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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH v.9 n.1 Rio de Janeiro jun. 2006

 

 

A paternidade em cuidados intensivos neonatais

 

 

Heloisa Ribeiro Baptista Coutinho1; Denise Streit Morsch2

 

 


RESUMO

As autoras apresentam os resultados de um estudo que privilegiou as falas paternas surgidas a partir da experiência decorrente do nascimento prematuro do filho e do início da internação intensiva neonatal, aliado às observações realizadas em seu dia-a-dia no acompanhamento das famílias, nesta situação. Estabelecem relações com a proposição de Stern (1997) quanto a possibilidade do pai experimentar a "constelação da paternidade", bem como relativizam o conceito de "engrossment" proposto por Klaus e Klaus (2000) ao funcionamento do pai, numa UTI Neonatal. Finalizam o artigo discutindo as necessárias e indicadas intervenções com a figura paterna nas Unidades Intensivas Neonatais.


ABSTRACT

The authors present the results of a study that privileged the paternal speech from the decurrent experience of the premature birth of the son and the beginning of the internment at the Neonatal Intensive Care Unit, together with the observations made day-by-day when following the families in this situation. Relations are established with the Stern proposition (1997), as far as the possibility of the father experimenting the "fatherhood constelattion" as well as relativizes the concept of "engrossment" considered by Klaus and Klaus (2000) for the functioning of the father, in a Neonatal Intensive Care Unit. The necessary ones and indicated interventions with the paternal figure in the Neonatal Intensive Units finish the article arguing.


 

 

INTRODUÇÃO

O conceito pai apresenta-se, na atualidade, grávido de significações. Mais do que designar um papel de provedor e garantidor de limites e leis ele é real, vivo, presente no dia-a-dia dos filhos. Questões sociais, culturais e mesmo econômicas mantiveram o pai, na cultura ocidental, com a tradição de ocupar o lugar de provedor material da família, mantendo-o distante dos filhos e da realidade doméstica. Somente após a entrada da mulher no mercado de trabalho essa visão precisou ser transformada. Comportamentos e tarefas masculinas e femininas mudaram na medida em que ambos necessitaram ampliar seu campo de atuação, dividir e compartilhar tarefas. O homem precisou assumir novas funções familiares e sociais, envolvendo novas perspectivas no desempenho da paternidade o que conseqüentemente modificou sua relação com os filhos (Silveira, 1998). Já a mulher necessitou abrir novos espaços dentro de seus afazeres domésticos bem como ampliar sua relação com o mundo extra-familiar.

Desta forma a sociedade foi apresentada a novas características do homem como a sua capacidade de ser nutridor, de oferecer cuidado e atenção para com a prole. Camus (1999) lembra que na década de 60 pesquisadores sociais já vinham discutindo os riscos que viviam crianças de famílias decompostas, especialmente aquelas onde ocorria a ausência da figura paterna. O resultado destas considerações começou a sinalizar a importância que o pai exerce ao longo do desenvolvimento biopsicoafetivo de qualquer criança, garantindo ser ele fundamental desde o início da vida do filho.

Uma das conseqüências destas modificações tem sido acompanhada na participação do pai na gestação de sua companheira tornando-se imprescindível sua presença nas consultas pré-natais e mesmo no momento do nascimento do bebê. Com isto ele recebe de seu filho, muito precocemente, sinais que o apóiam no desempenho da paternidade. Estudos de Greenberg e Morris mostraram ótimos resultados e características peculiares acerca da formação de vínculo entre estes parceiros (Klaus, Kennel & Klaus, 2000) na ocorrência de um contato precoce entre ambos. Nesta possibilidade encontramos um funcionamento especial na figura paterna liberando um potencial inato para dedicar-se ao filho, denominado engrossment3.

