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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.15 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Concepções de vida e sentimentos vivenciados por pacientes frente ao processo de Hospitalização: o paciente cirúrgico

 

Conceptions of life and feelings experienced by patients facing the process of Hospitalization: the surgical patient

 

 

Marcia Goidanich*,I; Fabíola Guzzo**,II

I Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI
II Curso de Psicologia da URI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A elaboração deste artigo partiu de uma experiência de Estágio Profissionalizante em Psicologia Clínica, realizado na unidade cirúrgica do Hospital de Caridade, localizado na cidade de Erechim-RS. O estudo traz à tona as vivências de pacientes durante o processo de hospitalização e os sentimentos que emergem diante da doença e da intervenção cirúrgica. Destaca-se, na fala dos pacientes, enunciações relacionadas a crenças religiosas e reflete-se sobre a função da construção desse tipo de resposta frente à situação de desamparo vivida. Ressalta-se o trabalho do psicólogo hospitalar como o de catalisador das aflições sustentadas pelos pacientes, possibilitando a estes um espaço onde o sujeito possa ser considerado além de sua patologia, além de um corpo objetalizado sobre o qual ocorrerá uma intervenção cirúrgica, resgatando o sujeito desejante.

Palavras-chave: Psicologia Hospitalar, Pacientes Cirúrgicos, Religiosidade, Psicanálise.


ABSTRACT

This article was written after the experience of a clinical psychology apprenticeship sustained at a surgical unit of a general hospital from Erechim- RS. It points out experiences and feelings of hospitalized patients towards their illnesses and surgical interventions. Detaches the evidence on patients speeches of religious believes and reflects about the function of this kind of answer to the helplessness situation that they are living. Stands out the hospital psychologist work as a catalyser of the agonies sustained by the patients allowing them a place where the subject may be valued beyond his pathology, beyond a concrete body upon which a surgical intervention will happen, ransoming the desiring subject.

Keywords: Hospital Psychology, Surgical Patients, Religiosity, Psychoanalysis.


 

 

Introdução

Este trabalho foi construído durante o estágio profissionalizante em Psicologia Clínica, no qual a estagiária realizava atendimentos psicológicos em uma unidade hospitalar de internação a pacientes cirúrgicos. A mesma permanecia na unidade durante 12 horas semanais, tendo o respaldo das psicólogas locais, além da supervisão acadêmica. A abordagem teórica sustentada nas supervisões acadêmicas teve ênfase psicanalítica. O estágio foi desenvolvido no Hospital de Caridade de Erechim-RS (HC), tendo início no mês de março de 2010 e sendo finalizado em dezembro do mesmo ano.

O atendimento psicológico no contexto hospitalar tem o seu foco no processo de hospitalização, nas emoções suscitadas devido ao adoecimento. Estas emoções fazem, muitas vezes, o paciente rever as "marcas" existentes em sua história de vida, rever valores e ressignificar vivências anteriores. É possível observar, nos atendimentos psicológicos hospitalares, que a maior angústia não se dá pela hospitalização em si, mas sim pela retrospectiva de vida que essa propicia ao paciente, fazendo-o reviver perdas e relembrar dificuldades sentidas. Sendo assim, a psicologia no hospital serve como um espaço de escuta das aflições expressas pelo paciente, um espaço onde o sujeito possa ser pensado para além de sua patologia, possa ser considerado como algo mais que um simples número de leito, valorizando seu mundo subjetivo e auxiliando-o no entendimento e no enfrentamento do momento no qual se encontra.

Para Campos (1995), é necessário que o psicólogo auxilie o indivíduo a reconhecer suas potencialidades, perceber as relações entre suas condutas e suas próprias experiências, sua doença e suas reações no seu contexto de vida, fortalecendo as possibilidades pessoais de enfrentar e lidar com as situações de crise, buscando evitar ou aliviar o sofrimento psicológico que essas causam. Assim, estaria atendendo a pessoa como um ser que pensa, sente, vive num meio social e é atingido por esse meio. O psicólogo deveria entender a doença como conseqüência do diálogo entre o indivíduo e o mundo, e não tratá-la como algo alheio ao doente, o psicólogo deve, portanto, conhecer e entender os aspectos emocionais subjacentes às queixas orgânicas.

