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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.17 no.1 Rio de Janeiro jun. 2014
ARTIGOS
O acolhimento em Saúde no Brasil: uma revisão sistemática de literatura sobre o tema
The user embracement in Brazil: a study of systematic review on the theme
Bruno Feital Barbosa Motta1; Juliana Perucchi2; Maria Stella Tavares Filgueiras3
Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO
No Brasil a saúde é um direito de todos e dever do Estado. A prática do acolhimento tem sido um dos pilares da Política Nacional de Humanização (PNH) do Sistema Único de Saúde. Objetivo: analisar as publicações nacionais de artigos científicos acerca do acolhimento como Política Nacional de Humanização em saúde, entre 2001 e 2011. Método: trata-se de uma pesquisa qualitativa de revisão sistemática, realizada na base de dados LILACS com o uso do descritor "acolhimento". Resultados: Dos 560 artigos encontrados, foram analisados 175. Por meio do método de análise de conteúdo, foram examinados os seguintes itens: o local onde foi realizada a pesquisa, ano de publicação, o nível de atenção à saúde em que o artigo trata o acolhimento; o método de pesquisa empregado pelo artigo; e os temas mais recorrentes associados ao acolhimento. Conclusão: é notável a grande ênfase do acolhimento associada à atenção primária a saúde, sendo que a maioria das pesquisas é feita com metodologia qualitativa e tem como foco a entrevista com os usuários. Ainda há muito a ser discutido sobre a operacionalização do acolhimento, principalmente nos níveis secundário e terciário de atenção a saúde, para atingir a desejada qualificação dos serviços de saúde pública.
Palavras-chave: acolhimento, revisão sistemática, saúde.
ABSTRACT
In Brasil, health is a right to all and a duty of the State. The practice of user embracement has been one of the most important elements of the National Humanization Policy (NHP) from the National Health System. Objective: to analyze the national publications of scientific articles about the user embracement as National Humanization Policy as health, betweeen 2001 and 2011. Method: This is a qualitative systematic review, conducted in LILACS database using the descriptor "user embracement". Of the 560 articles found, 175 were analyzed. Using the content analysis method, the following items were analyzed: location where the research was made; year of the publication; level of health attention in which the article treats the user embracement; method of research used in the article; and most common themes associated to the user embracement. Conclusion: it is remarkable the great emphasis of the user embracement associated to primary health attention considering that the majority of the researches are made with a qualitative methodology and focused in user’s interviews. There’s still much to be discussed on the operationalization of the user embracement, particularly in the secondary and tertiary levels of health care services to achieve the desired qualifications of public health services.
Keywords: user embracement, systematic review, health.
Problematizando o Acolhimento em Saúde
No Brasil, a saúde é considerada, desde a constituição de 1988 em seu artigo 196, como direito de todos e dever do Estado. Segundo Teixeira (2007), a saúde pública brasileira conta com um grande número de portas de entrada. Entretanto, em função do que ele chama de "patamar crítico de cobertura de serviços" (Teixeira, 2007, p. 94), para oferecer acesso para todos em um país de dimensões continentais como o Brasil, é necessário mais do que a ampliação do número de portas de entradas.
Essa fragilidade é admitida pelo próprio Ministério da Saúde, que identifica a existência de "grandes lacunas nos modelos de atenção e gestão dos serviços no que se refere ao acesso e a forma como o usuário é acolhido no serviço de saúde pública" (Ministério da Saúde, 2010a, p.11).
Desta forma, o problema do acesso à saúde estaria também ligado à qualidade do modelo de atenção operante nessas unidades. Por isso, é fundamental "repensarmos aspectos importantes da organização do processo de trabalho, gestão, planejamento e construção de novos saberes e práticas em saúde" (Cecílio, 2009, p. 117).
Pensando em práticas de organização do serviço de saúde, Merhy e Onocko (1997) tomam como norte para essa construção o trabalho vivo em ato. Essa atuação pode ser entendida como aquela que, em ação, se caracteriza pela criação, busca e operacionalização de processos produtivos "descentralizando o trabalho em saúde até mesmo dos equipamentos e dos especialistas" (Merhy, 2007, p.31). O trabalho vivo em ato nos propicia o arranjo de novas tecnologias nos processos de produção de saúde.