Klaus, Kennel e Klaus (op. cit) definem o engrossment como uma poderosa resposta que os pais, com freqüência, sentem em relação a seus recém-nascidos (...); a expressão significa absorção, preocupação e interesse.(p.78). Oiberman (1994) refere-se ao engrossment como um potencial inato do pai em relação a seu bebê, que se desenvolve no momento de seu nascimento, sendo liberado quanto mais cedo se dá o contato entre ambos (p. 71). Sentir-se absorvido pela presença do bebê, manifestar por ele preocupação e interesse, expressar intensa emoção frente ao nascimento do filho e ao ver-se convertido em pai são características do engrossment. Diz a autora:

O pai se conscientiza da existência do filho, percebendo-o como indivíduo; existe, por parte do pai, grande desejo e prazer no contato físico com o bebê; os pais são conscientes das características físicas do bebê, percebido como perfeito; o recém nascido provoca no pai profunda atração, passando a focar nele seu interesse e atenção ; a paternidade é vivida como uma experiência de exaltação e sensação de euforia; diante do nascimento do filho, o pai adquire maior sentimento de auto-estima.

Isto é acompanhado por obstetras e pediatras sempre que estimulam a presença do homem, construindo sua paternidade, junto a sua mulher. Nossa preocupação, neste artigo, refere-se entretanto, ao acontecimento de um parto prematuro, com a conseqüente ida do bebê para uma Unidade de Tratamento Intensivo Neonatal. Como fica o pai, neste momento já que somam-se a estas suas primeiras experiências, um estranhamento, um desassossego e o acúmulo de diferentes tarefas e funções. O pai passa a ser exigido física e psiquicamente. Frente ao fato de sua mulher, neste momento, estar em trabalho de recuperação pós-parto, é ele o primeiro a acompanhar e cuidar do bebê no ambiente altamente tecnológico e especializado da UTIN; é quem mantém os primeiros contatos com as equipes de obstetrícia e de intensivismo neonatal ; cuida da mulher e companheira fragilizada, além de assumir outras atividades domésticas e voltar rapidamente às suas atividades profissionais.

Estas observações aliadas a confirmação de nossa observação diária em Utis neonatais, de que o pai sempre se encontra mais positivamente envolvido com o bebê sob cuidados intensivos do que sua esposa, nos levaram a buscar conhecer melhor o que se passa, com ele, no ambiente de cuidados intensivos neonatais. Para tal realizamos este estudo através de observação clínica no dia-a-dia da UTI Neonatal juntamente com entrevistas com 12 pais de bebês pré-termo cujos resultados serão apresentados nesse trabalho. Nossa surpresa e grande estímulo para este estudo refere-se a semelhança de suas colocações com os temas propostos por Stern (1997) em relação a Constelação da Maternidade, texto que utilizamos para nossa discussão.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo qualitativo, que utilizou como instrumento de coleta de dados a observação clínica em nossa rotina de cuidados na UTI neonatal e uma entrevista semi-estruturada com doze pais de bebês pré-termo considerados de alto risco ao nascimento. Os entrevistados foram convidados a participar do estudo após terem sido informados verbalmente sobre os objetivos do mesmo e que seus nomes seriam confidenciais. As entrevistas foram realizadas depois de ultrapassado o período crítico da internação, ou seja, quando o bebê não mais se encontrava em um estado clínico grave ou instável, o que determinaria por si só, maiores níveis de preocupação e sofrimento. Cada uma das entrevistas foi feita de maneira individual, dentro do ambiente da UTI Neonatal, com uma duração média de quarenta minutos, e as respostas registradas durante o relato dos entrevistados. Avaliamos que o uso de gravador, neste momento, seria inadequado já que todas estas famílias ainda permaneceriam por um longo período de tempo sob nossos cuidados.