 

Concepções de vida e sentimentos vivenciados por pacientes frente ao processo de hospitalização: O Paciente Cirúrgico.

A experiência de um estágio em psicologia clínica no contexto hospitalar possibilitou analisar as diferentes formas de enfrentamento do momento de crise que se instala durante a hospitalização. Através dos atendimentos realizados na unidade cirúrgica do HC, foi possível perceber as diversas maneiras com que os pacientes enfrentavam situações inesperadas, bem como o modo como lidavam com suas dores, com as alterações nas suas rotinas devido aos procedimentos médicos, com o período de recuperação, com o afastamento de casa e as emoções surgidas em relação a esses fatos.

Quando uma pessoa adoece e necessita de hospitalização, várias alterações são impostas à sua rotina, independentemente de sua vontade. Ela não é mais o comandante do seu navio, sua vida, e não sabe ao certo em que direção ele andará, em que porto irá desembarcar. É nesse momento que a equipe de saúde direciona suas ações a ela e o médico se torna o grande responsável pela "rota" a ser seguida. Tendo a vida guiada pelas mãos do médico, o paciente cria, muitas vezes, uma relação de dependência com este profissional.

Segundo Sebastiane e Maia (2005), no imaginário de muitos pacientes o médico atual é considerado como que um descendente dos feiticeiros e curandeiros. Para compreender seu papel é necessário relembrar que a doença pode, em diversas culturas, ser percebida como uma punição, sendo esta resultado da introdução no corpo do doente de um elemento maléfico e estranho, ou até mesmo da perda de um bom elemento interior. Diante desta situação, o médico tem como finalidade erradicar do paciente o mau elemento, ou capturar e reintroduzir o elemento bom. Para executar tal ação, o feiticeiro necessita controlar as forças do bem e do mau, bem como estabelecer um pacto com ambos os representantes.

Os mesmos autores afirmam que é comum este lado mágico ainda se fazer presente no imaginário de muitos pacientes, pois às vezes a simples visita ao médico faz o doente melhorar. Além disso, ao ter a doença diagnosticada, o paciente espera que o médico encarregue-se dela e vença-a. Porém, é este lado mágico que leva o paciente a também enxergar o médico com reserva, prudência e desconfiança. O temor e o respeito perante o médico estão consequentemente associados ao homem mau e ao salvador, sendo esta leitura aparentemente paradoxal presente, e não raro determinante, em muitas das relações entre paciente e médico. Este profissional tem acesso aos segredos da vida, da morte, do corpo e até do sexo do paciente.

Em relação aos médicos, foram evidenciadas ao longo do estágio tanto falas de pacientes que demonstravam confiança e segurança neste profissional, quanto aquelas que revelavam desconfiança, como se este realmente tivesse o poder de decidir suas vidas, para o bem ou para o mal. Percebe-se que a confiança depositada nos médicos faz surgir concomitantemente a coragem para encarar o processo doloroso, pois o paciente crê que estará se submetendo a ele em razão do seu posterior bem-estar:

PS: "Foi tudo bem, o médico me passou confiança, tranquilidade, até fui me consultar com outros antes de fazer a cirurgia, mas senti mais segurança com esse...".

PJ: "... faço o que eles [médicos] dizem que é melhor, eles sabem... sim eles que mandam".

PG: "Mas eu só vou fazer a cirurgia se tiver certeza que vai dar certo, já estou cansada, vou deixar assim".

PD: "... também a fulana [médica] não sei se é muito boa".