Na prática dessa ação, ganha destaque a ideia de tecnologia que, não deve ser confundida ou correlacionada exclusivamente com equipamentos e máquinas, mas sim, relacionada a "saberes construídos para produção de produtos singulares, organização de ações humanas nos processos produtivos e até sua dimensão inter-humana" (Merhy, 2007, p. 45). Por isso, a ideia de tecnologia é classificada pelo autor, em três tipos diferentes: tecnologia leve, leve-dura e dura.
De forma sucinta podemos definir tecnologia dura como aquela pautada na ideia corriqueira de tecnologia, que se relaciona às máquinas, equipamentos tecnológicos e às normas. Já as tecnologias leve-duras pautam-se nos saberes estruturados envolvidos nos processos de produção de saúde, como por exemplo, a epidemiologia, a psicanálise, a clínica médica, o taylorismo e outros. Por fim, as tecnologias leves são vinculadas a relações, a "produção de vínculo, autonomização, acolhimento e gestão como forma de governar processos de trabalho" (Merhy, 2007, p. 49).
As tecnologias leves configuram-se como a base para o desenvolvimento do trabalho vivo em ato, apresentando uma dupla face. Por um lado, existe certo modo de gerir e governar construindo recursos e intenções. Por outro, há uma maneira de agir para a produção de bens/produtos. No pensamento de Merhy (2007), é a partir da tecnologia utilizada que imprimimos a particularidade de determinado serviço de saúde.
Igualmente preocupado com ações que busquem a qualificação e o aperfeiçoamento do serviço de saúde pública brasileira, o Ministério da Saúde criou, em 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH), também chamada de HumanizaSUS. Nessa proposta, que tem como objetivo "qualificar as práticas de gestão e atenção em saúde" (Ministério da Saúde, 2010b, p. 7), o acolhimento é apresentado como a diretriz de maior relevância ética, estética e política. Ética, por se pautar no reconhecimento da subjetividade do usuário; estética, quando propõe a dignificação da vida e do viver; e política, pelo fato de implicar o compromisso coletivo de envolvimento no processo de produção de saúde (Ministério da Saúde, 2010b).
O acolhimento, na Política Nacional de Humanização, não se resume a ações isoladas e pontuais, como por exemplo, uma recepção confortável, de boa dimensão espacial, uma triagem administrativa, ou um bom encaminhamento para serviços especializados. Ele deve ser atravessado por processos de responsabilização, buscando a criação de vínculo a partir da escuta de problemas, troca de informações, mútuo reconhecimento de direitos e deveres, e decisões que possibilitem intervenções pertinentes e eficazes em torno das necessidades dos usuários do serviço de saúde. Dessa forma, o acolher deve possibilitar a abertura para recepção das demandas dos usuários, visando o encontro entre o sujeito a ser cuidado e o trabalhador de saúde (Pasche, 2010). Desse encontro será possível a produção de relações de escuta e responsabilização com os projetos de intervenção (Franco, Bueno, & Merhy, 1999).
A operacionalização dessa diretriz é capaz de criar uma rede de diálogo permanente entre usuários, trabalhadores e serviços de saúde. Para o Ministério da Saúde, essa comunicação possibilita a construção de "práticas de co-responsabilidade e de autonomia das pessoas implicadas, afirmando, assim, a indissociabilidade entre produção de saúde e produção de sujeitos" (Ministério da Saúde, 2010c, p.12).
Com os vínculos criados no encontro entre profissionais de saúde e usuários, busca-se a ampliação dos processos de autonomia e corresponsabilidade entre trabalhadores, gestores e usuários no gerir e no cuidar (Ministério da Saúde, 2009). Essa proposta altera a relação de poder técnico-usuário, retirando o paciente do lugar de passivo em seu tratamento. Tal transformação auxilia na mudança do paradigma regulado por práticas centradas no saber médico, curativistas e hospitalocêntricas para práticas pautadas no conceito ampliado em saúde, que pleiteiam a universalidade, a integralidade e o controle social.
Além do enfoque na criação de vínculo e corresponsabilização, o acolhimento pretende chamar a atenção para a reavaliação permanente das práticas de produção de saúde. Assim, ele se torna mais que uma ferramenta de melhoria do serviço, constituindo-se, sobretudo, em um modo de mensuração da qualidade do trabalho prestado. Apesar de ter início na porta de entrada do serviço, o acolhimento é uma tecnologia que se estende por todo o processo de produção de saúde, sendo possível sua operacionalização em todos os níveis de atenção. Contudo, para que ele funcione, é preciso transpor os princípios dos textos das políticas para a prática do cuidado e da gestão. Para isso, devem-se levar em consideração as peculiaridades do cotidiano de cada serviço de saúde, ou seja, guiando-se pelas necessidades do usuário, da comunidade e pelas características do serviço.