 

RESULTADOS

Todos os doze pais contatados aceitaram participar da entrevista. O peso médio de nascimento dos bebês foi de 1202 g (variando de 575 a 1990 g). O tempo médio de internação destes bebês foi de 92 dias (variando de 21 a 155 dias), não ocorrendo neste grupo, nenhum óbito. Dos doze recém nascidos cujos pais foram entrevistados, nove recém-nascidos internaram por prematuridade extrema; dois por prematuridade associada a gemelaridade e um por prematuridade e hipoglicemia. Todos os entrevistados estavam presentes na sala de parto quando do nascimento do bebê. A idade média dos pais foi de 31 anos. Quatro já possuíam outros filhos. Onze entrevistados visitaram o bebê imediatamente após o parto, antes da primeira visita da mulher ao filho (a) e apenas um fez sua primeira visita ao bebê ao mesmo tempo em que sua mulher;

Com relação às suas falas, três pais relataram que o nascimento do filho pré-termo representou um choque para eles – " Foi um choque, mas o choque maior foi na sala de parto, ele estava roxo, abdômen dilatado ; dois relataram a experiência como traumatizante – "Foi um trauma" , três como sendo emocionante; um referiu a tristeza como sentimento predominante . A presença da ambivalência de sentimentos diante do nascimento do filho pré-termo foi apontada por três entrevistados – "Confesso que estava com um misto de preocupação com felicidade". O nascimento prematuro de um filho foi relatado como muito diferente de um nascimento a termo, onde todos estão felizes; a falta de conhecimento da sociedade com relação a nascimentos prematuros e suas conseqüências foi colocado, por um pai, como um fator que dificulta o enfrentamento da situação: – "Como é pouco difundido, a sociedade não sabe o que fazer. É melhor dar os parabéns ou não?".

A primeira visita do pai ao bebê na UTI Neonatal foi avaliada por um dos entrevistados como um momento tenso – "Na primeira vez foi difícil acreditar que poderia dar certo, foi um momento muito tenso."; um entrevistado referiu-se ao acontecimento como "traumatizante, chocante"; um pai relatou o momento como "horrível", outro como emocionante – "Foi muito emocionante, é meu primeiro filho, me senti alegre comigo mesmo, mas a questão dos aparelhos eu achei ruim." Um entrevistado definiu a experiência como ambivalente – "Foi legal, apesar dele estar cheio de tubo. Não foi tão bom quanto seria se tivesse nascido normal e fosse para o berçário. Ele era perfeito. Foi triste mas foi legal".

A primeira visita da mãe ao bebê foi vista como muito difícil para seis entrevistados na medida em que precisaram demonstrar força para confortar a mulher, mesmo estando também fragilizados – "Para mim foi muito difícil, eu tinha que confortá-la mas tinha a mesma dor que ela" ; dois outros entrevistados descreveram o momento como muito emocionante, um como muito doloroso para ambos - "Agora posso respirar mais aliviado e dizer para você o quanto foi doloroso para mim e para ela, querendo pegar no colo a filha que tanto amo, recebendo visitas sem poder mostrar." Dois disseram que para a mulher esse momento foi muito difícil – "Para ela foi péssimo, ela quis logo ir embora". Outros dois pais falaram sobre a importância de terem visto o bebê antes de suas mulheres, já que tiveram condições de prepará-las para o momento – "Eu tinha consciência que ela ia chorar e por isso ia explicando, contando histórias, falando das aparelhagens, tentando explicar algo que nem eu conhecia"; um entrevistado relatou que o fato da mulher ter visto, anteriormente à sua primeira visita, uma fotografia do bebê na incubadora tornou esse momento um pouco mais tranqüilo – "Primeiro tiraram a foto, eu levei. O impacto foi menor, ela já viu o estado que ele estava ."

 

QUANDO A FUNÇÃO PATERNA SE APROXIMA DA MATERNA, NA UTI NEONATAL.