Apesar do avanço tecnológico das cirurgias e anestesias, o paciente cirúrgico nunca se sente completamente seguro, pois tais procedimentos tendem a originar intenso desconforto emocional, onde o indivíduo tem o seu futuro incerto, revelando sentimentos de impotência, isolamento, medo da morte, da dor, da mutilação, de ficar incapacitado, das mudanças na sua imagem corporal. Assim, diante da necessidade de realizar uma cirurgia, o paciente sente ameaçada a sua integridade física e psicológica. (Sebastiane & Maia, 2005).

Geralmente a angústia desencadeada pelos momentos que antecedem a cirurgia mobiliza sentimentos ambivalentes com relação à mesma, que podem ser visualizados através da díade: medo de que alguma coisa ruim aconteça x necessidade de se submeter à cirurgia em busca de uma melhora na qualidade de vida. Provavelmente, essa ambigüidade é responsável por uma importante desordem no paciente, pois este se depara com sua impotência: o desejo de não fazer a cirurgia é vencido pela necessidade de realizá-la. Por outro lado, pode ser percebido, através de relatos de pacientes, que antigas experiências negativas com relação a procedimentos cirúrgicos ou à sua recuperação tendem a aumentar a ansiedade, provavelmente pelo medo de que o processo se repita (Fighera & Vieiro, 2005).

Durante os atendimentos psicológicos, os pacientes deixavam transparecer a ansiedade sentida ao saber da necessidade de realizar uma cirurgia. Alguns, de forma bastante genuína, relatavam que não havia escolha, e que por isso fariam o quanto antes o procedimento para livrarem-se do problema. Outros pacientes afirmaram que postergaram o procedimento cirúrgico o máximo possível, pois acreditavam que o tratamento medicamentoso seria suficiente para solucionar a doença. A seguir, alguns trechos de falas de pacientes em relação ao procedimento cirúrgico:

PJ: "Queria ter feito, ter passado já, agora fica uma preocupação, mas vai fazer o quê...".

PE: "Antes eu não queria fazer, estava com medo, porque eu já fiz outra cirurgia, sofri um monte. Mas dessa vez eu não senti nada, não sinto dor, hoje estou muito bem".

PN: "Hoje eu estou bem, mas não gosto de hospital, nem de anestesia, eu fico meio boba parece".

PA: "A anestesia não me faz bem, eu fico vários dias ruim depois, devagar".

PC: "Eu tava com um pouco de receio, nunca tinha feito cirurgia... Você ficou sabendo que morreu alguns pacientes ali em Joaçaba por causa da anestesia? Eu fiquei preocupado, mas o médico disse que precisava fazer, então eu fiz".

PS: "Eu queria que passasse, não queria sentir dor, as outras que fiz era anestesia geral...".

Romano (1998, citado em Fighera & Vieiro, 2005) menciona que as principais fontes de ansiedade no período pré-operatório são a separação de casa, da família, de seu ambiente, de suas coisas, o medo com relação à vida em si e o fato de ser forçado a assumir o papel de doente. Além disso também são evidenciadas questões diretamente relacionadas com os aspectos biológicos, tais como o ato cirúrgico, a dor e a perda do controle sobre si mesmo.

A doença, além de uma crise, causa a suspensão do previsto, a desordem do costumeiro, a urgência do enfrentamento do duvidoso, do temível, do irreconhecível. Instala-se, quase sempre, uma crise, determinando um momento complicado na vida de qualquer um. Esta crise trazida pelo surgimento de uma doença causa uma ruptura com o estilo de vida anterior, uma perda do conhecido andamento da vida como ela era, uma situação de risco, uma mudança não esperada, significando, muitas vezes, uma transição importante e significativa, até mesmo para a morte, o que, em nossa cultura, assusta demasiadamente (Lustosa, 2007).

Para Campos (1995), há tensões psicológicas e desequilíbrios durante todo o momento em que a doença está presente, tanto no indivíduo como em seus familiares. A situação de tratamento e hospitalização pode ocasionar separações e cortes nas ligações afetivas com o mundo.