Nesse contexto, a relevância de práticas humanizadas como o acolhimento ganha destaque no cenário nacional, seja como tema de publicação de inúmeras teses, artigos e livros vinculados à saúde pública brasileira, ou como pauta de seminários e conferências. Vale ressaltar que, no ano de 2011, o tema se tornou pauta da Conferência Nacional de Saúde, que tinha como eixo Acesso e Acolhimento com Qualidade: um desafio para o SUS. Dessa forma, identificar as produções acadêmicas acerca do Acolhimento no SUS, verificando o impacto dessa prática nos serviços de saúde, pode constituir uma contribuição importante para a construção de novos conhecimentos sobre os serviços públicos de atenção à saúde.
Compreendendo essa importância, e tendo em vista o grande debate em torno do acolhimento nos últimos anos, esse artigo, tem como objetivo geral apresentar o trabalho que realizamos em busca de artigos científicos em periódicos nacionais, publicados entre janeiro de 2001 e novembro 2011, sobre o acolhimento como Política Nacional de Humanização em saúde e/ou tecnologia leve. Como objetivo específico pretende-se identificar o volume de produções cientificas sobre acolhimento no referido período; examinar os níveis de atenção em que o acolhimento tem sido operacionalizado; conhecer os tipos de pesquisa que estão investigando o acolhimento; identificar os temas mais recorrentes associados ao acolhimento.
Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa de revisão sistemática da literatura com análise de conteúdo e arquivamento de informações documentais. A revisão de literatura destaca-se como uma forma de produzir maior conhecimento sobre determinado assunto; conhecer quais questões outros autores já pesquisaram ou concluíram sobre o tema; e gerar novas interrogações acerca do assunto. O material produzido pela revisão de literatura deve possibilitar, através da coleta seletiva do pesquisador, extrair conclusões do objeto estudado (Sullivan, 2010).
O uso da análise de conteúdo para exame do material coletado fundamenta-se na ideia de Millward (2010), que identifica nesse método tanto um componente mecânico quanto um componente interpretativo. O componente mecânico envolve a organização e divisão dos dados em categorias. Já o interpretativo envolve certo número de categorias significativas em termos de perguntas propostas. Essas características da análise de conteúdo estão inextricavelmente ligadas ao processo de arquitetura e desenvolvimento de esquemas, codificação e interpretação dos dados (Millward, 2010). Com essa análise, o pesquisador busca uma compreensão significativa dos dados, gerando categorias e códigos no curso de sua investigação (Henwood & Pidgeon, 2010).
Para a produção do arquivo de fontes documentais, foi realizado um trabalho de revisão sistemática de artigos, na base de dados Lilacs, publicados entre 2001 e 2011, com o descritor acolhimento.
A primeira fase da análise dos dados foi composta pela leitura e exame dos resumos de todos os resultados encontrados, para se definir quais seriam incluídos e quais seriam excluídos da pesquisa. Nesse sentido, definiu-se que seriam incluídos os artigos nacionais publicados entre janeiro de 2001 e novembro 2011 que tratassem o acolhimento no âmbito da saúde, quer como tecnologia leve, quer como diretriz da Política Nacional de Humanização (PNH) do Sistema Único de Saúde (SUS). Foram excluídas das fontes analisadas as teses, dissertações, livros, documentos de vídeo e/ou áudio, artigos publicados em língua estrangeira, experiências internacionais de acolhimento, artigos que não tratavam o acolhimento como tecnologia leve ou prática da Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde.
A segunda fase da análise identificou o local onde foi realizada a pesquisa, seu(s) autor(es), data e a revista de publicação dos artigos incluídos. Esses dados discriminados tornaram-se "unidades de análise". Em seguida, foi feita a tabulação dos artigos, em planilha de Excel 2007. Nesse arquivo, foram criadas quatro planilhas. A primeira traz informações sobre o nível de atenção à saúde em que o artigo trata o acolhimento; a segunda, mostra o método de pesquisa empregado pelo artigo; a terceira, o ano de publicação dos artigos; e por fim, a quarta planilha apresenta os temas mais recorrentes associados ao acolhimento.
