
4) o exercício da profissão;
5) o ensino da Psicologia;
6) a ética na prática da profissão.

Análise nomotética

1) A compreensão do outro

As unidades de significado reunidas nesta categoria sugerem que os alunos entendem a Psicologia como mediadora na compreensão do outro.

A partir da fala “eu acho [a Psicologia] muito importante porque a gente tem que lidar com o paciente como um todo. Não tem como ele chegar e, você dizer: ele é só uma perna, só um braço, ele é um todo e, ele é principalmente, cabeça, mente” se percebe que a concepção de ser humano do aluno influencia o olhar que este direciona ao paciente. Esse olhar pode conceber o paciente como um conjunto de órgãos dissociados uns dos outros, que se perdem em suas funcionalidades e não constituem um ser humano ou esse olhar pode conceber um ser humano completo, composto de corpo objetivo e subjetivo e que atribui sentidos e significados às suas experiências (GAVA, 2004). Também para Meyer (2005), o aluno de Fisioterapia pensa no corpo apenas em seu aspecto biológico, negando o entendimento do homem como construção cultural e necessariamente social. Como superação desta questão, o autor sugere que somente o conhecimento dialógico do corpo humano na formação do fisioterapeuta poderá promover um crescimento nesta relação e nos conceitos de saúde e doença.

A partir do estudo sobre o autoconhecimento e a percepção corporal de acadêmicos de Fisioterapia, Vasques (2007) sugere uma nova perspectiva na sua formação do profissional. Para a autora, este profissional lidará, em sua rotina laboral, com desordens corporais de seus pacientes e, portanto, deve estar atento às possibilidades e capacidades do corpo humano. Dessa forma, pensa ser de fundamental importância a incorporação, no currículo, de aspectos específicos dirigidos ao estudo teórico e prático do corpo e do movimento, numa abordagem não só biológica, mas sim atrelada com o avanço dos métodos e técnicas da Fisioterapia, num contexto histórico e teórico.

No momento do atendimento, o aluno entra em contato com o modo de ser de seu paciente. O ser-com-o-outro no momento da terapia revela diferenças, e as intencionalidades de ambos se inter-relacionam. O paciente pode demonstrar, explícita ou implicitamente, através de gestos ou palavras, que possui demandas fisiológicas e afetivas a serem atendidas, pois é um ser em totalidade. Ao dar-se conta dessas demandas, o aluno pode, de acordo com seus recursos, acolher o paciente em suas necessidades ou sentir-se incapaz de fazê-lo e transferir a responsabilidade de tal acolhida para outro profissional.

“Acho que [a Psicologia] é muito importante para a gente, devido às dificuldades em lidar com o paciente, porque são mundos diferentes, cabeças diferentes, eles pensam diferente. Cada paciente que você pega é uma coisa”. Nesta fala, a dificuldade em lidar com o outro surge ao se constatar que os pacientes possuem modos de ser diferentes, o que exige do aluno novas estratégias de relacionar-se a cada atendimento. O mesmo paciente pode, ainda, mostrar-se de diferentes modos ao longo de seu tratamento e, da mesma forma, exigirá uma nova leitura e uma nova compreensão de sua realidade pelo terapeuta. Neste sentido, Mello Filho (1992) ressalta a importância do profissional de saúde estar preparado para realizar uma leitura integral do seu paciente, observando a importância da subjetividade deste como um fator desencadeador de doenças, a chamada psicossomática.

A fala de M. – “aqueles que são contactantes, que falam, que conversam, que não sabem muito que a gente é só fisioterapeuta, não sabem dividir muito bem que eles estão lá para cuidar, teoricamente, mais do motor” – revela que quando há dificuldades, por parte do aluno, em se fazer a leitura do modo de ser do paciente, a responsabilidade da compreensão da realidade é transferida ao outro. Espera-se, muitas vezes, que o paciente faça a diferenciação dos papéis daqueles com quem se inter-relaciona ao buscar sua cura.

