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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.8 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Considerações éticas no transplante hepático com doador vivo

 

 

Claire Terezinha Lazzaretti*

Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O transplante hepático inter-vivo (THIV) estabeleceu-se no Brasil, à semelhança com o que ocorre em diversos paises, como alternativa para suprir a escassez de órgãos cadavéricos no decorrer dos anos. Com o aprimoramento técnico das equipes de transplante, os pacientes alcançam têm melhores resultados, o que motiva a população a optar, se possível pelo THIV. Embora nenhuma morte de doador vivo de fígado tenha sido oficialmente notificada no Brasil, o risco de tal complicação não é desprezível deve ser abordado durante e na decisão do potencial doador. Apesar do risco do doador ser considerado baixo, a doação de órgão com doador vivo deveria ser um ato absolutamente voluntário, com consentimento baseado nas informações dadas de forma imparcial e só escolhido quando a opção para obter um enxerto de cadáver seja praticamente nula. Embora o processo doença-transplante-doação envolva uma interação complexa da dinâmica psicossocial e familiar, a percepção do potencial doador necessariamente dependerá da explicação recebida do cirurgião. A ética da prática do THIV assenta-se principalmente na equipe transplantadora.

Palavras-chave: Ética, Doador vivo, Transplante hepático.


ABSTRACT

Living-donor liver transplantation (LDLT) took root in Brazil as a natural result of circumstances, because the scarce supply of cadaveric organs over the years. As the expertise of transplant teams have grown, patient outcomes improve, public awareness increases and the option of LDTL is increasingly chosen. Although no live liver donor death has yet been reported from Brazil, the risk is not eliminated and remains a major consideration in the potential donor’s decision to donate. Although the donor risk is estimated to be low, live organ donation should be absolutely voluntary, with consent given on the basis of unbiased information and chosen only when the option for obtaining a cadaveric graft is practically nil. The disease-donation-transplantation process involves a complex interplay of psychosocial and family dynamics, the potential candidate’s perception will necessarily depend on the surgeon’s explanation. The ethical of the practice of LDLT rests primarily on the liver transplant team.

Keywords: Ethical, Living-donor, Liver transplantation.


 

 

A opção pelo transplante hepático inter-vivos (THIV) entre os candidatos a transplante de fígado vem crescendo muito nos últimos tempos, em virtude da escassez de órgãos cadavéricos . Corroborando para essa escolha está o aperfeiçoamento técnico das equipes cirúrgicas que permite alcançar resultados expressivos .

Embora ainda nenhuma morte de doador vivo de fígado tenha sido oficialmente notificada no Brasil, o risco, existe e é uma das principais preocupações na decisão do potencial doador .

Indivíduos que consideram a possibilidade de serem doadores vivos de seus órgãos ou parte deles ainda em vida, têm o poder de decidir o quanto e que tipo de risco é aceitável para eles , e isto pode variar de acordo com a percepção de cada pessoa . Porém , doadores potenciais não podem tomar tais decisões se não estiverem adequadamente informados a respeito dos riscos e possíveis implicações decorrentes da decisão de ajudar o receptor . O consentimento informado para o doador deve incluir o risco de complicações e ameaça da vida dele e, os riscos possíveis também para o receptor , de acordo com a experiência e resultados da equipe cirúrgica que executa o procedimento. Seria importante que os potenciais doadores estivessem cientes que os riscos de uma doação de órgão , a longo prazo , ainda são desconhecidos .

Numa situação ideal , seria interessante considerar que os doadores fossem avaliados por um médico que não fizesse parte da equipe transplantadora, embora , nossa experiência mostra que muitos potenciais doadores , antes de formalizarem seu interesse de serem doadores , foram consultar um médico de sua confiança , fora da instituição , que validou seu desejo .

Entretanto, o uso de indivíduos vivos saudáveis como doadores de órgão necessariamente desperta polêmica, especialmente sob o aspecto ético. O THIV foi adotado naturalmente na Ásia devido a falta de órgãos cadavéricos e motivos religiosos. E, um debate extenso pela justificação do uso de doadores vivos de fígados precedeu a larga aplicação nos Estados Unidos (Renz et al, 2000). O ponto de consenso foi e é a justificativa do risco do doador versus o benefício que pode ser obtido.