A partir dessas quatro planilhas principais, foi possível a análise de elementos referentes às modalidades metodológicas adotadas nos relatos de pesquisa investigados, bem como as dimensões teórico-práticas e os níveis de atenção à saúde em que o acolhimento vem sendo operacionalizado nos últimos anos de produções científicas.
Resultados
A busca com o descritor acolhimento, na base de dados Lilacs, gerou 560 resultados, os quais todos os textos com cópia online gratuita foram arquivados. Dos 560 artigos, 175 se encaixaram nos critérios de inclusão e foram avaliados pelo método de análise de conteúdo.
Entre os resultados encontrados, chama atenção a distribuição dos artigos por ano. Foi encontrada apenas uma publicação em 2001, representando 0,57% do total dos artigos publicados entre 2001 e 2011. O ápice de publicações por ano se deu em 2010, com 44 trabalhos, assim como mostra a Tabela 1.
No detalhamento da análise da distribuição dos artigos publicados por ano, é indispensável ressaltar que os efeitos do lançamento da PNH só foram sentidos, no que diz respeito à publicação dos artigos incluídos na pesquisa, no ano de 2005, com o trabalho de Ferreira (2005). Nele, o autor busca fazer uma análise de como a PNH demanda dos trabalhadores de saúde uma capacidade de conversão da dimensão técnica para a dimensão relacional em seu trabalho. Antes disso, os artigos versavam sobre o acolhimento como tecnologia leve e humanização. Contudo, a humanização tratada não é ainda a proposta pela PNH, embora já apresentassem ligações com a qualificação e organização dos serviços de saúde. Vale lembrar que a humanização, como Política do SUS, foi criada apenas no ano de 2003, sendo impossível que ela fosse citada por qualquer artigo antes dessa data. O único trabalho produzido em 2003, de Ramos e Lima (2003), ainda tinha como base teórica autores com Merhy, Franco, Bueno e outros, visando o acolhimento como tecnologia de trabalho em saúde.
No ano de 2004, temos um considerável aumento no número de produções e debates sobre a humanização e as relações humanizadas nos processos de produção de saúde, como exposto nos artigos de Deslandes (2004), Franco, Panizzi e Foschiera (2004), Marques e Lima (2004), Silveira, Felix, Araújo e Silva (2004), e Trentini e Beltrame (2004). Entretanto, nenhum deles citou a Política Nacional de Humanização em seu debate sobre o acolhimento.
Em contrapartida, nos últimos anos envolvidos pela pesquisa, é possível notar forte presença da PNH nas referências bibliográficas dos artigos. Nesse sentido, merece destaque o ano de 2010, no qual 25 dos 44 artigos incluídos citam o HumanizaSUS em suas publicações.
No que se refere ao número de artigos incluídos e sua distribuição por região, temos o Sudeste como o detentor do maior número de publicações: 56 no total. Em seguida, a região Nordeste, com 47 pesquisas, e Sul, com 42 artigos. Entre os estados com maior número de artigos incluídos, temos São Paulo, com 27 artigos, Ceará, com 21 e Rio Grande do Sul, com 20.
A distribuição do nível de atenção à saúde, nos artigos incluídos para análise, está na Tabela 2. É importante ressaltar que nem todos os artigos encontrados falam do acolhimento em um nível de atenção à saúde especifico. Dessa forma, existem trabalhos que falam do acolhimento em mais de um nível de atenção simultaneamente, bem como aqueles que não identificam qual o nível envolvido, e trabalham o tema de forma genérica. Nesse caso, os artigos integram a unidade de análise Nível de atenção à saúde não definido.
Os resultados da Tabela 3 apresentam os temas mais recorrentes associados ao acolhimento. No total, 47 artigos incluídos na pesquisa apresentavam correlação com outro tema em saúde. Entre eles, merece destaque os trabalhos relacionados à Saúde Mental, representando 13,14% do total da amostra. Em seguida, temos a interdisciplinaridade como o segundo tema mais associado ao debate do acolhimento, com 10 artigos incluídos.