Quando diz “você sempre vai atender e vai conviver com pessoas que têm problemas”, R. confronta-se com a realidade de sua profissão que, no exercício de estar-com-o-outro, deve entender a condição alheia, suas dificuldades e limitações e assumir a responsabilidade de seus cuidados. Os profissionais de saúde encontram em seu dia a dia situações que os colocam em conflito com a sua própria existência. O aumento do fluxo de doentes, novos casos de doença, elevadas cargas horárias de trabalho, tensão nas relações profissionais e estilos de vida sedentários são alguns aspectos que contribuem para o elevado mal-estar desses profissionais. Muitas vezes, esse quadro é ainda mais desanimador quando se consideram as lacunas presentes no processo de formação desses profissionais, não lhes fornecendo recursos que lhes permitissem aprender a lidar com o conteúdo emocional proveniente da prática específica da profissão escolhida (ARRUDA, 2003; PACHECO; JESUS, 2007).

2) A relação com o outro

Nesta categoria, estão reunidas as unidades de significado que explicitam o modo do aluno se relacionar com o outro, seja este o paciente ou a equipe multidisciplinar em que está inserido.

Na fala “a Psicologia [...] é para preparar a gente mesmo. [...] Para mim, foi muito difícil lá no hospital. Eu chorei muito, só chorava, chorava, chorava, não conseguia atender, porque eu não conseguia lidar com aquilo. Lidar com a morte, lidar com o paciente que está entubado, que não movimenta nada e que você tem que ir lá e falar: oi, tudo bem? como você está? Você sabe que o paciente pode morrer daqui cinco minutos, então, eu acho muito difícil”, K. relata sua tentativa de lidar com a difícil realidade do outro. Segundo Kovács (2003), a morte faz parte do cotidiano dos profissionais de saúde e os coloca frequentemente diante de seus limites. Muitas vezes, o mais difícil para um profissional da saúde não é lidar com a morte, mas sim com o paciente vivo que está morrendo, pois este evidencia a impotência do profissional em proporcionar o alívio a sua dor ou a cura desejada.

Na fala de M. – “Eles vêm e acabam contando tudo que acontece, tudo em volta, os problemas da família inteira e todas as coisas. E aí é complicado, porque a gente, às vezes, não sabe muito se dá palpite e se está sendo invasivo ou não. Então, você vai lá e fala ou você fica só de ouvinte e faz o que você deve fazer, que é cuidar, exatamente, daquilo para o que eles vêm” –, entendemos que a dúvida sobre como agir, como acolher a fala do paciente, lhe causa insegurança. Ele encontra uma solução para reduzir sua angústia se afastando do paciente e focalizando sua atenção no membro doente. Alguns autores veem na teoria psicanalítica uma possibilidade de compreensão da psicodinâmica atuante na relação profissional-paciente. Tal dinâmica pode ser descrita através dos conceitos clássicos de transferência e contratransferência (BILACHI, 2001; TAHKA, 1988).

Para K., o modo de se relacionar com os pacientes deveria ser abordado pelo curso: “a gente teve Psicologia só no primeiro semestre, muito pouco e, eu acho que faltou ser mais específico, falar mais sobre como lidar com a pessoa”. Pensamos que o modo de se relacionar com os pacientes é algo que o próprio aluno constrói. O curso pode criar condições adequadas para que o estudante reflita sobre o humano que está à sua frente e suas necessidades enquanto paciente. Desta reflexão pode então ser construído um novo modo de se relacionar, o que muitas vezes exigirá do aluno uma revisão de suas concepções de ser humano e mundo para que possa estar com o outro sem prejuízos psicológicos para ambos.

Em sua teoria do vínculo, Pichon-Rivière (1998) descreve o que seria um vínculo normal. Para o teórico, para que uma relação interpessoal possa ser considerada normal, tanto o objeto quanto o sujeito têm uma livre eleição do objeto, ou seja, há uma diminuição da relação simbiótica existente de forma que sujeito e objeto têm um limite preciso, não estando mais mutuamente confundidos, mas sim diferenciados ou independentes.

