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Psicologo informacao

versão impressa ISSN 1415-8809

Psicol inf. vol.14 no.14 São Paulo out. 2010

 

Artigo

 

 

Uma violência massificada de brasileiros contra japoneses*

 

The massificated violence from brazilians against japaneses

 

 

Roberto Yutaka Sagawa**

** Professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica da Unesp, Assis (SP). Av. Dom Antonio 2100, CEP 19.806-900, Assis, SP (rysagawa@assis.unesp.br).

 

 


RESUMO

Este artigo trata de um episódio de violência em massa de brasileiros contra japoneses, ocorrido em julho de 1946, em Osvaldo Cruz. Diversos grupos avulsos de brasileiros perseguiram e saíram à caça de todo e qualquer japonês, indiscriminadamente, pelas ruas da cidade. Alguns brasileiros gritavam ordens de linchamento e muitos praticaram agressões e humilhações físicas e morais. Este episódio não tem recebido destaque na História da Imigração Japonesa no Brasil. Também não vem sendo objeto de pesquisa de historiadores, psicólogos, sociólogos etc. Na busca de reverter esta tendência predominante, propõe-se desenvolver uma interpretação psicanalítica deste episódio baseada na psicologia de massa, de Sigmund Freud.

Palavras-chave: psicologia de massa; brasileiros contra japoneses; imigração japonesa; psicanálise.


ABSTRACT

This paper deals with an episode of Brazilian collective violence against Japaneses, which occurred in July 1946, in the city of Osvaldo Cruz. Different groups of Brazilians have persecuted and hunted the Japaneses in the streets of this city as if they were animals. Some Brazilians have asked for a mass lynchment and many of them have used physical and moral aggressions and humiliations against the Japanese. This episode neither deserved emphasis in the History of the Japanese Immigration at Brazil nor has been considered as research interest for historians, psychologists, sociologists, among others. This study proposes to develop a psychoanalytical interpretation of this episode based in Sigmund Freud's mass psychology.

Keywords: mass psychology; brazilians against japaneses; japanese immigration; psychoanalysis.

 

Introdução

Neste artigo, faço o relato de um episódio histórico ocorrido em 30 e 31 de julho de 1946, que tem sido ignorado ou desconhecido pela História1 da Imigração Japonesa no Brasil. Trata-se de um episódio que colocou brasileiros contra japoneses e vice-versa, envolvendo todo o povoado nascente de Osvaldo Cruz. Tudo começou com dois incidentes avulsos envolvendo alguns brasileiros e japoneses, mas, em seguida, no clímax do final da II Guerra Mundial, foi detonado um episódio de revolta de vários grupos avulsos de brasileiros contra os japoneses. Pelas ruas da cidade, os brasileiros saíram à caça de todo e qualquer japonês, com os brados de "lincha! lincha!". Alguns japoneses chegaram a ser laçados e arrastados, de forma cruel e humilhante, pela avenida central da cidade.

Este episódio foi apenas descrito até agora como um mero fato histórico, mas não foi ainda explicado cientificamente, num enfoque interdisciplinar. Ou melhor, os raros pesquisadores deste episódio manifestam surpresa e espanto de não encontrar explicações plausíveis e coerentes dos e pelos próprios personagens envolvidos neste episódio, apesar de a grande maioria deles já ter morrido, nas duas últimas décadas.

A partir da pesquisa de arquivos e documentos deste episódio, formulei uma explicação de natureza psicanalítica que se inspira na psicologia de massa de Sigmund Freud. Nestes termos, o episódio de Osvaldo Cruz se constitui em fenômeno psicossocial de "violência desenfreada de uma massa em ação" que se transformou em uma maioria de brasileiros contra uma minoria de japoneses.

 

Antecedentes do episódio

Os antecedentes deste episódio são internacionais, nacionais e locais. Os internacionais e nacionais referem-se à II Guerra Mundial em que o Brasil se tornou adepto dos Aliados e o Japão ficou aliado do Eixo. O que nos interessa aqui são os antecedentes locais que refletem as repercussões da II Guerra.

