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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.15 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Os possíveis porquês do cuidar

 

The possible reasons for caring

 

 

Claudiane Aparecida Guimarães*; Marilda Emmanuel Novaes Lipp2**

Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade de Campinas

 

 


RESUMO

O cuidador principal no processo de qualquer doença é de extrema importância para os cuidados tanto com o paciente como para a equipe de profissionais que atende este paciente, pois, para estes, ele é o intermediário que, na maioria do tempo, acompanhará e/ou executará o plano terapêutico definido para o indivíduo que está sendo atendido. O objetivo geral deste artigo é de apontar se a função de cuidar pode ser uma possível variante no desenvolvimento do stress apresentado pelo cuidador de pacientes oncológicos. Os participantes da pesquisa foram dez cuidadores, familiares, com idade entre 31 e 73 anos, sendo 80% da amostra do sexo feminino. Os pacientes oncológicos, acompanhados pelos referidos cuidadores, eram atendidos em um hospital do interior de São Paulo. Para a coleta de dados, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada e o Inventário de Sintomas de Stress para adultos (ISSL). A análise dos dados foi quantitativa e qualitativa. Para o ISSL, as respostas foram avaliadas de acordo com as tabelas e normas do seu manual, e para as respostas ao roteiro de entrevista foi utilizada a análise de conteúdo segundo Bardin. Os resultados revelaram que 100% dos respondentes apresentavam stress, sendo que 60% deles se encontravam na fase de quase-exaustão e 40% na fase de resistência. Para a questão - Como se tornou cuidador deste paciente? – foco deste artigo, foi extraído das respostas as seguintes categorias: Papel assumido na trajetória da vida; Sentir-se bem com o bem do outro e A natureza imperativa do cuidado. A partir da análise realizada foi possível observar que a forma como essa pessoa se tornou cuidador do paciente pode ser uma variante propiciadora de stress. É importante ressaltar que, apesar da amostra reduzida do estudo, os resultados são compatíveis aos de outras pesquisas, e vêm reforçar a necessidade de elaboração de intervenções específicas, efetivas e contínuas junto ao cuidador principal de pacientes oncológicos, para a promoção da sua saúde e melhora da qualidade de vida.

Palavras-chave: Stress, Cuidador familiar, Câncer.


ABSTRACT

The primary caregiver in the process of any disease is extremely important for care with both patient and professionals team serving this patient, therefore, for these, the caregiver is the intermediate which, most time will monitor and/or perform the treatment plan set for the individual that is being monitored. The overall goal of this article is pointing how the role of caring can be a possible variant developing the stress presented by the caregiver of cancer patients. The research participants were 10 caregivers, families, with the age between 31 and 73 years old, which were 80% of female gender. The cancer patients, accompanied by the referred caregivers, were attended in a hospital of São Paulo upstate. For data collection, was used a semi structured interview guide and the Inventory Symptoms of Stress for adults (ISSL). The data analysis was quantitative and qualitative. For the ISSL, the answers were evaluated according with the tables and standards of its guide, and for the interview script answers was used the content analysis according to Bardin. The result revealed that 100% of the respondents presented stress, and 60% of which were in the phase of almost exhaustion and 40% in the phase of resistance. For the question – How did you become this patient caregiver? – the focus of this article was extracted from the answers for the following categories: role assumed in life's trajectory; Feeling good with another's well being and The mandatory nature of care. From the analysis made was possible to observe that the way this person became a caregiver can be a pledge stress variant. It is important to highlight that, despite the study reduced sample, the results are compatible with those from other researches, and reinforce the need of specific, effectives and continuous interventions with the primary caregiver of cancer patients, for his health promotion and better life quality.

Keywords: Stress, Family caregiver, Cancer.


 

 

Introdução

A pessoa que cuida de um paciente crônico é peça fundamental no processo da doença, além do cuidar, ele, muitas vezes, é o mediador nas relações do paciente, seja com os familiares, com a equipe de profissionais que o acompanha. Geralmente esse cuidador é um familiar, que oferece ao paciente mais que um cuidar prático, mas também um cuidar emocional, que envolve afeto, atenção, carinho, sustentáculo dos sentimentos do outro e para o outro.