O relacionar-se na Fisioterapia não está limitado à relação terapeuta-paciente, mas inclui os demais profissionais da área da saúde, que também estão engajados na cura do paciente. K. nos revela, através da fala “você está lidando não só com o paciente, você está lidando também com outros profissionais. Tem uma equipe multidisciplinar ali que, às vezes, não sabe como agir”, sua constatação de que a dificuldade de estar com o outro expande os limites da Fisioterapia e avança rumo à complexidade do ser humano. O alto grau de especializações das áreas da saúde fragmentou o conhecimento e, consequentemente, a compreensão do homem, tornando cada vez menor o campo de atuação dos profissionais ou especialistas (SILVA, 2003).

“Você ia, lidava e não tinha com quem falar. Você só lidava. Atendia um monte de pacientes por dia e tchau, vai embora. Aí, você chega em casa acabado, não é nem dor no corpo de virar paciente, é mal, com mágoa, me senti muito mal”. Por meio desta fala, K. revela as consequências do modo como se relaciona com os seus pacientes. Seus recursos psicológicos parecem ser insuficientes para conter todos os desafios que a sua profissão lhe impõe.

M. revela como o atendimento a pacientes com características semelhantes à sua pode influenciar sua atuação: “tiveram uns pacientes mais jovens, mais de igual para igual com a gente, de vinte, vinte e poucos anos, que você os vê com lesão medular e foi mais difícil. Quando é velhinho, parece que a gente está mais acostumada a vê-lo dependente”. O estar com o outro, enquanto paciente que possui características do seu momento temporal (idade, aparência etc.), a impacta. O movimento que apresenta é de paralisação. É difícil tocar no corpo jovem que a remete ao seu próprio ser enquanto fisioterapeuta jovem. É mais fácil lidar com o corpo velho que lhe é distante.

3) A compreensão de si

Esta categoria abriga as falas cujos conteúdos apontam para uma reflexão do aluno sobre sua atuação e as consequências desta. A Psicologia aqui é entendida como meio de compreender a si.

Quando K. diz: “eu queria muito estar fazendo terapia neste momento para poder botar para fora, pedir opinião, não sei, alguma coisa. Porque acho eu que guardava muito as coisas para mim”, revela seu modo de ser e fazer. Procurar por um psicoterapeuta a fim de compartilhar suas experiências, angústias e inseguranças pode ser compreendido como um movimento, motivada pela necessidade de conhecer a si própria. Sua subjetividade necessita de aparição junto a outro que a acolha. Dessa forma, K. denuncia a importância de que os cuidadores, profissionais da saúde em geral, tenham um espaço para serem ouvidos por uma escuta profissional. A fim de propiciar esta escuta, muitos espaços têm sido criados em instituições de ensino, no formato de plantão psicológico, com o objetivo de contribuir não somente com a melhora do desempenho acadêmico dos universitários, mas também para o seu desenvolvimento pessoal (MAHFOUD, 1999; MORATO, 1999; TARDIVO, 2004).

Já M., através de sua fala (“para a gente é difícil, porque no fundo, você queria dar um jeito de parar com tudo, de curar e não é isso, a gente sabe que não pode”), depara-se com a sua limitação enquanto fisioterapeuta, confronta-se com a finitude de seu ser. Dessa forma, mostra estar consciente do seu papel de fisioterapeuta e demonstra assim um maior conhecimento das limitações de seus recursos profissionais e pessoais.

A possibilidade de conhecer a si próprio, de entrar em contato com a própria subjetividade, pode auxiliar o jovem aluno antes mesmo da atuação profissional. Pode auxiliá-lo no momento da escolha da sua futura profissão, pois sabe-se que, frequentemente, os estudantes fazem suas escolhas sem uma noção clara das disciplinas que vão estudar e da inserção de tal profissão no mercado de trabalho. Em função das mudanças ocorridas no mercado de trabalho nos últimos anos e de uma visão idealizada das profissões, mostra-se importante, no processo de escolha de uma profissão, um maior esclarecimento sobre as carreiras oferecidas no ensino superior, bem como uma análise socioprofissional e de recursos pessoais internos antes do ingresso em um curso de graduação (LEHMAN, 2005; SOUZA, 2005; VILELA, 2003).