O que íamos escutando nas entrevistas, o tom de voz usado, as expressões verbais ou mesmo faciais, os gestos destes homens, começaram a nos surpreender pela semelhança com os relatos maternos, com as expressões utilizadas pelas mulheres. Tudo o que verbalizavam poderia ser encontrado em colocações das mães dos bebês, ou seja, começamos a notar uma intensa proximidade entre o discurso paterno, surgido nesse período, e o discurso materno. Por outro lado, suas falas nos remetiam a questões teóricas como aquelas propostas por Daniel Stern (1997) em seu livro Constelação da Maternidade. Ou seja, para este autor existem na mulher preocupações, sentimentos, idéias, pensamentos próprios da época da chegada de um filho e víamos que estes também pertenciam ao mundo paterno.

Stern (1997) mostra que, na cultura ocidental, quando uma mulher se torna mãe, surgem quatro temas relacionados a características maternas: vida-crescimento; relacionar-se primário; matriz de apoio e reorganização da identidade, cada um deles com características próprias e que configuram suas idéias, suas condutas, sua forma de agir e pensar frente ao fato de gerar um bebê.

Em relação aos quatro temas propostos por Stern, as entrevistas mostraram que eles também aparecem no relato paterno. Utilizando a provocação do próprio autor que diz : se o pai é o cuidador primário, será que ele também vai desenvolver uma constelação da maternidade? (Stern, 1997, p. 178), passamos a estabelecer uma discussão teórico e prática destas questões, que apresentaremos a seguir.

 

O TEMA DE VIDA-CRESCIMENTO

Neste tema, a questão central é se a mãe sentir-se-á capaz de manter vivo seu bebê, fazendo com que ele cresça e se desenvolva fisicamente de forma saudável, sem deixar seqüelas, se alimente bem, ou seja, que ele sobreviva. Os dados obtidos nas entrevistas mostraram que desde o momento do parto prematuro o pai demonstra grande preocupação com o desenvolvimento de seu bebê, temendo que ele morra, lembrando muito as colocações de Stern sobre a mulher. Marcos e João3 relataram esse medo:

"Tive medo de perder meu bebê, de não conseguir".

"Tem sido muito estresse emocional, não gostaria de passar por uma perda".

"Foi muita gente para cima dele. Estava morto ?"

Além do medo da morte existe a preocupação com o desenvolvimento físico do bebê, o receio de que esse fique com seqüelas ou problemas, como disseram Maurício, Paulo e João:

"Tinha medo dele ficar deformado, ter problemas mentais".

"Eu pensava se aquele bebê viraria um bebê de verdade".

"Eu me preocupava com o bebê, com o que ia resultar dali’".

No caso dos pais de bebês pré-termo, principalmente os extremos4, o receio de que o bebê pare de respirar acaba por se concretizar nas apnéias5, aumentando o nível de insegurança, preocupação e angústia . Para Carlos foi muito difícil presenciar uma "parada respiratória" de seu bebê pré-termo: "E as apnéias? Elas eram muito brabas, eu presenciei uma, estava na hora, conversando".

 

O TEMA DO RELACIONAR-SE PRIMÁRIO

Esse tema acompanha a mãe durante todo o primeiro ano de vida do bebê, onde o relacionamento desta com o filho inclui o "holding", laços de apego, segurança e afeição. Surgem preocupações acerca da capacidade da mãe amar seu bebê e se sentir amada por ele; de sentir-se capaz de reconhecer e identificar o bebê como seu; de desenvolver um estado de sensibilidade que lhe permita identificar-se com o filho de forma a atender suas necessidades.

Os pais entrevistados mostraram-se muito disponíveis afetivamente para seus bebês, sensíveis ao olhar para os filhos, capazes de reconhecer suas necessidades físicas e afetivas. Jorge passava longos períodos do dia junto ao seu bebê. Disse ele:

"A sorte é que estou disponível, esse ano, para ele."

Aqueles pais que não podiam temporariamente pegar o filho no colo foram vistos muitas vezes "lendo" seu bebê dentro da incubadora, acompanhando com o olhar os movimentos, o contorno do corpo do bebê, tentando descobrir suas necessidades e vontades; fazendo-lhe o "holding" com o olhar, conversando com o filho, traçando planos para seu futuro, reconhecendo nele traços familiares, reconhecendo-se como pai, como nos contaram Roberto e Carlo: "Eu estava desconectado das coisas: só olhava o bebê, o estado do meu bebê". "Eu queria pegar no colo a filha que eu tanto amo".