A Tabela 4 dispõe sobre o método de pesquisa utilizado pelos artigos incluídos. Vale ressaltar que foram encontrados artigos que utilizam os métodos qualitativo e quantitativo na mesma pesquisa. Como exemplo, temos o trabalho multicêntrico de Trad e Esperidião (2010), que realiza um múltiplo estudo de caso, visando a análise dos processos de humanização no âmbito da Estratégia de Saúde da Família, em municípios de médio porte na Bahia, Sergipe e Ceará. Dessa forma, as unidades de análise expostas na Tabela 4 não são mutuamente excludentes, sendo o valor total de n maior que 175. Nesse quadro, os relatos de experiência foram separados dos demais tipos de pesquisas qualitativas, dado o volume de utilização desse método de produção encontrado em nossa busca. Eles compreenderam 22,3% do total de artigos incluídos na pesquisa.
O número de pesquisas qualitativas também é alto, mesmo que separado dos relatos de experiências. Mais da metade, 55,4% dos artigos incluídos na pesquisa foram realizados utilizando essa metodologia. Esse número é maior quando incluímos os relatos de experiência nas pesquisas qualitativas, totalizando 77,7% da amostra.
Já a Tabela 5 apresenta, de forma detalhada, os atores entrevistados para a produção das pesquisas qualitativas. Nesses resultados, destaca-se o volume de pesquisas que utilizam entrevistas com usuários do serviço de saúde. Se somarmos todas elas, chegamos ao total de 60 artigos. Já as pesquisas que utilizam entrevistas com trabalhadores de saúde, ocorreram em 53 dos 97 artigos de metodologia qualitativa.
Discussão
O aumento anual do número de artigos publicados sobre o tema acolhimento mostra como o assunto vem se tornando recorrente nos debates acadêmicos e nas práticas dos serviços de saúde. Chama atenção o volume de produções sobre o acolhimento publicadas no ano de 2010, ano anterior a 14ª Conferência Nacional de Saúde, que teve como eixo Acesso e Acolhimento com qualidade: Um Desafio para o SUS. Ainda sobre o número de publicações por ano, é interessante relembrar que a Política Nacional de Humanização foi lançada em 2003, sendo assim, justificável o baixo número de artigos incluídos na pesquisa entre os anos de 2001 e 2003.
Entretanto, isso não significa que esses trabalhos não versem sobre a humanização. Entre os três artigos incluídos no período de 2001 e 2003, todos empregaram a ideia do acolhimento como tecnologia, somada ao debate da humanização em saúde. Tanto a pesquisa de Brêda e Augusto (2001), quanto a de Mângia, Souza, Mattos e Hidalgo (2002) chamam atenção para a importância do aprofundamento das discussões sobre o acolhimento nos processos de cuidar e gerir em saúde. Mângia et al. (2002), um ano antes do lançamento da PNH, já destacavam a importância do acolhimento como forma de organização dos serviços de saúde, distinguindo, de forma clara, o acolhimento da triagem. Os pesquisadores apontam, em seus estudos, que o acolhimento, como uma tecnologia leve, é capaz de possibilitar a melhor recepção de demandas e a desburocratização do acesso nos serviços de saúde mental.
A entrada da PNH nas referências dos artigos incluídos ocorre em 2005. Antes disso, a maioria dos trabalhos pautava-se na ideia de tecnologia leve, associada ao debate sobre humanização. Embora sem usar a PNH para dizer da humanização, alguns autores recorrem a documentos oficiais do governo federal, como os textos do Programa de Saúde da Família, da Política Nacional de Humanização, da Assistência Hospitalar e, até mesmo, a documentos municipais, como por exemplo, da Política de Humanização da Saúde da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul. O início tardio da citação da PNH, nos textos incluídos, pode ser justificado pelo longo espaço de tempo decorrido entre a submissão e a publicação do artigo em um periódico científico.
Na análise dos artigos por região, chama atenção o fato do estado de São Paulo, detentor do maior número de publicações na distribuição por estado, possuir pesquisas em 11 municípios diferentes. Apesar da diversidade, a capital de São Paulo possui 13 das 27 publicações do estado, sendo elas ligadas a um centro de educação superior e contando com, no mínimo, um pesquisador da Universidade de São Paulo (USP).
De forma geral, a maioria das publicações se concentram nas regiões Sudeste, Nordeste e Sul do país, respectivamente. Esse resultado pode ser associado ao fato das publicações estarem, em sua maioria, atreladas a centros de ensino superior, concentrados predominantemente nessas regiões. De acordo com o Censo de Educação Superior realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), 48,7% das matrículas em ensino superior no Brasil localizam-se na região Sudeste do país, seguido por 19,3% no Nordeste e 16,4% no Sul (INEP, 2011).