Acerca da questão da orientação vocacional na adolescência, Bohoslavsky (1998) entende que, nessa fase da passagem da infância à vida adulta, o indivíduo deve encontrar maneiras diferentes de se adaptar a diversas áreas. Uma dessas áreas de ajustamento se refere ao estudo e ao trabalho, entendidos como meio e forma de ascender a papéis sociais adultos. Quando realizado no plano psicológico, diz-se que o adolescente encontrou sua identidade vocacional. Essa identidade é um aspecto da identidade do sujeito e faz parte de um sistema mais amplo que o compreende, "é determinada e determinante na relação com toda a personalidade. Os problemas vocacionais terão que ser entendidos como problemas de personalidade determinados por falhas, obstáculos ou erro das pessoas, no alcance da identidade ocupacional" (BOHOSLAVSKY, 1998, p. 30).

É possível afirmar que, a exemplo do que acontece com o médico, a relação do fisioterapeuta com seu paciente será marcada, ao longo de toda sua atuação profissional, pela imperfeição da vida, pela morte, pela dor física e psíquica, pelo corpo e suas vicissitudes. Assim, aprender a lidar com o estresse proveniente dessa relação é fundamental para um futuro profissional saudável; em outras palavras, o profissional da saúde deve estar preparado para lidar com três áreas: o conhecimento cognitivo, a prática e as emoções (GUIMARÃES, 2007).

4) O exercício da profissão

As unidades de significado agrupadas nesta categoria revelam uma Psicologia utilizada como instrumento para lidar com a realidade encontrada no exercício da Fisioterapia.

Os alunos sentem-se despreparados, do ponto de vista psicológico, para estarem com seus pacientes. As falas de K. e M. ilustram essa constatação: “o preparo emocional, para mim, é fundamental, e a gente não teve esse preparo e pra mim fez falta”; “eu acho que é importante fazer, mesmo, um pré-acompanhamento. Eu acho que psicólogo faz terapia, certo? Então eu acho que fisioterapeuta também deveria fazer” e “a gente encara doenças muito graves, doenças, às vezes, degenerativas, doenças que são progressivas, isso para gente é complicado. Eu acho que a gente precisa de um suporte para, às vezes, conseguir orientar o paciente”.

Em sua dissertação de mestrado, Santiago (2003) conclui que o contraste de sentimentos positivos e negativos evocados pelos pacientes poderiam “constituir obstáculos mais ou menos fortes para o completo desenvolvimento profissional dos alunos” (p. 57). A pesquisadora sugere que esses sentimentos estejam relacionados a perfis específicos de personalidade dos alunos e sugere estágios de observação e reuniões clínicas centradas sobre aspectos emocionais antes do início dos atendimentos supervisionados e treinamento de supervisores, para detectar e lidar melhor com essas demandas.

A dificuldade em exercer a profissão pode, muitas vezes, estar na necessidade da reprodução de determinadas técnicas com as quais o aluno não concorda ou que não estão de acordo com o seu modo de compreender e intervir no paciente. K. revela, em sua fala – “[o hospital] É um ambiente muito pesado e eu acho que a gente não tem preparo nenhum para isso. Todo mundo diz: você vai lá, você chacoalha, você vira, você mexe, você faz essas técnicas e pronto. Só que eu acho que não é” –, sua discordância em relação ao modo como foi instruída a lidar com o seu paciente. A técnica que utiliza está desconectada da sua vida, exerce apenas o controle do corpo do outro. Para Balint (1988), uma “aliança terapêutica” entre profissional e cliente é fundamental para um bom atendimento, pois a técnica, por mais aprimorada que seja, tenderá a ser inócua ou alienante se não for realizada através de uma boa relação entre ambos.