Com a rendição incondicional do Japão e, em seguida, o fim da II Guerra, na Nova Alta Paulista, os japoneses não aceitaram a derrota do Japão. A Shindo Renmei (uma associação político-ideológica secreta composta pelos japoneses kati-gumi ou vitoriosos, após o término da II Guerra Mundial) que, até então, passou quase desapercebida da própria colônia, ganhou uma força política inimaginável. Diante da divulgação da notícia da derrota do Japão na Guerra, a colônia japonesa na Nova Alta Paulista reagiu com ferocidade e se negou a aceitar esta derrota. Isto fez com que houvesse um confronto entre alguns poucos que aceitaram a derrota e a grande maioria que não aceitou a derrota. Começaram a ser conhecidos como make-gumi (derrotistas) e kati-gumi (vitoristas).

Na Nova Alta Paulista, especialmente em Marília, Tupã, Bastos e Osvaldo Cruz, região em que havia as maiores concentrações de imigrantes japoneses, os make-gumi foram perseguidos pelos kati-gumi e se criou um clima de confronto aberto e violento. Osvaldo Cruz havia sido fundado em 1941 e, naquele momento de fundação, lá moravam dois japoneses, Sr. Yutaka Abe e o Sr. Izuyo Suzuki, que se estabeleceram ali por causa da criação desta cidade. Yutaka Abe foi topógrafo da empresa colonizadora da cidade bem no início da derrubada da floresta; chegou sozinho, construiu uma casa de madeira e depois trouxe sua família para lá morar. Izuyo Suzuki foi dono da Farmácia Santa Terezinha; morava em uma casa de madeira perto da sua farmácia e também próximo da casa de Yutaka Abe.

O que distinguia os dois era o fato de ambos serem muito relacionados com os brasileiros numa época em que os imigrantes japoneses não costumavam falar o português e nem se relacionavam diretamente com os brasileiros. Não havia propriamente um make-gumi no sentido grupal em Osvaldo Cruz, mas os dois foram tachados de make-gumi pelos kati-gumi.

José Alvarenga (1996a, 1996b) afirmou que, na madrugada de 22 de julho de 1946, cinco tokotais enviados pela Shindo Renmei tinham a missão de atacar a casa de Izuyo Suzuki e, na mesma hora, a casa de Yutaka Abe. Estes tokotais foram: Kohei Kato e Kazuto Yoshida para explodir a casa de Abe, enquanto Sueto Yiama e Kohei Itikawa atacariam a casa de Suzuki. Os quatro foram liderados por Eiiti Sakane que recebia as ordens da direção da Shindo Renmei de São Paulo.

Na casa de Yutaka Abe, os três tokotais preparavam a colocação de uma bomba caseira feita de bico de fole (para matar formigas) no seu porão. Os dois atentados foram praticados ao mesmo tempo. "Suzuki foi acordado pela sua esposa e disparou três tiros dentro de casa para afugentar os agressores que esperavam sua saída para baleálo" (ALVARENGA, 1999, p. 66). O outro que atacava a casa de Abe se assustou, colocou mal a bomba, acendeu o estopim e fugiu. Em ambos os atentados, os resultados do terrorismo foram um fracasso.

Alvarenga continua relatando que, no entanto, o barulho da explosão da bomba foi violento e acordou toda a população da vila que estava dormindo. Correu de boca-em-boca a revolta de moradores brasileiros contra a violência dos japoneses terroristas.

José Alvarenga relatou assim a reação destes moradores.

Foi difícil a José Pombalino, empreiteiro da derrubada de matas, dissuadir seus machadeiros revoltados de agredirem indistintamente os japoneses. Só conseguiu seu intento impelindo-os a irem à igrejinha, igualmente de madeira, rezar um Pai Nosso em agradecimento a Deus porque não houvera mortes. A perigosa intenção ficou adormecida (ALVARENGA, 1999, p. 67).

Yutaka Abe era cristão e não aceitou que fosse cometido um ato de vingança contra seus agressores. Bastava um ato ritual de fé naquela igrejinha. Ao término da reza celebrada, Yutaka Abe convidou-os para tomarem uns goles de cachaça e comer algo em agradecimento pela demonstração de amizade destes brasileiros.

A familiaridade de Yutaka Abe com os moradores brasileiros era uma exceção flagrante na colônia japonesa, cuja maioria vivia, naquela época, em shokumintis (bairros rurais) povoados apenas por imigrantes japoneses que tinham a esperança de ganhar dinheiro e retornar para o Japão. Jamais passou pela cabeça destes imigrantes que o Japão iria perder a II Guerra, na medida em que o Japão nunca tinha perdido uma guerra. No começo do século 20, o Japão havia vencido a guerra contra a China e contra a Rússia.