João completou: "Eu queria estar o máximo de tempo em contato com ele, pegar, tocar".

Apareceram preocupações dos pais para com o surgimento futuro de possíveis problemas psíquicos e emocionais no bebê como resultado da sua internação na UTIN , funcionando como "marcas" psíquicas deixadas por esse início diferente de vida e pelos conseqüentes cuidados intensivos neonatais.

 

O TEMA DA MATRIZ DE APOIO

A principal função do que ele denomina matriz de apoio é que existam pessoas capazes de cuidar da mãe, provendo suas necessidades, para que ela possa, cuidada, cuidar do bebê. Conforme já foi discutido anteriormente, o nascimento prematuro de um bebê impõe ao homem e pai um misto de novas tarefas, novos medos e emoções. Além de assumir uma série de responsabilidades, ele deve cuidar do universo afetivo inicial do bebê na UTIN; proteger a díade-mãe-bebê; continuar provendo a família, além de seus compromissos profissionais.

As falas dos pais nas diferentes entrevistas mostraram que também eles necessitam da existência de uma "matriz de apoio", de forma a ajudá-lo a enfrentar suas tarefas. Carlos fala da necessidade do homem receber apoio nesse momento:

"Na hora em que soube da necessidade de transferi-lo, chorei muito. Ficou tudo confuso, eu não sabia o que fazer, se eu vinha com ele ou atendia minha mulher. Tinha que buscar minha filha na escola. Liguei para a babá. Chamei meus pais".

As palavras de Antônio, Marcos, José e Thiago confirmam o quanto os pais se sentem frágeis nessa hora, necessitando demonstrar força e coragem na medida em que servem de suporte para a esposa e mãe. "Por dentro eu estava em pedaços, mas não podia mostrar." Ou ainda: "Eu, longe dela, entrava no banheiro, dizia que ia tomar banho e era para chorar, não tinha com quem fazer isso"."Eu tinha que confortá-la, mas eu tinha a mesma dor que ela"."A gente vive em uma cultura em que o homem deve ser forte, mas ele é tão atingido quanto as mulheres nesses casos"."Se eu disser que estou bem psicologicamente, não é verdade. Se eu disser que não estou cansado, estou mentindo. Se eu disser que não estou no meu limite, estou mentindo".

Essas colocações e as observações clínicas durante as visitas dos avós nos sugerem que na "matriz de apoio" a figura do pai-do-pai tem um significado importante para ele.O pai do bebê em geral procura a proximidade de seu pai. Além do recém feito pai também fazer um reajuste psíquico de seu relacionamento com o seu pai e com as figuras parentais de sua vida por ocasião do nascimento de seu bebê, cabe ao pai-do-pai a responsabilidade de servir como referencial para seu filho, facilitando o desempenho da paternagem. Durante este período escutamos por parte de "avôs" (pais dos pais) histórias muito interessantes como – conseguiram licença no trabalho para estarem próximos ao filho neste período; anteciparam férias, freqüentaram com assiduidade maior do que suas esposas a UTI Neonatal, seja para visita ao neto seja para conversarem com o filho nos corredores ou salas de espera.

 

O TEMA DA REORGANIZAÇÃO DA IDENTIDADE

Neste tema, Stern refere-se à necessidade da mãe de transformar sua identidade, reorganizando-a. Essa reorganização de identidade traz novas preocupações, modifica a distribuição de tempo e energia da mulher, as atividades que exerce e conseqüentemente altera todos os investimentos emocionais da mãe para com o mundo.