Ao fazer a análise dos artigos incluídos, em relação ao nível de atenção à saúde tratada, é possível verificar como o acolhimento vem sendo relatado e pesquisado com maior ênfase na atenção primária à saúde, com destaque aos programas e estratégias de saúde da família. Isso mostra o quanto a prática do acolhimento continua vinculada à atenção primária, embora o Ministério da Saúde recomende a implantação do acolhimento nos demais níveis de atenção à saúde, como por exemplo, em serviços de Unidades de Urgência como Classificação de Risco, nas Unidades de Atenção Especializadas e nas Centrais de Regulação de Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (Ministério da Saúde, 2010c).
O tema mais recorrente associado ao acolhimento foi a saúde mental. Foram encontrados 23 artigos nessa área. Entre eles, podemos destacar o trabalho de Brêda e Augusto (2001), que apontam a importância da utilização de abordagens baseadas no vínculo, escuta e acolhimento, visando quebrar a lógica da atenção centrada no modelo biomédico. Ainda sobre a temática de saúde mental, chama a atenção a pesquisa realizada por Jorge et al. (2011) que, em sua conclusão, aponta o acolhimento com uma ferramenta hábil para a transversalização da prática psicossocial, sendo capaz de construir o encontro entre usuários e trabalhadores de saúde na busca pela resolutividade nos cuidados em saúde.
Entre os artigos incluídos, 28 não tomam o acolhimento como tema principal do trabalho, porém apostam no uso dessa tecnologia como forma de resolução dos problemas dos serviços de saúde. Esse número, que representa 16,6% do total de artigos incluídos, chama atenção pelo modo como o acolhimento é visto, em alguns casos, como uma salvação, ou como a ferramenta capaz de equacionar os problemas dos serviços de saúde. Essa percepção tem se acentuado ao longo do tempo, sendo que, dos 28 artigos que versam sobre o emprego do acolhimento para a qualificação dos serviços de saúde, seis foram publicados no ano de 2009 e dez publicados no ano de 2010. Esse crescimento pode ser visto como reflexo de um maior conhecimento e intensificação da divulgação da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde. Vale ressaltar que nos anos de 2009 e 2010 há um maior número de artigos incluídos na pesquisa.
Outro ponto relevante dos dados coletados está no número de pesquisas com desenho metodológico qualitativo superior às pesquisas com desenho quantitativo. Isso pode ser atribuído aos objetivos propostos pelo acolhimento. A qualificação dos serviços de saúde, ampliação do vínculo, corresponsabilização entre usuário trabalhadores de saúde e gestão e a preocupação com a produção de subjetividade dizem respeito às unidades de análise que podem ser exploradas, de forma mais ampla, com o uso de métodos qualitativos, uma vez que essas são características qualitativas do trabalho em saúde. Além disso, chama atenção a ênfase dada à entrevista com usuários e trabalhadores do serviço de saúde. A produção de pesquisa com esses atores torna-se fundamental para se pensar a avaliação de uma diretriz que propõe a mudança do paradigma de atendimento centrado na figura do médico para o atendimento centrado no usuário.
A realização de pesquisas com usuários e trabalhadores do serviço de saúde ganha mais relevância quando pensamos no acolhimento como uma micropolítica que deve ser construída levando-se em conta as particularidades de cada serviço de saúde. Dessa forma, entrevistar aquele que está na "ponta" do serviço, ou seja, em contato direto com o usuário, é primordial para possibilitar a reflexão da práxis desenvolvida e vislumbrar melhorias.
Conclusão
Com o passar dos anos, o acolhimento, como diretriz da Política Nacional de Humanização do SUS, vem ganhando força em sua prática e conhecimento por parte dos profissionais e gestores em saúde. Porém, há muito a ser discutido sobre a operacionalização dessa ferramenta para atingir a desejada ampliação do acesso e qualificação dos serviços de saúde pública. Apesar do número expressivo de publicações sobre o tema, é necessário ampliar ainda mais o debate. Levar a discussão e problematização do acolhimento para regiões como o Norte e o Centro-Oeste do Brasil, incentivando, não apenas a produção acadêmica relacionada aos centros de ensino superior, mas também o relato do cotidiano dos trabalhadores, usuários e gestores. Esse movimento é de suma importância para a existência de uma reflexão sobre a prática dos processos de atenção em saúde.