Através dos relatos dos pacientes do HC, se destaca a inquietação diante das mudanças, da incapacidade momentânea e da dependência em relação aos cuidadores. Aflora a questão, muito difundida na sociedade capitalista, de que o indivíduo deve ser independente e produtivo, deve sempre estar disposto a realizar suas tarefas com êxito e sem "perturbar" a vida alheia. O sujeito que adoece está vulnerável a ser considerado inútil e não ocupar um lugar social de reconhecimento. Sendo assim, as pessoas se sentem na obrigação de não parar suas atividades e também não sobrecarregar os demais com os seus cuidados:

PE: "Eu não gosto de ficar parada, mas agora tenho que cuidar, não posso erguer o braço mais que a altura do ombro. Até pensei: vai que eu erga pra pegar algo no armário, tem que cuidar bem para não abrir os pontos. Mas tem minhas filhas que também vão me ajudar. Acho que mais dois dias vou embora... Lá em casa estão arrumando tudo pra me esperar, eu tenho uma plantação pequena, algumas coisas pra consumo próprio, meu marido era muito caprichoso, não parava nunca, aí agora estão arrumando tudo pra me esperar."

PL: "Ah é ruim, eu fico irritada, tem que depender dos outros pra tudo, até pra pegar um pano, não pode erguer os braços".

PN: "Porque eu sempre me virei sozinha, eu sempre cuidei dos outros, eu sempre fui festeira, colocava os outros pra cima, agora eu estou assim".

PJ: "Ah, sei lá, que eu queria ir embora, mas fazer o quê...".

PL: "Eu gosto muito do meu jardim, sair lá fora, cuidar, mas agora não sei se vou poder fazer mais isso".

PB: "Eu não queria fazer a cirurgia, não precisava ter acontecido isso agora, mas se tem que fazer, né... Agora que eu abri a empresa eu queria estar acompanhando, eu confio no meu sócio, mas queria estar junto..."

As pessoas sadias estão em geral tão ocupadas com a busca de coisas elevadas como apreço, consideração, uma carreira importante, progresso e fortuna, que começam quase a esquecer as coisas simples. Mas para o doente essas coisas podem vir a ganhar um sentido complementar. As coisas do cotidiano se lhes mostram mais desejáveis do que antes. Mais do que uma pessoa sadia, o doente segue o ritmo do dia, aprecia cada detalhe, como o nascer do sol, a chuva, os ruídos do dia, o cair da noite e o silêncio. A noite ganha vida, embora uma vida pouco admirada. A primeira flor, o cantar de um pássaro pode lhe emocionar, sua janela, sua vista para o jardim, todos são acontecimentos importantes dos quais uma pessoa sadia quase não se ocupa (Alberto, 2002).

É realmente notável a qualidade das reações dos pacientes frente à cirurgia. Nessa circunstância, as pessoas tendem a mudar. Elas, muitas vezes, refazem-se, refinam seu autocontrole, deliberadamente restringem suas percepções e sentimentos, negam o perigo, aceitam com estoicismo o inevitável e conseguem, até mesmo, uma aparência de satisfação. O importante valor dessa mudança interna, embora não seja universal, é talvez maior do que se pensa. Com esse subsídio, o paciente não apenas se protege contra um medo e sofrimento avassaladores, mas se entrega também a um papel mais cooperativo e tratável (Camon, 2003).

No período da hospitalização os pacientes costumam falar de seus familiares e pessoas próximas valorizando os laços afetivos. Valorizam os momentos simples de sua existência e minimizam o seu problema comparando-o com outros mais graves. Isto pode ser percebido nos seguintes discursos:

PR: "... Mas olha, depois que eu tive que fazer as cirurgias, ir a médicos, aí a gente vê que não é só com a gente, tem pessoas piores..."

PN: "É, mas agora eu estou bem, agora é um começo, eu falei para o doutor que ainda vou ir muito a baile, fazer tudo que eu puder".