Em seu artigo, Campos (2003) destaca algumas características de personalidade necessárias ao profissional de Fisioterapia para que este desempenhe suas atividades em um contexto hospitalar sem que estas lhe causem danos emocionais ou aos seus pacientes. Segundo a autora,

[...] um dos aspectos a ser destacado pelo profissional fisioterapeuta é a questão da aceitação e compreensão do estado atual do paciente, entendendo aceitação como um estado psicológico onde há a compreensão real dos limites e possibilidades impostas pela doença, hospitalização, tratamento e a vida (CAMPOS, 2003, p. 450).

Através da fala “acho que seria o ideal nos cuidarmos aos poucos, nos prepararmos aos poucos para enfrentar, porque a gente tem, lá no primeiro ano, e aí depois a gente entra no segundo ano nas matérias específicas. No terceiro ano, mais de doença mesmo e acabamos deixando um pouco de lado esse lado”, M. nos explicita que o modo de organização do curso parece não estar em sintonia com a realidade vivenciada pelos alunos. O estudo dos membros torna-se mais importante do que a compreensão do ser humano completo e, dessa forma, o aluno se distancia das questões afetivas que envolvem todo o contexto da sua prática.

A frustração também se torna presente no cotidiano dos alunos na medida em que estes não têm total clareza do seu papel como fisioterapeutas e das suas limitações intrínsecas. A Psicologia pode auxiliar o aluno a compreender o seu papel, conduzindo-o a uma reflexão da sua prática e ao resgate dos significados que o futuro como fisioterapeuta lhe atribui. R. ilustra esta frustração através da fala: “você atende o paciente com amiotrofia, que você sabe que a que qualquer hora pode parar de respirar. Uma vez eu vi, atendi, e ainda cheguei para a professora e falei: me senti meio frustrado porque não tinha muito que fazer por ele. Aí ela falou: você já fez, já ajudou. Acho que [a Psicologia] me ajuda a entender mais, como se faz, como fica essa relação entre paciente-terapeuta”. Em seu estudo sobre qualidade de vida em estudantes de enfermagem, Oliveira (2005a) ressalta a importância de uma atenção institucional não somente aos alunos, mas também ao corpo docente. Para a autora, os docentes estão sujeitos às mesmas ansiedades às quais estão sujeitos os alunos, pois, preocupados em responderem as demandas do processo educacional, não conseguem elaborar adequadamente sua subjetividade.

Através da fala de R. – “[a Psicologia] é bom para você também saber identificar se o paciente está num quadro depressivo. Você vê e pode encaminhar para o psicólogo” –, identifica-se que a Psicologia também é percebida como um instrumento que auxilia o aluno na leitura da realidade do paciente e fornece, dessa forma, subsídios para a sua ação.

Sudan (2005) destaca a dificuldade dos estudantes da área da saúde em adotar uma postura reflexiva e ampliada da realidade em sua prática. Relata que estes não diferenciam educação de treinamento e, assim, continuam a reproduzir ações educativas já existentes, com limitada perspectiva críticoreflexiva, o que dificulta a busca por mudanças significativas em sua prática profissional.

Zimerman (1992 apud SANTIAGO, 2003) aponta os atributos desejáveis para que o médico ou todos os profissionais da área da saúde, inclusive os fisioterapeutas, possam exercer a sua profissão satisfatoriamente, estabelecendo uma boa relação com seu paciente. Entre os atributos desejáveis estão: possuir um “esquema referencial” que consiste no conjunto de conhecimentos, afetos e experiências, com as quais ele pensa, age e se comunica; capacidade de intuição e empatia; capacidade de absorver e metabolizar as angústias e fantasias do paciente, e devolvê-las de forma não assustadora; capacidade para se responsabilizar por suas faltas e limitações e, a partir delas, buscar aperfeiçoar sua trajetória profissional; capacidade de comunicação e de ter a disposição de escutar o paciente e fazer-se entender pelo mesmo.