Sem dúvida, é muito importante que o risco para o doador seja o menor possível. É desejável que após sua recuperação mantenha o estilo de vida habitual que tinha antes de doação. Em uma pesquisa de mais de 1.500 casos de THIV de cinco principais centros de transplante de fígado na Ásia, a mortalidade foi zero (Lo, 2003). A taxa de morbidez foi de 16%, e todas as complicações foram tratadas adequadamente. Porém, embora os dados apresentem grande chance de sucesso, é importante não desconsiderar que qualquer procedimento cirúrgico, pelo simples fato de ser executado, traz um certo risco . Nos Estados Unidos, apesar de não ter um número preciso conhecido, pelo menos duas mortes de doadores de fígado estão documentadas (Beavers et al, 2002).

Desde o primeiro transplante de rim com sucesso com doador vivo em 1954 (Murray et al, 1976), os cirurgiões perceberam que talvez não fosse nenhum enorme dilema ético remover um órgão de um indivíduo perfeitamente saudável desde que fosse para ajudar um outro . A maioria das pessoas parecem considerar de maneira ingênua a doação de órgão e subestimam os riscos que os potenciais doadores vivos correm. A Food and Drug Administration (FDA) regula medicamentos e dispositivos médicos, avalia riscos e benefícios durante o desenvolvimento e o uso subseqüente deles. Porém , não há nenhuma norma pelo FDA ou processo regulador formal para procedimentos cirúrgicos inovadores , são concebidos e se implementam baseado em um processo informal de auto-regulação profissional e institucional. A responsabilidade para assegurar que a saúde do doador não seja prejudicada por este processo é da comunidade médica . Além disso, o transplante tem que ter uma alta probabilidade de êxito de forma que o doador não assuma este risco desnecessariamente.

Problemas éticos envolvidos neste processo foram discutidos a mais de uma década atrás quando a Universidade de Chicago iniciou seu primeiro protocolo para estudar o THIV em crianças (Siegler et al, 1989; Singer et al, 1990). O procedimento considerado experimental, foi revisado e aprovado pelo corpo de revisão e pesquisa institucional, antes que o primeiro caso fosse realizado (Siegler at al, 1989). O estudo do protocolo envolveu 20 crianças , cada doador (normalmente o pai da criança) assinou um detalhado consentimento informado declarando estar ciente que este procedimento tinha sido considerado uma pesquisa . Profissionais de advocacia e de ética foram envolvidos na decisão final para aceitar o doador . Com estas diretrizes protetoras, o THIV para crianças mostrou-se como um procedimento de sucesso para os receptores e seguro para doadores antes de ser adotado por numerosos centros em todo o mundo (Broelsch et al, 1990; Reding et al, 1999). Infelizmente, um caminho semelhante não foi seguido para THIV em adultos . A cirurgia de adulto nunca foi estudada dentro um protocolo formal e indicações de receptores não foram, inicialmente, formalmente definidas. Apesar disto, o procedimento ganhou difundida popularidade e foi abraçado pela comunidade médica e pela sociedade . Para esta, o THIV também traz benefícios socioeconômicos, se considerarmos que uma pessoa “inválida”, com doença crônica de fígado, pode voltar à vida produtiva depois de um transplante com sucesso.

Entretanto, vários princípios são importantes considerar quanto a ética do THIV em adultos . Estes incluem a utilidade, a isenção de dano , a autonomia no processo do consentimento informado, e a justiça para outros pacientes que estão esperando o transplante de fígado com um enxerto de cadavérico . O conceito de utilidade, fazer o melhor para um maior número de pessoas , parece ter sido aumentado pelo THIV. O sucesso do resultado no pós-THIV para o receptor estimula este procedimento. O tempo de espera mais curto , a cirurgia eletiva , a qualidade de enxerto conhecida (fígado de um individuo com a função hepática normal , livre de doenças anteriores), assinalam uma chance de sobrevivência melhor do enxerto e do receptor , a curto e a longo prazo (Cecka at al, 1997; Todo at al, 2000; Shih et al, 2001; Surman, 2002). Executando este procedimento em pacientes em estado clínico mais estável, é possível minimizar a morbidez e a mortalidade no pós-transplante e, provavelmente, reduzir o custo global de tratar complicações da doença crônica do fígado . Além do que , o uso de doador vivo , aumenta a disponibilidade de doadores cadavéricos para outros pacientes que precisem de transplante hepático.

Ainda falta uma compreensão e aceitação do conceito de doação de órgãos para transplante entre a população em geral (Broelsch et al, 1990; Shih at al, 2001). No Japão, o conflito cultural relativo a este assunto é bem conhecido , e um enorme esforço foi exigido para aprovar legalmente a morte clínica (Todo et al, 2000). A doutrina confuciana de respeito a integridade corporal é arraigada e não pode ser anulado facilmente através de motivos altruísticos e generosos para separar do corpo partes para serem usadas em outro pessoa . Como resultado , houve só dezoito doadores cadavéricos no Japão nos últimos três anos desde a aprovação da legislação de morte clínica e doação em 1997. Assim , o número de doadores cadáver no Japão é uma fonte desprezível de enxertos de fígado para os milhares de pacientes que esperam transplante hepático todos os anos . Porém, o número global de transplantes de fígado nos países asiáticos continua aumentando ano a ano, este incremento são atribuíveis ao número crescente de THIV.