Com relação ao pai, o autor inicialmente sugere que a situação é um pouco diferente da materna. Segundo esclarece, o homem, mesmo aquele bastante participativo que age como novo-pai, não pode servir de exemplo para sua mulher oferecendo informações, técnicas e aconselhamento por ser tão inexperiente quanto ela no que diz respeito aos cuidados com o bebê, além de não ter condições de " validar e apreciar a mãe em seu papel de cuidadora (...) quanto uma figura materna "legítima", pessoalmente selecionada" (Stern,1997, p. 177). Cabe ao marido, pai e homem apoiar a mulher, fazer o "holding" psicológico (Stern,1997, p. 177). Em contrapartida Stern deixa uma questão sem resposta. - Se o pai é um cuidador primário, será que ele também vai desenvolver uma constelação da maternidade? Afinal de contas, seu cuidador primário foi (com toda a probabilidade) sua mãe. Ou sua necessidade de se identificar com seu pai vai alterar muito essa situação? As respostas para essas perguntas ficarão claras com o tempo... (Stern,1997,p. 178).

O que vimos em nosso estudo é que o nascimento de um filho faz com que o homem também necessite reorganizar sua identidade através de intenso trabalho mental como afirma João: "A gente passa a ter uma visão completamente diferente da vida, muda completamente". José complementa: "Foi nesse momento que a ficha caiu. Ali eu me senti pai, nós quatro juntos". Para Jorge a vida passa a ter outro objetivo: "Agora estou em prol de outro ideal: minha filha vai bem, isso é o fundamental"."Precisei parar, pensar, medir a minha vida a partir daquele momento".

Como a mulher, o homem passa ao lugar de pai, progenitor e pai de família, modificando seus investimentos afetivos e priorizando outras atividades. "Foi muito emocionante, é meu primeiro filho".

"Para mim é tudo novo. Ser pai é novo. Entrar na UTI é novo".

 

DISCUSSÃO

Os dados colhidos nesse estudo sugerem que existe sim, no homem, uma preocupação e envolvimento com seu filho recém-nascido que se aproxima daqueles experimentados por sua mulher. No nascimento de um filho pré-termo, além da preocupação e do envolvimento próprios do engrossment, o pai experimenta um outro funcionamento especial. Neste caso ele necessita fazer um reajuste psicológico de suas tarefas, reavaliando suas experiências em não esperadas funções. Essas são as questões que se apresentam fundamentais para o homem nesta situação e que necessitam uma rápida resolução – os sentimentos envolvidos e despertados pela experiência de tornar-se pai ou mais uma vez pai e suas novas experiências com os cuidados intensivos neonatais.

Tais vivências o conduzem a uma nova prática e a uma re-organização psíquica, necessária para que ele possa identificar-se com seu filho e com sua mulher (sentindo-se também necessitado de receber cuidados) para compreendê-los e entender o que ambos esperam dele. Provavelmente a predisposição de "apaixonar-se" pelo bebê através do engrossment lhe facilite ocupar este lugar frente a família e a sociedade; com a equipe de cuidados e com os amigos mais próximos. Inclui-se aqui também um legado social e cultural que o torna responsável por oferecer um intenso suporte à mulher neste período, além de lhe exigir que desempenhe, nos momentos iniciais da internação, um funcionamento mais próximo ao dito "maternal". É durante este período que a presença do pai-do-pai é da maior importância. O apoio que este pode oferecer no momento inicial da crise familiar pela internação do bebê traz, para o novo pai, um colo, um holding, essencial para integrar a figura paterna facilitando o desempenho de suas funções.

Todos os momentos de internação do bebê nascido prematuramente mostraram-se dolorosos para os pais entrevistados, mas sem dúvida aqueles considerados mais difíceis de serem enfrentados foram:

. o parto
. a primeira visita ao filho na UTI Neonatal
. a primeira visita da mulher ao bebê nos cuidados intensivos neonatais e
. o momento de alta da mulher do hospital.