 

Descrição do episódio

A cidade de Osvaldo Cruz foi fundada com o nome de Califórnia e o marco comemorativo foi a celebração da primeira missa numa clareira aberta em plena mata virgem, em 1941. Cinco anos e cinquenta dias depois, em 30 de julho de 1946, ocorreu o fato detonador do episódio histórico. Ou seja, no pequeno Bar do Ponto, situado no centro do povoado em formação, dois motoristas de caminhão se encontraram, de novo: o nissei Kababe Massame e o brasileiro Pascoal Alves de Oliveira (conhecido pelo apelido de "Nego"); na tarde do mesmo dia, os dois já haviam tido um entrevero na estrada estreita entre Bastos e Osvaldo Cruz por causa de uma difícil ultrapassagem entre ambos. Desse encontro fortuito, declanchou o episódio.

É importante destacar que o agricultor, empresário, filantropo e escritor José Alvarenga, que tinha 22 anos e que foi secretário da Prefeitura da cidade naquela época, é um dos raros sobreviventes deste episódio. Seu relato deu-se da seguinte maneira.

No calor da rápida discussão, Kababe sacou uma faca e desferiu certeiro golpe no coração do Pascoal, foragindo. Pascoal morreu na hora. A notícia se esparramou dentro da noite. Uns varavam-na em vigília ao corpo do Nego, enquanto outros vagavam em grupos pelas ruas. Quando a cidade amanheceu, a notícia ganhou corpo. Por volta das nove horas, eclodiu o motim (ALVARENGA, 1996b, p. 5).

O motorista Nego era muito querido na cidade. Kababe desapareceu depois do assassinato. Descobriu-se que Kababe se escondeu na casa de japoneses na Vila Califórnia. Um grupo de brasileiros que estava no velório foi até lá com a intenção de retirá-lo a pauladas. O delegado de polícia conseguiu impedir que este bando vingasse a morte de Nego.

No dia seguinte, no Bar do Ponto, na hora do café da manhã, um freguês provocou o dono do bar, Sr. Massuda Takeiko, dizendo: "Abre o olho, japonês, porque o povo está doido para pegar um de vocês para vingar a morte do Nego" (MORAIS, 2000, p. 239).

José Alvarenga relatou este mesmo incidente nos seguintes termos:

Começou (o motim) quando alguém de um grupo (no Bar do Ponto) advertiu, asperamente, um japonês que passava: Tá vendo! Um japonês matou um brasileiro..... Fez bem, respondeu. (ALVARENGA, 1996a, p. 7).

No âmbito específico da criança e do adolescente, Silva (SILVA; SOUZA; TEIXEIRA, 2003) afirma que, concomitantemente a todo o processo de garantia dos direitos, é necessário que as prerrogativas do ECA, por exemplo, sejam amplamente divulgadas na sociedade, em suas diversas instituições: nos movimentos populares, nos diferentes grupos e corporações sociais, nas universidades e faculdades, na televisão, nos jornais, entre outras.

Massuda reagiu contra a provocação do brasileiro e os dois partiram para a briga corporal. Massuda era lutador faixa preta de judô e facilmente tirou o brasileiro de combate. Os quatro amigos brasileiros partiram para cima de Massuda que também os derrotou. Chamaram mais reforços e ainda assim foram derrotados. Foi preciso uns 40, 50 brasileiros para derrotar Massuda que, então, acabou sendo arrebentado de pancadas e foi arrastado pelas ruas.

Sobre o episódio, Morais (2000, p. 240) escreve:

Um homem ia na frente do grupo, gritando como um louco: Lincha! Lincha! Chegou o dia da forra! Hoje não fica um japonês em pé na cidade!

Assim começou a perseguição contra todos os japoneses de Osvaldo Cruz, sem fazer qualquer espécie de distinção. Foi uma perseguição dos brasileiros contra qualquer japonês pela cidade inteira.

Os grupos de brasileiros, que se sentiam ofendidos, invadiam as casas de japoneses e arrastavam pelos cabelos pais de famílias humilhados diante de suas mulheres e seus filhos. Saqueavam as residências. A avenida Brasil estava cheia de brasileiros querendo pegar japoneses. Alguns japoneses foram amarrados à força na chinça do cavalo e os conduziram pelas ruas arrastados brutalmente. José Alvarenga relatou:

Encontraram um japonês escondido sobre uma pilha de sacos de arroz. Desceram-no, espancando-o e ferindo com furador de tirar amostras. Famílias japonesas trancavam-se dentro de suas casas. Todos suportaram em silêncio, sem súplica e sem reação. O comércio fechou as portas. O resto da população, sobressaltada e impassível, assistia ao triste espetáculo. De nada valiam os apelos pacíficos de alguns, do prefeito e do delegado de polícia (ALVARENGA, 1996b, p. 6).