PE: "Sim, eu tenho netos e bisnetos já, e a gente vê que tem algumas famílias que dizem "ah, que morra aquela velha", mas pra mim não é assim, eles gostam de mim".

PG: "Eu falei pro doutor que dia 1° de abril tenho que começar a trabalhar, ele disse que era brincadeira (dia dos bobos), mas eu falei que não, esse dia é aniversário da minha mãe".

Camon (2003) reflete, no entanto, que ninguém deveria se deixar enganar pela contenção emocional de um paciente cirúrgico. Não importando o grau de imperturbabilidade de sua aparência, subjacente a ela pode estar escondido um medo e um pavor terríveis. O paciente submetido a procedimento cirúrgico apresenta aspectos psicológicos importantes, principalmente com relação ao medo. Mesmo que, muitas vezes, não evidencie tais questões, o paciente pode sentir medo da dor, da anestesia, de ficar desfigurado ou incapacitado. Pode ter medo de mostrar o medo e ter medo de muitas outras coisas. Sobretudo, tem medo de morrer. E, diferentemente de algumas outras coisas temidas pelas pessoas, o medo da cirurgia tem, pelo menos em parte, uma base concreta. Ainda que a realidade seja enriquecida pela imaginação, o medo da cirurgia nunca é totalmente imaginário.

A questão da finitude é algo que parece invadir os pensamentos dos pacientes quando estes se deparam com a falta de controle sobre seu próprio corpo, quando este corpo dá sinais de falha no seu funcionamento habitual. Neste momento, grande parte dos sujeitos busca uma explicação para questões existenciais baseando-se em suas compreensões de mundo e de ser humano. Apesar do avanço da ciência, várias dúvidas ainda coabitam a humanidade. Dentre todas talvez a maior delas seja a questão da finitude, por ser algo incompreensível para o ser vivo. A morte presentifica-se de modo mais evidente naqueles que se encontram gravemente enfermos e, após sua ocorrência, o silêncio apenas perpetua as dúvidas.

Neste contexto é bastante comum evidenciar-se a alternativa das crenças religiosas, que, partindo das construções culturais mais distintas, buscam, em seu âmago, explicações para questões essenciais à experiência humana. Não foram poucos os pacientes que em seus atendimentos evidenciavam o quanto os dogmas pregados pelas religiões pareciam servir de suporte e conforto para tolerar as angústias advindas daquilo que não conseguiam entender. Muitos foram os exemplos de falas que faziam referência direta a aspectos da religiosidade, apontando para o fato dos homens ainda terem muita dificuldade em lidar com dúvidas e incertezas. Ou seja, ainda parece ser insuportável não ter uma resposta absoluta para algo que causa tanto medo e perturbação como a morte.

Botelho (citado por Faria & Seidl, 2005) declara que vários pesquisadores têm investigado a associação entre fatores relativos à religiosidade, como práticas, afiliações e crenças, e suas implicações na saúde, tanto em sua dimensão física quanto mental. Essa associação tem raízes histórico-culturais muito antigas, presentes em mitos gregos, em rituais indígenas e nas inscrições bíblicas, que seguem influenciando a cultura ocidental nos tempos modernos. Segundo estudos antropológicos, a ausência de conhecimento sobre as enfermidades colaborou para que fosse iniciado, em determinado momento da história da humanidade, o processo de divinização do desconhecido. Em decorrência disso, acreditava-se que os deuses tinham o poder de causar doenças e de curá-las. Além dos deuses, apenas seus representantes na terra teriam o poder de interferir no processo de saúde e doença, vida e morte.

Freud (1927/1987), em sua obra O Futuro de uma Ilusão, discute amplamente a criação da religião pelas civilizações. Para ele, as construções religiosas se edificam sobre a herança infantil do desamparo fundamental. É a defesa contra o desamparo infantil, diz Freud, que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele também tem de reconhecer. Tal reação fundamenta justamente a formação das religiões com Deuses capazes de dominar as forças da natureza e proteger o homem das ameaças da própria sociedade humana. Assim, o anseio infantil por um pai constitui um motivo idêntico à necessidade de proteção divina contra as conseqüências da debilidade humana.