Dentre os desafios vivenciados pelo estudante universitário em seu processo de formação, estão aqueles relacionados à qualidade da atuação profissional, que remetem às críticas e cobranças, cada vez mais contundentes, à qualidade do ensino. Tais críticas são, em geral, direcionadas à qualidade técnica de exercício da profissão em si mesma, ao compromisso ético inerente à atividade profissional e à forma como o profissional constrói e consolida sua relação com aqueles (clientes e colegas) com quem trabalha. Del Pettre e Del Pettre (2003) sugerem que o desenvolvimento interpessoal é fundamental na formação profissional e deveria ser objeto de atenção no ensino superior, de forma a proporcionar uma formação mais ampla para o estudante e maximizar a qualidade de sua atuação em termos técnicos e éticos.

5) O ensino da Psicologia

O conteúdo das unidades de significado desta categoria nos remete às questões pertinentes ao ensino da disciplina de Psicologia no curso de Fisioterapia.

De acordo com M.,“no sexto semestre, tivemos Psicologia e depois psicossomática. Mas, em geral, eu acho que não é muito efetivo. A gente teve alguns princípios, mas acho que na hora mesmo, é mais o que você tem de experiência de vida e tal e tem gente que acaba conseguindo ficar um pouco mais maduro, tem gente que não”.

Da mesma forma, R. relata: “eu acho que no nosso curso foi muito pouco, foi pouca coisa [de Psicologia]. Eu, pelo menos, não me recordo de nada que eu possa usar agora no atendimento, não sei nada que eu possa recordar”.

Diante destas falas, permitimo-nos pensar que o conteúdo da disciplina de Psicologia, pouco dialogou com a realidade dos alunos no momento do curso em que foi ministrada. As experiências de vida dos alunos parecem fornecer-lhes melhores subsídios para lidar com as questões pertinentes à sua prática profissional. No entanto, devemos estar atentos para constatar em qual solo fundamentam-se suas convicções pessoais, suas concepções de ser humano e mundo e de que modo estas convicções afetam a qualidade de sua relação com o outro.

Repensar o conteúdo da disciplina de Psicologia, a forma como é ministrada ou o momento em que é apresentada aos alunos no curso parece ser de extrema necessidade. As falas dos participantes, de modo geral, remetem a uma Psicologia que esteja mais presente à sua prática e poucos consideram o conteúdo teórico com que tiveram contato válido. Voltar-se ao mundo vivido dos alunos e, a partir dele, construir uma disciplina que corresponda às suas demandas parece ser o caminho mais seguro para uma prática mais saudável do ponto de vista psicológico. Estudos demonstram que as especificidades de cada curso podem influenciar a qualidade de vida de seus estudantes e a instituição deve estar atenta a estas diferentes demandas a fim de oferecer uma assistência psicológica adequada aos alunos. Algumas medidas, tais como ensinar o estudante a cuidar da sua saúde física e mental, estabelecer e manter relacionamentos e desenvolver resiliência, garantir tempo livre para estudo e diminuir a competitividade, podem corroborar para a melhora da qualidade de vida dos estudantes (CERQUIARI, 2004; FIEDLER, 2007; OLIVEIRA, 2006). Zonta et al. (2006) e Baldassin (2007) identificaram estratégias utilizadas por estudantes de medicina para o enfrentamento do estresse oriundo das exigências da formação e prática médica. São elas: valorização dos relacionamentos interpessoais e de fenômenos do cotidiano, equilíbrio entre estudo e lazer, organização do tempo, cuidados com a saúde, a alimentação e o sono, prática de atividade física, religiosidade, trabalhar a própria personalidade para lidar com situações adversas e procura por assistência psicológica.

Assim, pensamos que o conhecimento acumulado pela Psicologia pode estar presente no curso de Fisioterapia de várias formas, como, por exemplo, fornecendo subsídios aos alunos para a compreensão do processo de desenvolvimento humano, auxiliando-os a compreender o outro nas suas várias dimensões de humano ou acolhendo os alunos em suas demandas afetivas decorrentes do exercício da profissão. Uma dessas formas de atuação da Psicologia é ilustrada na seguinte fala de K.: “Acho que seria muito legal não só Psicologia como uma disciplina, mas talvez, como um apoio psicológico mesmo”.