O motim se generalizou pela cidade. Os japoneses passaram a correr em direção à delegacia de polícia, a fim de ter a proteção que já não tinham mais em suas casas. O mesmo autor, José Alvarenga, relatou outro exemplo de agressão violenta:

Um deles, idoso, franzino, de cabelos brancos, foi agredido a pedradas e pauladas. Caiu. Conseguiu levantar. Trôpego e sangrando, chegou ao abrigo que procurava. Outros eram puxados, amarrados, atropelados em algazarra e assim por diante (ALVARENGA, 1996b, p. 6).

Até mesmo as ruas de acesso à cidade vindo da zona rural foram bloqueadas pelos brasileiros com o objetivo de impedir o acesso de crianças descendentes de japoneses às escolas. Às pressas, conseguiram dar o aviso de alerta geral para que os pais japoneses não enviassem seus filhos às escolas nesse dia de vandalismo generalizado.

Mesmo depois de diminuído o número de episódios violentos, ainda continuou a se repetir novas agressões pelo resto do dia, de forma mais isolada, em lugares e momentos bem imprevistos.

José Alvarenga fez a seguinte avaliação do episódio:

Os japoneses não esboçaram uma reação, suportaram resignadamente a humilhação e, repito, eles foram mais feridos no seu sentimento como pessoas, no seu caráter. Houve maus-tratos físicos, mas a intenção foi de humilhar, de montar, laçar, empurrar, derrubar, chutar, e como não havia reação, não tinham como partir para situações mais graves (ALVARENGA, 1996a, p. 6).

Vale a pena enfatizar que os ânimos exaltados de violência descontrolada dos grupos de brasileiros tinham um espírito de guerra contra os japoneses. Na esteira da hipótese retrospectiva de José Alvarenga, se a maioria dos japoneses tivesse reagido contra os brasileiros agressores como reagiram Kababe Massame e Massuda Takeiko com atos de violência, então teria havido um episódio de guerra civil naquele povoado. Felizmente, para os dois lados, não foi o que aconteceu.

Os três médicos do vilarejo (Osvaldo Nunes da Silva, João Grande de Melo e Adelino Paula Lima Filho) foram solícitos e atenciosos com os vários feridos, prestando pronto atendimento ao seu alcance.

O prefeito Valdemar Pio de Oliveira e o delegado de polícia Eduardo Vaz Paixão não tinham nenhuma estrutura instituída e eram, digamos assim, generais sem exército e sem tropa para comandar. Esforçaram-se com as forças de suas vontades, mas não foram ouvidos pela população que não esboçou qualquer adesão aos seus pedidos de cessar fogo. Chegaram a usar o alto falante que ficava em cima de uma edificação, mas ninguém deu bola para os apelos destas autoridades.

Como se viram desautorizados pela população e sem mais ação ao seu alcance, então mandaram um emissário a Tupã para conseguir o socorro do Exército que tinha ali uma unidade funcional. Nesta época, não havia telefone, nem telégrafo e nem rádio que pudesse transmitir uma comunicação com rapidez e eficiência. Fizeram um pedido ao Segundo Tenente Eduardo Alves Garcia, comandante de uma unidade do Exército, sediada em Tupã, para enviar um pelotão de soldados que foi enviado às pressas e que chegou à noite em Osvaldo Cruz. A partir daí, não houve novos incidentes e terminou, finalmente, o episódio de violência desregrada.

José Alvarenga ficou surpreso com as pessoas envolvidas neste episódio e narra o seguinte:

Depois que a coisa passou, conheci vários dos que participaram, conversei com muitos e vi que não eram pessoas comuns, eram pessoas destacadas. Existiu a participação de pessoas comuns, mas muitos eram esclarecidos e respeitáveis. Não gostaria de citar nome, em respeito aos descendentes, e aos seus familiares, que ainda moram aqui, mas posso dizer que o povão ou as pessoas humildes colaboraram, mas posso garantir que a iniciativa das agressões, dos massacres e das grosserias, foram de pessoas tidas como esclarecidas (ALVARENGA, 1996a, p. 7).