Freud (1927/1987) busca demonstrar, nesse texto, que as idéias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as outras realizações da civilização, ou seja, da necessidade fundamental do homem de se defender contra a força esmagadoramente superior da natureza. Além disso, acrescenta Freud, um segundo motivo reforça as construções religiosas: a busca de corrigir as deficiências da civilização e a manutenção de regras culturais necessárias a qualquer convivência social, regras essas que são, no entanto, penosamente aceitas pelos homens.

Freud propõe ainda pensar o totemismo como a primeira forma em que a religião se manifestou na história humana, e reforça o fato de ele ter sido vinculado, desde o início, aos regulamentos sociais e às obrigações morais. O desenvolvimento das religiões progrediu paralelamente aos avanços culturais da raça humana e às modificações na estrutura das comunidades humanas.

Se por um lado Freud destaca a importante função que a religião vem a ocupar na manutenção das civilizações, buscando compensar os homens pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impõe, enfatizamos aqui o outro ponto salientado pelo autor como estando na base de toda a construção religiosa: o desamparo humano. O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses (FREUD, 1927/1987, p. 29). Ou seja, as religiões têm ainda a difícil missão de reconciliar os homens com a crueldade do destino, com sua impotência frente aos poderes da natureza e, particularmente, com o desamparo absoluto perante a morte.

Durante os atendimentos realizados no HC, surgiram frequentes verbalizações de fé religiosa dos pacientes como um mecanismo de enfrentamento da doença ou intervenção cirúrgica. Percebe-se que os sujeitos buscam na fé, independente de qual seja a crença religiosa, uma significação para sua condição e através dela tentam ganhar força para enfrentar as dificuldades. Ainda que essa constatação certamente não sirva como regra geral, ela chama a atenção por sua expressividade em inúmeros atendimentos psicológicos, como demonstrado através das falas a seguir:

PD: "... uma coisa que me ajudou bastante também foi o grupo de orações".

PN: "E eu estou lendo bastante [espiritismo], eu sei que vai dar tudo certo, eu penso bastante positivo, sei que se Deus não me levou até hoje é porque minha missão não acabou aqui...".

PF: "Deus olhou muito por mim para eu estar aqui hoje, por isso às vezes eu me pergunto, não sei se é a fé ou o que... tem gente que fala que já sofreu, daí usam drogas, as mulheres vagabundas, mas eu não admito, não consigo admitir, eu acredito em Deus...".

PL: "Eu acredito muito em Deus, uma pessoa sem fé é como uma folha seca de uma árvore, que quando cai vem o vento e leva, eu penso que se eu tiver Deus nada vai me derrubar".

PX: "Deus sabe o que faz, se ele me deu essa cruz é por que eu posso carregar"

A fé religiosa parece confortar e ser fonte de esperança no processo de enfrentamento da doença e da cirurgia para aqueles que a tem como parte da sua construção pessoal. As pessoas geralmente se sentem seguras enquanto tem suas vidas sob controle, quando dominam determinado assunto ou quando realizam perfeitamente seu trabalho, mas aquilo que foge das suas mãos causa incertezas, angústias e medo. É ainda Freud (1927/1987) quem nos ensina: As idéias religiosas são ensinamentos e afirmações sobre fatos e condições da realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos por nós mesmos e que reivindicam nossa crença (p.37).

José Saramago vislumbra essas ondas de sentimentos que inundam os seres humanos expressando-as com beleza:

Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

 

Considerações Finais

Através da experiência de estágio em Psicologia Clínica, no Hospital de Caridade de Erechim, evidenciou-se que a vivência da hospitalização coloca em dúvida as certezas da vida, os valores e visões de mundo do paciente. Este se depara com a questão da finitude, visto que seu corpo dá sinais de "falhas" no seu funcionamento. O sujeito faz, geralmente, uma retrospectiva de sua vida e revive suas perdas, suas faltas. Assim, o trabalho do psicólogo se torna relevante, auxiliando o paciente na ressignificação de suas experiências, buscando dar apoio no enfrentamento das dificuldades apresentadas devido às mudanças impostas em função da hospitalização.