Embora a demanda para THIV esteja em clara ascendência na maioria dos centros transplantadores, os princípios éticos que governam o ato de doação de um doador vivo devem sempre ser lembrado. Na doação de órgãos, o exercício da autonomia do doador depende da decisão da equipe que o assiste nesse ato. Sem a participação do clínico que o avalia e do cirurgião que o opera não existe doação. Define-se assim um julgamento baseado num binômio que inclui a vontade do doador e o discernimento da equipe responsável pelo transplante. O exercício desse discernimento ganha particular importância, considerando que a cirurgia de doadores vivos é o único setor da cirurgia na qual uma operação de grande porte é realizada em indivíduos sadios. Não devem surpreender, portanto, as dúvidas sobre a legitimidade ética de realizar, sem indicação médica, cirurgias que carregam um potencial de mortalidade e morbidade, ainda que pequenos.

Sem dúvida, a preocupação ética mais séria do THIV é o risco para o potencial doador , que se submete a procedimento cirúrgico de grande porte, sem benefício algum para sua saúde . Este procedimento desafia a ética médica , no que diz respeito ao aforismo Hipocrático: nocere de non de primum ( primeiro não prejudique). A doação de órgão feito por doador vivo , que exige que um indíviduo saudável sofra uma cirurgia e tenha um órgão ou parte dele retirado, seria moralmente contestável. Preservar a saúde do doador e excluir um potencial doador se ele não é um “ótimo” candidato, deve, portanto ser a prioridade mais importante da equipe de transplante.

A avaliação por um assistente social e por um psicólogo integram o protocolo nos grandes centros transplantadores. Tal procedimento, tem como finalidade avaliar se o potencial doador está ciente dos riscos do processo cirúrgico e benefícios possíveis para o receptor . A avaliação psicológica corroborará na verificação do estado mental , assegurando que o potencial doador não tenha história de distúrbios psiquiátricos e/ ou de uso de drogas que possam afetar sua capacidade de tomada de decisão para se submeter a uma cirurgia de doação. A avaliação psicossocial , também objetiva assegurar que a decisão para doar tenha sido tomada sem coerção dos membros da família do receptor ou da equipe medica de transplante.

Como sabemos, a doença crônica, é uma ameaça à estabilidade e homeóstase de qualquer indivíduo. Sendo a família vista como um grupo de pessoas relacionadas entre si, facilmente se percebe como as limitações do paciente, como parte integrante da família, influenciam o comportamento deste grupo. Assim, é neste contexto, envolvendo u ma interação complexa de dinâmica psicossocial e familiar, que o processo de doença-transplante-doação se desenvolve, por isso a explicação e as informações do cirurgião são extremamente importantes, pois podem estabelecer um cunho racional na percepção do potencial candidato, favorecendo que o mesmo tome uma decisão o mais racional possível. Ou seja, a integridade ética da prática do THIV assenta-se principalmente nos médicos responsáveis pelo serviço transplantador.

Uma vertente da polêmica sobre o doador vivo, é quem pode ser um doador de órgãos? Ao contrário da situação dos Estados Unidos onde pessoas absolutamente estranhas ao receptor são aceitas como doadores de órgão, os bons samaritanos (Surman, 2002), e da Ásia que só aceita doadores vivos se forem parentes ou amigos do receptor. No Brasil, a legislação determina que uma “pessoa juridicamente capaz pode dispor gratuitamente de seus órgãos para fins terapêuticos em cônjuges ou parentes consangüíneos até o 4 º grau, inclusive, ou para qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial” (MS, 2001). Ou seja, há restrição legal quando o doador e o receptor não forem aparentados. Mas, em nenhum país, é aceito o comércio de órgãos.

Mais uma vez é convocado os princípios éticos que norteiam a prática das equipes transplantadoras. Algumas equipes, em casos de impasses, quando o doador não é relacionado, podem recorrer a avaliação e aprovação pelo comitê de ética respectivo da instituição .