 

Uma reportagem preconceituosa

Este episódio ocorrido em Osvaldo Cruz teve uma repercussão nacional na mídia impressa2. Os Diários Associados enviaram, por meio de avião, dois repórteres que publicaram uma reportagem de primeira página, no Diário da Noite, em 3 de agosto de 1946, com grande manchete ilustrada com 4 fotos destacadas e estampada assim:

"MILITARMENTE OCUPADA
A CIDADE DE OSVALDO CRUZ".

Este título apareceu em negrito de duas linhas como destaque da primeira página. Acima dele, um subtítulo de uma linha somente em corpo menor:

"Amarraram os nipônicos a animais e os arrastaram pelas ruas"

A edição desta manchete de um jornal de circulação nacional daquela época indica um partidarismo flagrante contra os japoneses e a favor dos brasileiros. Quem foi responsável pela cidade de Osvaldo Cruz ser ocupada militarmente? Segundo a manchete deste jornal, a resposta é óbvia e não deixa margem à dúvida de que os brasileiros não fizeram nada demais, na medida em que os brasileiros não são colocados sob o holofote da reportagem e são apenas os personagens implícitos.

A tomada de posição do jornal contra os japoneses fora evidente também pelo fato de não haver qualquer pudor ou vergonha de comparar os "nipônicos" aos animais. Os inimigos do Eixo que acabaram de ser derrotados merecem ter o tratamento dispensado aos animais. Seriam tão inferiores e desprezíveis que se tornariam dignos de serem arrastados pelas ruas como animais.

A reportagem de capa do Diário da Noite deu destaque ao episódio de Osvaldo Cruz com quatro fotos de imigrantes japoneses envolvidos neste episódio. "Por que não foi colocada nenhuma foto do vandalismo e da violência dos cidadãos brancos" ou mulatos ou negros que também estiveram igualmente envolvidos no mesmo episódio? Nada disso, os dois lados envolvidos neste episódio têm um tratamento desigual e parcial.

Isto já dá uma indicação de que o clima branco da reportagem punha em ação um preconceito antijaponês. O episódio criminoso ou policialesco já recebeu seu veredito na estampagem de fotos de apenas um dos lados envolvidos e, assim, isentou o outro lado como se fosse uma vítima indefesa que apenas reagiu ao ataque sofrido e movido pelos japoneses.

A BRAVATA DE UM JAPONÊS PÔS EM POLVOROSA TODA A CIDADE, CUJA POPULAÇÃO PERMANECEU DURANTE HORAS INTEIRAMENTE DESATINADA.
OS ÂNIMOS ESTAVAM TURVOS EM CONSEQÜÊNCIA DOS ATENTADOS LEVADOS A EFEITO PELOS FANÁTICOS DA SHINDÔ REMMEI.

Estas duas chamadas jornalísticas da matéria de capa dão uma ideia precisa de que a reportagem condenava os japoneses como sendo os únicos culpados do episódio de Osvaldo Cruz. Os provocadores e culpados deste episódio foram os japoneses, com destaque particular, aos "fanáticos" da Shindo Renmei, como se todos os imigrantes japoneses fossem os "fanáticos" integrantes da Shindo Remmei e fossem autores de ações criminais.

Ora, os cidadãos brancos foram vítimas dos japoneses e apenas reagiram contra eles? Não. Esta explicação não pode ser aceita de forma nenhuma. Na parte inferior da página, há outra chamada assim:

"RESPONSÁVEL À SHINDO-REMMEI'
"BRASILEIROS CONTRA JAPONESES" – "SE FOSSE EU, MATAVA
TRÊS OU QUATRO" – "LINCHA! LINCHA!".

O leitor fica com a sensação evidente de que o brasileiro apenas devolveu na mesma moeda ao ataque do japonês. De novo, há uma parcialidade, uma arbitrariedade desta compreensão, na medida em que a animosidade e a selvageria do episódio foram de ambas as partes. Houve o crime de homicídio praticado por Kababe, mas o crime de vandalismo e linchamento de todos os japoneses praticado pelos brasileiros não se justifica assim: fazer a justiça com e pelas próprias mãos.

A reportagem omite totalmente que os brasileiros linchadores explicitaram o que precisava apenas de uma desculpa qualquer como deflagrador da hostilitidade antijaponesa. Apenas reagiram contra a provocação feita pelos japoneses. Portanto, o brado de "Lincha! Lincha!" não é um crime cometido pelos brasileiros, mas é apenas uma resposta justificável dos brasileiros contra os criminosos japoneses.