De acordo com Straub (2005) geralmente entende-se saúde como a ausência de doenças, mas segundo a OMS saúde envolve um estado de completo bem-estar físico, mental e social, isto é, saúde é um estado positivo e multidimensional que envolve três domínios que não são independentes, mas influenciam uns aos outros, estes são: saúde física, saúde psicológica; saúde social. Mas, quando a doença se faz presente, esta vem imbuída de sofrimento e por vezes destrói as mais profundas estruturas da vida. Aliviar este sofrimento humano deve ser compreendido como elemento essencial do cuidar (Barros, 2003).

De acordo com C.N. Silva (2000) a crise que o impacto da doença causa pode ser mais intenso na família do que no próprio paciente, desencadeando o stress, que pode vir acompanhado de várias emoções como o desespero, irritação, intolerância e o reconhecimento da ameaça de perda que a morte do paciente pode acarretar. Todas essas reações agem tanto no nível psicológico quanto no nível físico dos indivíduos envolvidos.

Segundo Boff (1999) cuidar vai muito além de um ato, é uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilidade e de desenvolvimento afetivo com o outro. O cuidado faz parte da essência humana, recebemos cuidado desde o nascimento até a morte. O autor define este termo como "... desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Como dizíamos, estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude." (p. 91).

O mesmo autor lembra que por sua própria natureza, o cuidado abrange dois significados básicos, intimamente ligados entre si. Um que é a atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para com o outro; e outro significado que é a preocupação e inquietação, porque o indivíduo que tem cuidado se sente envolvido e afetivamente ligado ao outro.

Estes dois aspectos do cuidar citados por Boff (1999) podem ser confirmados em trabalhos já realizados como o de Floriani (2004); Neri (2002); C. A. M. Silva e Acker (2007) e Volpato e Santos (2007); que versam sobre aspectos positivos e negativos do cuidar, como: aprendizagem ao respeito pela condição humana, ajudar o paciente a se sentir melhor, sentimento de satisfação em cuidar, sentimento de culpa quando não consegue atender as necessidades do paciente e a sobrecarga imposta pela situação.

Liberato e Carvalho (2008) indicam que os membros familiares de pacientes oncológicos podem necessitar de cuidados psicológicos e/ou psiquiátricos, principalmente quando esse familiar é o cuidador principal. Daí a preocupação com a saúde, o bem-estar e a qualidade de vida deste cuidador que em geral está sujeito a altos níveis de stress.

Lipp e Malagris (2001) definem stress como uma resposta complexa do organismo, em cujo contexto estão presentes reações físicas, psicológicas, mentais e hormonais diante de qualquer situação que seja interpretada pelo indivíduo como desafiante. Para essas autoras, os estressores (fontes de stress) podem ser externos (eventos ou condições externas que afetam o organismo) e internos (determinados pelo próprio indivíduo).

Fontes externas podem se constituírem em qualquer mudança agradável ou não no cotidiano do indivíduo, e que exija da pessoa adaptação, porém há eventos que causam mais stress do que outros. Estas fontes podem ser oriundas de relações mal resolvidas, perdas, dificuldades financeiras, excesso de trabalho, expectativas da sociedade, preconceitos, tratamento desigual ou grandes responsabilidades (Lipp, Romano, Covolan & Nery, 1998; Lipp, 2005).

Lipp (2000b) propõe que no contexto familiar várias são as situações propiciadoras de stress: doenças crônicas e/ou terminais; morte de um dos membros da família; problemas emocionais graves na família; infidelidade conjugal; como também, situações agradáveis como: nascimento de uma criança na família; quando um filho sai de casa para freqüentar uma universidade distante; viagens de férias; entre outros. Logo, é importante compreender como as características ou circunstâncias que envolvem determinados membros de uma família podem acrescentar stress excessivo aos outros membros e afetar a dinâmica familiar.

A família é um todo que funciona como um sistema vivo, em que há uma rotina, onde os indivíduos possuem funções específicas, desempenham papéis. Quando um dos membros adoece o nível de stress alcança índices altos, e muitas vezes, outros membros da família também adoecem concomitantemente. Dessa forma, o sistema familiar se torna ameaçado, e podem surgir frustrações antigas, tensões latentes e hostilidades que no passado não foram resolvidas (Lipp, 2000b).