A Psicologia mostra-se também importante no período do estágio prático. Segundo Rudnick (2007, p. 106), este se configura como

[...] um momento de construção de identidade profissional, de desenvolvimento de estratégias de enfrentamento saudáveis frente aos estressores típicos das profissões do campo da saúde.. [E complementa] [...] é o momento de desenvolvimento de competências interpessoais importantes para a vida pessoal e profissional com sérias repercussões para sua qualidade de vida e da população que é alvo de sua escolha profissional.

É também necessário considerar a possibilidade da construção de novos conhecimentos que partam da experiência vivida dos alunos e que seja significada e reconhecida por eles como válida.

De Marco (2003) reconhece a necessidade e importância da especialização médica, no entanto relata que este tipo de fenômeno é marcado pelo que chama de “complexo de Procusto”, onde se tenta conformar e reduzir os fenômenos à visão própria da especialidade, perdendo-se o contato com o todo. Neste significado, a autor resgata e valoriza a incorporação do modelo biopsicossocial no campo médico; no entanto, relata que esse movimento tem sido marcado pela cristalização de várias áreas de investigação e prática, e outras por critérios corporativos, sem critérios e definições claras, fazendo com que algumas áreas do conhecimento, tais como a Psiquiatria, a Psicologia, a Psicologia médica, a Psicossomática, entre outras, se voltassem para o mesmo campo de estudo, provocando algumas confusões.

6) A ética na prática da profissão

Nos relatos, é possível identificar algumas situações vivenciadas pelos alunos em que estes devem fazer escolhas e assumir as consequências decorrentes destas. Esta categoria agrupa as unidades de significado que explicitam o aluno como sujeito de suas ações.

R., através da fala “O pessoal do primeiro ano chegou e perguntou e eu falei que falava depois, porque você fala, a criança entende, às vezes ela não sabe o que tem e eu não sei como ela fica depois em casa, eu não sei como é o pai em casa, como que é a mãe em casa”, descreve seu dilema entre ser complacente com a atitude dos pais em não esclarecer a filha sobre seu problema ou tentar fazê-lo e correr o risco de deflagrar um conflito familiar. Também se sente incomodado pelos questionamentos dos colegas de curso que, assim como ele, no passado, procuram se informar a respeito dos pacientes da clínica.

A dúvida entre o certo e o errado fica clara na fala “o jeito de passar a informação, o que deve o que não deve, senão, você fica meio tenso com o pessoal que faz estágio de observação”. Muitas vezes, por dificuldades com o manejo dessas situações, os profissionais da saúde delegam a familiares e amigos a difícil tarefa de transmitir ao paciente as informações sobre seu estado de saúde (FORTES, 1998).

Fortes (1998) descreve duas possíveis abordagens para este tema. A primeira defende uma postura paternalista por parte da equipe médica, na qual o paciente é poupado sobre a verdade daquilo que o acomete em nome de uma possível piora do quadro clínico. Neste caso, inevitavelmente, uma primeira mentira levará a outras, pois não é possível esconder completamente todo o diagnóstico, a terapêutica ou mesmo o prognóstico do paciente. A segunda abordagem defende o direito do paciente à informação e assegura que esta lhe será transmitida. No entanto, o autor ressalta que o paciente pode não querer saber sobre o seu quadro, cabendo a este indicar à equipe médica outra pessoa que servirá como canal de informação. Para Cohen (2002), as posturas paternalista e autônoma se manifestam como sendo completamente opostas. Na primeira, evidencia-se uma completa assimetria nas relações, “a tal ponto de se idealizar uma relação sujeito-coisa, sustentados pela noção de uma absoluta desigualdade e de uma total submissão” (p. 84). Já a autônoma caracteriza-se por uma postura simétrica com relação ao outro, estabelecida pela condição de um ideal de igualdade e de liberdade. Entretanto, segundo estes autores, não é possível adotar radicalmente somente uma ou outra postura. Na prática, isso se dá de forma complementar e inversamente proporcional, ou seja, para uma grande autonomia tem-se um leve paternalismo e para um forte paternalismo tem-se uma autonomia restrita.