Este último traz consigo a consciência da dura realidade: os braços vazios, na volta para casa, marcam concretamente o nascimento prematuro do bebê. Da mesma forma, despedir-se do bebê diariamente, à saída do hospital, reedita esse sentimento. Conforme os pais nos relataram num grupo que realizamos apenas com eles, em ambas as situações fica difícil encontrar palavras de conforto à mulher, visto estarem eles também tomando consciência da realidade e de todos os sentimentos que giram em torno de uma "paternidade prematura".

Esta expressão "paternidade prematura" utilizada neste texto,pode ser compreendida como um funcionamento adequado à situação experimentada pelo homem que foi impedido de completar a gestação psicológica e biológica de seu bebê. Esse funcionamento não impede que o pai prematuro assuma seu papel diante das situações e exigências reais que a internação coloca, mas traz um sentimento de estranhamento temporário. Este estranhamento surge porque as representações internas que o pai foi desenvolvendo durante sua vida sobre o tornar-se pai,desempenhar-se como pai e que agora, o orientariam, não podem ser utilizados – eles possuem um outro paradigma baseado numa história diferente, que não incluía a passagem por cuidados intensivos neonatais. O mesmo acontece para todas aquelas aprendizagens decorrentes de seu ambiente social e cultural.

Ou seja, um parto prematuro e de risco muitas vezes leva o homem a sentir-se incapaz para assimilar a rapidez com que o processo do parto se inicia e o verdadeiro risco de morte do bebê e às vezes, da mulher. A rapidez com que a equipe médica precisa se reunir, algumas vezes impossibilitando a presença do profissional conhecido pelo pai; o cheiro e os barulhos característicos de centro cirúrgico; a atuação tensa e rápida dos profissionais durante o parto; a aparência do bebê; os procedimentos de primeiros socorros visando reanimação do recém-nascido; as manobras terapêuticas adequadas, mas que se apresentam para o pai como desconhecidas e assustadoras; a rápida retirada do bebê para a UTI Neonatal; a preocupação com o estado físico e psicológico da mulher, todos esses fatores assustam demasiadamente o homem, exigindo dele força e grande controle emocional para que possa dar conta das tarefas que lhe caberão a partir de então. O homem,dito agora como pai, mas muitas vezes sem ainda sentir-se como tal, passa a ser o elo com a equipe, o responsável por receber todas as notícias e por acompanhar mãe e bebê.

Todas as situações citadas anteriormente podem explicar a fala dos pais quando se referem ao nascimento de seu bebê pré-termo como algo traumatizante ou chocante. Através desses vocábulos os pais tentaram representar seu sentimento de incapacidade passageiro para compreender e assimilar um acontecimento inesperado e tão intenso, inicialmente desorganizador por todas as emoções ambivalentes e medos que provoca.

Outro resultado relevante desse estudo foi chamar a atenção para a importância que os pais-dos-pais assumem no momento do nascimento prematuro de um bebê, servindo como modelo e figura de referência para seus filhos. A presença do pai-do-pai assume maior importância em momentos mais críticos da internação, onde o estado clínico do bebê é mais instável, inspirando maiores cuidados. Nos casos onde o pai-do-pai não foi tão presente ao longo do processo de internação dos bebês foi possível identificar, através das falas dos entrevistados, maior dificuldade para lidar com o nascimento prematuro do filho e todas as exigências impostas por esse momento. Esse tema precisa ser melhor compreendido, ficando como sugestão para novos estudos.

É muito importante ressaltar que a volta prematura do pai ao trabalho, após cinco dias de nascimento de seu bebê pré-termo, mostra-se produtora de sofrimento na medida em que todo o olhar e investimento paterno encontram-se voltados para a UTI Neonatal, para a mulher e para o bebê , não havendo "espaço" psíquico para lidar com questões profissionais.