Já as fontes internas, segundo Lipp et al.,1998 e Lipp, 2005, são aquelas referentes ao tipo de personalidade, o modo de ser e a forma como a pessoa reage frente a situações da vida. Às vezes a situação é perigosa e as ameaças reais, mas por vezes, o indivíduo imagina e a interpreta como sendo perigosa ou ameaçadora. A forma como se pensa sobre a situação é que determinará se o fato será bom ou ruim, como afirmam Lazarus e Folkman (1984).

Lipp (2005) cita as principais fontes internas: pensamentos rígidos; valores antigos que não se adéquam à realidade atual; expectativas impossíveis de serem alcançadas; negativismo, pessimismo, mau humor; não saber dizer "não" às demandas dos outros; níveis acentuados de ansiedade; níveis altos de depressão; competição constante; pressa como um modo de viver; inabilidade de perdoar e esquecer o passado; perfeccionismo; pensamentos obsessivos; insegurança; egoísmo e raiva.

Guimarães (2000) aponta que alguns estudos sobre stress citam uma série de estressores que podem ser chamados de universais, por serem eventos que geralmente são estressantes para a maioria das pessoas, como por exemplo, mortes em família, separações, doenças crônicas, desemprego e congestionamento de trânsito. O que gera stress em um indivíduo, então, é a forma como ele reage ao evento, e essa reação depende de variáveis pessoais como temperamento, experiências passadas e do modo como essas variáveis influenciam na interpretação que o indivíduo faz do fato.

Selye (1956) analisou o stress como um processo que perpassa no tempo e propôs a existência de três estágios: alerta (nesta fase o organismo prepara-se para a reação de luta ou fuga, preparando o corpo e a mente para a preservação da vida), resistência (quando o stress se faz presente por tempo indeterminado, o organismo busca uma adaptação, com o intuito de manter a homeostase interna. Nesta fase a sensação é de desgaste e cansaço) e exaustão (se o estressor é contínuo e o indivíduo não possui estratégias para lidar com o stress, o organismo esgota sua reserva de energia adaptativa e esta fase se manifesta quando surgem doenças sérias).

O autor ressalta que não necessariamente o indivíduo passa por todas as fases do stress, ele apenas atinge a fase de exaustão quando está diante de um estressor muito grave. Na maioria das vezes, alcança apenas a fase de alarme e resistência, havendo depois uma adaptação.

Lipp (2003), durante a padronização do Inventário de Sintomas de Stress para Adultos, identificou outra fase, a fase de quase-exaustão, que se caracteriza por enfraquecimento da pessoa que não mais está conseguindo se adaptar ou resistir ao estressor, essa fase se encontra entre a fase de resistência e a da exaustão. Este modelo quadrifásico de Lipp é um desenvolvimento do modelo trifásico de Selye.

Lipp e Malagris (2001) apontam várias conseqüências do stress excessivo, tais como, consequências físicas (alteração no sistema imunológico, o que reduz a resistência do indivíduo e permite, então, o desenvolvimento de infecções e doenças contagiosas); consequências psicológicas (manifestação de cansaço mental, dificuldade de concentração, perda de memória imediata, apatia e indiferença emocional, a libido diminui, problemas físicos se tornam presentes, contribuindo para uma redução acentuada da qualidade de vida da pessoa); e consequências sociais (faltas ao emprego, licença saúde, enfartes, derrames, câncer, queda de produtividade, tristeza e depressão).

Face ao exposto, pode-se inferir que a forma como o cuidador se tornou responsável pelo cuidar do paciente e percebe esta função pode ser uma fonte de stress. Este artigo é um recorte do trabalho desenvolvido no Mestrado da primeira pesquisadora que buscou conhecer como o cuidador principal de pacientes oncológicos inseridos em Cuidados Paliativos vivencia o seu ato de cuidar e a iminência da perda de um ente querido, avaliando como isto afeta o seu nível de stress emocional.

 

Objetivo

Este trabalho tem a proposta de apontar se a função de cuidar pode ser uma possível variante no desenvolvimento do stress apresentado pelo cuidador de paciente oncológico, a partir das respostas dadas a questão - Como se tornou cuidador deste paciente?