Embasando-se nestes critérios, a avaliação psicológica é parte do processo de avaliação do potencial doador, para tentar impedir qualquer forma de coerção. Certamente, as virtudes de caridade , altruísmo , generosidade , sinceridade, e magnanimidade que entram em jogo no processo de doação não são mensuráveis. Porém , a um potencial doador deve ser dada a oportunidade de decidir considerando os riscos que estão envolvidos na sua decisão para doação (Whitington, 1996).

A infração do princípio Hipocratico “nocere de non de primum”(primeiro não prejudique), especialmente na área de transplantes, geralmente é excedida em valor pelo princípio de respeito da autonomia do doador e o princípio de beneficência, isso é, benefício físico do receptor e talvez psicológico e até mesmo benefício global do doador.

O princípio de beneficência geralmente fala em favor da doação de órgão de doador vivo. No que se refere ao receptor de um órgão doado por uma pessoa viva , quase todas considerações que avaliam o risco (dano) em relação ao benefício, como vimos são positivas. Do lado do doador , vantagens psicológicas, emocionais e espirituais, tais como um aumento de amor-próprio, podem contrabalançar pelo menos em parte, a dor, o desconforto, a ansiedade e o risco dele (Daar at al, 1997). Isto também é verdade no caso de doação não-relacionada, altruística. Crescentemente, o processo de doação é reconhecido como um benefício adicional para o doador potencial (Jones at al, 1993; Daar at al, 1997; Fehrman-Ekholm et al, 1997).

É claro que , o equilíbrio entre a autonomia do doador com a necessidade da sociedade de não causar risco nele é um dos problemas éticos básicos na doação de órgão de doador vivo (UNOS, 1992). Porém , podemos considerar que a relação de benefício e de risco que qualquer transplante com doador vivo propõem não é só determinado através dos dados do exame médico ( ou psicológico ), mas também, através de julgamentos de valor. É o doador que pode decidir o valor do seu risco para atingir um certo objetivo de importância especial para ele. Esta consideração, insinua que a regra geral de remoção de órgãos de doadores vivos só será admissível se um órgão em condições satisfatórias de um doador cadáver não esteja disponível, não se sustenta, pois o doador e o receptor podem ter boas e suficientes razões para preferir um órgão vivo (p.ex. rim e fígado) ao invés de um enxerto de um doador morto , mesmo se tal enxerto estiver disponível.

Não há nenhuma razão sã moral para determinar que o receptor deva escolher um enxerto cadavérico contra a vontade dele, ao invés de preferir o órgão de um doador conhecido seu (aparentado ou não) que queira lhe ajudar. A base para esta consideração, talvez atinja o principio ético mais crucial do que o da relação risco-benefício, É o princípio de respeito para a autonomia das pessoas.

Na tradição liberal Ocidental de pensamento ético e político , o respeito pela autonomia de uma pessoa significa respeito pela escolha voluntária dele como o único legítimo determinante de suas ações, exceto quando atinge os direito de outros sujeitos. Seres humanos autônomos não só têm direitos sobre sua saúde e integridade do corpo, mas também , de fazerem escolhas (talvez arriscadas), de acordo com seus traços de personalidade, buscando dar significado a sua própria existência. Indubitavelmente, o benefício recebido pelo doador é basicamente psicológico , porque eles se sentem recompensado pela satisfação de ter ajudado a prolongar a vida de uma pessoa “amada”. Em um contexto mais amplo, esta satisfação não só é experimentada pelo doador, mas pela família inteira, inclusive membros da família extensa e amigos .

As pessoas têm direito de decidir como viver sua vida. O princípio ético de respeito para autonomia está na base da exigência do consentimento informado do paciente para tratamento médico e, pode ser extensivo para o potencial doador de um transplante inter-vivo.

Sem dúvida estes cuidados não são em vão, pois a partir do sucesso dos resultados, mais pessoas se dão conta da viabilidade desta opção de transplante e o ato voluntário para ser doador é encorajado. Entretanto, a sutileza e a especificidade de cada caso, devem ser acolhidas no trabalho de escuta na avaliação psicológica.

Outro ponto a ser considerado também, é que o desejo da equipe cirúrgica para executar THIV seja mais egocêntrico que altruístico (Shaw, 2001). Mas, enfim, é responsabilidade deles agir conscienciosamente na prática da sua profissão. Este é um princípio ético universal de prática profissional que talvez, num contexto de THIV, seja mais crucial, pois demanda não só de receptores, mas também da sociedade está aumentando ou já existe.

 

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Endereço para correspondência
Al. D. Pedro II, 97 Cj 01
80420-060 Curitiba - PR
Tel.: +55-41 224-6907
E-mail: clairetl@ufpr.br

 

 

* Psicóloga Clínica do Serviço de Psicologia e do Serviço de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná.

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