E, por último, falando ao repórter, Takeisho Massuda, pai do japonês que provocou o conflito, diz num péssimo português: "Agola japon abandona cidade; vai embola".

É óbvio que o jornalista tem um preconceito antijaponês que expressa uma intenção depreciativa e denegridora do imigrante japonês quando transcreve um péssimo português. O que esperar de um imigrante estrangeiro que nunca teve acesso à escola de língua portuguesa e, na maioria das vezes, também não teve acesso à escola de língua japonesa que, muito pelo contrário, foi proibida pelo Estado brasileiro durante a II Guerra Mundial?

Ninguém deveria ter o direito de cobrar de um imigrante estrangeiro que falasse a língua portuguesa se nem o Estado brasileiro e nem o Estado japonês jamais se propuseram (e tampouco chegaram a cogitar de) a dar acesso à educação de língua portuguesa aos imigrantes japoneses, num país em que na zona rural predominava o analfabetismo e raramente algum caboclo, caipira conseguia ter uma pronúncia correta da língua escrita culta.

 

Como explicar o inexplicável?

Fernando Morais (2000) não faz qualquer menção de ter entendido o que se passou neste episódio de linchamento bárbaro e selvagem dos imigrantes ou nativos "brancos"3 contra os japoneses. Mais ainda, dá toda a impressão de endossar a visão hegemônica do branco, católico, dominador etc., na medida em que está convencido de narrar fatos "objetivos" e "empíricos", sem se dar conta de que toda história oficial é sempre e apenas uma versão vitoriosa e hegemônica, mas há sempre outras histórias subterrâneas que sempre acrescentam mais de uma versão e confrontam diversas versões. No caso deste episódio de barbarismo e vandalismo da população branca e católica de Osvaldo Cruz, Fernando Morais não confronta esta versão com a versão dos próprios japoneses.

Acontece que este episódio não foi apenas uma reação dos brancos e católicos contra os amarelos estrangeiros, mas foi muito mais do que uma simples e mera reação na medida em que foi uma ação que simplesmente explicitou o implícito. A explosão de ódio irracional e assassino irrompeu com toda violência possível, na medida em que já vinha cultivando um ódio silencioso e oculto dos próprios sujeitos brancos/católicos contra os imigrantes japoneses.

Mais ainda, há um preconceito inconfessável de forma aberta e plena contra os japoneses, o que não é uma exclusividade apenas dos imigrantes japoneses, mas se estende contra todos os imigrantes que não se enquadram nos moldes dos brancos/católicos, como os poloneses, os russos, os alemães, os libaneses, os africanos etc. Ou seja, qualquer imigrante que não seja um molde narcísico do branco/ católico é, por princípio, um inimigo do etnocentrismo europeu/ branco/católico.

É curioso que nem os jornalistas dos Diários Associados e nem o jornalista Fernando Morais foram capazes de chamar os linchadores brancos de "malucos", "fanáticos", "delirantes", "criminosos", "bandidos" como fez com os tokkotai da Shindo Renmei. No entanto, qual é a diferença entre os dois? Nenhuma!!! Os linchadores brancos de japoneses deste episódio de Osvaldo Cruz foram verdadeiros selvagens, bandidos, criminosos, fanáticos etc., tanto quanto os tokkotai da Shindo Renmei.

Não há qualquer emissão de opinião de valor e de moral contra os linchadores brancos, mas abundam opiniões sobre e contra os japoneses. Não há qualquer isenção de "julgar" estes linchadores brancos como foram "julgados" indiscriminadamente os japoneses que fossem, ou não, os "fanáticos" da Shindo Renmei. Os linchadores brancos de japoneses, que se esconderam sempre no anonimato, podem ser considerados os cidadãos sem-lei que se convenceram de fazer justiça por conta própria, com as suas próprias mãos, e permaneceram na impunidade total, mesmo passados mais de 50 anos.

 

Uma interpretação psicanalítica

Este episódio deve ser compreendido em dois níveis diferentes e complementares entre si: um, nacional, que desde o início da imigração japonesa no Brasil teve um segmento de elite que se apresentou como eugenista e totalmente contrário aos orientais; outro, regional, que envolveu o clima das cidades da Nova Alta Paulista que estava sendo desbravada em seus inícios, com uma farta leva de diferentes imigrantes estrangeiros e também internos, os nordestinos.