 

Método

Os participantes foram 10 cuidadores de pacientes oncológicos com prognóstico de Cuidados Paliativos, atendidos no Hospital Municipal Mário Gatti, em Campinas - SP. Como critérios de inclusão o participante deveria ser o cuidador principal do paciente e concordar em participar da pesquisa espontaneamente e os critérios de exclusão foram o de exercer o cuidado de forma remunerada; ser cuidador, mas não o principal; e desejar, em qualquer momento da pesquisa, retirar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, não responder ao questionário ou ao teste utilizado na pesquisa. Além do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi utilizado o Inventário de Sintomas de Stress para Adultos – ISSL (Lipp, 2000a) e um Roteiro de Entrevista. A coleta dos dados ocorreu nos momentos em que os pacientes eram submetidos à quimioterapia e, em dois casos, a coleta deu-se durante a internação do paciente, já que o cuidador permanecia grande parte do tempo no hospital.

 

Resultados e Discussão

A análise dos dados coletados foi qualitativa e quantitativa. Em relação ao Inventário de Sintomas de Stress para Adultos de Lipp – ISSL - as respostas foram avaliadas de acordo com as tabelas e as normas do seu manual.

Para análise do roteiro da entrevista semiestruturada, as respostas obtidas foram analisadas de acordo com os objetivos da pesquisa, a partir das categorias estabelecidas na análise de conteúdo, de acordo com Bardin (2004). Para isso, dois juízes, mestrandos do curso de pós graduação em psicologia da PUC – Campinas, participaram da análise.

A amostra foi composta por dez cuidadores, sendo oito mulheres e dois homens, com idades entre 31 anos e 73 anos. Em relação ao estado civil, nove eram casados e um separado. No que se referia à profissão, quatro cuidadores eram donas de casa; quatro trabalhavam fora; e dois eram aposentados e realizavam trabalhos extras para complementar a renda familiar. Quanto ao nível de parentesco existente entre paciente e cuidador, cinco eram filhas; dois eram cônjuges; dois eram irmãos; e uma era mãe. Em relação ao aspecto de moradia, cinco dos cuidadores residiam com o paciente, e os outros cinco possuíam suas residências separadas das do paciente.

A partir dos resultados do ISSL, constatou-se que 100% (n=10) dos indivíduos apresentavam stress, sendo que 60% (n=6) se encontravam na fase de quase-exaustão, e 40% (n=4) na fase de resistência. Foi verificado que nove dos cuidadores apresentavam sintomatologia predominantemente psicológica, mas com porcentagem significativa de sintomas físicos. Os três sintomas psicológicos de stress mais freqüentes foram: Pensar e falar constantemente um só assunto; Angústia/Ansiedade diária e Vontade de fugir de tudo. Já os sintomas físicos de stress mais frequentes foram: tensão muscular, problemas com a memória e sensação de desgaste físico constante.

Para a análise de conteúdo, foram extraídos os tópicos mais relevantes das verbalizações dos participantes com relação às questões do roteiro de entrevista, após foi feita uma leitura integral e detalhada das informações de cada respondente. Em seguida, foram construídas interpretações por meio das respostas, levando em consideração, também, toda a história, os comentários e os relatos obtidos durante a entrevista. Com base nesse material, foram identificados significados em comum, que permitiram o seu agrupamento em categorias, que são apresentadas como um grupo de elementos sob um título genérico.

Para a questão - Como se tornou cuidador deste paciente? – foco deste artigo, foram extraídas das respostas as categorias: "Papel assumido na trajetória da vida"; "Sentir-se bem com o bem do outro" e "A natureza imperativa do cuidado".

Pelas respostas dadas, foi possível inferir que, na maioria dos casos, a pessoa assume o papel de cuidador como função inerente ao papel da vida, como processo natural, em que não há muito questionamento sobre o desejo, a disponibilidade, o querer do cuidador. Quando a doença se faz presente no núcleo familiar, o cuidar não se torna uma opção e, sim, uma necessidade.