Quando uma pessoa é internada num hospital, o que se torna emergente e urgente são as necessidades que precisam ser atendidas, necessidades biológicas, orgânicas. No entanto, as necessidades do homem, entendido como ser falante, não se restringem às questões orgânicas. É preciso transformá-las em demandas que possam ser dirigidas ao outro. A demanda não se coloca no mesmo nível da necessidade, já que esta, mesmo sendo essencial para a sobrevivência, visa a um objeto específico e se satisfaz com ele, e aquela é formada e dirigida a um outro, sendo sempre essencialmente demanda de amor. É neste espaço, entre necessidades e demanda, que pode surgir o desejo. O desejo é revolucionário e faz advir o sujeito do inconsciente, e aí está a grande importância da escuta psicológica dentro da instituição hospitalar, onde as situações vitais lançam o sujeito ao encontro da realidade, sendo que esta põe em questão tudo o que o sujeito construiu sobre ele mesmo (Romano, 2002).

Para a psicanálise, o real tem como estatuto o impossível e se inscreve na estrutura humana sob a forma de um buraco, que comparece como furo real no imaginário (ausência de um saber, ou seja, de instinto) e como falta de um significante no simbólico (campo do Outro). Desejar está sempre articulado a esse resto não simbolizável. Por isso, desejar é sempre diferente do que se experimenta como realização de um desejo, porque só há para desejar o que falta. Quem sustenta o desejo como ação desejante é a fantasia (Ferreira, 2002).

É nesse sentido que Jacques Lacan (1957-58/1999) indica que o desejo é sempre excêntrico a toda satisfação. É esse desejo inconsciente, sempre insatisfeito, sempre desejo de outra coisa e sempre barrado que possibilita a constituição do sujeito. E o sujeito só pode se constituir na medida em que procura, de alguma forma, delinear esse desejo, circunscrevê-lo através das tentativas de amarragens significantes. Essa é a operação que justifica a importância fundamental da escuta dos sujeitos hospitalizados: a enunciação de suas histórias, de suas dores, de seus sofrimentos é o que potencializa a própria fundação subjetiva daqueles que se encontram diante do grande desamparo humano.

A epidemiologia deve reconhecer, ao pensar no sujeito, que a saúde ou a doença compõem diferentes pontos de vista, que doente e não-doente não existem apenas como entidades biológicas e sociais. A partir do sujeito, a doença perde sua exclusiva racionalidade etiológica biologicista, adquirida no século XIX com o "nascimento da clínica", para se constituir também como metáfora. "A doença como metáfora" decreta que a epidemiologia faça falar o "doente" para que se possa fazer surgir o sujeito, pois nesta perspectiva a doença oculta o sujeito como sujeito de desejo. Uma vez escutado o sujeito, a epidemiologia poderá se dar conta de que a doença pode ser saúde e vice-versa, e que saúde e doença visam a garantir certa ordem ao sujeito, um bem muitas vezes precário, momentâneo, mas o único possível em determinados momentos da existência (Brant, 2001).

O psicólogo, no contexto hospitalar, deve, assim, contribuir para a revelação do sujeito do inconsciente, facilitando a expressão das fantasias e desejos por parte do paciente, sendo continente diante de suas dores e auxiliando o mesmo na percepção de sua implicação no processo de saúde–doença.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Fabíola Guzzo
E-mail: faby0503@yahoo.com.br

 

 

* Psicóloga e Psicanalista. Mestre em Psicologia social e Institucional pela UFRGS. Professora da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI – Campos de Erechim.
** Graduando do Curso de Psicologia da URI, Campos de Erechim, 10. Semestre.