 

CONCLUSÕES

É fundamental que desde a primeira conversa com o pai, após o nascimento do bebê, a equipe médica relate os fatos com verdade e clareza. Essa atitude por parte da equipe é duplamente importante. Se por um lado ela favorece o estabelecimento de uma relação de confiança indispensável ao longo da internação normalmente prolongada de um bebê pré-termo, que inclui várias fases – algumas muito delicadas – de outro ela reconhece o quanto a situação é estressante. Ao agir assim, a equipe oferece ao pai a oportunidade de melhor se instrumentalizar para conhecer a realidade do filho. Ao mesmo tempo permite que ele utilize melhores estratégias para enfrentar os momentos que se apresentam e os riscos potenciais inerentes ao estado clínico de seu bebê.

Cabe também à equipe de saúde a importante tarefa de acompanhar a visita do pai a UTIN, tanto aquela em ele vai sozinho visitar pela primeira vez seu bebê quanto a primeira visita da mãe à criança, onde o homem coloca-se como "forte" e cuidador da mulher, mas necessita também de cuidado e atenção.

O maior resultado desse trabalho foi compreender que é preciso que a equipe de saúde e os familiares disponibilizem um espaço subjetivo suficientemente amplo no qual o homem, e pai de um neonato pré-termo, possa transitar com conforto. Esse espaço permite a ela não ter que assumir uma função ou papel previamente determinado ou culturalmente esperado. Se for adequadamente olhado e cuidado nesse momento, toda sua afetividade e um grande número de emoções que cercam o nascimento de um filho têm a possibilidade de tornarem-se presentes.

O atendimento aos pais, em grupo, mostrou ser um espaço favorável e continente, onde medos, preocupações, angústias e dificuldades experimentadas durante a internação de seus bebês puderam ser melhor expressadas e divididas . Longe das mulheres, as quais procuram poupar e proteger, os homens identificaram-se entre si, utilizaram-se da mesma linguagem, compartilharam suas vivências . Entretanto é importante ressaltar que os grupos familiares de apoio nas UTI Neonatais devem sempre privilegiar:

- a participação do casal, buscando sua interação,
- a elaboração da crise gerada pelo nascimento do filho pré-termo e
- a reorganização familiar.

O atendimento em grupo, somente de pais, pode reforçar, em alguns casais, defesas pouco adaptativas e sentimentos persecutórios, devendo por isso ser utilizado em situações particulares e somente quando a dinâmica dos casais demandar essa intervenção mais específica. Foi a partir de uma clara demanda e da autorização por parte das mulheres de um grupo de pais da UTI Neonatal que realizamos o grupo composto somente por pais. Esta experiência participou do processo deste estudo, colaborando para obtermos dados significativos para nossa discussão, mas temos clareza que não deve ser uma prática constante e sim um recurso a mais a ser utilizado em situações especiais.

A experiência mostrou que o pai se apaixona por seu bebê pré-termo e admira nele sua força e capacidade em lutar pela vida. A presença do engrossment facilita o processo de interação entre um pai e seu bebê pré-termo. Para que isso ocorra é necessário que o pai possa participar dos cuidados com seu bebê pré-termo já a partir da sala de parto, acompanhando-o em seus primeiros momentos de internação na UTIN. A participação da equipe de saúde coloca-se como condição importante e indispensável; o processo de humanização das UTINs deve possuir um olhar especial para o pai do bebê, acolhendo-o e incentivando-o a participar da internação de seu filho.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Winnicott, D. (1999). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

1 Psicóloga Clínica/RJ
2 Psicóloga da Clínica Perinatal Laranjeiras/RJ
3 A palavra engrossment ainda não tem tradução na língua portuguesa.
3 Os nomes utilizados para os pais são fictícios.
4 Prematuridade Extrema: recém nascido com idade gestacional inferior a 30 semanas e peso geralmente menor do que 1500g. As intercorrências clínicas ocorrem com freqüência maior e tem maior gravidade em virtude de imaturidade.(Leone, 2001)
5 Apnéia: Interrupção dos movimentos respiratórios por tempo igual ou superior a 20 segundos, podendo ou não ser acompanhado de bradicardia e/ou cianose (Leone, op cit).

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