Nesse papel da vida, a mulher se faz mais presente, o que pode ser considerado algo construído social e culturalmente. Neste estudo, 80% dos cuidadores eram mulheres, e os outros 20%, homens, os quais contaram com o apoio, acompanhamento e ajuda de outras mulheres. Nas falas seguintes de dois respondentes, foi possível observar essa evidência: "Eu mesmo que tenho que cuidar, sou mãe, cuidadora, orientadora" (C03); e "Porque sou mulher, mas eu me sinto bem em cuidar" (C08).

Esse fato também foi observado nos estudos de Simonetti e Ferreira (2008), que tinham como objetivo averiguar as estratégias de coping utilizadas por cuidadores de idosos portadores de doença crônica. Elas constataram que os cuidados primários são protagonizados pelas mulheres, enquanto os homens assumem cuidados indiretos, como transporte, questões legais, entre outros. Outro estudo que apresenta esse resultado é o de Resta e Budó (2004), em que a totalidade dos cuidadores era do sexo feminino. As autoras mencionam, também, a multiplicidade de papeis e arranjos internos que tais cuidadoras fazem para se adequarem à nova situação de cuidadora familiar.

Outra categoria extraída das respostas refere-se à satisfação pessoal, na qual o bem estar do cuidador aparece na possibilidade do cuidar do outro; a busca pela realização de um dever cumprido ou pela evitação de uma possível culpa do não realizado; já que alguns respondentes relacionam bem-estar com ausência de culpa e a satisfação em cumprir uma responsabilidade assumida na relação desenvolvida ao longo da vida entre paciente e cuidador. Essa sensação de dever cumprido, segundo Gil e Bertuzzi (2007), é presente quando o cuidador, apesar dos desajustes inerentes ao cuidar, executa essa tarefa com equilíbrio emocional. Tais aspectos puderam ser observados nas seguintes falas: "Eu tenho que arcar com a responsabilidade, abraçar a causa" (C01) e "Foi uma decisão minha para ter a consciência tranquila" (C02).

No primeiro caso, o cuidador era um esposo que se via como responsável em cuidar da pessoa com a qual ele assumira o compromisso matrimonial de cuidar e amar por toda a vida, desta forma, o poder cuidar da esposa lhe trazia satisfação por estar cumprindo com sua responsabilidade e tendo sua consciência tranquila por desempenhar seu papel como esposo e cuidador com zelo.

Já no segundo caso, a fala pertence a uma filha que cuidava do pai, que, segunda ela, sempre foi ausente, agressivo com toda a família, e, mesmo tendo outros cinco irmãos, ela foi a única pessoa que aceitou cuidar do pai, o que a fazia sentir-se bem por, nesse momento, desenvolver o papel de filha que, de acordo com ela, evitaria a sensação de culpa.

A última categoria – A natureza imperativa do cuidado - traz o sentido do cuidar com uma conotação de "Obrigação", em que o cuidador não vê outra opção por não existir ou ter disponível outra pessoa que cuidasse do paciente. Como nos casos dos cuidadores C05 e C09, que afirmaram: C05 – "Fiz por conta própria, mas não tive escolha"; e C09 – "Porque não tem quem cuida, ele vivia na rua".

A pesquisa de Resta e Budó (2004) tinha como um dos objetivos caracterizar diferentes tipos de cuidadores domiciliares em consonância com a cultura e a dinâmica familiar. Os tipos mais comuns de cuidadores foram agrupados em categorias, uma destas denominada "Cuidadores por obrigação", em que tais cuidadores viam essa atividade como um dever moral, derivado das relações pessoais e familiares e por não haver outra pessoa para cuidar, o que vem ao encontro do observado na presente pesquisa.

Alguns respondentes, mesmo utilizando um discurso em que se pôde entender o cuidar como algo que faz parte das obrigações da família, percebeu-se que o cuidar também tornara-se uma função penosa, exaustiva, como demonstrou o cuidador C06 na sua fala: "Lá em casa, tudo é eu, a casa funciona comigo. [...]A gente abre mão da vida para cuidar".