A partir deste clima antijaponês explícito durante e após a II Guerra Mundial, o episódio de Osvaldo Cruz dramatizou uma cena digna de uma psicologia de massa, segundo a concepção de Freud. O episódio não pode ser responsabilizado por um ou outro osvaldocruzense em particular, mas ele se dissolveu no anonimato de uma massa indiscriminada que despertou em cada um em separado o que jamais faria se não estivesse aglutinado nessa massa.

O conceito de massa em Freud é bastante radical, na medida em que nega a possibilidade de formar grupos autônomos, autogestores, independentes etc. De certa forma, Freud abole o próprio vocábulo grupo conforme é usado por McDougall, na psicologia norte-americana, afirmando que a nossa tendência é a de formar uma massa que é conduzida por um líder. Assim, o Exército e a Igreja são considerados massas duradouras e artificiais que, na ausência de um líder, se desestruturam totalmente (FREUD, 1921, 1976b).

A massa primitiva, circunstancial e espontânea e a massa duradoura, artificial podem chegar ao mesmo ponto de dissolução de sua coesão interna quando são submetidas a um estado de pânico coletivo. Neste caso, os dois tipos de massa se comportam e se expressam de forma equivalente.

Freud dá dois exemplos desta situação de pânico em massa: 1) o drama de Hebbel sobre Judit e Holofernes no qual um soldado grita: "O general perdeu a cabeça!" e assim imediatamente todos os assírios fogem; 2) uma novela inglesa, When it was dark, de Guy Thorne (pseudônimo de C. Ranger Gull), publicado em 1903 e recomendado pelo bispo de Londres. Neste romance, há um exemplo de um revertério total da doutrina religiosa, em que a ressurreição de Cristo foi desmascarada por uma pesquisa arqueológica e assim os católicos perderam a base da sua doutrina. Depois se soube que se tratou de uma versão de falsários.

Tanto o Exército quanto a Igreja podem implodir a si mesmas e se dissolverem em uma massa desgovernada e, neste ato,

[...] se llega a uma paradoja: esta alma de la masa se suprime a si misma en uma de sus exteriorizaciones más llamativas. No hay duda posible: el panico significa la descomposición de la masa; trae por consecuencia el cese de todos los miramientos recíprocos que normalmente se tienen los individuos de la masa (FREUD, 1921, 1976b, p. 93).

Na ausência de líder e autoridade (Exército) ou na ausência da doutrina religiosa (Igreja), as massas devotam e, "la crueldad y la intolerância hacia quienes no son sus miembros". Antes, a intolerância e a crueldade estavam impedidos de exteriorizar-se, mas assim que são criadas as condições necessárias e suficientes, a "intolerância hacia los extraños [...] se muestra tan violenta y cruel como em siglos pasados, dificilmente pueda inferirse de ello una dulcificación en las costumbres de los seres humanos" (FREUD, 1921, 1976b, p. 94).

Este episódio de Osvaldo Cruz pode ser interpretado pela psicologia de massa e serve como uma luva que se assenta em sua respectiva mão. Freud investiga o que ocorre no interior de uma massa que se depara com uma situação de pânico, chegando ao clímax de dissolução da massa organizada e, ao mesmo tempo, a abolição da autoridade neste contexto social.

Nestes inícios das cidades da Nova Alta Paulista, a crise de autoridade ou simplesmente a falta de instituições asseguradoras de autoridade (polícia, prisão, fórum, poder legislativo etc.) criou as condições necessárias e suficientes para que, tomados de ódio antijaponês, a massa de brasileiros exteriorizasse o seu ódio de forma coletiva e sem-lei.

O que nos interessa destacar é o fato de que, em uma psicologia de massa, o indivíduo se dissolve de forma indiferenciada na massa; quando não está totalmente assegurada a sua identidade própria, resulta em maior indiferenciação. Quanto mais frágil e indiferenciada a identidade pessoal, mais fácil e rapidamente o indivíduo se torna indiferenciado e aglutinado em uma massa anônima e amorfa.

Nestes termos, o preconceito elitista e racista do Estado/Igreja/ Elite contra os japoneses, que circulava no nível nacional, antes, durante e depois da II Guerra Mundial, encontrou um paradeiro, um hospedeiro em cada indivíduo imaturo em sua identidade própria, que se fez expressar por meio do ódio coletivo da massa anônima. É preciso fazer reflexões sobre este fato ocorrido: em uma ocasião propícia, a Osvaldo Cruz em seu berço de nascimento, sem as devidas instituições criadas (Polícia, Fórum, Hospital etc.), foi esse hospedeiro de indivíduos que se aglutinaram em uma massa sem-rei e sem-lei.