A transição ou o equilíbrio destas posturas, quando necessário, se dá pela mudança de hábitos que, no caso dos profissionais da saúde, pode acontecer no decorrer de sua formação. De acordo com Almeida (2002), a educação tem uma estreita relação com a ética. Pois, se é no contexto da formação que padrões éticos são transmitidos, é também, neste mesmo espaço, que se dá a possibilidade da instauração de novos hábitos, de uma nova ética. “O caráter transformador da ética encontra-se na transformação de hábitos. A educação incide sobre os hábitos e não sobre os corpos” (p. 28). Tal transformação não se dá por meio da reelaboração de hábitos vencedores, ou seja, da moral, mas sim do choque sentido no encontro com outros hábitos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste estudo foi compreender qual o sentido de aprender Psicologia para os alunos do último ano de graduação em Fisioterapia de uma universidade do ABC Paulista. Julgamos ter alcançado o objetivo proposto na medida em que a análise dos relatos da experiência vivida pelos alunos nos permitiu compreender de que modo a Psicologia está presente no fazer da Fisioterapia e, particularmente, na experiência de formação dos alunos.

A tentativa de compreender o paciente, seu modo de ser e agir mostra-se uma desafiante tarefa para os alunos entrevistados. Não menos fácil, torna-se a tarefa de olhar para si e compreender-se enquanto futuro fisioterapeuta inserido nas questões humanas mais fundamentais.

Fica evidente que a prática da Fisioterapia coloca o aluno à frente de suas questões subjetivas. O modo como resolverá os conflitos decorrentes deste reencontro com a sua subjetividade depende da quantidade e qualidade de recursos psicológicos que este aluno dispõe. No entanto, sendo a instituição de ensino, à qual este aluno está vinculado, responsável por sua formação, cabe à mesma oferecer possibilidades para que seu aluno possa reorganizar seus conteúdos internos em função da sua prática profissional. Faz-se então necessário rever a dimensão da Psicologia ensinada no curso de Fisioterapia, ampliando-a, a fim de propiciar ao futuro egresso, uma formação mais consciente, mais responsável e mais saudável do ponto de vista psicológico.

Ao criar o hábito de perceber e refletir sobre sua subjetividade, o aluno toma ciência de suas limitações e fragilidades, e pode então se movimentar no sentido de superá-las, seja sozinho ou com o auxílio de um serviço de apoio psicológico oferecido pela instituição. O paciente também se beneficia por ser acolhido por um profissional que o compreende em sua dimensão de humano e procura, através de uma aproximação adequada, encontrar o melhor caminho para que, juntos, alcancem o restabelecimento da sua saúde.

Outros estudos que permitam uma melhor compreensão de todo o processo de formação do fisioterapeuta, contemplando alunos de outros períodos do curso, professores, supervisores e a instituição, também se fazem necessários. Somente assim, intervenções poderão ser propostas a fim de criar um ambiente de formação mais adequado para o desenvolvimento do fisioterapeuta em todas as suas dimensões, que o auxilie a lidar com os desafios impostos pela profissão.

 

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recebido em: 10/11/2007
Aprovado em: 9/12/2007

 

 

1Constituem a descrição o relato ingênuo (descrição sem ajustes ou correções) e o relato literalizado (descrição ajustada de acordo com as regras da língua escrita). Os relatos ingênuos não foram apresentados por demandarem de grande espaço.
2Foram feitos quadros com as unidades de significado de cada relato para a construção das análises ideográficas, mas que não foram apresentados por demandarem grande espaço.
3Foi construída uma tabela nomotética com as categorias convergentes para a análise nomotética.
* Baseado em trabalho apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia pela Universidade Metodista de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Dagmar Silva Pinto de Castro.
** Psicólogo e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: denilson.grecchi@hotmail.com
*** Psicóloga e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo e docente do Programa de Pós-graduação em Administração da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: dagmar.castro@metodista.br