A partir do discurso dos cuidadores e da análise de suas respostas, foi possível inferir que o cuidar possui duas vertentes em relação a sua definição. Uma vertente que representa o ato de cuidar como uma configuração de obrigação por um papel assumido ao longo da vida, mas uma obrigação de compromisso, em que a expressão do amor, do afeto é presente e move muitas atitudes no sentido de atender às necessidades do paciente, sem representar para o cuidador um fardo. O que não exclui dificuldades e sobrecarga ao cuidador e à família, mas são aspectos que não impedem um cuidar legítimo.

A outra vertente representante do ato de cuidar também abrange o conceito de obrigação, mas como algo imposto, sem a opção de negar esse cuidar, por não haver outra pessoa que pudesse exercer essa função ou ao cumprimento de um dever moral e social. Neste caso, o afeto se apresenta mais frágil, e o cuidador reconhece sua função como algo imposto e exaustivo, e o cuidar é realizado com o intuito de ter a consciência tranquila, a sensação de dever cumprido e sem o sentimento de culpa.

Muitos trabalhos científicos vêm mostrando o quanto o cuidador principal se estressa nessas condições, devido à sobrecarga da função, às mudanças em suas vidas e à presença constante da iminência da morte. Esta pesquisa buscou assinalar o nível de stress em que se encontravam tais cuidadores., e foi possível constatar que a maioria (60%) deles se encontrava na fase quase-exaustão, os outros 40% se achavam na fase de resistência.

Vale ressaltar que nenhum cuidador se encontrava na fase de exaustão, o que, provavelmente, o impediria de executar a ação de cuidar, pois esta é a fase mais negativa do stress, é a fase patológica, de acordo com Lipp (2005). Nesta fase, seria pouco provável que o cuidador principal tivesse condições de oferecer cuidados necessários ao paciente oncológico por ele assistido.

Com o que foi exposto, juntamente com os resultados do ISSL, em que foi possível constatar que o nível de stress dos cuidadores se encontrava na fase da resistência e da quase-exaustão, que, segundo Lipp (2000b), são fases em que o indivíduo manifesta uma sintomatologia que requer atenção por parte dos profissionais da saúde, é possível reconhecer a necessidade do cuidar do cuidador principal, já que ele é uma unidade de cuidado dentro do processo da doença.

 

Considerações finais

O cuidador principal no processo de qualquer doença, neste caso, o câncer, é de extrema importância para os cuidados tanto com o paciente como para a equipe de profissionais que atende este paciente oncológico, pois, para estes, ele é o intermediário que, na maioria do tempo, acompanhará e/ou executará o plano terapêutico definido para o indivíduo que está sendo atendido.

Comparando as respostas dadas a esta questão, de cada cuidador e seu nível de stress, foi possível observar que a forma como essa pessoa se tornou cuidador do paciente pode ser uma variante propiciadora de stress. Também foi possível inferir que a singularidade do cuidar caracteriza a vivência perante essa situação, já que o paciente, o cuidador e a família são únicos, e nessa peculiaridade estão envolvidos experiências, histórias, crenças e valores que foram construídos ao longo da vida dessas pessoas. Isto, na maioria dos casos, foi o fator determinante de definição, ação e vivência do ato de cuidar dos cuidadores.

Daí a importância de uma atenção especial, a esse cuidador principal, e para que isso ocorra se faz necessária a atuação de uma equipe multiprofissional, com uma visão interdisciplinar, isto é, uma visão holística, na qual o ser é considerado biopsicossocial e espiritualmente, para que juntos possam determinar estratégias adequadas e exequíveis para cada caso atendido. E, aqui, ressalta-se o papel do psicólogo que, a priori, nessa situação, possui uma variedade de funções junto ao paciente, à família, ao cuidador principal e à equipe, já que, esse membro da equipe da saúde – o psicólogo - segundo Santos e Sebastiani (2003), talvez, seja o maior depositário de uma gama de sentimentos pesados, como, o desespero, a angústia, o medo, a ansiedade, a frustração e a impotência de todos os envolvidos nesse contexto.

A ênfase, nessa pesquisa, foi o cuidador principal, e no seu desenrolar, constatou-se a importância do papel do cuidador no cuidar, e o quanto ele, também, necessita ser cuidado, para que possa exercer sua função de forma adequada, equilibrada, podendo ter a certeza de que fez tudo que lhe era possível.

 

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* Doutoranda, Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP.
** Professora do Programa de Pós Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Campinas, SP.