Deste episódio histórico, podemos refletir que, no contexto brasileiro, a lei e a convivência social não dependem de indivíduos que se responsabilizam por elas, mas dependem de haver a coerção externa de instituições e autoridades constituídas que impõem aos indivíduos a lei e a convivência social, em especial, no caso de haver as diferenças étnicas e culturais como japoneses, alemães, árabes, africanos, etc.

Este episódio serve de alerta da história: nós todos temos desenvolvida a condição de psicologia de massa que, encontrando o contexto psicossocial necessário e suficiente, deflagra-se à vontade. Mais ainda, este alerta consiste em relativizar sempre o preconceito ou a discriminação cultural ou religiosa para os dois lados envolvidos: o que exclui e o que é excluído, o que discrimina e o que é discriminado, o que preconcebe e o que é preconcebido e assim por diante. A massa dissolve em e por si mesma os dois lados do preconceito e acaba se tornando totalitária, ditatorial, imperialista etc.

 

Referências

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SAGAWA, R. A construção local da Psicanálise. Marília: Interior, 1996.         [ Links ]

SAITO, H. (Org.). A presença japonesa no Brasil. Tradução A. Queiroz. São Paulo: Edusp, 1980.         [ Links ]

______; MAEYAMA, T. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Edusp, 1973.

YAMASHIRO, J. Trajetória de duas vidas. Uma história de imigração e integração. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão & Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1996.         [ Links ]

Indicações de leitura apresentadas pelo autor:

ANDO, Z. Estudos sócio-históricos da imigração japonesa. São Paulo: Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1976.         [ Links ]

ARAÚJO, O. E. Viagens vividas, viagens sonhadas: os japoneses em São Paulo na primeira metade deste século. Trabalho apresentado na Reunião anual da ANPOCS, 19, Caxambu, 1995.         [ Links ]

NEVES, H. O processo da Shindo-Renmei. São Paulo: Edart, 1968.         [ Links ]

SAGAWA, R. História da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. In: NOSEK, L. (Org.). Álbum de família. Imagens, fontes e idéias da Psicanálise em São Paulo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.         [ Links ]

SAKURAI, C. Imigração tutelada: os japoneses no Brasil. 2000. 210f. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, Unicamp, Campinas, 2000.

Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa. Uma epopéia moderna: 80 anos da imigração japonesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1992.         [ Links ]

VIEIRA, F. I. S. O japonês na frente de expansão paulista. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1973.         [ Links ]

 

 

* Este texto baseia-se numa comunicação apresentada no XVIII Encontro Nacional de Professores Universitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa, realizado em Assis (SP).
1 É curioso constatar que em pesquisa bibliográfica sobre a História da Imigração Japonesa no Brasil não se constate nenhuma referência aos episódios de Osvaldo Cruz e de Tupã, nos quais a maioria de cidadãos brasileiros passou a perseguir e atacar os imigrantes japoneses pelas ruas da cidade, chegando até mesmo a invadir as casas dos japoneses, em julho e agosto de 1946.
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O jornalismo investigativo no Brasil é muito recente e ainda assim não é praticado com freqüência. No entanto, criou o mito de "imparcialidade" e de "objetividade" histórica, como se fosse possível haver garantia de que as diferentes versões podem ser sempre explicitadas, sem deixar sombra de dúvida. Ora, no caso em que os próprios jornalistas não se dão conta de seus preconceitos e estereótipos, a "imparcialidade" e a "objetividade" se tornam o contrário da intenção pretendida. Fernando Morais é tomado nesta seção como um exemplo típico de jornalismo investigativo atual. Trata a matéria histórica como se fosse apenas objeto de uma reportagem. Ora, nenhuma reportagem investigativa pode deixar de ser também uma versão da história registrada. Neste sentido, contém uma interpretação histórica implícita que se esconde sob a proteção de "imparcialidade" e "objetividade" do jornalismo.
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A referência aos "brancos" não deve ser entendida literalmente, ou seja, referida à cor da pele, mas deve ser entendida metaforicamente, como representação do dono do poder. Neste sentido figurado, o "branco" pode ser mulato, mestiço, negro, índio etc. desde que se torne identificado com o dono do poder.