Também é preciso estender a prática e a discussão sobre o acolhimento nos níveis secundário e terciário de atenção à saúde. Desse modo, o debate ganhará força na medida em que pudermos nos debruçar sobre as questões ligadas à melhoria da entrada do usuário no sistema de saúde, independentemente do nível de atenção do serviço. A ampliação do debate sobre a prática do acolhimento nos demais níveis de atenção coloca em pauta temas importantes da qualificação da saúde pública, como, por exemplo, a criação do vínculo, a responsabilização e a resolutividade. A não utilização do acolhimento nos níveis secundário e terciário pode dificultar a quebra do modelo curativista, médico centrado, levando ao olhar fragmentado e reducionista sobre o sujeito que busca o serviço de saúde. O usuário corre, assim, o risco de ser visto como um aparelho ou sistema biológico, com disfunções e lesões a serem silenciadas (Mattos, 2003). Além disso, o acolhimento nos níveis primário, secundário e terciário de atenção à saúde torna-se uma das possíveis engrenagens para a produção da interdisciplinaridade, da integralidade e da intersetorialidade nos diversos serviços de saúde.
Além da ampliação do debate sobre o acolhimento nos serviços secundário e terciário de atenção à saúde, chama atenção o baixo número de pesquisas realizadas com os gestores de saúde e com familiares de usuários. A falta de pesquisa com gestores dos serviços de saúde impossibilita a avaliação de como tem se dado a relação entre os objetivos dos gestores e as práticas vividas no cotidiano dos trabalhadores de saúde que estão em contato direto com o usuário. Por outro lado, o incentivo à produção de pesquisas com familiares torna-se relevante, tendo em vista que, em muitos casos, é ele quem acompanha o usuário ao serviço de saúde e quem dará suporte na continuidade do tratamento fora da instituição de atendimento. E mais, é importante lembrar que o familiar também é usuário do serviço e possui demandas a serem acolhidas. Não realizar pesquisas que os incluam é deixar de escutar aqueles que podem não estar doentes, mas estão igualmente submetidos à lógica do sistema de saúde.
É necessário que a discussão sobre o acolhimento não se interrompa. Ela deve continuar de forma mais contundente nas academias, durante a formação dos novos profissionais de saúde, nos encontros científicos e, principalmente, dentro dos serviços de saúde. Por não se tratar de uma prática cristalizada, o acolhimento e a PNH devem ser debatidos constantemente pelos trabalhadores de saúde, usuários, gestores, familiares, pesquisadores, acadêmicos e pela comunidade de forma geral. Esse debate não deve perder de vista a relevância do fortalecimento dos vínculos e a relação de corresponsabilidade entre os atores envolvidos, lembrando que os processos de produção de saúde começam na entrada do serviço.
Continuar a pesquisar sobre o que as publicações sobre o acolhimento trazem é fundamental. Temos consciência de que esse trabalho possui limitações e não pretende esgotar o assunto. Para maior compreensão dos dados apresentados, ainda serão necessários outros estudos voltados para os aspectos sócio-históricos e econômicos, que compreendem o período estudado pelo presente artigo, bem como, a inclusão de teses, dissertações e documentos oficiais sobre o tema, visando uma análise mais ampla do acolhimento.
Por fim, é necessário reconhecer que o acolhimento não deve ser visto como a ferramenta salvadora do serviço saúde. Não é possível resolver todos os problemas de acesso e qualificação do Sistema Único de Saúde apenas com a implementação do acolhimento. Não há nenhuma tecnologia ou política que seja capaz de dar conta desse problema de forma isolada. Para a esperada melhoria dos serviços de saúde será preciso que haja uma articulação com as outras diretrizes e princípios do SUS, como a integralidade, a universalidade, a equidade e o controle social, além do constante investimento financeiro em pesquisa e projetos de extensão em saúde.
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1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Psicólogo colaborador-participante externo do Ambulatório de Diabetes do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: brunofeital@hotmail.com
2 Professora Adjunto III do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora; Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: juliana.perucchi@ufjf.edu.br
3 Psicóloga, psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio; Ex-Profª Associada do Departamento de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora; Ex-Coordenadora da Residência em Psicologia Hospitalar e da Saúde do HU/UFJF; Profª Colaboradora do Mestrado em Psicologia da UFJF; Membro-lider do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Psicossomática (NUIIPSO). E-mail: stellarc@uol.com.br